24 de agosto de 2023

Evolução mística


O teólogo e sacerdote espanhol Juan Arintero influenciou de maneira importante a teologia católica do início do século XX ao reunir em uma série de livros e ensaios os ensinamentos místicos dos santos da Igreja. Uma de suas queixas, que aliás se aplicam igualmente ao ambiente ortodoxo, é de que a vida religiosa e paroquial perde o sentido se não estiver conectada à vida místico-espiritual. A ideia de que a vida mística é exclusiva daqueles que estão vocacionados para ela equivale a dizer que há homens e mulheres que não estão vocacionados a serem humanos. O objetivo da vida humana é a união com Deus, e tal união não é algo que o ser humano tenha o direito de não querer.

Anotei aqui apenas os aspectos que considero convenientes e úteis à minha vida e aos meus estudos, mesmo porque há uma série de aspectos que, não sem surpresa, se assemelham ao que é ensinado na Igreja Ortodoxa, mas o leitor não fará mal em aprofundar-se na obra deste dedicado sacerdote e amante da vida mística. Ademais, por se tratar de descrições e classificações de experiências místicas, a linguagem empregada frequentemente se assemelha à linguagem poética, uma vez que os referentes àquilo que está sendo dito estão em um plano para além do plano que operamos deste lado da realidade.

Na sua obra mais famosa, Arintero explica que a expressão evolução mística significa o progresso da vida da graça no homem. É quando se forma em nós o próprio Cristo. Mas há duas sendas na vida espiritual: (1) a vida ascética da união conformativa, vivida um tanto inconscientemente, na qual a imensa maioria dos fiéis ao mortificarem as paixões e exercitarem metodicamente as virtudes e práticas piedosas procura adquirir moralmente algum tipo de contemplação e, com o tempo, suas almas começam a sentir os toques do Espírito (embora não os sinta como sobrenaturais), e (2) a vida mística da união transformativa, guiada pelo próprio Espírito, que habita substancialmente (e não apenas acidentalmente, como no caso das virtudes e ciências) a alma ao moldar o caráter por fora e por dentro, penetrando até o mais intimo do coração, estabelecendo uma relação não moral, mas ontológica, com o fiel.

A revelação divina nos faz ver como a vida intima de Deus não é a de um Deus uno e solitário, típico do Deus encontrado pelos filósofos, o Deus absoluto, o “Ser Supremo”, o Deus da unidade nas obras da criação, mas um Deus trino. O Deus dos filósofos é aquele que encontramos com base nas simples e naturais relações de causalidade na criação, mas o Deus vivo é aquele que encontramos nas sobrenaturais relações de amizade cordial, pois supõe uma verdadeira semelhança. Por isso dizia Santa Teresa de Ávila que os livros demasiadamente “concertados” (combinados, encadeados, “lógicos”) a repugnavam e até lhe faziam perder a devoção, pois o excesso de abstração faz com que percamos de vista o todo real e vivente que somos.

Arintero lança mão do termo “graça criada” para explicar a ação do Espírito na vida humana, mas cabe lembrar que tal expressão serve apenas para diferenciar a graça do próprio Espírito. Parece-me algo semelhante à distinção entre “essência” e “energia”, ambas incriadas, típica da teologia ortodoxa. Arintero parece admitir que qualificar tal graça de “criada” pode trazer problemas de interpretação, assim que explicaque o melhor seria chamá-la de “graça participada” enquanto o Espírito é a “graça em si”.

Ademais, quanto às virtudes, Arintero as classifica como “naturais” (ou seja, adquiridas) e “infusas” (ou seja, inspiradas, comunicadas gratuitamente, emprestadas). As virtudes cardeais são tanto naturais quanto infusas. As virtudes teologais e os dons do Espírito, apenas infusas. Da união das virtudes com o exercício dos dons do Espírito resultam os frutos do Espírito, entre as quais, as bem-aventuranças.

