28 de junho de 2008

Ortodoxia e a cultura européia

Trechos da palestra proferida pelo Pe. George Metallinos, professor da Universidade de Atenas, na Conferência Teológica de Pirgos, Grécia, 1995.

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Os elementos que compõem uma cultura não são apenas folclóricos (festivais, celebrações etc.) ou artísticos. A questão também não é recordar elementos e peculiaridades de nossa cultura que podem ser facilmente encontrados em outras línguas. A questão é nos identificarmos com uma cultura de maneira que não consigamos viver sem seus elementos. Nós participamos de uma cultura na medida em que experimentamos estes elementos particulares como sendo inseparáveis de nossa própria existência.

Cultura é a manifestação da consciência na realidade histórica, é a expressão e realização do mundo da alma. A formação do ambiente dentro dos limites da consciência delimita uma cultura específica. A consciência de um grupo é o mesmo que sua cultura.

Nossa cultura, nossa existência e continuidade históricas, nossa identidade helênica e nossa fé ortodoxa estão em jogo no contexto da União Européia. Nossa identificação a priori com a Europa é um erro. É errado acreditar que a cultura européia e a cultura helênica são idênticas. Não se trata de uma aliança, de uma simples relação sócio-política mútua. É uma verdadeira congregação em um novo sistema de vida. “Europa” significa transferir nossos interesses a um campo distinto.

A mentalidade hegemônica na Europa é anti-helênica. Pode até ser que o sistema educacional e cultural europeu ostente uma inclinação favorável à antiga Grécia, mas representa também reação, resistência e hostilidade contra a nova face do helenismo.

A Europa moderna é produto de Carlos Magno, o maior inimigo do helenismo em toda a história. Ela funda-se em Carlos Magno. Ela não é produto de uma composição heleno-cristã, mas franco-germânica. Os diversos grupos francos (francos, teutões, normandos, lombardos, burgúndios etc.) ainda estão no comando da União Européia. A presença helênica da Grécia é um elemento estranho entre eles.

A essência da alienação teológica ocidental é ter se deixado capturar pelo antigo pensamento grego ao filosofar e racionalizar a fé. Os europeus preservaram essa tendência, tornando-a sua própria fé e teologia. É uma postura legalista em questões de fé.

O homem europeu não consegue interpretar corretamente o helenismo. A Europa distorceu o helenismo com base em seus próprios preconceitos. Nem mesmo o antigo helenismo foi preservado pela cultura européia. A Renascença tratou de expurgar tanto a era helênica quanto a romana, pois não houve continuidade alguma. A Renascença não foi criada pelos povos românicos do Ocidente, mas pelos conquistadores franco-germânicos. O homem europeu não guarda relação alguma com o homem antigo; ele não preservou nada dos Santos Padres da Igreja.

Possuímos uma cultura que cria pessoas santas, glorificadas. O ideal de nosso povo não é criar sábios, nem este era o ideal da antiga cultura e civilização helênicas. O humanismo antropocêntrico (centrado no homem) helênico foi transformado em teantropismo (centrado no Deus-Homem) e seu ideal, agora, é a criação de pessoas santas que alcancem o estado de theosis (deificação).

O Império da Nova Roma (Romania ou “Bizâncio”, como foi posteriormente chamada pelos acadêmicos), sendo Constantinopla a Nova Roma (330 d.C.), era o novo mundo pós-romano. Ela compunha-se do tríptico (1) estrutura estatal romana, (2) educação helênica e (3) Cristianismo.

Na mente dos cidadãos, todo o Império funcionava enquanto “Igreja” (ekklesia), ou seja, enquanto reunião dos crentes no Cristo, com a Ortodoxia servindo de elo entre eles. A Ortodoxia determinava a nacionalidade dos cidadãos, de maneira que o título civil romaios significava “cidadão da Nova Roma: ortodoxo”.

O sentimento religioso dos antigos gregos preservou-se através da Ortodoxia. Por exemplo: ao invés de Poseidon (deus dos mares), uma entidade inexistente ou até mesmo demoníaca, temos São Nicolau e as provas históricas de sua existência, de sua atividade miraculosa e de seu estado deificado. Não se trata de “outro tipo de idolatria”, já que todas as pessoas santas são do “Corpo de Jesus Cristo” e a honra a eles atribuída é sempre centrada em Cristo.

