30 de dezembro de 2011

"Não há absolutamente nenhuma semelhança entre criado e Incriado"


Eis um interessante diálogo entre dois ortodoxos acerca da doutrina cristã de que não há absolutamente nenhuma semelhança entre o criado e o Incriado. O diálogo começa com um comentário sobre a crítica de Vladimir Moss à exposição do Pe. John Romanides sobre essa doutrina.

* * *

A: Moss não entendeu nada da tese do Pe. John Romanides sobre a relação entre criado e Incriado. Romanides deixa claro que a Escritura faz uso, de fato, de palavras baseadas na experiência humana para descrever certas (mas não todas) energias divinas de Deus. Porém, quanto mais uma pessoa se aproxima de Deus e experiencia em estado glorificado a visão de Deus, mais ela entende que todas essas descrições de Deus contidas na Escritura não consistem no verdadeiro conhecimento de Deus. O verdadeiro conhecimento de Deus torna Deus anônimo, tanto em Sua essência quanto em Suas energias. Trata-se da treva divina experienciada por Moisés no Sinai.

Se as energias de Deus fossem de fato capazes de serem descritas, então as energias de Deus nos ajudariam a entender a essência de Deus. Isso acabaria reduzindo a Ortodoxia a um sistema neoplatônico ou mesmo escolástico. Mas sabemos que a essência de Deus é incognoscível e incomunicável. É por isso que São Dionísio, o Areopagita, ensina que Deus não é nem três, nem um, porque se pensarmos em Deus como três, retrataremos algo que consiste de três. Idem para um. Mas Deus não pode ser comparado com nada, daí Ele não ser nem três, nem um, nem nenhum número de nada. Se pudéssemos realmente conhecer racionalmente algo acerca de Deus, então não precisaríamos nos tornar como Ele para conhecê-Lo; e conhecê-Lo significa experienciá-Lo da maneira como Ele escolhe se revelar, seja como luz, treva etc. Chamamos Deus de "amor" porque é desta forma que os santos O experienciaram, mas em verdade Ele está para além do amor; na verdade, Ele não é amor porque amor é apenas uma experiência humana limitada. Romanides prossegue explicando, porém, que quando Deus encarnou-Se no Cristo, então passamos a conhecer algo de Deus através de Sua natureza humana.

Estes são ensinamentos ortodoxos bem básicos que Moss deveria entender, mas suas intenções ficam claras quando, na primeira linha de seu artigo, ele chama Romanides de "neocalendarista". Como Romanides, em toda sua genialidade, não era um veterocalendarista, Moss não pensaa duas vezes em analisar um conceito fundamental da teologia ortodoxa da maneira mais superficial e elementar possível.

B: Então seria correto dizer que todos os nomes de Deus (grande, poderoso, bom, um, três) são resultado de uma abordagem catafática, mas quando Deus é abordado apofaticamente (ou "misticamente", se eu puder me expressar dessa forma), todos esses nomes são não apenas insuficientes, mas incorretos? Se é assim, como Romanides explica a Encarnação e todas as manifestações de Deus no Velho Testamento? Se a energia de Deus -- que é a "parte" de Deus que se comunica conosco -- é audível e visível, deve haver alguma similaridade entre ela e este mundo, vaga e incompleta, mas similaridade mesmo assim.

A: Sim, mas [similaridade] somente de acordo com a experiência humana. Em última instância, nós limitamos Deus ao fazer isso e, portanto, não devemos supor que Deus seja qualquer uma dessas coisas. Quanto mais nos aproximamos de Deus "de glória em glória", tanto mais inominável Ele se torna. A Encarnação significa Deus descer ao nosso nível, mas isto ocorre apenas para abrir-nos um caminho para aproximarmos dEle. Através da theosis conhecemos a Deus como luz, embora também possamos conhecê-Lo como treva. Essa luz e essa treva não tem nada a ver com a luz e a treva que conhecemos, já que a luz criada supera a treva e a treva criada é a ausência de luz. Tratam-se de descrições oriundas da experiência humana para comunicar a pessoas de mentalidade mundana, que não tiveram essa experiência, e a conduzi-las a essa experiência, a qual não tem absolutamente nada a ver com nada criado. Ocorre que quando comunicamos essas coisas fazendo uso de nossa experiência humana, acabamos necessariamente por compará-las com realidades criadas, pois as pessoas que experienciaram a "luz" incriada não têm outra maneira de comunicar essa experiência. É por isso que não existem analogias entre algo criado e algo incriado. Quano um santo fala com um não-santo sobre a luz incriada, o não-santo entende algo totalmente diferente do santo. Mas quando dois santos que tiveram a mesma experiência falam um com o outro acerca dessa experiência, eles se entendem perfeitamente, e isso não tem nada a ver com a conversa entre um santo e um não-santo. Assim, podemos dizer que um santo fala com um não-santo catafaticamente, mas santos falam entre si apofaticamente.

B: Mas e quanto à doutrina da kenosis? Jesus Cristo teria "renunciado" (ou "ocultado") sua natureza divina para que as pessoas impurificadas e desiluminadas de sua época pudessem olhá-Lo, falar-Lhe etc., ou seja, experienciá-Lo, sem efetivamente alcançar a theosis?

A: Não foi isso o que eu disse.

B: Eu sei. O que estou querendo saber é se posso deduzir, baseado no que você disse, que a doutrina da kenosis explica por que as pessoas podiam ver e falar com Jesus Cristo, o qual tem uma natureza plenamente divina e uma natureza plenamente humana, sem imediatamente alcançar a theosis. Isso também explicaria porque as pessoas da época de Jesus Cristo, ao vê-Lo, tocá-Lo e falar-Lhe, não poderiam inferir similaridades entre o criado e o Incriado -- elas não se uniam às Suas energias ao interagir com Ele, mesmo que Cristo estivesse "bem ali". O que acha?