Arintero detalha as virtudes, os dons, os frutos, a “noite escura” pela qual perpassam os santos a caminho da contemplação divina. Há três graus de contemplação: (1) a breve oração de recolhimento (infusa, muito superior à oração adquirida com esforços e diligência humana), na qual não há meditação, nem raciocínio, mas apenas um simples e tranquilo olhar contemplativo, (2) a longa oração de quietude, na qual, além do entendimento, a vontade se torna cativa ao Espírito, (3) oração de união, na qual a alma é introduzida na “câmara régia” e todas as suas energias se encontram unidas a Ele. Arintero belamente assim a descreve:

Às vezes, o uso dos sentidos externos não é completamente perdido; Estes, principalmente no início, funcionam um pouco, embora com dificuldade, fazendo com que o que está sendo falado ou cantado de perto seja ouvido como à distância, e todos os objetos sejam percebidos como muito confusos. Os poderes internos também não estão perdidos, mas apenas como se estivessem adormecidos para tudo o que está fora; porque, estando a alma assim, completamente absorta em Deus, ainda não tem forças suficientes para se ocupar com as coisas externas ao mesmo tempo. E se a caridade ou a obediência a compelem, enquanto durar esse doce cativeiro, deve ser praticada uma violência tão extrema - que faz com que muitos derramem sangue pela boca - causando-lhes não pouco dano; e mesmo assim, a maioria deles, para prestar atenção ao que está fora, tem que se soltar na atenção interna que os absorveu. Tudo o que eles virem lhes causará tédio e desgosto, e tudo parecerá estranho e como nunca visto antes. Já são habitantes do céu e concidadãos dos santos e, vendo as belezas celestiais, consideram vil tudo neste mundo, e não podem deixar de lamentar ao verem como se prolonga o seu exílio, onde se julgam estrangeiros e peregrinos. E, verdadeiramente, tais almas encontram-se exiladas entre pessoas ferozes, que as obrigam a zelar por si mesmas para não caírem nas suas armadilhas e não se perderem ou correrem o risco de perder os seus ricos tesouros.

Fonte: Juan Arintero, Evolución Mística, Editorial San Esteban, Salamanca, Espanha, 1989.

16 de agosto de 2023

Elementos de psicologia das emoções: Santo Tomás de Aquino vs. René Descartes


A psicologia do século XX só pode ser entendida investigando as raízes anteriores à formação da psicologia científica por Wilhelm Wundt (1832-1920). Estas raízes fundam-se em duas figuras: René Descartes (século XVII) e Santo Tomás de Aquino (século XIII). A concepção das emoções em última instância deriva de uma dessas duas versões clássicas: cartesiana ou tomista.

Tomismo

Santo Tomás baseia-se especialmente nos ensinamentos de Aristóteles presentes (mas não só) em sua Retórica. Seu Tratado das Paixões encontra-se na Suma Teológica, embora não seja somente aí que ele versa sobre o tema. Embora as paixões (emoções) tenham uma dimensão médica (física), Santo Tomás está mais preocupado com sua dimensão moral (espiritual).

As paixões são movimentos, ou seja, são atos transitórios, estados passageiros. São o contrario das disposições estáveis, como os hábitos (vícios e virtudes). Tais atos são produto de potências, também chamadas “faculdades”, humanas, chamadas de apetites. Assim como entender é o ato da inteligência, assim como recordar é o ato da memória, assim como imaginar é o ato da imaginação, a paixão é o ato do apetite. A partir do início do século XIX deixou-se de pensar nas emoções como atos que procedem de uma faculdade.

Os apetites fazem referência a um bem ou mal. Os apetites portanto podem ser por atração (por um bem) e por repulsão (por um mal).

Santo Tomás ensina que há duas ordens de apetite: o apetite sensitivo e o apetite intelectivo (ou vontade). O apetite intelectivo (vontade) tende ao bem tal como o capta a inteligência, ou seja, de maneira universal – não este ou aquele bem, mas o bem enquanto tal. O apetite sensitivo tende ao bem tal como o capta o sentido, ou seja, de maneira particular.

Quanto ao apetite sensitivo, há dois tipos: o apetite concupiscível (ou desejo) e o apetite irascível (ou assertividade).  O apetite concupiscível tende ao bem prazeroso, enquanto o apetite irascível tende ao bem difícil, árduo, ou seja, o sentido capta a coisa como repulsiva, mas o apetite irascível impulsa o homem a tender ao desagradável (por isso “difícil”). O sentido que capta a coisa é o sentido interno, chamado também de estimativa (cf. A cosmovisão medieval, de C. S. Lewis), que capta significados particulares (não conceitos universais). A estimativa é a dimensão que ativa as paixões (emoções).