A consciência ortodoxa define-se por três pontos: (1) a melhor e mais autêntica expressão de nossa cultura é a vida dos Santos Padres; (2) consciência da superioridade da cultura ortodoxa em oposição à antiga cultura helênica (esta foi batizada e renascida); e (3) consciência da superioridade da cultura ortodoxa em relação à cultura européia.

Após os francos dominarem a Europa Ocidental, o desenvolvimento social deu-se em bases raciais. Os direitos dos conquistadores foram impostos por meio do sistema feudal, cuja base não era a propriedade da terra, como no Oriente, mas o aspecto racial. Uma classe de nobres foi criada e considerada “nobre por natureza”. Os conquistadores bárbaros se autodeclararam “nobres”. A outra classe era a dos súditos, escravizada pelos nobres. Esta pequena minoria conquistou todo o Ocidente, transformando o povo romano em escravos em sua própria terra.

Além da servidão, outra conseqüência da conquista dos francos foi o colonialismo. Colonialismo é a extensão da estrutura interna da escravidão a terras estrangeiras. O individualismo ocidental (domínio individual à custa dos outros) é completamente diferente do oriental, que possui um caráter sócio-comunal. O homem ocidental diz: “Por que não me tornam primeiro-ministro para resolver os nossos problemas?”. O homem ocidental vive em um ambiente que o motiva a sacrificar os outros em seu próprio benefício, e não a sacrificar a si próprio em benefício dos outros.

A Europa tinha uma civilização e uma cultura iguais às nossas, mas, após as invasões bárbaras dos francos, a Europa Ocidental Romana foi escravizada, perdendo sua tradição. Assim, Deus nos designou como sua guardiã.

A atual cooperação entre França e Alemanha (as duas maiores ramificações francas) em diversos campos de atuação prova que há uma tentativa de retornar à Europa unificada dos tempos de Carlos Magno.

Fonte: http://www.romanity.org/mir/me04en.htm

17 de junho de 2008

Fé e ciência na gnosiologia ortodoxa

Pe. George Metallinos

A. Problema ou pseudo-problema?

A antítese e conseqüente colisão entre fé e ciência é um problema para o pensamento ocidental (franco-latino) e um pseudo-problema para a tradição patrística ortodoxa oriental. Chegamos a tal conclusão a partir dos dados históricos destas duas regiões.

O suposto dilema entre fé e ciência surgiu na Europa Ocidental durante o século XVII, juntamente com o desenvolvimento das ciências positivas. À época, surgiram também as primeiras declarações ortodoxas sobre esta questão. É digno de nota que tais fatos aconteceram no Ocidente sem a presença da Ortodoxia. Nos últimos séculos, a diferenciação e alienação espirituais entre o Ocidente [racional] e o Oriente Ortodoxo têm sido cada vez maiores. Tal fato explica-se pela “desortodoxização” e “deseclesiasticação” do mundo europeu ocidental e pela “filosofização” e “legalização” da fé, cuja estrutura final acabou tornando-se uma religião. Assim, tal religião seria supostamente a refutação à Ortodoxia e, de acordo com o Pe. João Romanides, a doença do gênero humano. Portanto, a Ortodoxia continua historicamente a não participar na composição da atual civilização européia ocidental, que, além disso, também difere em tamanho da civilização do Oriente Ortodoxo.

Os momentos decisivos no curso da Europa Ocidental são: escolasticismo (século XIII), nominalismo (século XIV), humanismo/renascimento (século XV), Reforma (século XVI) e Iluminismo (século XVII). Esses eventos representaram uma série de revoluções e, ao mesmo tempo, brechas na estrutura da civilização européia ocidental.

