28 de janeiro de 2014

O adeus ao mundo


Esta é a famosa carta de Eugene (Pe. Seraphim) Rose a seus pais na qual comunica que abandonará a vida acadêmica para abraçar as coisas do Alto. É o testemunho contemporâneo de um ato exercido milhares e milhares de vezes no passado: homens que, respondendo ao chamado do Cristo, deixam para trás a glória e os prazeres ilusórios do mundo para abraçar a vida sublime e grandiosa do esforço ascético rumo à união com Deus.

A carta é de 14 de junho de 1961.

* * *

Liebe Eltern,

Faz calor hoje – parece até verão aqui em San Francisco. Finalmente consegui terminar minha dissertação de mestrado. Entreguei-a na sexta-feira passada, mas a nota só vai ser divulgada em setembro, não sei exatamente por quê. Enquanto isso, continuo me envolvendo com coisas chinesas. Nesse momento, estou ajudando meu ex-professor de chinês a traduzir (do chinês) um artigo sobre filosofia chinesa para publicação em um jornal de filosofia.  A hipocrisia do mundo acadêmico é algo que se vê com muita clareza no caso dele. Ele provavelmente sabe mais de filosofia chinesa do que qualquer pessoa do país, estudou com filósofos e sábios chineses de verdade, na China, mas não consegue arrumar emprego em nenhuma faculdade porque ele não tem diplomas de faculdades americanas, e também porque ele não fala com muita fluência – ou seja, ele é autêntico demais.

Foi-se o tempo em que eu escolhia a vida acadêmica acima de tudo, pois Deus havia me dado inteligência para servi-Lo, e o mundo acadêmico seria em princípio o lugar onde a inteligência deveria ser utilizada. Mas, depois de oito ou nove anos, sei muito bem o que se passa nas universidades. A inteligência é respeitada somente por alguns poucos professores “das antigas”, os quais muito em breve estarão fora de combate. Quanto aos demais, a vida acadêmica é um trampolim para juntar dinheiro, conseguir um emprego estável e para usar a inteligência como se fosse um brinquedinho útil para fazer alguns truques e serem pagos por isso. Em suma, são palhaços de circo. O amor à verdade simplesmente desapareceu deles; as pessoas que têm alguma inteligência são obrigadas a se prostituírem para viver a vida. Quanto a mim, acho isso tudo difícil de aceitar, pois meu amor à verdade é muito grande. O mundo acadêmico não passa de um emprego para mim, mas não vou me deixar escravizar a ele. Não estou servindo a Deus no mundo acadêmico. Tenho um pouco de dinheiro guardado e mais algum está a caminho quando eu terminar um pequeno serviço, então eu acho que vou conseguir viver frugalmente por um ano fazendo o que minha consciência está me mandando fazer: escrever um livro sobre as condições espirituais do homem contemporâneo, sobre as quais, pela graça de Deus, tenho algum conhecimento. O livro provavelmente não vai vender nada, pois as pessoas preferem se esquecer das coisas sobre as quais versarei; elas preferem ganhar dinheiro do que adorar a Deus.

Sim, é verdade que esta é uma geração confusa. A única coisa de errado comigo é que não estou confuso. Sei muito bem qual o dever do homem: adorar a Deus e Seu Filho e preparar-se para a vida do século futuro sem explorar o próximo só para ter uma vida feliz e confortável e esquecer-se de Deus e Seu Reino.

Se Cristo estivesse por aqui, no mundo contemporâneo, sabem o que aconteceria com Ele? Seria internado num hospital psiquiátrico e lhe submeteriam a sessões de psicoterapia. Os santos não ficariam por menos. O mundo crucificaria o Cristo exatamente como há 2000 anos, pois esse mundo nada aprendeu, exceto formas mais sofisticadas de hipocrisia. E se eu dissesse a meus alunos que todo o conhecimento deste mundo não tem nenhuma importância, que o importante mesmo é adorar a Deus, aceitar o Deus-homem que morreu por nossos pecados e preparar-se para a vida do século futuro? Eles provavelmente ririam de mim, e os diretores da universidade, se descobrissem, me demitiriam – pois é contra a lei pregar a Verdade nas universidades. Dizem que vivemos numa sociedade cristã, mas é mentira: a sociedade atual é mais pagã, mais anticristã, do que a sociedade na qual Cristo nasceu. Recentemente, um padre católico da UCLA teve a audácia de dizer que o ambiente da UCLA era pagão. Os diretores da universidade o chamaram de “fanático” e “insano”. Mas o que ele disse era verdade; mas os homens odeiam a verdade, e é por isso que eles crucificariam Cristo de novo se Ele retornasse.