A: Houveram relances das energias incriadas, tais como a Transfiguração, e, a exemplo dos profetas do passado, os apóstolos operaram milagres em nome de Jesus (pela autoridade de Deus) enquanto Jesus ainda se encontrava em seu ministério, mas não houve nenhuma aquisição do Espírito Santo até o Pentecostes. A Transfiguração, aliás, é um excelente exemplo do que São Dionísio e São Gregório de Nissa explicaram sobre a relação entre o criado e o Incriado. Jesus transfigurou-Se, mas esse fato é explicado apenas na linguagem da experiência humana. O Espírito Santo veio como uma nuvem luminosa. Em nossa experiência humana, conseguimos imaginar uma nuvem luminosa, mas o fato é que não foi bem isso o que os apóstolos viram, mas essa acabou sendo a maneira com que conseguiram explicar. Porém, esses apóstolos viram o Cristo de uma maneira nunca antes vista e, a despeito do que tenham visto, essa glória não pôde ser descrita com palavras objetivas.

Outro exemplo é o conceito de "inferno" usado pelo Cristo. Na doutrina ortodoxa, inferno é a glória incriada de Deus experienciada pelos impenitentes. Às vezes é descrito como fogo, às vezes como treva, às vezes como depósito de lixo (sheol), às vezes como ranger de dentes etc. São descrições que todos podemos entender segundo nossa experiência humana, mas a verdade é que elas não guardam semelhança alguma com a realidade. Não há palavras ou conceitos que possam descrever a realidade incriada ou as energias incriadas de Deus. É por isso que Deus, no Velho Testamento, é às vezes descrito como uma galinha que ajunta sob suas asas, às vezes como uma autoridade sentada em um trono ou como um jovem que luta com Jacó.

Isso tudo está bem explicado em Patristic Theology, do Pe. John Romanides. Tente ler também uma boa tradução de São Dionísio e a "Vida de Moisés", de São Gregório de Nissa.

25 de dezembro de 2011

Pensamentos do ouvido interior


Arquimandrita Touma (Bitar)

19/jul/2009

A raiva era uma coisa sagrada no Paraíso. O Senhor Deus implantou a raiva no homem para que ele possuísse um instrumento que fosse capaz de rejeitar dentro de si todas as artimanhas que o diabo armasse para separar o homem do verdadeiro Deus e para remover do homem sua fé em Deus. O diabo enganou Adão e Eva, e eles não fizeram uso dessa faculdade incensiva (ou irascível) para detê-lo. Se tivessem feito isso teriam escapado dessa artimanha do diabo e, portanto, teriam sido poupados dos sofrimentos que daí se seguiram. Quando a artimanha do diabo se lhes apresentou, caíram no mesmo erro que o diabo caíra – a autoadoração. O homem, ao aceitar as insinuações do diabo, deixou a esfera de Deus para entrar na esfera do diabo. Desde então, o homem tem se comportado, mesmo que de maneira espontânea, à maneira do diabo. Quanto à raiva, a partir do estado ao qual Adão e Eva chegaram, ela se tornou mais e mais um instrumento de opressão e destruição, no sentido do homem exercer poder sobre outros homens e sobre a morte. É assim que a autoadoração do homem começou a se expressar. A raiva tornou-se a faculdade destruidora da criação de Deus depois de ter sido a faculdade para preservá-la. Não mais ela é mais o instrumento para a defesa da verdade. Ao invés disso, tornou-se uma arma da falsidade.

A natureza humana de Jesus Cristo é a natureza do homem no Paraíso, antes da Queda. É por isso que a parte irascível foi implantada em prol do zelo a Deus. Quando Ele entrou no templo e viu aquelas pessoas fazendo comércio, transformando a casa de Deus em um bazar, ficou furioso por zelo à Verdade. Ele tomou de um chicote e bateu naquelas pessoas, virando mesas e cadeiras, dizendo-lhes: A minha casa será chamada casa de oração; mas vós a tendes convertido em covil de ladrões. (Mateus 21:13).

Para que os homens voltem a adorar Deus em espírito e em verdade mediante o cumprimento dos mandamentos divinos, não lhes é permitido que recorram à violência. O conselho para eles é: sede prudentes como as serpentes e inofensivos como as pombas. (Mateus 10:16). Para que os homens alcancem a humildade desejada pelo Senhor Deus, devemos imitá-Lo nisso. A parte irascível dos homens não retornou ao estado original e ela não recobrou o papel divino de defender a verdade e de preservar a criação de Deus. Até a Queda, a violência era uma arma exclusivamente diabólica. O clímax das artimanhas de Satanás foi trazer o homem ao campo da violência, fazendo-o matar em nome de Deus. Jesus Cristo alertou para este fato quando disse a Seus discípulos: Expulsar-vos-ão das sinagogas; vem mesmo a hora em que qualquer que vos matar cuidará fazer um serviço a Deus. E isto vos farão, porque não conheceram ao Pai nem a mim. (João 16:2-3).

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O diabo às vezes fala a verdade. Ele falou a verdade, por exemplo, quando chamou o Senhor de Jesus, Filho de Deus (Mateus 8:29). Nem tudo o que o diabo fala é mentira. Dito isto, ele continua sendo o enganador e o pai da mentira (João 8:44) porque seu objetivo é enganar os povos de todos os tempos e todos os lugares, seja falando a verdade ou falando mentiras. Seu objetivo principal não é testemunhar a verdade, mas lançar o homem ao erro. Ele sempre se moverá dentro do espírito da falsidade. Portanto, quando fala a verdade, ele o faz a serviço da falsidade. Se ele não falasse mentiras, ninguém acreditaria nele e todos se afastariam dele. É por isso que ele mistura mentira com verdade. É impossível que o homem conheça a verdadeira natureza do diabo exteriormente. Ele somente pode ser plenamento exposto através do Espírito de Deus.

Sejamos claros: o diabo tem um único objetivo, qual seja, o de afastar as pessoas de Deus. Para alcançar este objetivo, ele faz com que as pessoas pensem como ele pensa. Seu objetivo não é tanto dominar os homens por fora, mas dominá-los por dentro, implantando-lhes seus pensamentos. Ele nos faz pensar que o que ele quer para nós é exatamente o que nós queremos para nós mesmos. Seu slogan é: “Faça o que você quer”. Ele espalha seus pensamentos nas pessoas e desaparece. Dessa forma, ele nos transforma em demônios e em seus obreiros. A prova de seu sucesso é quando pensamos: “Este pensamento é meu. É assim que eu penso”; ou mesmo quando atingimos um elevado grau de cegueira e achamos que nossos pensamentos, que vêm do diabo, são de Deus.

