27 de dezembro de 2005

Fulton J. Sheen e o problema da liberdade

Na esteira de Leo Trese, um amigo recomendou-me os livros do Arcebispo de Rochester (Nova York), Fulton J. Sheen (1895-1979). Famoso pelos seus programas de TV nos anos 50 e começo dos 60 (Life is Worth Living e The Fulton Sheen Program), Sheen foi também autor de 96 livros, quase todos apologéticos, além de artigos e colunas em jornais. Seus livros são facilmente encontráveis em sebos, inclusive alguns títulos em português e espanhol. Algumas prédicas também estão disponíveis aqui.

Encontrei O Problema da Liberdade, cujo título original é Freedom Under God. Publicado nos EUA em 1940, a tradução brasileira foi lançada em 1945 pela Editora Agir e contou com diversas edições. A que encontrei é a 5ª edição, de 1956.

O objetivo de Sheen é estabelecer a relação entre religião, liberdade e os sistemas políticos e econômicos modernos. Sheen condena ferozmente o comunismo e o nazismo, considendo-os ideologias semelhantes. Quanto ao liberalismo free market, Sheen também reserva críticas duras, mas para isso faz uso de velhos mitos socialistas como, por exemplo, a idéia de que sob o liberalismo econômico os pobres ficam mais pobres porque os ricos ficam mais ricos; no início da Revolução Industrial os trabalhadores foram vilmente explorados, salvos mais tarde por sindicatos e leis trabalhistas; os trabalhadores deveriam participar nos lucros das empresas, e negar-lhes isto representa grave exploração por parte do capital.

Esses mitos influenciam o raciocínio do autor de maneira tão profunda que, infelizmente, comprometem muitas de suas análises. É triste ver um homem consciente dos males do comunismo preso às próprias doutrinas comunistas quando tenta prescrever-lhes uma cura.

Quanto à estrutura geral do livro, a divisão é a seguinte: (1) Expulsão da religião do espaço público, (2) Falsas liberdades e verdadeira liberdade e (3) Aplicações da verdadeira liberdade na ordem econômica e política.
* * *
Sheen inicia sua digressão sobre a liberdade lembrando que é a religião quem dá ordem e virtude à sociedade. Baní-la do espaço público, reduzindo-a a práticas e doutrinas meramente privadas, acaba engendrando na sociedade um espírito arreligioso que, por fim, se transformará em um espírito anti-religioso. Se o homem deseja ser verdadeiramente livre, então precisará redescobrir o que Sheen chama de "os direitos de Deus e da religião sobre a ordem pública", provavelmente uma alusão à Era Cristã.

Expulsada a Igreja da praça pública, duas falsas liberdades vêm preencher o vácuo, (1) a liberdade de indiferença, na qual o indivíduo age e pensa como quiser, à exemplo do que ocorre no ceticismo, no relativismo e no liberalismo e (2) a liberdade de necessidade, na qual o indivíduo é obrigado a obedecer à autoridade, como no comunismo e no nazismo.

Porém, segundo Sheen, a verdadeira liberdade é fazer o que se deve fazer. E quem sabe o que devemos fazer é nosso Criador, que diz que devemos conhecê-Lo, amá-Lo e servi-Lo. Em suma, o que teríamos de fazer para sermos verdadeiramente livres é desenvolver nossa personalidade a fim de sermos eternamente felizes com Deus, conhecendo-O, amando-O e servindo-O, e quem nos ensina o caminho das pedras de tal realização é o próprio Cristo, por meio de sua Igreja.

A partir desta premissa -- é Cristo, por meio da Igreja, quem ensina os homens como se organizarem política e economicamente de maneira agradável a Deus --, Sheen discorre sobre a liberdade e suas aplicações sociais, políticas e econômicas.

Assim como a base da liberdade interna do homem é a alma, externamente essa base é a propriedade privada. Isso ocorre porque não somos apenas feitos de espírito, mas também de corpo. Esse corpo precisa expressar-se no mundo em algo que lhe seja próprio: a propriedade privada. No entanto, engana-se quem pensa que, por isso, a Igreja defende o liberalismo econômico e político. Na verdade, a Igreja defende o que Sheen chama de difusão da propriedade, de maneira que os trabalhadores tenham participação nos lucros das empresas a fim de que desfrutem uma verdade propriedade. Ora, Sheen falha aqui ao não perceber que o salário já é a participação nos lucros desejada.