Sou cristão, e tentarei viver como um autêntico cristão. Cristo ensinou-nos a dar todo o dinheiro que tivéssemos e segui-Lo. Estou longe, muito longe, de fazer isso. Mas vou tentar não angariar mais dinheiro do que preciso para viver; se conseguir fazer isso trabalhando um ou dois anos na universidade, tudo bem. Mas no restante do meu tempo vou tentar servir a Deus com os talentos que Ele me deu. Neste ano terei a chance de fazer isso, então é isso que vou fazer. Meu professor, que é russo (a amor a Deus parece estar mais bem enraizado nos russos do que em outros povos), não tentou me convencer a abandonar minhas ideias; ele sabe muito bem que o amor à verdade, o amor a Deus, é infinitamente mais importante do que o amor à estabilidade, ao dinheiro e à fama.

Sou obrigado a seguir minha consciência. Não posso enganar a mim mesmo. E sei que estou fazendo a coisa certa. Se o que vou fazer parece tolice aos olhos do mundo, resta-me responder ao mundo com as palavras de São Paulo: Porque a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus. Eis algo que esquecemos muito facilmente.

Bem, deixem-me voltar à minha tradução de chinês. Mandem lembranças a Eileen [irmã de Eugene].

Liebe,

Eugene

Foto: Eugene Rose em foto oficial de graduação na Pomona College, 1956.

Fonte: Cathy Scott, Seraphim Rose: The True Story and Private Letters, Regina Orthodox Press, 2000.

22 de janeiro de 2014

O tigre


Tigre! Tigre! Luz brilhante
Nas florestas da noite,
Que olho ou mão imortal ousaria
Criar tua terrível simetria?

Em que céus ou abismos,
Flamejou o fogo de teus olhos?
Sobre que asas ousou se alçar?
Que mão ousou esse fogo tomar?

E que ombro & que saber,
Foram as fibras de teu coração torcer?
E o primeiro pulso de teu coração
Que pé ou terrível mão?

Que martelo, que corrente?
Que forno forjou tua mente?
Que bigorna? Que punho magistral
Captou teu terror mortal?

Quando os astros arrojam seus raios,
Cobrindo de lágrimas os céus,
Sorriu ao sua obra contemplar?
Quem te criou, o cordeiro foi criar?

Tigre, Tigre luz brilhante
Nas florestas da noite,
Que olho ou mão imortal ousaria
Criar tua terrível simetria?


Fonte: O casamento do céu e do inferno & outros escritos, William Blake, L&PM Pocket, 2005, Porto Alegre. Tradução de Alberto Marsicano e John Milton.

Confira a composição de John Tavener aqui.

13 de janeiro de 2014

Analogias bíblicas vs. abstrações teológicas


As Escrituras não se dão ao menor trabalho de expor a doutrina da Impassibilidade Divina. Pelo contrário, somos constantemente levados a despertar a ira ou a piedade divina. Até mesmo “enlutado” deixamos Deus. Sim, eu sei que essa linguagem é analógica. Mas quando dissemos essas coisas não devemos achar que, no fundo, deveríamos jogar fora as analogias e manter apenas a verdade pura e literal. O máximo que conseguiremos é substituir as expressões analógicas por algumas abstrações teológicas. E o valor das abstrações é quase sempre negativo. Elas evitam que façamos extrapolações vulgares e tiremos conclusões absurdas das expressões analógicas. Por si só, a abstração “impassível” não nos leva a lugar nenhum. Na verdade, ela pode sugerir algo muito mais enganoso do que a mais ingênua das expressões de um Jeová emotivo e irado do Velho Testamento poderia sugerir. Ou sugere algo inerte, ou algo do tipo “Ato Puro” no sentido de que não se importa ou não toma ciência dos eventos do universo que criou. 