Pois esta é a lógica da autoadoração e esta é a lógica do perverso poder humano. Quanto mais as pessoas se afastam de Deus, mais elas sujam as mãos com o poder terreno. Jesus Cristo alertou-nos contra a tomada de poder neste mundo, pois é impossível que o façamos sem estarmos sujeitos ao pensamento sobre o qual falamos acima. É impossível que alguém tome o poder de acordo com o mundo sem a presença desse pensamento diabólico. O poder é o primeiro passo da obra do diabo e o campo ideal para a manifestação de seus planos e pensamentos. Depois da Queda, a aquisição de poder tornou-se automaticamente a coisa que a alma mais deseja. O homem nasce com forte inclinação para isso – todos os homens. Por isso, para aqueles que têm fé em Jesus Cristo, há outros ditames, outros mandamentos e outra lógica. Eis o que disse Jesus Cristo: Sabeis que os que julgam ser príncipes dos gentios, deles se assenhoreiam, e os seus grandes usam de autoridade sobre elas; mas entre vós não será assim; antes, qualquer que entre vós quiser ser grande, será vosso serviçal; e qualquer que dentre vós quiser ser o primeiro, será servo de todos. Porque o Filho do homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos. (Marcos 10:42-45).

A grande tentação para as pessoas, não importa se tenham fé em Jesus Cristo ou não, mas sobretudo para os servos de Cristo – pois não temos “líderes” eclesiásticos no sentido estrito da palavra, mas “servos” eclesiásticos – é a tentação do poder. Para os servos de Cristo, essa tentação é ainda maior, pois não apenas estão expostos ao poder deste mundo, mas são chamados a exercer o poder em nome de Deus. Em outras palavras, são chamados a dar ao poder, o qual vem do Espírito Santo, também uma dimensão espiritual. É por este motivo que os servos de Cristo, se não são servos em verdade, são filhos de Satanás e seus servos por excelência, e aqui não importa se saibam disso ou não, pois roubam aquilo que é de Deus, de propósito ou por ignorância, e o cedem ao diabo. Neste contexto, o problema é que eles caem nas artimanhas de Satanás não por causa do que pregam, mas por causa do que dizem e não fazem (Mateus 23:3). Por sua pretensão em ignorar a prática, eles perdem o senso das coisas divinas. O exterior diz que são homens de Deus, mas o interior está firmemente atrelado ao serviço de Satanás. Este é o estado ideal para operar o trabalho do diabo. Eles insistem que estão a serviço de Deus, mas o que fazem é exercer o poder no espírito deste mundo. Eles exortam o amor de Cristo, mas não amam. Sempre têm desculpas. Eles dizem que cuidam do rebanho de Cristo, mas o que cuidam mesmo é de seus próprios interesses e paixões. Eles exortam ao perdão mútuo, mas odeiam e se vingam. Eles dizem que se preocupam com a ovelha perdida, mas afastam todas as ovelhas. Eles exortam a adoração a Deus, mas, no fundo de suas almas, querem mesmo é ser venerados e lisonjeados. Com palavras demonstram zelo pelo Evangelho, mas seus corações interiores têm zelo apenas pelo que é deles. Sua honra está acima da honra de Cristo! Eles não pensam duas vezes em desobedecer aos rituais da Igreja só para ganhar alguma vantagem pessoal, e chamam a isso de cuidado pastoral! Eles presidem os ofícios, mas o que querem mesmo é adorar a si próprios, à sua aparência, sua voz, suas vestes e suas homilias. Preocupam-se para que as pessoas se apeguem a eles, e não a Deus, e para que elas falem bem deles. Quando dizem a verdade, misturam-na com a falsidade que há neles, pois seus corações não são de Deus. Certamente não são!

Esse tipo de tentação satânica, este ambiente interior envenenado que reina em praticamente todas as pessoas da Igreja, sobretudo os pastores, não pode ser neutralizada apenas com conhecimento teórico, mas com o Espírito do Senhor e com exercícios práticos: cumprir os mandamentos divinos e andar em santidade. O ignorante é levado a Deus por quem O conhece, isto é, por quem O ama. Quando o cego guia outro cego, ambos caem no precipício do diabo. Por isso a Igreja tem ao longo da história tomado o cuidado de selecionar para o trabalho pastoral homens santos, ou seja, homens que conhecem a Deus e praticam os princípios da vida espiritual. Ninguém pode dar o que não tem. Somente aquele que teme a Deus pode levar o rebanho de Cristo a temer a Deus. Somente o arrependido pode lever o rebanho de Deus ao arrependimento. Somente quem ama a Deus pode levar o rebanho de Deus a amá-Lo. Somente o servo de Cristo pode liderar o serviço a Cristo. Quem jejua, reza e vigia pode levar o rebanho a jejuar, rezar e vigiar. Quem anda em santidade pode conduzir o rebanho de Deus à santidade. Somente quem possui o Espírito do Senhor pode conduzir o rebanho ao Espírito do Senhor. Este é o verdadeiro conhecimento prático dos cristãos, esta é a verdadeira filosofia dos cristãos. Teorias e conhecimentos não têm valor em si mesmos, não fazem de ninguém santo, mas servem na melhor das hipóteses como educação preparatória. A experiência mostra que os ignorantes espirituais tendem a depositar grande valor em teorias e aquisição de informações, mas quem tem experiência espritual não dá muito valor a teorias e precisa de pouca formação teórica. A maior parte de seu conhecimento é prático, de maneira que o que aprende vem do Alto. Para os cristãos, aquele que anda em santidade é o verdadeiro inteligente, mesmo que seja analfabeto; por outro lado, quem não anda em santidade não passa de um ignorante, mesmo que tenha memorizado todos os livros do mundo!

Hoje em dia, infelizmente, os padrões mudaram. Santidade não é o ambiente e a escola e a meta da maioria dos cristãos, sejam leigos ou sacerdotes. A santidade não habita mais a consciência dos fiés comuns, mas sim os grandes milagres! Não mais insistimos que nossos pastores sejam santos. De qualquer forma, não há muitos santos mais. A cultura da auto-satisfação não é propícia para a fabricação de santos. Damo-nos por satisfeitos com as pessoas que se comportam normalmente. Raramente investigamos a condição interior dos candidatos a pastores ou mesmo sua vida pregressa. Essa questão é totalmente ignorada quando se trata de selecionar bispos para a Igreja. A possibilidade de errar acaba se tornando enorme, causando constrangimento para a Igreja quando se descobre, depois de algum tempo, que o passado do recém-ordenado bispo é vergonhoso. Em outras ocasiões, bispos da Igreja não pensam duas vezes em ordenar pessoas que obviamente são indignas dessa posição.