O escolasticismo apóia-se na adoção da realia platônica. O mundo é concebido enquanto imagem da universalia transcendente (realismo, arquétipo). O instrumento de conhecimento seria a mente/intelecto. O conhecimento (inclusive o conhecimento de Deus) seria alcançado por meio da penetração da lógica na essência dos seres. Seria o fundamento da teologia metafísica, que pressupõe a analogia entis, a relação ontológica entre Deus e o mundo, a analogia entre o criado e o Incriado. O nominalismo afirma que a universalia não passa de nomes, e não seres como no realismo. É a batalha entre platonismo e aristotelismo no pensamento europeu. Porém, o nominalismo tornou-se, digamos, o DNA da civilização européia, cujos elementos essenciais são o dualismo filosófico e o individualismo social. A prosperidade tornar-se-á o objetivo básico do homem ocidental, fundando-se na teologia escolástica da Idade Média. O nominalismo (ou seja, o dualismo) é o fundamento do desenvolvimento científico do mundo ocidental, isto é, do desenvolvimento das ciências positivas.

O Oriente Ortodoxo passou por uma evolução espiritual diferente, sob o guiamento de seus líderes espirituais, os santos – e por aqueles que os seguiram, os verdadeiros fiéis – que permaneceram fiéis à tradição profética-apostólica-patrística. Essa tradição é oposta ao escolasticismo e seus desenvolvimentos espirituais históricos do mundo europeu. No Oriente, o hesicasmo, ou oração do coração, é a espinha dorsal da tradição patrística, sendo expressa pela participação ascética na Verdade enquanto comunhão com o Incriado. A fé na possibilidade de unir Deus e o mundo (o Incriado e o criado) na história foi preservada no Oriente Ortodoxo. No entanto, tal fé significa rejeição a qualquer forma de dualismo. A ciência, à medida que se desenvolveu em Bizâncio, desenvolveu-se dentro desta moldura.

A revolução científica na Europa Ocidental do século XVII contribuiu para a separação entre fé e ciência. Ela acarretou no seguinte princípio axiomático: A nova filosofia (positiva) somente aceita as verdades que são verificadas por meio do pensamento racional. É a autoridade absoluta do pensamento ocidental. As verdades desta nova filosofia são a existência de Deus, da alma, da virtude, da imortalidade e do julgamento. É claro que aceitá-las só seria possível com base em um iluminismo teísta, pois o ateísmo também é parte da estrutura do pensamento moderno. As doutrinas eclesiásticas rejeitadas pela razão são a natureza triuna de Deus, a Encarnação, a glorificação, a salvação etc. Essa religião natural e lógica, do ponto de vista ortodoxo, não apenas é diferente do ateísmo como é muito pior. O ateísmo é menos perigoso do que sua distorção!

B. Gnosiologia ortodoxa

Já dissemos que no Oriente a antítese entre fé e ciência é um pseudo-problema. Por quê? Porque a gnosiologia oriental é definida pelo objeto a ser conhecido, que é de dois tipos: Incriado e criado. Somente a Santíssima Trindade é Incriada. O universo (ou universos) no qual nossa existência se manifesta é criado. Fé é o conhecimento do Incriado, e ciência é o conhecimento do criado. Portanto, são dois tipos diferentes de conhecimento, cada qual com seus próprios métodos e ferramentas de investigação.

O fiel, movendo-se no território do supernatural, ou do conhecimento do Incriado, não é chamado a aprender algo metafisicamente, ou aceitar algo logicamente, mas experimentar Deus estando em comunhão com Ele. Isso é possível introduzindo-o a um tipo de vida ou método que o conduzirá ao conhecimento divino.

Diz-se corretamente que se o Cristianismo surgisse pela primeira vez em nossa época, ele assumiria a forma de uma instituição terapêutica, um hospital cujo objetivo seria reinstalar e restaurar a função psicossomática do homem. É por isso que São João Crisóstomo chama a Igreja de hospital espiritual. O conhecimento supernatural-teológico é entendido na Ortodoxia como um pathos (experiência de vida), uma participação e comunhão com o transcendente, e não uma verdade pessoal e inalcançável do Incriado muito menos um mero exercício de conhecimento. Assim, a fé cristã não é a adoção abstrata e contemplativa de verdades metafísicas, mas a experiência de contemplar o Verdadeiro Ser: a experiência da Trindade Supersubstancial (Superessencial).

