16 de setembro de 2024

Trechos selecionados de G.K. Chesterton


Ninguém consegue imaginar como nada se transforma em alguma coisa. Ninguém é capaz de chegar sequer um milímetro mais perto de compreender isso explicando como alguma coisa pode se transformar em outra. É realmente bem mais lógico começar por dizer “No princípio, Deus criou o céu e a terra” se você só quer dizer que “No princípio, algum poder inconcebível deu início a um processo inimaginável”.

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De acordo com os verdadeiros registros disponíveis, a barbárie e a civilização não eram estágios sucessivos no progresso do mundo. Eram situações que existiam lado a lado, tal como ainda existem lado a lado. Existiam civilizações então como existem civilizações agora; existem selvagens agora como existiam selvagens então. Sugere-se que todos os homens passaram por um estado nômade; mas é certo que houve alguns que nunca saíram dele, e não parece improvável que tenha havido alguns que nunca chegaram a ele. É provável que, desde os tempos mais primitivo, o agricultor estático e o pastor andarilho fossem dois tipos distintos de homens; e o rearranjo cronológico deles não é mais que uma marca da mania de estágios progressivos que em grande medida falsificou a história. Sugere-se que houve um estágio comunista, no qual a propriedade privada era desconhecida em toda parte, toda uma humanidade vivendo na negação da propriedade, mas as evidências dessa negação são elas mesmas um tanto negativas.

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Toda essa questão mitológica concerne à parte poética dos homens. Hoje em dia parece que estranhamente se esqueceu que um mito é uma obra de imaginação e portanto uma obra de arte. [...] Contudo, por alguma razão que nunca vi ser explicada, é só a uma minoria de pessoas não poéticas que se permite escrever estudos críticos desses poemas populares. Não submetemos um soneto a um matemático ou uma canção a um garoto que gosta de cálculo; mas realmente toleramos a ideia igualmente fantástica de que o folclore possa ser tratado como uma ciência.

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A superstição surge em uma época racionalista porque ela se baseia em algo que, se não é idêntico ao racionalismo, não está desligado do ceticismo. Ela está pelo menos ligada bem de perto ao agnosticismo. Ela se baseia em algo que realmente é um sentimento muito humano e inteligível, tal como as invocações locais do numen no paganismo popular. Mas é um sentimento agnóstico, pois se baseia em duas percepções: primeira, a de que não conhecemos realmente as leis do universo; e, segunda, a de que elas podem ser muito diferentes de tudo o que chamamos razão. Esses homens percebem a verdade efetiva de que coisas enormes frequentemente dependem de coisas mínimas. Quando há a sugestão, seja vinda ou não de uma tradição, de que uma determinada coisa minúscula é a chave ou guia, algo de profundo e não totalmente insensível na natureza humana diz aos homens que isso não é coisa improvável. Essa impressão existe em ambas as formas de paganismo sob apreço. Mas, quando passamos à segunda forma deste, encontramo-la transformada e preenchida por um outro e mais terrível espírito.