A paixão, para Santo Tomás, é psicossomática, ou seja, não é espiritual, mas corporal, e tem uma forma e uma matéria. Por exemplo, materialmente a ira seria o fervor do sangue no coração, enquanto formalmente é a vingança.

O gênero da paixão é determinado por seu objeto, ou seja, se é um bem ou mal. Vejamos como as principais se dividem:


Cartesianismo

Descartes sustenta uma visão de mundo dualista e isso evidentemente afetará de maneira decisiva a psicologia das emoções. As paixões (que passam a ser chamadas por Descartes de “emoções” ou “sentimentos”) são algo da alma, não do corpo. Isso porque o corpo, como ente material, é dotado exclusivamente de quantidade, e tudo o que é qualitativo é necessariamente mental.

Talvez o aspecto mais importante em Descartes seja o início da perda paulatina da ideia de que as emoções sejam apetitivas. Em outras palavras, para Descartes as emoções são apenas e tão-somente sensações de modificações corporais. A emoção deixa de ser um afeto e passa a ser uma sensação. É claro, e isso não se pode negar, que notamos na emoção certas comoções corporais: nó na garganta, palpitações, rubor, respiração ofegante etc. Ora, mas o que causa essas comoções? Descartes acredita que ambas as coisas, as emoções e as comoções corporais, são idênticas. As emoções perdem seu caráter de tendência a um bem (ou de aversão ante um mal) e são reduzidas a estados afetivos corporais. Sentir uma emoção é sentir seu corpo.

Na moral clássica há um conflito a ser harmonizado entre a parte sensitiva e a parte intelectiva, enquanto que na moral moderna há um conflito a ser harmonizado entre a mente e o corpo. Em termos gerais, ao longo dos séculos subsequentes, diversas teorias psicológicas foram desenvolvidas para explicar as emoções, mas que se enquadram na visão de Descartes: James-Lange, Cannon-Bird, Schachter-Singer, Antonio Damasio etc.

Magda Arnold

Essa psicóloga tcheca se inspira na doutrina das paixões de Santo Tomás e a atualiza com os avanços biológicos e fisiológicos disponíveis na metade do século XX. Ela é responsável por um giro cognitivo na psicologia das emoções.

Para Arnold, sentimentos são níveis baixos de afetividade, nos quais basicamente se distinguem sentimentos de agrado e desagrado. Por outro lado, as emoções seriam níveis mais elevados de afetividade e nas quais se interpõem cognições (ela as chama de appraisals, ou avaliações). Estas cognições não são juízos intelectuais propriamente, mas um juízo sensorial, algo muito mais imediato, quase instantâneo, que se soma à percepção sensitiva. É equivalente ao sentido da estimativa de Santo Tomás e que para os homens e animais lhes dá o juízo de bondade ou maldade de um objeto. A emoção é portanto uma realidade psicossomática. O juízo sensorial, ou seja, o appraisal, é como um detector formal do objeto. Santo Tomás acrescentaria que o appraisal não é um elemento determinante da conduta, mas a ele acrescenta-se também a vontade. O homem pode escolher motivar-se de acordo com as emoções/appraisals, mas também escolher de acordo com a vontade.

Ela desenvolve uma teoria das emoções notoriamente inspirada em Santo Tomás:


Fonte: Martín Echavarría, Las pasiones humanas, conferência proferida na Universidad de Valencia, Valencia, Espanha, 2020.

9 de agosto de 2023

A existência não existe: a estrutura paradoxal da existência


A tese central do filósofo americano Frederick Wilhelmsen é a de que a existência não existe. Ela carece de uma estrutura e, portanto, não pode ser afirmada nem negada. Por isso Wilhelmsen propõe algo como uma “metafísica transdialética”, paradoxal, barroca, uma metafísica que, nas suas palavras, não seja “covarde”, mas “cavalheiresca”. Veremos como ele chega lá, mas antes é preciso que retomemos o desenvolvimento de alguns conceitos metafísicos fundamentais da Antiguidade e da Idade Média.