O tipo de pastor a que me refiro é ainda mais valorizado hoje em dia se ele tiver algum diploma universitário e/ou alguma formação teológica qualquer, e se for bom de papo. Será ainda mais admirado se for um grande pensador, um orador eloquente, ou mesmo um escritor. Melhor ainda se conhecer línguas estrangeiras, se sua voz for bela e articulada, se tiver “consciência social” e se possuir conhecimentos administrativos e de educação religiosa. Não se exige, de maneira alguma, que seja um homem de oração. Isso é problema dele! Exige-se apenas que cumpra suas obrigações rituais com excelência. Ademais, não se exige que seja um homem que jejue. Isso também é problema dele! A maioria das pessoas, afinal, acha que o jejum na Igreja Ortodoxa é muito rígido mesmo, e que esse tipo de coisa não condiz com a época em que vivemos. Em geral, as pessoas se acostumam a conviver com as tendências impróprias desse pastor, seja ele ganancioso, vaidoso, orgulhoso ou briguento. No que tange as virtudes cristãs, raramente as encontramos nos pastores de hoje em dia – se é que as pessoas sabem quais virtudes são essas. Algumas se alegram ao identificá-las, algumas simplesmente não lhes prestam atenção. De qualquer forma, a maioria das pessoas simplesmente as acham supérfluas. O que importa mesmo é a ética mundana – ou seja, o pastor não pode ser fornicador, ladrão ou assassino. Na ausência de uma criação autenticamente cristã, o que acaba prevalecendo são os padrões humanos e mundanos!

Todas estas coisas fazem parte do contexto eclesiástico atual, já que a santidade não é preocupação de ninguém, nem do pastor. O que realmente valorizamos é a Igreja enquanto idéia, enquanto instituição, enquanto organização. Preocupamo-nos com os ofícios, com o coral, com as reuniões sociais e culturais, com grupos de estudo etc. Não que estas questões não sejam importantes. Elas são. Mas o mais importante não é isso. O mais importante é a purificação do coração e a aquisição do Espírito Santo. Eis o desvio fundamental daqueles que se consideram fiéis – sacerdotes e leigos, não importa. Eles não passam de pagãos que se autoadoram, que buscam sua própria glória. Preocupam-se com seu próprio poder, com sua própria reputação, com sua própria honra. Satisfazem-se com a forma exterior da adoração a Deus. O que lhes importa não é a conversão do coração, mas os costumes, as obrigações desprezíveis, os falsos elogios. Ora, não é esta a igreja ideal de Satanás? Não é esta a igreja que ele ama? Uma igreja mundana, ritualística, como um museu, um Cristianismo nominal, sem Cristo, sem santidade, sem verdade, sem Espírito, sem vida nova, cheia de pensamentos mundanos e preocupações mundanas! Não é esta a igreja que a maioria das pessoas recebe e pela qual trabalham? O diabo triunfou ao fazer as pessoas acreditarem que esta é a verdadeira igreja, que está é a igreja ideal, a igreja “moderna”! 

Esta é precisamente a igreja contra o Cristo! E nós, desatentos à santidade, estamos construindo-na alegremente, persistentemente e continuamente! 

Fonte: Notes on Arab Orthodoxy

7 de dezembro de 2011

Como ler Platão


Em Ler Platão, Thomas A. Szlezák introduz o leitor no ponto de vista interpretativo das doutrinas não-escritas (agrapha dogmata) de Platão, conhecido entre os estudiosos das obras platônicas como Escola de Tübingen. Em outras palavras, o objetivo é “chegar a uma interpretação dos escritos filosóficos de Platão que resista à sua crítica da escrita elaborada no Fedro. Querer desvalorizar a própria desvalorização da escrita por parte de Platão ou convertê-la em seu contrário, como foi usual desde o romantismo e ainda o é de muitas maneiras, não abrirá um caminho para a compreensão do escritor Platão”. Em suma, o leitor de Platão tem como desafio resistir aos preconceitos modernos da interpretação dos escritos de Platão.

O que se segue são trechos selecionados dessa obra de Szlezák.

* * *

O leitor de Platão não é apenas um espectador passivo, mas uma peça ativa nas discussões ensejadas nos diálogos. As reações do leitor, portanto, também devem ultrapassar o mero entendimento analítico para abranger todo o seu ser. Um dos exemplos mais conhecidos é o de Cálicles no diálogo Górgias. Cálicles defende a tese do chamado direito natural do mais forte, segundo a qual é lícito e correto que aquele que supera os outros em força e poder os subjugue e, cruelmente, os submeta às exigências de seus próprios interesses. Segundo esse ponto de vista, a própria natureza deseja o domínio do mais forte, e a concepção usual de justiça, que põe o direito do outro como limite à realização dos desejos pessoais, não seria mais que uma construção ideológica dos fracos, que querem desacreditar a saudável aspiração do forte à satisfação irrestrita de seus instintos e desejos (cf. Górgias, 482 c – 486 d). Quando Sócrates lhe demonstra com argumentos concludentes que a idéia convencional de justiça é plena de sentido e que, em contrapartida, o chamado direito do mais forte é em si mesmo contraditório, Cálicles já não pode ir adiante – mas não por falta de inteligência, pois ele claramente a tem bastante, e sim por causa das limitações de seu caráter. Dito de outra maneira: a solução real do problema, que para Platão somente pode ser alcançada pelo recurso à estrutura interna do homem, não precisa ser comunicada a um caráter como a de Cálicles, já que lhe faltam os pressupostos para uma recepção adequada de tais verdades. Dessa forma, Cálicles recebe apenas uma refutação ad hominem, na medida em que Sócrates demonstra a contraditoriedade de sua posição em seu próprio nível de argumentação (494 ss.).

Para Platão, o filosofar só é possível entre amigos, ou seja, entre pessoas que se tratam com benevolência mútua – mas amizade, aqui, não tem a conotação afetiva que comumente a damos hoje em dia, e sim a orientação comum pelo divino, pela idéia de Bem.

