29 de abril de 2008

A antropologia e a epistemologia da filosofia de Ivan Kireyevsky

Eis alguns comentários de I.M. Kontzevitch, publicados no apêndice de seu livro The Acquisition of the Holy Spirit in Ancient Russia.

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Estes ensinamentos de Kireyevsky estão diretamente relacionados ao asceticismo e devem ser examinados à luz dele. Tais ensinamentos ligam o asceticismo à filosofia, confirmando assim o sentido eterno dos esforços ascéticos.

Em sua doutrina sobre a alma, Kireyevsky destaca sua estrutura hierárquica. Ele considera o “antigo dualismo antropológico cristão” [1], isto é, a distinção entre homem “exterior” e homem “interior”, como sendo a base de sua doutrina. Usando expressões da psicologia contemporânea, ele distingue entre a “esfera empírica da psique” e seus aspectos mais profundos, situados abaixo do limiar da consciência, cujo ponto central poderíamos chamar de “eu interior”. Esses aspectos são as potências do espírito, relegadas pelo pecado às profundezas do homem, para além do limiar da consciência. É por essa razão que a integridade original foi perdida, ocultando em si a verdadeira raiz da individualidade e sua qualidade específica. Essas potências, esse homem interior, estão apartadas da consciência em função do poder do pecado. Ao superar o pecado e “concentrar” as potências da alma, o homem deve se esforçar para unir sua esfera empírica com seu centro interior, seu “eu interior”, subordinando essa esfera empírica a si próprio. Kireyevsky afirma, em um trecho notável, que “A principal característica do pensamento piedoso consiste no esforço para concentrar todas as potências distintas da alma em uma única potência, buscando a fusão do centro interior do ser em uma única unidade viva, na qual participam razão, vontade, sentimento e consciência, beleza e verdade, admirável e desejável, justo e misericordioso, e todos os aspectos da mente, restaurando, portanto, a personalidade essencial em sua individualidade original”. Nessa integridade restaurada das potências, a primazia hierárquica pertence à esfera moral do homem; e a saúde dos demais aspectos e qualidades específicas de sua alma depende da saúde da esfera moral [2].

Eis como Kireyevsky expressa o problema fundamental de sua doutrina epistemológica: “O entendimento com o qual o homem apreende o divino também lhe serve para que apreenda a verdade em geral”. Em outras palavras, “a apreensão da realidade é função do conhecimento de Deus” [3].

Este importante aspecto da cognição da alma forma a base das construções epistemológicas de Kireyevsky, fornecendo a chave para que se possa compreendê-las. “Nas profundezas da razão humana, em sua verdadeira natureza, está a possibilidade da consciência de seu relacionamento fundamental com Deus”, isto é, a fé. A fé, o conhecimento de Deus, é uma união profunda e misteriosa com Deus – a única e verdadeira realidade - e que não se restringe apenas ao espírito do homem, mas envolve toda a sua personalidade.

Similarmente, o entendimento da realidade secundária, criada, tem a ver não apenas com a razão, mas com “todo o ser e toda sua participação na realidade”. A profundidade da cognição, a possibilidade de “possuir a realidade” e a verdade que está nela oculta, é determinada não somente pela cognição, mas “pela luz do entendimento, pela sua percepção no ‘eu interior’ do homem” [4]. Isto é possível somente na integridade do espírito, na reunião de todas as suas potências.