Sheen ensina que o trabalho está relacionado a 3 entidades, estabelecendo com elas uma relação:
  1. Deus. O homem reconduz a natureza a Ele, por meio da razão e da vontade. Por causa dessa relação, a Igreja defende um salário vital, para que a alma do homem esteja livre para atingir o fim que foi criada.
  2. Homens. O trabalho intensifica a solidariedade entre os homens. Por isso a Igreja não acredita na luta de classes.
  3. Natureza. O trabalho coopera com a natureza. Eis por que a Igreja é contra o desemprego, já que ele afasta o homem da natureza e, por conseguinte, da civilização, já que aquela é base desta.
No entanto, tanto comunismo quanto capitalismo concordam que o trabalho não passa de mercadoria, esvaziando-o do componente humano descrito nos três itens acima. Segundo Sheen, a diferença entre capitalismo e comunismo é apenas quem deverá ficar com o os lucros: o capital ou o trabalho. A Igreja rejeita tal dicotomia, afirmando que ambos devem deter os lucros. Para isso, a Igreja deseja modificar o sistema salarial, introduzindo-lhe componentes sociais, e não apenas individuais, da seguinte forma: (1) O trabalhador deve participar nos lucros, (2) O trabalhador deve participar na administração da empresa, por meio de conselhos que reúnam empregadores e empregados e (3) O trabalhador deve participar na propriedade.
E como o Estado deve atuar para a realização de tais metas? O homem é um ser pessoal e social, isto é, ao mesmo tempo dependente e independente da sociedade. O Estado, portanto, deve buscar o equilíbrio, promovendo o bem comum, seja de brancos, pretos, trabalhadores, empregadores etc. É o Estado refletindo o lado social do homem. No entanto, em casos extremos, o bem comum deve ser sacrificado em favor dos pobres e necessitados. É o Estado refletindo o lado pessoal do homem.
Como o Estado e a sociedade devem estar organizados? Segundo Sheen, a democracia, estruturalmente falando, é um mal. Sua tendência é transformar-se na tirania da maioria. É a república, por meio dos representantes que governam pelo povo (e não o governo direto do povo, como na democracia) com sistemas de pesos e contrapesos, que representa um sistema mais equilibrado e justo. A maioria não é fonte de direitos, por isso não pode exercer direitos sobre a minoria. A origem dos direitos é Deus e, só depois, os homens. O que a constituição americana faz é reafirmar essa doutrina, e não propriamente estabelecê-la. A tal reafirmação da origem divina dos direitos por parte da constituição Sheen atribui a essência do que chama de americanismo. Assim, o Estado não deve anular esses direitos, mas apenas reafirmá-los. Eis por que a educação religiosa (católica, protestante e judaica) é tão importante: a religião e os direitos humanos andam de mãos dadas.
Sheen ensina que a Revolução Francesa bem que tentou eliminar a desigualdade, procurando eliminar a desigualdade política por meio da abolição de privilégios hierárquicos. Como eliminar as hierarquias mostrou-se ineficaz na tentativa de eliminar as desigualdades, passsou-se à apologia da eliminação das desigualdades econômicas. Foi a Revolução Comunista. Sheen afirma que todas essas tentativas foram e são necessariamente infrutíferas porque a única igualdade possível é a espiritual, já que (1) todos são iguais substancialmente (todos têm alma e corpo, todos têm o mesmo fim que é a união com Deus, todos foram redimidos por Jesus Cristo etc.) e (2) todos são desiguais acidentalmente (todos têm inteligência, talento, saúde, caráter, virtude, força física etc. desiguais). A sociedade cristã terá, portanto, categorias e hierarquias, cada qual com sua função, a exemplo dos órgãos do corpo humano. Nem todas as desigualdades são más.
Finalmente, Sheen conclui sua obra identificando dois tipos de liberdade:
  1. Liberdade de escolha, que se refere a bens particulares como saúde, poder, sucesso etc.
  2. Liberdade de perfeição, que se refere ao último bem, isto é, adquirir a Verdade para o intelecto, Amor para nossa vontade e Vida para nossa existência.
Assim, a liberdade de escolha deve ser o meio para o fim, qual seja, a liberdade de perfeição. O liberalismo perverte a liberdade de escolha, entronizando-a como fim em si mesma. O comunismo e o nazismo destroem tanto a liberdade de escolha quanto a liberdade de perfeição, transformando a perfeição num ditador e obrigando a todos a adorá-lo e segui-lo.
A Igreja rejeita todas essas ideologias porque elas rejeitam aquilo que Deus uniu: a escolha e a perfeição. Não somos nós, no fim das contas, que devemos trazer a perfeição à Terra, mas, sim, nós é que devemos ascender, com liberdade de escolha, à perfeição. Não é Deus que deve descer até nós; nós é que devemos nos elevar até Ele.