Parmênides Heráclito Platão Aristóteles Avicena Averróis Santo Tomás de Aquino

Parmênides provavelmente foi o primeiro filósofo pré-socrático que sacrificou o múltiplo, ou seja, o mundo conhecido da sensação. Ele substantivou o “é” verbal, típico do mundo da intuição sensível, e o transformou em um “Ser”. Assim, o “é” se converte no Uno, Imutável, Incausado, Infinito etc. Heráclito, por outro lado, insistiu em negar qualquer vínculo entre o ser e a realidade sensível. Ele concordava que a inteligência unifica e apresenta a realidade como algo que “é”, mas negou que esse fator fosse extramental. Em outras palavras, para Heráclito o Ser é uma mentira e o mundo real é composto de mudanças constantes.

A filosofia de Platão representa um esforço para equilibrar as tensões do ser descobertas por Heráclito e Parmênides. Para Platão, ser significa “ser igual a si mesmo”, ou seja, o ser platônico é isso que já é, o conseguido, o finalizado, o feito. Ortega y Gasset não deixa de apontar em Platão a velha tendência grega a interpretar a realidade como presença. De qualquer forma, quando constitui o ser como “mesmidade”, Platão indica que, apesar do fenômeno da mudança, o ser permanece em seu estado puro na forma. Este celular que tenho em mãos sofre mudanças constantemente, seja de posição, seja de alguma qualidade (cor etc.), seja sua constituição material, mas ele continua sendo “si mesmo”. Houve uma mudança de forma (preto para vermelho, por exemplo), mas o celular continua sendo “si mesmo”. Ora, se o ser é “mesmidade”, então o ser se encontra em estado puro somente dentro da mente. As ideias ou formas do ser não mudam. O ser nas coisas muda, suas formas não. Os homens vêm e vão, as coisas belas se apresentam ao mundo e logo morrem, mas as ideias de humanidade e beleza permanecem idênticas. As formas estão “localizadas”, digamos assim, na inteligência humana, que as capta em sua pureza. Para o homem vulgar, a realidade é apenas e tão-somente aquilo que afeta os sentidos e paixões. Para o homem inteligente, há uma diferença entre realidade e ilusão. Platão ensina que o mundo sensível “participa” na inteligibilidade do mundo das ideias ou formas. As coisas são apenas “exemplos” imperfeitos e imaturos das formas do ser. As formas existem, ou seja, se “exibem”, como ensinou Mário Ferreira, mas não existem “em absoluto”, ou seja, não são ser. Destruir a forma implica, portanto, em destruir o mundo dos entes e simultaneamente assassinar a inteligência.

No entanto, Aristóteles “localizou” a relação forma-coisas de outra maneira. Platão, como vimos, pensou essa relação como se originando na mente e terminando nas coisas. Para o Estagirita, no entanto, as formas são descobertas no mundo das coisas juntamente com suas próprias configurações. Em outras palavras, Aristóteles nega o “mundo duplicado” de Platão e nega, portanto, que haja um ser fora das coisas. Ademais, Platão, como vimos, entendia a mudança como uma substituição de uma forma por outra. Aristóteles não via assim: para ele, a mudança contém um “princípio” ou “elemento” que, como bem sabemos, se chama “potência” (ou às vezes “potencialidade”). Ele descobriu uma primeira potência radical que está presente em todas as coisas suscetíveis a mudança: o “princípio de não-ser relativo” (qualquer coisa que é pode deixar de ser) ou “infinitude” (qualquer coisa é potencialmente qualquer outra coisa). Trata-se da famosa “matéria prima” aristotélica. É a matéria prima que impede que tudo aconteça ao mesmo tempo e simultaneamente permite que as coisas possam “acontecer”. A matéria prima é o princípio do tempo, portanto. Por outro lado, para Aristóteles a forma é uma limitação estrutural, ou determinação ativa, da coisa. É o que uma coisa é agora. É a famosa atualidade. As formas são, portanto, os atos da matéria, são os princípios que energizam e especificam a matéria, determinando-a desta ou daquela maneira. A essas duas “causas internas” (matéria e forma), Aristóteles acrescentou outras duas “causas externas” (o agente e a finalidade), que, juntas, compõem a natureza. A natureza e as quatro causas são uma e mesma coisa. A realidade é causalidade. Os erros filosóficos são erros sobre as causas.