Mas a Queda causou o debilitamento da estrutura da alma. Embora a fé também tenha sido debilitada e relegada às profundezas da alma, ela ainda preserva o poder de restaurar a integridade perdida do espírito. À medida que a fé tenha sido preservada no centro interior do espírito, ela restaurará o funcionamento natural da mente e “fará a mente entender que foi desviada de sua integridade moral; e este entendimento ajudar-nos-á a elevar-nos acima do curso ‘natural’ das atividades”, isto é, a elevar-nos acima do estado ‘natural’. “Pois o fiel ortodoxo sabe que a integridade da verdade requer a integridade da mente, e a busca por esta integridade constitui a tarefa constante de seu pensamento”. . . . “Portanto, onde a fé está presente, uma ‘atividade dual’ se dará no pensamento do fiel: ao acompanhar o desenvolvimento de seu entendimento, ele simultaneamente acompanhará o método de seu pensamento” (isto é, ele controla a exatidão de sua atividade), “esforçando-se constantemente para elevar sua razão a um nível compatível com a fé”. Por conseguinte, a corrupção da mente, cuja causa é o empobrecimento da integridade da natureza primitiva, será reparada por aquilo que a fé conseguir levar para dentro do espírito. Este processo não implica em violência para a mente, que, outrossim, minaria sua liberdade e poderes criativos, mas implica em elevar a razão a um nível superior.

“As verdades vivas não são aquelas que constituem capital morto na mente do homem, que se situam na superfície de sua mente e podem ser adquiridas por aprendizado exterior, mas são aquelas que incendeiam a alma, que podem queimar ou tornarem-se extintas, que transmitem vida a vida, que estão preservadas em segredo no coração e que não podem, por natureza, ser óbvias e comuns a todos. Quando expressa em palavras, permanecem despercebidas; quando expressa em obras, permanecem incompreensíveis àqueles que não experimentaram seu contato direto”. Conhecer a verdade implica necessariamente em habitar na verdade; em outras palavras, não apenas a mente está envolvida no processo, mas toda a vida. O conhecimento “vivo” é adquirido no mesmo grau em que se aspira interiormente à integridade e elevação moral, e desaparece quando tal aspiração cessa, deixando na alma apenas seu aspecto exterior, formal. Portanto, a “iluminação espiritual”, em contraste ao conhecimento lógico, depende do estado moral da alma e, enquanto tal, requer esforço e intensidade moral. “Ela pode extinguir-se caso o fogo que a despertou não seja continuamente alimentado”. O conhecimento abstrato implica em “desligar-se da realidade, e o próprio homem torna-se uma entidade abstrata”. A ruptura com a realidade começa na esfera da fé. A enfermidade do espírito, a desintegração de sua força, é, antes de mais nada, refletida na esfera da fé, resultando em “pensamento abstrato”. “O pensamento lógico, apartado das demais potências cognitivas, é a característica natural da mente que se apartou de sua integridade”. Este apartamento também causa a perda das cognições superiores ligadas à fé; e a “razão natural” inevitavelmente despenca para o nível de sua “natureza primária”. A ruptura com as potências espirituais, esta “amoralidade” do iluminismo ocidental, confere-lhe uma estranha estabilidade, enquanto o conhecimento espiritual é dinâmico por natureza e diretamente dependente do estado continuamente mutável da esfera moral.

Eis aí portanto a solução de Kireyevsky ao problema básico da epistemologia: a união interior da fé com a razão. Conforme mencionado acima, ele inspirou-se nos Padres da Igreja. Conforme explicada por São Dimítrio de Rostov, sua doutrina dos níveis da razão o ajudou a elucidar a doutrina da cognição.

1. A razão não cultivada e que permanece por longo tempo impura é uma razão irrazoável, uma razão iníqua e mentirosa. Há distinções na razão, assim como em todas as coisas externas. Há a razão perfeita, espiritual, há a razão média da alma e há a razão carnal e grosseira.

2. Quem não seguir o estreito caminho evangélico e não purificar sua mente estará cego de alma, mesmo que tenha se especializado em todas as sabedorias externas; ele se atém somente à letra que mata, rejeitando o espírito que dá vida.

3. A verdadeira razão não consegue penetrar fundo na alma sem grandes e prolongados esforços; pois é na medida em que as luxúrias humanas são mortificadas que a verdadeira razão crescerá e florescerá. Mas esse esforço ascético é de um tipo particular, consistindo de esforço exterior e atividade mental. Um não é eficaz sem o outro.