15 de dezembro de 2005

Não vos preocupeis

Em Não vos preocupeis -- uma obra apologética --, Leo J. Trese nos lembra que uma vida sem Deus é uma vida sem propósitos e, portanto, angustiosa e vazia. O sentido da vida nos é dado como uma resposta ao amor de Deus e, quando isso acontece, nossas posturas e atitudes diante das situações mudam radicalmente. Pois em cada capítulo, Trese analisa essas situações, apontando como o verdadeiro cristão se comportaria. Façamos então uma breve descrição do que nos ensina Leo Trese.


Assim como tudo o que fazemos tem um propósito, Deus também tem um propósito para a vida e, mais especificamente, para a nossa vida. Ora, a partir desta curta reflexão, podemos concluir que as preocupações vêm de nossa falta de confiança em Deus. Temos de fazer nosso melhor e deixar o resto para Deus. E uma das grandes preocupações que afligem os cristãos é: Amo a Deus o bastante? Meu amor a Deus é forte o suficiente? Quem assim se indaga esquece que o amor não é um sentimento, mas algo que radica na vontade; isso quer dizer que o amor a Deus se reflete em pensarmos e fazermos tudo com a convicção de que fazemos por Deus. Não se trata, portanto, de chorar ou gemer durante nossas orações ou a cada vez que louvarmos a Deus, na tentativa de demonstrarmos que realmente nos comovemos em estarmos na presença dEle. Embora as emoções podem, claro, estar presentes em nosso amor a Deus, elas não são absolutamente necessárias pois, como disse, a raiz do amor é a vontade (espírito), e não sentimentos e emoções (corpo).
Neste ponto, Trese lembra a importância das 4 virtudes (bons hábitos) cardeais: justiça, prudência, temperança e fortaleza. A prudência é a virtude principal, uma vez que é ela que nos faz escolher o melhor, o certo. Ela retifica nossos juízos. A fortaleza, por sua vez, age posteriormente à escolha, nos encorajando a fazer o que é bom, custe o que custar. Ambas são chamadas virtudes sobrenaturais, adquiridas no batismo pela graça de Deus, e se desenvolvem sobre as virtudes naturais, moldadas durante a formação do caráter do indivíduo (notadamente na infância). Se praticadas, as virtudes recompensam o homem com serenidade e paz de consciência.
Outra virtude a qual Trese deposita grande importância é a humildade. Humilde é aquele que conhece a si mesmo e sua posição na ordem da criação. Ele sabe que é apenas um pouco inferior aos anjos e, não obstante, sem nada de que possa orgulhar-se pessoalmente. Mesmo os mais humildes possuem defeitos e falhas de personalidade. O que se deve fazer é admiti-los desde já, pedindo a Deus que torne seus efeitos mínimos, e desenvolver os talentos dados por Ele.
E quanto à maldade? Como entendê-la? Trese explica que a maldade existe porque a "maldade original" existiu. Eliminar a maldade do mundo, portanto, implicaria em eliminar a todos nós, dado que todos somos maus em função do pecado original. Eis que temos de nos perguntar: A quem aborreci inutilmente hoje? Nos momentos de ira, lembremos que Jesus que nem ao menos a deixemos aflorar, e não que a represemos simplesmente. Mas de que maneira? Odiando o pecado e não o pecador. Esta é a ira boa, mais ou menos como um pai se zanga com o filho. A diferença é que a ira boa se insurge por amor ao próximo, enquanto a ira ruim se insurge por amor próprio.
E como o sexo deve ser encarado pelo cristão? O autor ensina que as partes genitais são cobertas assim como qualquer coisa santa deve ser coberta. Assim como a procriação é algo sumamente importante, o sexo e os órgãos genitais também são sumamente importantes. Daí conclui-se que fazer sexo indistintamente, fora do tempo e do espaço certos, constitui uma profanação. Observe que mesmo no casamento, o sexo não pode ser interposto (os chamados métodos contraceptivos) porque Deus é positivamente (no sentido de ativamente) excluído. E o sexo não deve ser visto apenas como o prazer imediato para a geração de uma nova vida, mas inserido no amplo contexto da criação do filho como um todo. Isso quer dizer que não se deve fazer sexo simplesmente para satisfação do desejo imediato, mas, além disso, compreender que se trata de uma nova vida, uma nova criação.