Há, no entanto, atos que não são finalizados ou realizados. Os exemplos simples de potência e ato que explicam as mudanças cotidianas, como uma parede que antes era branca e agora é vermelha ou um animal que se move numa floresta, não são capazes de explicar os “atos vitais”, ou seja, ações como pensar, contemplar, imaginar, conhecer, amar etc. Posso pensar em “x” e continuar pensando em “x” indefinidamente, assim como posso amar “y” e continuar amando “y” indefinidamente etc. Nas mudanças estritamente falando, nas mudanças simples, há um presente que tem um passado. Nos atos vitais, o “processo” se identifica com o próprio ato; não há propriamente um ato que emane de uma potência. Em suma: à mudança estrita chamamos enteléquia, à mudança ampla imanente chamamos energia. Wilhelmsen aponta que Aristóteles fracassou ao insistir que o ato formal se esgota na matéria, ou seja, na ordem do ser o ato formal não desempenha nenhuma atividade “para o ser mesmo”. É como se a transcendência aristotélica estivesse “encurtada”, algo com uma “transcendência material”.

Se para Platão ser significa forma, para Aristóteles ser significa substância, ou seja, a raiz ou base do ser. É a substância (ou forma substancial) que faz a coisa ser o que é e fazer o que faz. A forma, para Aristóteles, simplesmente não existe. Ele nega ostensivamente que a forma seja o principio ontológico do que quer que seja. Muito bem, mas essa constatação nos impõe um dilema: se o ser só existe nas coisas compostas, ou seja, o principio do ser não está nem na matéria nem na forma, mas essas coisas compostas só existem através da matéria e da forma, então como essas coisas compostas podem ser ou existir através de matéria e forma que não são nada em absoluto? Em poucas palavras, as coisas compostas têm ser através de forma e matéria que, por sua vez, não têm ser nenhum. Ortega não deixa de observar que o Deus aristotélico é um “filósofo que se admira a si mesmo no espelho”. Não faz nada, não governa, não age.

Ora, no mundo islâmico o pensamento platônico e aristotélico foi mais bem preservado, e foi no âmbito do Islã que houve certo desenvolvimento de suas descobertas. Avicena concluiu que se o “cavalo em si” (ele gostava desse exemplo) existe tanto neste cavalo individual quanto no “cavalo universal”, então o “cavalo em si” não é nem o existente individual nem o existente universal. O “cavalo em si” não pode estar em dois “lugares” ao mesmo tempo. Avicena deduziu uma distinção entre o principio de essência (natureza) e o principio de ser (existência). Em outras palavras, essência e existência são realmente distintas e, além disso, são distintas dos universais. Há um “terceiro elemento” que pode ser compartilhado tanto pela existência quanto pelos universais. Trata-se da essência (natureza), que em seu estado puro é pura possibilidade de ser em alguma ordem, seja ela individual ou universal. Portanto, o possível é anterior ao atual e, consequentemente, a existência é um acidente da essência (natureza). Nas palavras de Avicena, a existência “lhe ocorre” à essência (natureza). Enquanto para Aristóteles os acidentes se derivam do ser, para Avicena o próprio ser também é um acidente da essência (natureza). Deus confere às essências puras o acidente da existência (ser) e, de certa forma, a essência desempenha um papel prévio e mais primordial do que a existência. Ou seja, as coisas são antes de serem, digamos, e assim a liberdade divina e a liberdade humana se convertem em um mito ou superstição. A existência é “esvaziada” de importância, pois ele é mero prolongamento da possibilidade. À moda de Leibnitz, os “predicados” estão contidos na “mônada”. Xavier Zubiri não poderia estar mais de acordo: a realidade é algo mais fundamental que o ser ou a existência.

Averróis nota que se a existência é um acidente, se o ser pertence à ordem acidental, então a existência tem de “funcionar” da mesma maneira que os demais acidentes “funcionam”. Ora, o ser (existência) não é substância, nem quantidade, nem qualidade, nem nenhuma categoria. Portanto, o ser nada é realmente. Absolutamente nada real, nenhuma coisa real, existe. É necessária uma metafísica que contorne esse absurdo, que veja o ser (existência) como um princípio último do real, mas que de forma alguma se identifique com o real.