Como no caso da leitura não há propriamente um “interlocutor benevolente”, já que estamos diante de um livro, a contraparte viva da amizade é substituída pela letra da escrita. Isso causa uma série de contratempos que dificultam a postura correta perante a doutrina que se almeja transmitir. Essa dificuldade, não sem freqüência, é substituída pela tendência moderna de nivelar o texto, exigindo-se dele a publicidade incondicional de panos de fundo suspeitados. Não toleramos que haja doutrinas ou entendimentos ocultos: esta idéia nos é ofensiva, incompreensível, insuportável. Este fato já mostra, por si só, que o leitor é ele mesmo um fator deformador da compreensão dos textos platônicos. O deslocamento do leitor em relação ao texto platônico pode condená-lo a uma compreensão rasteira.

Acontece que o tema da ocultação ocorre inúmeras vezes na obra de Platão. A retenção do saber, por exemplo, é um fator absolutamente estruturante no diálogo Eutidemo. Se o leitor se recusar a tornar-se cônscio desta retenção, todo o diálogo lhe será misterioso, quando não enganoso. O que é raro é precioso (Eutidemo 304 b).

Na República, a prescrição de conduzir apenas os mais capazes à contemplação do princípio supremo, a Idéia do Bem, e isso apenas depois dos 50 anos (República 540 a), simplesmente não faria sentido se os jovens de 20 anos pudessem obter informações em toda parte, até mesmo na forma escrita, sobre as atividades filosóficas da última fase. Sócrates age “esotericamente” no Eutidemo: ele dispõe de um saber mais fundamental, porém não vê necessidade alguma de o expor a interlocutores [Eutidemo e Dionisidoro] que têm uma formação insuficiente ou que não são apropriados para a filosofia. Portanto, a habilidade de reter saber filosófico se necessário, caso as circunstâncias o exijam, é algo que Platão apresenta como uma qualidade positiva do filósofo verdadeiro. O sofista é por essência antiesotérico. Platão atribui justamente a Protágoras, o líder da sofítica do século V, a defesa do princípio de abertura na comunicação do saber (Protágoras 317 b-c).

Quase todos os diálogos de Platão mostram que o condutor do diálogo teria algo mais a dizer sobre a essência da questão, mas se recusa a fazê-lo nesse momento e nesse lugar por julgar seu interlocutor incapaz ou despreparado. São as “passagens de retenção”.

Eis as principais características das obras de Platão:

(1)   Elas retratam conversações, pois para Platão o pensar é uma conversa da alma consigo mesma, embora apresentem longos discursos monológicos (p.ex., a quinta parte do sexto livro das Leis, o discurso de Eros no Fedro e, sobretudo, o monólogo do personagem-título em Timeu).

(2)   Ocorrem num lugar e num espaço determinados, pois a entrada na prática filosófica nunca ocorrerá sem engajamento pessoal.

(3)   Cada diálogo possui um líder da conversação, ou seja, não há uma conversação entre iguais, o que remete à concepção platônica da comunicação do saber filosófico.

(4)   O líder da conversação fala com apenas um interlocutor de cada vez, ou seja, cada participante permanece focado apenas no líder e é por ele corrigido. Há casos em que o líder decide que a conversação não é produtiva e continua o diálogo com interlocutores imaginários, como os ateus do décimo livro das Leis, Diótima no Banquete ou o hóspede anônimo de Sócrates em Hípias maior.

(5)   O líder da conversação pode responder a todas as objeções, ou seja, os interlocutores não podem superar o líder em nenhuma situação.

(6)   A conversação progride aos solavancos a um degrau qualitativamente superior.

(7)   O líder da conversação não leva a argumentação a um fim orgânico.

(8)   Cada diálogo tem uma ou mais passagens de retenção.

O condutor do diálogo platônico pode filosofar deliberadamente em vários níveis – o nível eleito por Sócrates dependerá do interlocutor, de suas necessidades e de sua capacidade de compreensão. Ele nunca passa a um nível superior sem algum motivo: a verdadeira filosofia não se oferece a si mesma aos interessados, mas quer ser procurada. Como isso não foi compreendido (preferiu-se pensar, em vez disso, num Sócrates supostamente importuno, que filosofa na rua com qualquer um), tampouco se compreendeu por que o autor limita propositalmente o movimento ascendente – as passagens de retenção.

Há três diferentes graus de destinatários nos diálogos platônicos: (a) os leigos, (b) os que receberam uma formação científica, e (c) os discípulos de Platão na Academia. Curioso é que os diálogos são concebidos de tal forma que os sábios os julgam interessantes e os principiantes conseguem extrair algum proveito (talvez a única exceção seja a segunda parte de Parmênides).

No Fedro, Platão explica que o objetivo da escrita é (a) servir de função mnemônica para aquele que sabe (Fedro 278 a 1), (b) servir de diversão, cujo êxito traz alegria ao autor (Fedro 276 d 4-8) e (c) que o filósofo tenha meio de remuneração em sua velhice (Fedro 276 d 1-4).

As convicções modernas de Schleiermacher e Friedländer, segundo as quais o diálogo escrito cumpre a mesma função que o “discurso vivo e animado” (Fedro 276 a 8) não encontra apoio em absolutamente nenhum texto de Platão. No entanto, não é o caso de acusar Schleiermacher e Friedländer de serem “antiesotéricos”. O que ocorre é que ambos situam os elementos esotéricos dentro do próprio texto, cuja descoberta o próprio leitor tem de fazer, enquanto a escola esotérica “histórica” aponta para doutrinas existentes para além do diálogo escrito. Esta diferença entre o esoterismo hermenêutico de Schleiermacher e o esoterismo histórico de Giovanni Reale é a divisão por excelência da interpretação dos diálogos platônicos. Schleiermacher ignora olimpicamente as passagens de retenção. Ademais, a moderna teoria do diálogo torna a comunicação das reflexões decisivas dependente das qualidades intelectuais do leitor. Contudo, vimos no Górgias que Cálicles não é excluído dos “grandes mistérios” por falta de inteligência, mas pela disposição moral de seu caráter. Na República, onde se exprime sobre as qualidades absolutamente fundamentais necessárias à “natureza filosófica”, Platão dá às vantagens éticas a mesma ênfase dada às vantagens intelectuais (República 485 b – 487 a).