4. Aqueles que cumprem as exigências do esforço exterior enquanto rejeitam a atividade espiritual interior – a iluminação e a purificação da razão – encontram-se perdidos, deixando-se corromper pelas diversas paixões ou cair em perniciosas heresias. E como eles não se importaram de ter conhecimento de Deus, assim Deus os entregou a um sentimento perverso, para fazerem coisas que não convêm (Romanos 1:28).

5. A mente purificada e iluminada consegue entender tudo o que é exterior e interior, pois a pessoa é espiritual e discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido (I Coríntios 2:15) [5].

Filosofia é a ciência da apreensão da verdade. Mas a verdade é una. Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida, diz o Senhor (João 14:6). Este Caminho é também o único para o pensamento filosófico; quem quer que siga um caminho diferente sobe por outra parte (João 10:1).

Um camelo de carga só consegue passar pelos portões baixos e estreitos de Jerusalém – o chamado “buraco da agulha” – com muita dificuldade e de joelhos. Mas, apesar dos esforços, é ainda mais difícil um pensador rico da falsamente chamada ciência (I Timóteo 6:20) entrar no Reino da verdade e da liberdade espiritual de Deus: Ora, o Senhor é Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade (II Coríntios 3:17). Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará (João 8:31-32).

Baseando-se na lei da dinâmica do conhecimento e sua ligação com a esfera espiritual, Kireyevsky supõe que o declínio do “iluminismo russo nativo”, embora tenha ocorrido em circunstâncias externas desfavoráveis, “não estava livre de falhas humanas interiores”. “A aspiração a formalidades externas, algo que observamos entre os Velhos Crentes russos, dá a entender que a direção inicial do iluminismo russo já havia se corrompido antes das reviravoltas causadas por Pedro”. Vale a pena notar que Kireyevsky situa o início desse declínio nos séculos XV e XVI, o que coincide com o início do declínio da atividade espiritual, de acordo com nossas próprias pesquisas.

Assim, Kireyevsky marcou o início de uma nova e inspirada filosofia da “integridade do espírito”, que poderia ter formado as bases para o desenvolvimento de uma cultura russa original e nativa.

Em Kireyevsky, a autoconsciência russa já atingira sua plena revelação. O pensamento russo estava se livrando de seus longos séculos de escravidão a princípios estrangeiros e iniciando seu caminho independente, voltando às fontes primárias. Estava, pois, retornando à “casa do pai”. Mas Kireyevsky não teve tempo para completar a tarefa que deslumbrou: escrever uma filosofia. Ele apenas dera as bases e indicara sua direção. A morte o levou ao ápice de sua vida. Ele foi sepultado no Mosteiro de Optina, próximo ao Ancião Leônidas. Ancião Macário morreu logo em seguida. Tudo o que transpirou de Optina tinha um significado misterioso. O próprio Metropolita Filareto espantou-se com a honra devotada a Kireyevsky [6].

[1] Zenkovsky, History of Russian Philosophy, pág. 222.

[2] Ibid., pág. 225.

[3] Ibid., pág. 228.

[4] Ibid.

[5] The Spiritual Alphabet, St. Demetrius of Rostov, pág. 38-43. I. M. Kontzevitch escreveu um tratado completo sobre São Dimítrio de Rostov, publicado na Pravoslavny Put (The Orthodox Way – O Caminho Ortodoxo), embora não em sua totalidade (editor).