A autoridade na Ortodoxia funda-se, portanto, na experiência. A experiência de participar no Incriado, de ver o Incriado (conforme os termos “theosis” e “glorificação” deixam claro) não se baseia em textos ou nas Escrituras. A tradição da Igreja não se preserva em textos, mas em pessoas. Os textos ajudam, mas não são eles os portadores da Santa Tradição. A tradição é preservada pelos santos. Os seres humanos é que são os portadores do Evangelho. Colocar os textos acima da experiência com o Incriado (um indício da “religionização” da fé) acaba levando à sua ideologização e, em verdade, à sua idolatria. Tal fenômeno leva à autoridade absoluta do texto (fundamentalismo) e às suas conhecidas conseqüências.

O conhecimento do Incriado pressupõe, na Ortodoxia, a rejeição de qualquer tipo de analogia (seja entis ou fide) entre criado e Incriado. São João Damasceno explica: “É impossível encontrar, na criação, um ícone que revele o tipo de existência da Santíssima Trindade. Pois como seria possível ao criado, que é complexo e mutável e descritível, e tem forma e é perecível, revelar a Essência Divina Superessencial, que é livre de todas estas categorias?” (P.G. 94,821/21).

Assim, fica claro por que a educação escolar, e a filosófica em particular, de acordo com a tradição patrística, não são pressupostos para o conhecimento de Deus (theognosia). Além do grande acadêmico São Basílio, o Grande, (+379), também honramos Santo Antônio (+350), que, pelos padrões mundanos, não era sábio. Ambos eram professores da fé. Ambos testemunharam o conhecimento de Deus, sendo que Santo Antônio não tinha educação formal enquanto São Basílio era extremamente educado, tido como mais inteligente que Aristóteles. Santo Agostinho (+430) difere da tradição patrística neste ponto (algo que os ocidentais dificilmente admitiriam, se soubessem disso), pois ele ignora a gnosiologia bíblica e patrística sendo, em essência, um neoplatonista! Com seu axioma credo ut intelligam (creio para entender), Santo Agostinho introduziu o princípio segundo o qual o homem é levado a uma concepção lógica da Revelação por meio da fé. Esse princípio dá prioridade ao intelecto (à mente), considerada assim como sendo o instrumento ou ferramenta para o conhecimento do natural e do sobrenatural. Após Santo Agostinho, o próximo passo nesta evolução (com a intervenção de Tomás de Aquino (+1274)) será dado por Descartes (+1650), com seu axioma cogito ergo sum (penso, logo existo), no qual o intelecto (a mente) é considerado a principal base da existência.

C. Os dois tipos de conhecimento

A tradição ortodoxa acaba com a colisão teórica no campo da gnosiologia, distinguindo dois tipos de conhecimento e sabedoria:

1. conhecimento divino, ou aquele que vem “de cima”, superior;

2. conhecimento secular (thyrathen), ou inferior.

O primeiro tipo de conhecimento é supernatural, enquanto o segundo é natural, correspondendo assim à distinção entre Incriado e criado, entre Deus e criação. Estes dois tipos de aprendizado requerem dois métodos de aprendizado. O método do conhecimento divino é a comunhão do homem com o Incriado por meio do coração. Tal comunhão se dá pela presença da energia Incriada de Deus no coração do homem. O método do conhecimento secular é a ciência, levado a cabo pelo exercício do poder intelectual e lógico do homem. A Ortodoxia estabelece uma clara hierarquia entre estes dois tipos de conhecimento e seus métodos.