Sugiro aqui duas regras exegéticas: (1) nunca interprete as expressões literalmente; (2) quando o propósito das expressões – o que elas comunicam a nossos medos, esperanças, vontades e afeições – estiver em conflito com as abstrações teológicas, confie sempre nas expressões, nunca nas abstrações. O pensamento abstrato nada mais é do que um tecido de analogias: uma contínua modelagem de realidades espirituais em termos legais, químicos ou mecânicos. Ora, seriam essas abstrações mais adequadas do que as expressões sensuais, orgânicas e pessoais das Escrituras – luz e trevas, rio e poço, semente e colheita, mestre e escravo, galinha e pintinhos, pai e filho? As pegadas do divino são mais visíveis nesse solo rico do que em rochas ou entulhos. É por isso que a chamada “desmistificação” do Cristianismo é, na verdade, uma “remistificação” do Cristianismo – só que substituindo uma mitologia rica por outra mais pobre. As abstrações teológicas parecem menos ingênuas e antropomórficas do que as expressões das Escrituras. Na verdade, a única diferença é que nas abstrações o antropomorfismo está mais bem escondido e é de tipo muito mais danoso.

Fonte: C. S. Lewis, Letters to Malcolm, Harcourt, Inc., 1963, Orlando, EUA.

10 de janeiro de 2014

Partidas são sempre iguais; é a chegada ao destino que coroa o viajante


Há uma opinião que tem ganhado cada vez mais fama e que é extremamente plausível. Diz-se que místicos das mais diversas origens religiosas deparam-se com as mesmas coisas. Tais coisas têm pouco ou nada a ver com as doutrinas professadas por suas respectivas religiões – Cristianismo, Hinduísmo, Budismo, Neoplatonismo etc. Portanto, segue o argumento, o misticismo, por evidência empírica, é o único contato real que o homem já teve com o invisível. O fato dos exploradores concordarem em seus relatos é prova de que todos estiveram em contato com algo objetivo. É portanto a religião única e verdadeira. O que chamamos de “religião” nada mais é do que ilusões ou, na melhor das hipóteses, os diversos pórticos através das quais se pode adentrar à realidade transcendente.

Bem, tenho sérias dúvidas quanto a essas premissas. Teriam Plotino, Juliana de Norwich e São João da Cruz realmente deparado-se com “as mesmas coisas”? Mesmo que admitamos alguma similaridade. O que é comum a todos os misticismos é a interrupção temporária da consciência ordinária espaço-temporal e da razão discursiva. O valor da experiência negativa deve depender da natureza da positiva, seja ela qual for, a qual engendrou. Ora, mas a experiência negativa não deveria mesmo ser sentida sempre da mesma forma? Se os copos de vinho tivessem consciência suponho que estar vazio seria a mesma experiência a todos, mesmo que alguns já estivessem vazios, alguns cheios de veneno e outros quebrados no chão. Todo mundo que parte em uma viagem pelo mar vai “deparar-se com as mesmas coisas” – a terra sumindo no horizonte, o rastro de água atrás da embarcação, a brisa com aroma salgado. Turistas, comerciantes, pescadores, piratas, missionários – todos passam por isso. Mas essa experiência idêntica não confere absolutamente nada à utilidade, à legitimidade ou à finalidade de suas jornadas. A utilidade, a legitimidade e a finalidade da jornada mística em nada dependem do fato de ser mística – ou seja, do fato de ser uma partida --, mas dos motivos, técnicas e experiências do viajante, e da graça de Deus. Partidas são sempre iguais; é a chegada ao destino que coroa o viajante. O santo, por ser santo, prova que seu misticismo (se ele for místico; nem todos os santos o são) o levou ao destino certo; o fato de ter praticado o misticismo em nada prova sua santidade.

* * *

A nossa dificuldade em rezar é em boa parte explicada pelos pecados, conforme qualquer bom professor dirá; pela inevitável imersão nas coisas do mundo, pelo desprezo à disciplina mental. E pelo pior tipo de “temor a Deus”. Intimidamo-nos ante a perspectiva de um contato íntimo, pois tememos as exigências que nos serão impostas. Como dizia um velho escritor, tem muito cristão por aí que reza baixinho “para que Deus não o ouça, coisa que, coitado, não era mesmo sua intenção”. Mas os pecados – os pecados individuais e reais– talvez não sejam a única causa do fracasso na oração.

Pela própria constituição que a mente humana hoje possui – não importa como era quando Deus a concebeu – é difícil concentrar-se em algo que não é nem sensível (como batatas) nem abstrato (como números). Aquilo que é concreto mas imaterial só pode ser mentalmente concebido com muita dificuldade. (p. 114).