É também de grande interesse para nosso tema o fato de Platão, na parte intermediária do Protágoras (338 e – 347 a), dramatizar – com grande engenhosidade e em busca do essencial – a tentativa de avançar numa questão filosófica pela interpretação de um texto. É como se Platão quisesse dizer: toda interpretação é necessariamente má interpretação, pelo menos parcialmente. Para Platão, todo “falar com voz alheia”, isto é, toda interpretação, é de importância secundária. O autor, por não estar presente no local, não pode ser interrogado pessoalmente, e as suposições sobre o que ele quis dizer permanecem conseqüentemente fora de controle. Esta crítica afasta o uso de textos e conduz ao filosofar oral.

Nas últimas páginas do Fedro (274 b – 278 e), há também uma “crítica da escrita”. Trata-se de um ponto culminante no Fedro, pois somente com essa compreensão teremos a chave para compreender a estrutura do diálogo platônico em geral. Não há dúvida de que para Platão a comunicação oral viva tem primazia, e de que o discurso falado é o âmbito pelo qual se deve medir o escrito. Uma arte filosófica do discurso não somente pressupõe o domínio das prescrições da retórica corrente para a composição formal, mas também se baseia em duas habilidades bem mais exigentes e abrangentes: o conhecimento da essência das coisas de que trata o discurso e o conhecimento da natureza das almas a que o discurso pretende se dirigir (277 b c). Ambos conhecimentos só podem ser adquiridos mediante a diligente investigação da filosofia das Idéias que Platão designa como “dialética” e entende como “grande rodeio” ao qual no diálogo se pode apenas aludir, mas não percorrer (cf. Fedro 274 a, 246 a – duas passagens de retenção típicas). Sócrates introduz um mito do deus egípcio Thoth, que levou a escrita juntamente com outras descobertas ao Rei Thamus. Thoth representa, portanto, a ilusão de que é possível adquirir sabedoria e discernimento pela escrita, ou seja, “externamente, por meio de sinais estranhos [à alma]”. Thamus estilhaça por completo essa ilusão. A escrita não favorece, mas prejudica a memória, isto é, a capacidade da alma ir buscar coisas em seu próprio interior; ela é apenas um meio para se lembrar. Somente o didakhé, o ensinamento no intercurso pessoal, pode transmitir um saber claro e confiável (274 e – 275 c). Platão insiste nas deficiências básicas da escrita, inerentes à sua essência. Mas o que é inerente à natureza de uma coisa não pode ser eliminado por um uso mais ou menos habilidoso dessa coisa. Psicologicamente, é compreensível que desde Schleiermacher os partidários modernos de Thoth, o deus com fé na virtude dos livros, tenham sentido a necessidade de reverter o juízo de Platão afirmando que escrever em enigmas e alusões terá no leitor perspicaz o desejado efeito da clareza e solidez do conhecimento. Devemos entretanto, com serenidade e sem intenção polêmica, dizer que se trata aqui de uma complementação metodologicamente inadmissível das asserções do texto, e, de fato, uma complementação que leva ao oposto do que Platão queria. Ora, afinal, (1) o livro fala para todos, ou seja, ele não pode escolher seu leitor, nem se calar diante de determinados leitores (275 e 2-3); (2) o livro diz sempre o mesmo, ao ponto de Platão equiparar a escrita às figuras sem vida da pintura (275 d 4-9); (3) o livro não pode se defender se injustamente depreciado (275 e 3-5). A escolha do interlocutor, o silêncio diante de pessoas inapropriadas e o auxílio por meio de novos argumentos não são metáforas para Platão, devendo ser literalmente entendidas como as condições básicas da comunicação do conhecimento filosófico.

Em Fedro 278 c 4 – e 3, Platão separa a totalidade de autores em dois grupos bastante desiguais. Um grupo, sem dúvida a maioria, pode ser chamado, segundo seu respectivo produto literário, o grupo dos poetas, escritores de discurso ou escritores de leis. O outro grupo recebe um nome que não apenas o separa de Deus, mas também o une a Ele – pois somente no nome philosophos há uma ressonância da qualidade distintiva de Deus, ser sábio (sophos). O philosophos deve essa maior proximidade com Deus a seu “saber”: aquele “que sabe em que consiste a verdade” (278 c 4-5) não é outro senão o dialético, isto é, o pensador que reconhece a verdade das coisas no sentido da doutrina das Idéias. É a esse conhecimento das Idéias que o philosophos deve uma superioridade sobre seus escritos. Ao outro grupo dos autores não-filosóficos pertence quem “não possui nada mais valioso do que aquilo que compôs e escreveu, passando longo tempo a rever, tirando uma coisa aqui e acrescentando outra acolá” (278 d 8 – e 1). Tornar-se filósofo significa experimentar uma “transformação da alma” (psykhes periagoge) (República 521 c 6; cf. Fedro 518 d 4). O conceito de philosophos refere a essa reorientação ontológica (cf. Fédon, 101 e; Banquete 204 b ss. [Eros como philosophos]; República 474d ss.; Fedro 249c; Teeteto 172 c-177 c; Timeu, 53 d). O philosophos, no sentido de Platão, dispõe sempre de timiotera, ou seja, da “posse de algo mais valioso do que seus escritos”. Para Platão, a dialética conduz ao princípio não-hipotético de todas as coisas, ou, dito de outra maneira, há para o dialético um “fim da viagem” (República 532 e 3).

As “coisas mais importantes e de posição mais elevada (as mais valiosas)” são, segundo o Político (285 e 4), as entidades incorpóreas do mundo das Idéias. Para Platão, a fonte última de “categoria” e “valor” é a idéia mesma do Bem como princípio de tudo. Mas também o saber participa da categoria do Bem. Em geral, o saber é de categoria superior à opinião correta (Mênon 98 a 7), pois ele “amarra” com argumentos o que há de correto na opinião. A fundamentação última deve vir “do princípio de todas as coisas”; a ascensão rumo ao princípio ocorre por gradações: de hipótese para “hipótese superior” até o “não-hipotético” (Fédon 101 d-e; República 511 b). “Possuir algo de maior valor” (timiotera) significa, portanto, para o dialético o mesmo que estar em condição de fundamentar de tal modo uma explicação dada que o “amarrar” por meio de argumentos escolha sempre um “ponto de ligação” que seja superior na série de hipóteses.