O método da gnosiologia supernatural, na tradição ortodoxa, chama-se hesicasmo, e é identificada com a vigilância e a purificação (nepsis e katharsis) do coração. A Ortodoxia, patristicamente falando, é inconcebível fora da prática hesicasta. O hesicasmo, em essência, é a prática ascético-terapêutica de limpar o coração das paixões e reacender a faculdade noética dentro do coração. Note-se, porém, que o método hesicasta, enquanto prática terapêutica, também é científico e prático. Portanto, a teologia, sob condições adequadas, pertence às ciências práticas. Foi no começo do século XII, no Ocidente, que a teologia foi classificada como ciência teórica, por causa da transmutação da teologia em metafísica. Assim, os orientais que condenam nossa teologia apenas demonstram o quanto estão ocidentalizados, pois, em essência, condenam e rejeitam uma caricatura desfigurada que julgam ser teologia. Mas o que é a função noética? Nas Sagradas Escrituras já é possível encontrar a distinção entre espírito do homem (seu nous) e o intelecto (o logos ou mente). Na literatura patrística, o espírito do homem é chamado de nous, para distingui-lo do Espírito Santo. O espírito, o nous, é o olho da alma.

A faculdade noética é chamada de função do nous dentro do coração, e é a função espiritual do coração. A função paralela é o coração enquanto órgão que bombeia o sangue em todo o corpo. Tal faculdade noética é um sistema mnemônico que existe juntamente com as células cerebrais. Ambos são cognoscíveis e detectáveis pela ciência humana, porém esta mesma ciência é incapaz de conceber o nous. Quando o homem atinge a iluminação pelo Espírito Santo e se torna o templo de Deus, o amor próprio transmuta-se em amor incondicional, tornando possível ao homem construir relações sociais reais apoiadas nesta reciprocidade incondicional (isto é, na disposição em sacrificar-se pelo próximo), ao invés de relações sociais apoiadas no auto-interesse em reivindicar direitos individuais, a exemplo do espírito da sociedade européia ocidental.

Assim, ficam claras algumas importantes conseqüências: (1) o Cristianismo autêntico transcende a religião e o conceito de que a Igreja é uma mera instituição de regras e deveres e (2) a Ortodoxia não deve ser concebida como uma adoção de princípios ou verdades, impostos desde cima. Tal seria uma versão não-ortodoxa das doutrinas (princípios absolutos, verdades impostas). Conceitos e significados, na Ortodoxia, são examinados por meio das devidas verificações empíricas. O estilo dialético-intelectual de pensamento teológico e dogmático é estranho à autêntica tradição ortodoxa.

O cientista e professor do conhecimento do Incriado, na tradição ortodoxa, é o Geron/Staretz (Ancião ou Pai Espiritual), o guia ou “professor do deserto”. O registro de ambos os tipos de conhecimento pressupõe o conhecimento empírico do fenômeno.

No campo da ciência, somente o especialista entende a pesquisa de outros cientistas da mesma área. A adoção de conclusões ou descobertas de uma determinada ciência por não-especialistas (isto é, por aqueles que são incapazes de examinar experimentalmente a pesquisa dos especialistas) baseia-se na confiança na credibilidade dos especialistas. De outra maneira, não haveria progresso científico.

Vale o mesmo para a ciência da fé. O conhecimento empírico de santos, profetas, apóstolos e padres de todas as eras é absorvido com base na mesma confiança. A tradição patrística e os concílios da Igreja sustentam-se nestas experiências. Não há Concílio Ecumênico sem a presença de glorificados/deificados (theoumenoi), sem aqueles que vêem o divino (eis o problema dos atuais concílios!). A doutrina ortodoxa é resultado deste relacionamento.

Portanto, a fé ortodoxa é tão dogmática quanto a ciência. Aqueles que acusam a fé de ser enviesada não deveriam se esquecer das palavras de Marc Bloch, de que toda pesquisa científica é enviesada desde o início, pois, de outra forma, pesquisar seria algo impossível. O mesmo vale para a fé. A Ortodoxia distingue os dois tipos de conhecimento e seus métodos e ferramentas, evitando, assim, qualquer confusão ou conflito entre eles. Confusão e conflito são engendrados somente quando as condições e a essência do Cristianismo são perdidas. Porém, no meio ortodoxo, há algumas analogias ilógicas, como a possibilidade de alguém destacar-se nas ciências mas, ao mesmo tempo, ser uma criança espiritual, e, vice-versa, alguém ser majestoso em conhecimento divino e analfabeto em sabedoria humana, como o supra-citado Santo Antônio, o Grande. Nada impede, porém, a possibilidade de alguém possuir ambos os conhecimentos, como é o caso dos Santos Padres da Igreja.