Fonte: C. S. Lewis, Letters to Malcolm, Harcourt, Inc., 1963, Orlando, EUA.

9 de janeiro de 2014

O que é justiça social


Que o leitor nos perdoe: veja, embrulhamo-nos de novo no oportunismo de direita com o conceito de “culpa”, com a oposição entre “culpado” e “não culpado”. No entanto, já nos foi explicado que a questão não reside na culpa pessoal mas na periculosidade social: tanto se pode prender um inocente se ele é socialmente um estranho, como soltar um culpado se ele é socialmente conhecido. Mas em nós, que não recebemos uma instrução jurídica, isso é desculpável, pois o próprio código de 1926, sob o qual vivemos como debaixo da proteção de um pai, durante vinte e cinco anos, foi criticado também pelo seu “ponto de vista inadmissivelmente burguês”, pela sua “posição de classe insuficiente”, por uma certa “ponderação burguesa na dosagem da pena em função da gravidade do ato cometido”.

Até 1924 a competência das tróikas [*] limitava-se às penas de três anos; a partir de 1924 foi ampliada para cinco anos; a partir de 1937 a OSO [*] aplicava dez anos; e, a partir de 1948, um quarto de século. Há quem ateste (Tchavdárov) que durante os anos de guerra a OSO aplicava, igualmente, o fuzilamento. Não seria nada de extraordinário.

Não sendo mencionada em parte alguma, nem na Constituição, nem no Código, a OSO acabou, entretanto, por ser a máquina almôndegas mais cômoda: dócil e pouco exigente, não necessitava de lubrificação das leis. O Código era uma coisa e a OSO outra, rodando facilmente, sem precisar desses duzentos e cinquenta artigos, sem utilizá-los nem mencioná-los nunca.

Como se dizia por pilhéria no campo: os tribunais não servem para nada; há a comissão especial.

Compreende-se que, por comodidade, fosse também necessária uma espécie de código, mas com tal fim a OSO elaborou para si mesma os seus artigos-siglas, facilmente operacionais (não era preciso quebrar a cabeça e andar atrás das formulações do Código), as quais pelo seu número limitado seriam acessíveis à memória de uma criança (parte deles já o mencionamos): ASA – Agitação Anti-Soviética; KRD – Atividade Contra-Revolucionária; KRTD – Atividade Contra-Revolucionária Trotskista (a simples letra T agravava muito a vida do zek [**] no campo); PCh – Presunção de Espionagem (se a espionagem ultrapassava a mera suspeita era entregue ao tribunal); SVPCh (Relações Conducentes (!) à Suspeita de Espionagem; KRM – Opiniões Contra-Revolucionárias; VAS – Incubação de Espírito Anti-Soviético; SOE – Elemento Socialmente Perigoso; SVE – Elemento Socialmente Prejudicial; PD – Atividade Criminosa (aplicada particularmente aos ex-reclusos dos campos, se de nada mais podiam ser acusados).

E, finalmente, com grande amplitude: TChC – Membros da Família (condenados por um dos itens anteriores).

Outra vantagem importante da OSO era ainda a de que a sua decisão não tinha recurso: não havia a quem apelar; não existia nenhuma instância, nem superior nem inferior a ela. Estava subordinada unicamente ao ministro do Interior, a Stálin e a Satanás. O grande mérito da OSO era a sua rapidez: esta era limitada apenas pela técnica da datilografia. (p. 277-279).

* * *

Mas eis algo que é essencialmente novo e importante: a diferenciação entre métodos e meios, que existia no antigo código czarista, deixa de existir entre nós! Ela não intervém nem na qualificação do delito, nem na sanção penal! Para nós a intenção e a ação, tudo é o mesmo! Tomada que foi uma decisão, é em função dela que julgamos. Que ela “se tenha levado a cabo ou não, isso não tem qualquer significado essencial”. Quer tenha sussurrado à sua mulher na cama que seria bom derrubar o poder soviético, feito propaganda nas eleições, ou lançado bombas – tudo é o mesmo! A pena é igual! (p.352).

Quando, em 1960, Guennádi Smélov, um preso comum, fez uma greve de fome prolongada na prisão de Leningrado, o promotor foi à sua cela (talvez estivesse fazendo uma inspeção geral) e perguntou-lhe: “Para que se tortura?” E Smélov respondeu-lhe:

-- A verdade é para mim mais importante que a vida!