Platão disse mais de uma vez que a ascensão a um princípio último, transcendente é a finalidade do sujeito cognoscente. E, nas ocasiões em que os estudiosos notaram esse fato, acentuou-se quase sempre a ascensão como tal e esqueceu-se de que os diálogos sempre mostram apenas uma parte do movimento ascendente e indicam com suficiente clareza a deliberada limitação do processo. Aristóteles, na Metafísica e em outras obras, se refere a uma doutrina platônica dos princípios que não encontramos nessa forma nos diálogos. Os modernos não estão dispostos a reconhecer que Aristóteles, que vivera vinte anos na Academia de Platão, podia conhecer detalhes mais precisos sobre a teoria platônica dos princípios do que é possível ao platônico de hoje, na medida em que este se atém unicamente aos diálogos. Por que justamente a parte da filosofia que trata dos princípios deve ser protegida da divulgação escrita? Contra o pano de fundo da crítica da escrita, a resposta é simples: quanto mais complexo é o objeto, tanto maior é a probabilidade de uma depreciação injustificada por parte de pessoas incompreensivas, contras as quais o escrito, na ausência de seu autor, não pode se defender (cf. Fedro 275 d-e).

Não encontramos indícios de que Platão alimentou a crença de que pudesse se aproximar do filosofar oral escrevendo por um sofisticado uso de alusões sutis, indicações indiretas e insinuações cifradas. Esta foi, antes, a crença ingênua de Friedrich Schleiermacher, que ligava a isso a convicção antiesotérica de que, pela arte da comunicação "indireta", Platão não teria necessidade de reservar ao âmbito da oralidade partes essenciais de sua filosofia. (a) A forma mais simples de alusão é uma referência em forma de citação, como a que aparece em Fedro 276 e 2-3. Não pode haver dúvida de que Platão se refere aqui à sua própria obra principal como um caso de "divertimento" filosófico escrito. As próprias obras de Platão estão incluídas  na crítica de tudo o que é escrito. A crítica também implica os diálogos quando ela se refere a todo o escrito. (b) A propósito dos "archai ainda mais altos" (Timeu 53 d), de maneira alguma deles são esclarecidos neste ou em qualquer outro trecho. Idem para a origem de todas as coisas em Leis X 894 a 1-8. (c) Com relação à exposição das idéias filosóficas que no Eutidemo transparecem "por trás" das argumentações confusas e aparentemente absurdas, nenhum dos "enigmas" poderia ser solucionado sem um conhecimento da exposição não-cifrada da doutrina da anamnese e do conceito de dialética no Mênon, no Fédon e na República. Em resumo, Platão se serve, de bom grado, dos mais diferentes tipos de alusões, insinuações e referências, mas sem jamais manifestar a intenção de atribuir à técnica literária da alusão um papel central na comunicação filosófica. A ilusão cifrada pode ser decodificada por qualquer leitor com a inteligência necessária para isso. A moderna teoria do diálogo pretende atribuir às alusões e referências no texto escrito a tarefa que somente a filosofia oral pode cumprir.

A forma do diálogo platônico não é um elemento exterior, mas essencial para seu conteúdo. Platão faz uso de alguns expedientes dramatúrgicos. (a) Ação contínua. Um meio pelo qual Platão mantém essa ação na memória do leitor é a repetição do motivo. A ação contínua no Eutidemo consiste no desmascaramento dos erísticos Eutidemo e Dionisidoro como não-esotéricos. O motivo mediante o qual essa ação é levada adiante e dividida em fases é, de um lado, o do "ocultamento" e, de outro, o da oposição de "divertimento" e "sério". A mensagem do Eutidemo, que só é perceptível pela consideração do leitmotiv e da ação contínua, diz que o verdadeiro filósofo deve ser esotérico. A ação contínua na República consiste na tentativa de alguns amigos de Sócrates de "obrigá-lo" a comunicar suas visões acerca da justiça, do melhor Estado e finalmente do Bem e da dialética como caminho para a Idéia do Bem. O motivo é que os amigos querem "segurar" Sócrates e não o "liberar" de maneira nenhuma; ele, contudo, acredita poder convencer os amigos a deixá-lo partir (República 327 a-c). (b) Interrupção do diálogo narrado pelo diálogo que emoldura a conversação. O Eutidemo, em termos formais, é um relato de Sócrates a Críton sobre uma conversação que ele teve no dia anterior com dois erísticos no Liceu. No curso desse relato, ficamos sabendo que o jovem Clínias dissera, a respeito da arte da dialética, que ela se apodera da "presa" da matemática tal como a política se apodera da presa da ciência estratégica, uma cidade conquistada, por exemplo (290 c-d). Nessa afirmação está implícita uma relação entre matemática e dialética que somente é compreensível a partir da teoria da ciência contida na República (510 c ss; 531 c ss) e que, dentro do Eutidemo, onde falta qualquer preparação para o resultado, parece um bloco errante. Para enfatizar a importância do reconhecimento de que a matemática está subordinada à dialética, Platão interrompe o diálogo narrado e faz Críton perguntar se o jovem Clínias realmente disse algo tão inteligente; se foi mesmo ele, então ele não necessita de mais instrução humana (290 e). Para nosso espanto, Sócrates não está disposto a garantir que foi Clínias e declara que também poderia ter sido Ctesipo. Mas, quando Críton também se recusa a aceitar isso, Sócrates exprime a suposição de que "um dos seres superiores", presentes no momento, poderia ter introduzido esse conhecimento (290 a 4). Não é preciso refletir por muito tempo para adivinhar de que voz o deus desconhecido se serviu. Não há dúvida de que com a dialética o reino do que é "superior", da filosofia "divina", é tocado. Platão não confia na compreensibilidade da breve alusão à sua teoria da ciência, mas utiliza adicionalmente o bem mais nítido meio dramatúrgico da interrupção do diálogo narrado para deixar claro ao leitor que por trás do diálogo há uma riqueza filosófica não explicitada, que está para o que é explicitamente tratado assim como o reino do divino está para o humano. (c) Troca de interlocutor. Em vários diálogos, o primeiro interlocutor de Sócrates é substituído no curso da conversação, a maioria das vezes, mas não sempre, por alguém com idéias análogas. A troca de pessoas indica, muitas vezes, uma troca do nível da argumentação e, por regra geral, está ligada a um caso de "auxílio" ao logos (por exemplo, Fedro 276 e - 277 a). A dupla troca de pessoas no Górgias produz, num sentido, uma linha ascendente à medida que a discussão conduz a perguntas cada vez mais fundamentais e a tensão dramática da discussão cresce continuamente. Essa linha ascendente se entrecruza de forma fascinante com um movimento contrário, à medida que a posição oposta se torna, em termos de conteúdo, cada vez menos respeitável e se afunda cada vez mais.