[6] A vida de Kireyevsky foi uma confirmação viva de seus ensinamentos. Eis o que disse sobre Kireyevsky seu grande amigo Khomiakov: “Um coração cheio de ternura e amor; uma mente enriquecida pela cultura de nossa época; a pureza translúcida de uma alma mansa e livre de malícia; uma suavidade de sentimentos muito particular que adicionava um charme todo especial a suas conversas; um ardente desejo pela verdade e um raro refinamento dialético em seus argumentos, acompanhado da mais alta cordialidade quando seu oponente estava certo e de tenra misericórdia quando seu oponente mostrava-se obviamente fraco; aversão a tudo o que seja grosseiro e abrasivo em vida, expressão e pensamento, ou em relação a outras pessoas; lealdade e devoção nas amizades; prontidão para perdoar seus inimigos para sinceramente se reconciliar com eles; ódio profundo contra os vícios e, finalmente, uma irrepreensível dignidade. Tais eram as raras e valiosas qualidades de Ivan Vasilievich Kireyevsky”. Russian Biographical Dictionary (São Petersburgo, 1897), pág. 695.

18 de abril de 2008

São Ticônio, Patriarca de Moscou

Eis um trecho da homilia proferida por São Ticônio (+1925), Patriarca de Moscou, no Domingo do Triunfo da Ortodoxia de 1903, na Catedral Ortodoxa Russa de San Francisco, EUA, enquanto era bispo neste país. Embora proferida para imigrantes russos nos EUA, suas palavras têm grande relevância para nós.

Fonte: Monachos.net

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Com que rapidez, neste país de tantos credos e tribos, as pessoas abandonam a fé ortodoxa! Elas começam sua apostasia com coisas que, a seus olhos, têm pouca importância. Elas julgam tais coisas como sendo “antiquadas” e “inaceitáveis para pessoas esclarecidas”: rezar antes e depois das refeições (ou mesmo de manhã e à noite), usar uma cruz, ter ícones em casa e observar os dias santos e os dias de jejum. Mas essas pessoas não param por aí. Elas vão ainda mais longe: raramente vão à igreja, se é que vão, pois acreditam que o homem tem de descansar aos domingos (...num bar); não se confessam, dispensam o casamento na igreja e demoram para batizar seus filhos.

É assim que suas ligações com a fé ortodoxa se rompem! Elas se lembram da igreja em seu leito de morte, e algumas nem mesmo assim! Para se desculparem, dizem ingenuamente: “Aqui não é a terra-natal, é a América, e, portanto, é impossível observar todas as exigências da Igreja”, como se a palavra de Cristo fosse útil somente para a terra-natal e não para todo o mundo. Como se a fé ortodoxa não fosse o fundamento do mundo!

Ai, nação pecadora, povo carregado de iniqüidade, descendência de malfeitores, filhos corruptores; deixaram ao Senhor, blasfemaram o Santo de Israel. (Isaías 1:4).

Se vocês não preservam a fé ortodoxa e os mandamentos de Deus, o mínimo que deveriam fazer é não humilhar seus corações inventando falsas desculpas pelos seus pecados!

Se vocês não honram nossas práticas, o mínimo que deveriam fazer é não rir do que desconhecem e não entendem.

Se vocês não aceitam o cuidado maternal da Santa Igreja Ortodoxa, o mínimo que deveriam fazer é confessar que agem injustamente, que estão pecando contra a Igreja e se comportando como crianças!

Se fizerem isso, talvez a Igreja Ortodoxa perdoe a frieza e o desdenho de vocês, e os receba de volta em seu seio como se fossem crianças desobedientes.

É praticando a fé ortodoxa como algo santo – amando-a de todo coração e prezando-a acima de tudo – que o povo ortodoxo poderá então se esforçar a disseminá-la entre os povos de outros credos.

Cristo Salvador disse que nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e dá luz a todos que estão na casa. (São Mateus 5:15).

A luz da Ortodoxia não foi acesa para brilhar em um número pequeno de pessoas. A Igreja Ortodoxa é universal; ela lembra as palavras de seu Fundador: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura (São Marcos 16:15), portanto ide, fazei discípulos de todas as nações (São Mateus 28:19).

Devemos compartilhar nossa riqueza espiritual, nossa verdade, luz e alegria com os outros, que estão desprovidos dessas bênçãos, mas com freqüência as procuram e estão sedentas delas.