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Tome-se por exemplo os astecas e os índios americanos dos antigos impérios do México e do Peru. Estes eram no mínimo tão complexos quanto o Egito ou a China e só menos vigorosos que a civilização central, que é a nossa. Mas aqueles que criticavam essa civilização central (que é sempre a sua própria civilização) tinham o hábito curioso de não apenas cumprir com sua obrigação legítima de condenar os crimes dela, mas de perderem o rumo idealizando suas vítimas. Eles sempre imaginam que antes do surgimento da Europa em parte alguma se via algo além do Éden. E Swinburnc, naquele vivaz refrão das nações cm Canções de Antes do Sol Nascer, usou uma expressão sobre a Espanha e suas conquistas sul-americanas que sempre me pareceu bem estranha. Ele disse algo sobre "seus pecados e seus filhos espalhados por terras desprovidas de pecado" e sobre como eles "tornaram amaldiçoado o nome do homem e três vezes amaldiçoado o nome de Deus". É bastante sensato que ele dissesse que os espanhóis eram pecaminosos, mas por que diabos ele diria que os sul-americanos eram desprovidos de pecado? Por que deveríamos supor aquele continente como sendo habitado exclusivamente por arcanjos ou santos perfeitos no céu? Isso seria algo forte a ser dito sobre a vizinhança a mais respeitável; mas, quando nos pomos a pensar sobre o que realmente sabemos acerca daquela sociedade, a observação mostra-se um tanto divertida. Nós sabemos que os sacerdotes imaculados desse povo imaculado cultuavam deuses imaculados, os quais aceitavam como néctar e ambrósia de seu paraíso ensolarado nada menos que incessante sacrifício humano acompanhado de tormentos terríveis. Também podemos observar na mitologia dessa civilização americana aquele elemento de inversão ou violência contra o instinto acerca do qual Dante escreveu; elemento o qual antes se espalhava por toda parte por meio da religião antinatural dos demônios. Isso é coisa notável não apenas do ponto de vista ético mas também do ponto de vista estético. Um ídolo sul-americano era feito para ser tão feio quanto possível, enquanto uma imagem grega era feita para ser tão bela quanto possível. Eles estavam em busca do segredo do poder indo, como a caminhar para trás, contra sua própria natureza e a natureza das coisas. Afinal sempre houve uma espécie de anelo de esculpir – seja em ouro ou granito ou na madeira vermelho-escura das florestas – um rosto diante do qual o próprio céu se quebraria como um espelho.

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A teoria materialista da história, segundo a qual toda a política e toda a ética são expressão da economia, é enfim uma falácia muito simples. Ela consiste apenas na confusão das condições necessárias à vida com as preocupações normais da vida, o que já e coisa bem diversa. É como dizer que, porque um homem só pode andar sobre duas pernas, ele então nunca sai para passear se não for para comprar sapatos e meias. [...] Mas há uma falácia mais profunda além desse fato óbvio; desse fato óbvio de que os homens não precisam viver tendo em vista só a comida tão só porque não podem viver sem comida. A verdade é que a coisa que se faz mais presente à mente do homem não são os elementos necessários à sua existência; mas é antes a existência em si mesma; o mundo que ele vê quando acorda a cada manhã e a natureza geral de sua posição nele. Existe algo que está mais próximo dele do que a subsistência, e é a vida.

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Por que os homens cultivam essa ideia esquisita de que aquilo que é sórdido deve sempre derrotar o que é magnânimo; de que existe alguma vaga conexão entre cérebro e brutalidade ou de que não importa que um homem seja estúpido desde que também seja mesquinho? Por que pensam vagamente que o cavalheirismo não passa de sentimento e que todo sentimento é fraqueza? Eles o fazem porque, como todos os homens, são inspirados em primeiro lugar pela religião. Para eles, como para todos os homens, o que vem em primeiro lugar é sua noção da natureza das coisas; a ideia que fazem do mundo onde vivem. E a fé deles é a de que a realidade definitiva é o medo e de que, portanto, o próprio coração do mundo é mau. Eles acreditam que a morte é mais forte que a vida e que, em decorrência, as coisas mortas devem ser mais fortes que as coisas vivas; independentemente de essas coisas mortas serem ouro, ferro, equipamentos, pedras, rios ou forças da natureza. Pode parecer fantasioso que homens que encontramos à mesa de chá ou em festas em jardins sejam secretamente adoradores de Baal ou Moloch. Mas essa espécie de mente comercial tem sua própria visão cósmica e essa era a visão de Cartago. Esta trazia o erro estúpido que foi a ruína de Cartago. O poder púnico sucumbiu porque nesse materialismo existe uma indiferença insana para com o verdadeiro pensamento. Ao descrer da alma, acaba por descrer da mente.

Fonte: G.K. Chesterton, O homem eterno, Ecclesiae Editora, Campinas, SP, Brasil, 2014.