A ironia talvez seja a técnica estilística mais famosa de Platão. Uma ação dramática pode estar inteiramente determinada pela ironia (como é o caso do Eutidemo); um personagem inteiro pode se mostrar sob a luz da ironia (como Eutífron ou Hípias); ou a aparição de um personagem pode ser ironicamente relativizado pelo contexto dramático (como Alcibíades no Banquete), ou talvez até mesmo uma única reação de um personagem que, em outros aspectos, não está mergulhado em ironia (basta pensar, por exemplo, na capacidade de esquecimento de Adimanto com relação às limitações a que o discurso está sujeito: República IV 504 a-c). É importante que não confundamos a ironia platônica com a ironia romântica. A ironia romântica não se dirige contra um adversário determinado, mas contra tudo e todos. Para o romântico não pode haver nada absoluto que estaria imune à relativização irônica. Em Platão, em contrapartida, é evidente que a ironia se retrai diante do que ele chama de âmbito "divino" do sempre-existente e diante da philosophia "divina" como empenho em apreender noeticamente o reino do sempre-existente.

Os mitos de Platão são quase tão famosos quanto suas ironias. Por um lado, Platão apresenta o mito em clara oposição ao logos. Por outro lado, ele deliberadamente embaça a fronteira entre o mito e o logos em certos casos particulares. Há uma questão freqüentemente discutida que procura saber se o mito em Platão está subordinado ao logos ou se ele transmite uma verdade superior que não é alcançada pelo logos. Essa última suposição de que os mitos encerram um conteúdo de verdade mais elevado deriva da percepção de correntes modernas irracionalistas e não pode se apoiar nas reflexões de Platão. Por outro lado, uma subordinação do mito ao logos tampouco pode ser aceita se com isso se entende que o mito é um ornamento mais ou menos dispensável, uma transposição meramente ilustrativa de pontos de vista obtidos de outras maneiras. Se fosse essa a opinião de Platão sobre o papel do mito, ele dificilmente poderia lhe ter dado um espaço tão amplo em sua obra. Sem dúvida, a penetração dialética da realidade, que se efetua no logos argumentativo, é o objetivo último do filósofo. Mas não se pode renunciar à força psicagógica do mito; ademais, a capacidade das imagens e histórias de representar um estado de coisas de forma global e intuitiva é um complemento imprescindível da análise conceitual. Visto dessa forma, o mito aparece como uma segunda via de acesso à realidade, que certamente, quanto ao conteúdo, não pode ser independente do logos, mas oferece, em comparação com ele, um plus que não pode ser substituído por nada.

Não existe em Platão uma conversação entre iguais. Na única vez em que faz que se reúnam homens do mesmo formato intelectual, no Timeu, ele evita o diálogo: Timeu realiza perante Sócrates, Crítias e Hermógenes um monólogo de várias horas. Mas o enigma se resolve sem problemas se tomamos a crítica da escrita como medida: um colóquio entre dialéticos do mesmo nível intelectual teria de ascender rapidamente àquele âmbito da teoria dos princípios que o filósofo reserva intencionalmente para o auxílio oral. Dessa maneira, Timeu é o único diálogo sem um condutor da conversa. No Fédon, Sócrates diz que é preciso fazer abstração de sua pessoa e prestar atenção apenas na verdade (91 c). Abstrair-se do individual é, portanto, uma tarefa do “aprendiz”. As figuras apresentadas são, sem exceção, almas “coloridas” (Fedro 277 c 2), isto é, não-equilibradas, não ainda suficientemente purificadas do ponto de vista filosófico. Se o dialético busca o logos apropriado a cada uma delas, isso significa que ele não se move na esfera que é sua meta: a esfera do conhecimento puramente conceitual (cf. República 511 b-c).

Concluímos que, num olhar retrospectivo sobre a teoria moderna do diálogo platônico, que atribui ao diálogo escrito a tarefa que Platão reserva à atividade filosófica oral, podemos dizer: essa teoria não apenas é não-platônica no sentido de que não pode se apoiar em nenhum texto de Platão, como também é antiplatônica no sentido de que infringe o espírito e a letra da crítica da escrita e intencionalmente se faz de surda às contínuas e claras referências de Platão à sua doutrina oral dos princípios.

Por fim, cabe lembrar que o esoterismo não tem nada a ver com a observância do segredo que se apóia na coação. Quem o infringe infringe seu juramento e se expõe às sanções da seita a que pertencia até então. Mas o esoterismo é um ditame da razão, não o resultado da coação por um grupo. Quem infringe a retenção não se expõe a nenhum tipo de sanção, nem prejudica a comunidade, mas o objeto em questão: o pensamento sobre os princípios, tão rico em pressupostos, não pode desenvolver seu efeito positivo se é erroneamente recebido por falta de preparação adequada. O saber filosófico não é um meio para um fim, mas um fim em si mesmo, e deveria, por isso, ser transmitido apropriadamente, com a circunspecção necessária, não mecanicamente. Em suma: o esoterismo tem relação com o objeto, a observância do segredo com o poder. Por conseguinte, os diálogos devem ser lidos como fragmentos da filosofia de Platão que apontam para além de si mesmos.

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Há inúmeras ordens de leitura dos diálogos de Platão, desde as cronológicas até as antigas tetralogias. Talvez uma das mais tradicionais seja a de Albino (c. 150 d.C.) -- Introdução aos Diálogos de Platão -- onde se recomenda a seguinte ordem inicial: Alcibíades, Fédon, República, Timeu.