Aqui entra um aspecto sobre o próprio exercício da metafísica como atividade intelectual. Wilhelmsen nota que tradicionalmente, como o fazem modernamente Étienne Gilson e outros tomistas, a metafísica é considerada como uma atividade pertencente à segunda operação da mente, ou seja, ao ato de julgar. Isso significa que o ser, a exemplo de quaisquer coisas, é tratado pela mente como algo que se “vê” ou que se “presencia”, isto é, como algo que você pode vislumbrar detidamente. Wilhelmsen, a exemplo de Mário Ferreira dos Santos, discorda: a metafísica é mais bem uma atividade da terceira operação da mente, ou seja, ao ato de arrazoar. O julgamento jamais alcançará a existência, pois a existência não é um “ser isto ou aquilo”. O ser não é um objeto que possa ser pensado pela inteligência humana. O intelecto deve portanto arrazoar sobre o ser como o “é”, e jamais converter esse “é” a um objeto. Parece-me que Wilhelmsen propõe que a metafísica parta sempre de raciocínios ontológicos em lugar de raciocínios lógicos. É como se a metafísica tivesse que contentar-se com a obscuridade, algo semelhante à obscuridade de que falam os místicos. Nas palavras de Wilhelmsen, “[a metafísica] não alcança sua glória, mas se mostra orgulhosa por haver sido fiel à luz da inteligência”.

Bem, retomando o que ensinou Avicena, a essência (natureza) goza de três funções ontológicas: (1) essência do mundo, no qual existe individualmente, (2) essência na mente, na qual existe universalmente e (3) essência como essência. Mas, segundo Santo Tomás de Aquino, a função (3), essência pura, é uma ficção. É algo que você pode cogitar, que você pode pensar, mas não é algo que você possa cortar (cindir, como diria Santo Tomás) do ser, sob pena de reduzir a essência ao não-ser, ao zero, ao nada. Ele conclui que o ser (existência) é o princípio metafísico mais importante, que engloba a essência sem identificar-se com ela. O “ser” não pode ser definido porque se situa fora da ordem das definições. A definição é o que pensamos de uma coisa e responde à determinação da própria coisa, de sua estrutura, e encontra-se arraigada na forma. Mas o “é” não pode ser concebido porque não é nem tem estrutura ou forma.

Ora, embora a existência englobe a essência, deve haver entre elas uma relação única e radical. Daí Santo Tomás lança mão do conceito de “ente”. Ente é em português o particípio presente de ser, assim como “temente” é particípio de “temer”. Ente indica a atividade de existir, assim como temente indica a atividade de temer. É quase um gerúndio, que também desempenha funções semelhantes a um particípio presente. Se todos os entes, todos os “sendos”, são determinados, é impossível que eles retroativamente determinem o próprio ser, a própria existência. Se a determinação do ser não pode vir de fora dele, então forçosamente terá de vir de dentro. O ser transcende a forma e a matéria, mas mostra-se racionalmente como núcleo transcendente de tudo o que é.

A estrutura paradoxal da existência

O ser ou a existência é, portanto, uma extramentalidade radical. Em outras palavras, a existência não pode ser concebida nem experienciada pelo homem e, portanto, está enraizada de maneira totalmente externa à mente humana. É como e a existência portasse um princípio de não-identidade com a natureza (essência). Enquanto os objetos são como que “lançados” à inteligência e à sensibilidade, a existência nunca é dada, nunca “está aí”, nunca é lançada. Assim, a essência ou natureza é o que Wilhelmsen chama de ordem analítica da causalidade, isto é, as causas aristotélicas são a base da análise científica. Uma análise perfeita, portanto, é a resolução de determinada realidade em suas quatro causas.

No entanto, quando uma análise se separa da função sintética da existência ocorre uma “fragmentação”. É o que aconteceu na era racionalista, inaugurada por Descartes e potencializada por Gutenberg, uma vez que a realidade foi dissecada em um mosaico de ideias modeladas por palavras impressas em livros. O prejuízo filosófico foi enorme. A unidade de compreensão humana do real perdeu-se em meio à fragmentação da vida: econômico vs. lúdico, sacro vs. profano, alta cultura vs. cultura popular etc. A máquina é uma espécie de arquétipo da mente analítica que se projeta no real. A análise, divorciada da síntese, engendra uma hostilidade à unidade do ser e, por que não dizer, à paz do ser.