D. Dialética Deus-homem

Assim sendo, o fiel ortodoxo encontra-se diante de uma dialética Deus-homem. Usando a terminologia cristológica, cada tipo de conhecimento deve permanecer e mover-se dentro de seus limites. Ultrapassar tais limites implica em confundir suas funções e, por fim, em conflito. Os Santos Padres defenderam o uso correto da ciência e da educação. São Gregório, o Teólogo, afirmou: “A educação não deve ser desonrada”. O mesmo Padre, em sua segunda Oration, estabeleceu os limites dos dois tipos de conhecimento. São Gregório diz que o antigo sábio (Platão, em Timeu) afirmou: “É difícil conhecer Deus e impossível expressá-Lo [verbalmente]”. Porém, o também grego mas cristão São Gregório conclui que é impossível expressar (descrever) Deus com palavras, quanto mais impossível é entendê-Lo! Ou seja, Platão já havia estabelecido os limites da razão humana, e é importante notar que não há racionalismo na antiga filosofia grega. São Gregório, por sua vez, também demonstra a impossibilidade de superar tais limites, bem como é impossível conceber o Incriado por meio do conhecimento do criado.

A distinção e a simultânea hierarquia dos dois tipos de conhecimento foram descritos por São Basílio, o Grande, quando afirmou que a fé deveria prevalecer em relação às palavras sobre Deus e às provas racionais. Tal fé origina-se na ação e na energia do Espírito Santo. Para São Basílio, fé é a iluminação do Espírito Santo no coração (P.G. 30,104B-105B). O santo também fornece um exemplo clássico do uso ortodoxo do conhecimento científico em seu Hexameron (P.G. 29, 3-208). Ele repudia as teorias cosmológicas dos filósofos sobre a eternidade e a auto-existência do mundo, procedendo a uma síntese dos fatos bíblicos e científicos, por meio da qual supera a ciência. Além disso, rejeitando os ensinamentos materialistas e heréticos, São Basílio fornece a interpretação teológica (mas não metafísica) da natureza da criação. Sua tese central é de que é impossível um dogma ser logicamente sustentado somente pela ciência. Os dogmas pertencem a outra esfera, estando acima da razão e da ciência, embora dentro dos limites de outro tipo de conhecimento. O uso de dogmas em conhecimentos mundanos leva à transformação da ciência em metafísica, enquanto o uso da razão no domínio da fé prova sua fraqueza e relatividade. Portanto, não há crença que não seja examinada na gnosiologia ortodoxa, mas cada campo é examinado de acordo com seus próprios critérios: a ciência com suas pressuposições e o conhecimento divino com suas pressuposições.

A expressão mais trágica da alienação cristã é a postura eclesiástica ocidental em relação a Galileu. O caso ultrapassou os limites jurisdicionais, mas o mais sério da história é a confusão entre os limites do conhecimento. Sabemos que o conhecimento que vem “de cima” e o caminho para atingi-lo perderam-se no Ocidente, cuja conseqüência é o uso do intelecto (mente) enquanto instrumento não apenas de sabedoria humana, mas de sabedoria divina também. O uso do intelecto no campo da ciência leva inevitavelmente à rejeição do supernatural enquanto algo incompreensível, e seu uso no campo da fé pode levar à rejeição da ciência quando considerada em conflito com a fé. Essa mesma mentalidade e essa mesma perda de critério se manifestou na rejeição do sistema de Copérnico no Oriente (1774-1821). Em troca, a ciência vingou-se da condenação de Galileu pela Igreja Romana na pessoa de Darwin e sua teoria da evolução.