Esta frase surpreendeu tanto o promotor pela sua incoerência que no dia seguinte Smélov foi levado ao hospital especial (isto é, ao manicômio) para reclusos. A médica comunicou-lhe:

-- Suspeitamos que você sofre de esquizofrenia. (p. 453).

* * *

A maior parte dos presos pelo artigo 58 [***] são pessoas pacíficas (e frequentemente velhos e doentes) que por toda a vida se serviram de palavras, e não dos punhos, e não estão preparadas para enfrentar hoje o que não enfrentaram antes.

Os gatunos, por sua vez, não passaram por tais interrogatórios. Foram interrogados quando muito duas vezes, tiveram um julgamento suave, uma sentença leve e até mesmo essa sentença não a cumprirão, serão libertados antes: ou os anistiam ou fogem. Ninguém privou os gatunos das encomendas legais, e durante as instruções recebem abundantes pacotes dos camaradas de roubo que ficaram em liberdade. Não emagreceram, não se debilitaram nem um só dia e pelos caminhos alimentaram-se à custa dos fraiers [****]. Os artigos que punem o roubo e o banditismo não só não deprimem os gatunos, mas enchem-nos de orgulho, e nesse orgulho ele é apoiado por todos os chefes com galões e com bonés azuis: “Não tem importância, ainda bem que você é um bandido e um criminoso, que não é um traidor da pátria. Você é dos nossos, há que se corrigir”. Nos artigos sobre o roubo não existe o ponto 11 referente à organização. Essa organização não está proibida aos gatunos. E por que o havia de ser? Não contribui ela para educar o sentido do coletivismo, tão necessário ao homem da nossa sociedade? E a apreensão de armas que lhe fazem é um jogo, não sendo punidos por isso. Respeita-se a sua lei (“com ele não pode ser de outra maneira”). Um novo assassinato na cela, longe de agravar a pena do criminoso, só o cobre de louros.

Tudo isso data de há muito. Nas obras do século passado sobre o lumpen-proletariat condenavam-se apenas os seus excessos, o seu estado de ânimo instável. Quanto a Stálin, sempre foi inclinado aos gatunos – quem é que roubava os bancos em seu nome? Já em 1901, na prisão, ele foi acusado por seus companheiros de partido por utilizar delinquentes comuns contra opositores políticos. A partir dos anos 1920 surgiu o termo complacente de: socialmente próximos. De um tal ponto de vista se faz arauto igualmente a Makarenko: estes podem ser corrigidos. (Segundo Makarenko a origem dos delitos é unicamente a “contra-revolução clandestina”. Incorrigíveis são os outros: os engenheiros, os sacerdotes, os socialistas-revolucionários, os mencheviques.)

Por que não roubar se não há alguém que reprima? Três ou quatro gatunos insolentes e unidos podem dominar várias dezenas de assustados e abatidos pseudopolíticos. (p. 480-481).

* * *

Mas como resistir então, você, que sofre de dor, que é débil, ligado por vivas afeições e não está preparado?

Que fazer para ser mais forte do que o comissário de instrução e de que todas essas ratoeiras?

É preciso entrar na prisão sem temer pela sua confortável vida passada. No limiar da cadeia, você deve dizer a si próprio: “A vida acabou, um pouco cedo, mas nada há a fazer. Não regressarei à liberdade. Estou condenado à morte, agora ou pouco mais tarde, mas quanto mais tarde pior, pois quanto mais cedo for menos duro será. Não tenho mais bens. Os meus entes queridos morreram para mim e eu para eles. O meu corpo a partir de hoje é inútil: um corpo estranho. Só o meu espírito e a minha consciência permanecem para mim queridos e importantes”.

Face a um preso com tal ânimo a instrução judicial treme!

Só triunfa aquele que renunciou a tudo! (p. 136).

Fonte: O Arquipélago Gulag, Alexandr Solzhenitsyn, Círculo do Livro, 1975, São Paulo.

[*] OSO (Ossoboie Sovietchnaie) ou tróikas eram conferências especiais e permanentes da GPU.

[**] Zek – z/k, zeká: nome oficial do zakliutchiônni (detido).

[***] O artigo 58 era o famoso artigo do Código Penal Soviético em que se enumeravam os crimes políticos e suas correspondentes penas. Além de ser muito rigoroso nas extensões das penas, sua redação era tão elástica e imprecisa que praticamente qualquer interpretação era cabível.


[****] Todo aquele que não é um gatuno.