Wilhelmsen mostra que toda operação analítica perde “algo”. Não importa se a analise é perfeitíssima: “algo” sempre desaparece. O homem apaixonado por uma mulher, ao enumerar suas qualidades, perderá “algo” necessariamente. Esse “algo” não é nada em concreto. É apenas e tão-somente o “ser” do analisado. O ato de existir transcende a ordem analítica. Em termos estéticos, o esse (ser) é barroco puro, ou seja, não se reduz à mera soma da assombrosa complexidade de materiais, sintetizando uma pluralidade de essências díspares. O ser é um catalisador da natureza, das essências. Em termos práticos, não há sinfonia, poema, crise moral ou intuição criativa que se explique pela conjunção de suas causas.

O filósofo que assim procede, ou seja, o filósofo que é capaz de entender que o “é” da existência não se apresenta, não se presencia, no real como um objeto, intui o que Wilhelmsen chama de transcendência negativa. Em outras palavras, a existência não existe, ou ainda, a existência não existe da maneira como a projeção dinâmica das essências no tempo existe. Se pudéssemos criar uma imagem da existência, seria algo como o vento que empurra um barco à vela. O vento não está onde estava e não pode ser visto, mas o barco navega alegremente. Assim também o Espírito preenche todas as coisas, mas não se identifica com nenhuma delas.

Vale a pena repetir: o ato de existir nem é nem não é. Se eu afirmo que a atividade existencial é, então a reduzo a uma coisa dotada ela mesma de existência. Se eu afirmo que a atividade existencial não é, então reduzo a coisa a um inexistente. O ser é formalmente sua própria contradição. O ser denota sua identidade com o não-ser.

A dificuldade em aceitarmos a estrutura paradoxal da existência está no fato de que abordamos a existência do ponto de vista dialético, ou seja, identificamos uma tensão entre opostos e a partir daí queremos contradizê-los para buscar uma unidade superior. O pensador dialético é um sujeito obcecado com a tensão, mas é incapaz de viver dentro dela. O paradoxo, no entanto, alcança a tensão e a mantém. O filósofo digno desse nome rejeita afirmar ou negar a atividade existencial e filosofa dentro da tensão. Esse filósofo força-se a concluir que a existência não é essência nem não é essência. O esse (ser) da coisa é algo que não pode ser assimilado intencionalmente (quanto à esfera intencional da realidade cf. Dicionário Filosófico de Mortimer Adler, verbete SER). Wilhelmsen belamente afirma que:

Eu transcendo afirmativamente na fé fusionando-me com o Deus da Revelação mediante a graça, e transcendo negativamente na metafísica negando que o esse é natureza. [...] Por natureza, as coisas são não-entes. Todos nós somos nadas vindos ao ser, mas ainda que tenhamos sido feitos para ser, a existência não se arraiga em nós. A existência não se assenta na natureza da mesma maneira que as sementes se assentam na terra lavrada onde crescem e se convertem em parte do campo.

Com isso, Wilhelmsen quer dizer que não há identidade metafísica entre a existência e a natureza. Trata-se de uma verdade “extremamente radical”.

A metafísica mal-assombrada pelo nada

O fato de o pensamento metafísico dos últimos séculos ter situado o ser ou existência no nível da essência ou natureza detonou profundos efeitos na filosofia e na cultura. Em especial, embora não só, a filosofia existencialista é um sintoma dessa doença. O nada, que de certa forma sempre se encontrou sob a realidade passa agora a brotar de dentro do ser.