E. Transplante do problema ocidental ao Oriente Ortodoxo

O Iluminismo europeu consistiu em uma batalha entre o empiricismo físico e a metafísica de Aristóteles. Os iluministas são filósofos e racionalistas. Os iluministas gregos, com Adamantios Korais como seu patriarca, eram metafísicos em sua teologia, e foram eles que transportaram o conflito entre empiricistas e metafísicos à Grécia. Porém, os monges ortodoxos do Monte Athos, os Kollyvades e demais padres hesicastas permaneceram empiricistas em seu método teológico. A introdução da metafísica na teologis popular e acadêmica é obra, principalmente, de Korais. É por isso que Korais tornou-se uma autoridade entre os teólogos acadêmicos, assim como nos movimentos moralistas populares. Isso quer dizer que a purificação do coração deixou de ser considerada um pressuposto da teologia, sendo substituída pela educação escolástica. O mesmo problema surgiu na Rússia durante o reinado de Pedro, o Grande (séculos XVII e XVIII). Dessa maneira, os padres passaram a ser considerados filósofos (sobretudo neoplatonistas, como Santo Agostinho) e agentes sociais. Esse padrão tornou-se o protótipo dos pietistas na Grécia. Dessa maneira, o hesicasmo foi rejeitado como sendo obscurantismo. As chamadas idéias progressistas de Korais derivam do fato de que ele é um defensor do uso calvinista da metafísica, e não do uso católico romano, e suas obras teológicas são ricas deste pietismo calvinista (moralismo).

Porém, para os Santos Padres, a Ortodoxia é anti-metafísica, pois está continuamente buscando a certeza empírica por meio do método hesicasta. Eis por que o hesicasmo dos Kollyvades é empírico e científico. A razão, de acordo com São Nicodemos, o Hagiorita, é empírica. Isso fica claro quando os hesicastas do século XVIII aceitaram o progresso científico do Ocidente. Os Kollyvades reconheceram os pontos de vista científicos como, por exemplo, São Nicodemos, o Hagiorita, em sua obra Symbouletikon, na qual ele aceita as últimas teorias de seu tempo a respeito do funcionamento do coração. Santo Atanásio Parios não combateu a ciência em si, mas seu uso pelos iluministas ocidentalizados da nação grega. Os Padres consideravam a ciência como sendo obra de Deus e uma dádiva para o melhoramento da vida. Mas o uso da ciência na batalha metafísica contra a fé, conforme praticado no Ocidente e transferido ao Oriente, foi algo explicitamente rejeitado pelos teólogos tradicionais dos séculos XVIII e XIX. O erro foi cometido pelos iluministas gregos que, desinformados quanto à visão patrística sobre o conhecimento, embora fossem eles mesmos padres e monges, transferiram o conflito europeu entre metafísicos e empiricistas à Grécia, versando sobre religião irracional. Enquanto que os Padres da Ortodoxia, diferenciando dois tipos de conhecimento, diferenciaram também o racional do super-racional.

O conflito entre fé e ciência, sem contar a confusão entre os conhecimentos, causou a idolatria destes dois tipos de conhecimento. Assim, uma apologética fraca e mórbida engendrou-se no Cristianismo (por exemplo, um professor grego de Apologética produziu uma prova matemática da existência de Deus!). Porém, na Ortodoxia, este dualismo não é auto-evidente. Nada exclui a co-existência entre fé e ciência quando a fé não for uma metafísica imaginária e a ciência não mascarar seu caráter positivo com o uso da metafísica. O entendimento mútuo entre ciência e fé é auxiliado pela atual linguagem científica.

O princípio da indeterminação (segundo o qual não há causalidade) é um tipo de apofatismo na ciência. O retorno aos Padres, portanto, ajuda a superar o conflito. A aceitação dos limites dos dois tipos de conhecimento (Incriado e criado) e o uso do órgão ou ferramenta apropriada a cada um, é o elemento da Ortodoxia e dos Padres que posiciona a sabedoria mundana abaixo do conhecimento divino.

A confusão entre os dois tipos de conhecimento no pensamento ocidental tem promovido interpretações cada vez piores. Uma Igreja que persista na teologia metafísica será sempre obrigada a pedir perdão a Galileu. Por outro lado, uma ciência que ignore seus limites se deteriorará em metafísica, e acabará tratando da existência de Deus (que não é sua responsabilidade) ou rejeitará Deus completamente.

Fonte: http://www.megarevma.net/Metallinos.htm