Heidegger foi quem melhor expressou essa intuição ao interrogar-se por que existe o ser e não antes o nada. Observe que para Heidegger o nada é uma função do ser. Se não há o ser, então haveria, ou resultaria, o nada. Aqui notamos uma espécie de fracasso da essência para o homem. Sim, pois se Wilhelmsen tem razão ao afirmar que a essência ou natureza só é inteligível se a distinguimos do ser ou existência, então a pergunta de Heidegger simplesmente não faz sentido. Foi essa distinção ontológica que permitiu ao Ocidente desenvolver o mundo natural, que soltou as amarras do desenvolvimento científico e tecnológico antes preso à confusão entre natural e metafísico, entre ser e essência. Mas o homem que se contenta em ver a natureza única e exclusivamente como essência se arrisca a ser ameaçado pelo nada. É como se o homem contemporâneo tivesse resvalado ao velho entendimento de outras civilizações segundo o qual ser existência e essências são uma e mesma coisa. O próprio desenvolvimento tecnológico e científico tomou as rédeas da civilização ocidental e, para continuar exercendo sua hegemonia, não pode permitir que o ser se reintroduza na ordem da essência e, portanto, o afoga no mar do esquecimento. O cansaço e o tédio do homem contemporâneo é resultado não do progresso em si, mas desse afogamento do ser, desse esquecimento ditatorial do ser em prol do próprio progresso científico e tecnológico. Portanto, a pergunta de Heidegger não é uma pergunta efetivamente, mas um sintoma do esquecimento do homem contemporâneo a respeito do ser. Ele perdeu, digamos, a “densidade existencial” das coisas. É claro que o desenvolvimento das matemáticas e da ciência moderna exige que o ser seja isolado. Mas isolá-lo é uma coisa, esquecê-lo por completo é outra. Perguntar sobre o não-ser (nada) é algo que só pode ocorrer a quem tome a natureza como ponto de partida. Como descobriu Santo Tomás de Aquino, o ser abarca a essência, mas a essência não inclui o ser. Se o homem contemporâneo insistir em não ir além da essência, se insistir em não transcendê-la novamente, se afogará na angústia. E a resposta para essa angústia é uma só: Deus.

Há, confirme Norberto del Prado, uma não-identidade radical entre os entes – ou seja, uma mesma árvore não é idêntica a uma outra árvore, mas é sim idêntica a si mesma – e uma identidade do ser em Deus. Em outras palavras, no plano das essências há uma dualidade mesmo-outro (mesma árvore, outra árvore), mas no plano da existência há apenas identidade e não-identidade (é árvore, não é árvore). Quando Heidegger substitui o ser pelo nada, trata o nada como uma alteridade do ser, como se ser e nada fossem o “mesmo” e o “outro” típico dos entes na natureza. O que o juízo afirma é apenas e tão-somente que a árvore é. O juízo não afirma que o ser da árvore exista. O ser da árvore não é um dado da experiência humana, não é algo do qual tenhamos experiência cognitiva. A existência, novamente, é uma realidade extramental, ela não é nem não é, ela escapa da ordem do “dado” e da objetividade. A existência não pode ser contradita, no sentido de que não pode ser oposta ou dualizada. Não se trata aqui de negar a existência, mas de negar a existência da existência.

Wilhelmsen acredita que a inserção do “não-ser” no ser é consequência de uma teologia protestante dialética.

Pessoa vs. natureza

Uma distinção entre indivíduo e pessoa se faz notar em função da “localização” do ser na existência ou na essência. Se Cristo é verdadeiramente uma pessoa que subsiste em duas naturezas, então existe de algum modo uma distinção entre pessoa e natureza. Wilhelmsen nota que a Cristandade tende a situar a personalidade dentro da estrutura do ser, consequentemente a natureza situa-se na ordem da essência, o que a desveste do caráter divino que lhe havia outorgado o pensamento clássico. Não sou eu que estou “a serviço” da natureza, mas é a natureza que está a meu serviço.

Afinal, quem sou eu? Este “quem” não é apenas a soma de tudo o que é, mas há um “plus” ou “excesso”, que é o ato de existir. A personalidade humana só existe dentro de sua fonte, que é Deus. Ela só existe em Deu, o esse da pessoa é de Deus, embora não seja, claro, o Esse de Deus. Ora, se Deus é a Identidade da existência, então Ele também é a Identidade da personalidade humana. O futuro da personalidade humana não depende exclusivamente do futuro impessoal, ou seja, do conjunto de fatores causais já dados em potência a ser atualizado. Em outras palavras, o futuro pessoal não se reduz à dimensão material da natureza humana, ou seja, a liberdade pessoal transcende a determinação inscrita na ordem da natureza. Meu futuro, portanto, está em Cristo. É nEle que serei conhecido, é nEle que me encontrarei em plenitude. Minha identidade em Cristo é o pleno retorno de meu ser a sua fonte.

Fonte: Frederick Wilhelmsen, The Paradoxical Structure of Existence, Routledge, Nova York, NY, EUA, 2015.