Ainda no ambiente familiar, Trese afirma que o segredo para a boa vida matrimonial é o casal reparar apenas no que há de bom no outro, suportando as faltas de ambos sabendo que a personalidade dificilmente é manipulável. Nas crises (Trese usa o termo "depressões"), antes de achar que a grama do quintal vizinho é mais verde, lembre-se que a vida de solteiro é muito mais solitária e, por isso, sofrida.
Trese também dá dicas sobre o trabalho. Devemos lembrar que todo trabalho é partícipe da obra criadora de Deus, exceto, claro, aqueles trabalhos que são positivamente destrutivos. O autor também alerta para a premência de alimentarmos nossas mentes com leituras formativas, que cultivem a inteligência, não perdendo muito tempo com TV, revistas, jornais etc.
Quanto à propriedade, somos informados de que ela é boa; caso contrário, Deus não teria feito o voto de pobreza algo penoso. Mas como freqüentemente somos desmedidos nas coisas, em função do pecado original -- a razão perdeu o domínio sobre as paixões --, temos de levar uma vida desprendida, juntando somente aquilo que é necessário para nosso sustento. Trese lembra muito apropriadamente que a vida secular tende a reduzir tudo ao utilitarismo imediatista, tornando difícil ao cristão seguir a Igreja e a Cristo, preferindo seguir a si próprio.
Levanta-se então uma questão muito pertinente: Como amar o próximo se esse próximo não nos parece digno de ser amado? A resposta é simples: Exercendo a virtude da caridade, infundida em nós pelo batismo. É ela que torna possível o amor além do amor natural; não custa lembrar, conforme dissemos acima, que o amor reside na vontade, e não nas emoções. Na prática, o que ocorre é que distinguimos entre a malícia e o malicioso, amando este e não aquele. Eis que urge sermos apóstolos da caridade em Cristo, perdoando falhas alheias, louvando o que há de bom nos outros etc.
Porém, fazer coisas boas não limitar-se a evitar pecados e rezar, mas também fazer coisas boas para os outros. Sermos afáveis, corteses, pacientes etc. robustecerá ainda mais nossa mente e nossa alma.
Trese chama a atenção dos leitores para a importância da oração. A oração é a elevação da mente e do coração para Deus. No entanto, ao contrário da definição, ainda tendemos a depositar a nossa confiança nas palavras, na multidão infindável das palavras. Ora, instruindo seus discípulos na prática da oração, Jesus disse-lhes: Quando orardes, não multipliqueis as palavras, como fazem os pagãos. Eles pensam que, por falarem muito, serão ouvidos; mas vosso Pai sabe de que coisas necessitais, antes de que lhe peçais (Mateus 6:7-8). Um único momento que dediquemos exclusivamente a Deus em pensamento, em que pensemos nEle com amor, com gratidão, submetendo-nos aos seus desejos ou arrependendo-nos dos nossos pecados -- um único momento desses pode agradar mais a Deus do que uma oração de muitas palavras. São esses momentos que indicam um espírito permanente de oração, um amor a Deus duradouro. Na oração, além do mero palavreado, pode incrustar-nos nos nossos hábitos um outro defeito: o do egocentrismo. Na oração mais perfeita de todas, o Pai Nosso, somente uma curta frase intermédia é dedicada a um pedido de ordem material: "O pão nosso de cada dia nos dai hoje".
O maior problema com que a maioria de nós tropeça na oração é o das distrações. Mas quando dispomos a visitar a Deus, podemos consumir uma boa parte do tempo da oração -- talvez a maior parte -- correndo atrás dos nossos buliçosos e errantes pensamentos. De qualquer modo, Deus alegra-se com os nossos esforços, sente-se satisfeito com as nossas patentes intenções de falar com Ele.
Para encerrar, Trese lembra que no batismo, Deus nos deu uma vida sobrenatural, elevou-nos até o seu próprio nível. Optou por partilhar conosco a sua própria vida eterna. Unindo nossa alma a Ele, deu-nos um novo gênero de vida que chamamos graça santificante. Mas a nossa alma acha-se limitada nas suas atividades divinas por ter que desenvolver-se através de um corpo físico. Para que essa vida divina seja verdadeiramente completa na nossa alma, devemos aguardar o ato final pelo qual a glória divina chegará também a nós. E isso acontecerá quando Deus nos conferir aquilo que os teólogos chamam luz da glória. É um poder especial que, acrescentando à vida sobrenatural que já existe em nós, nos permitirá no Céu ver a Deus tal como é.
A ajuda que Deus nos concede dia a dia, momento a momento, é o que chamamos graça atual. Deus pode tratar que leiamos um livro que tenha um significado especial para nós, ou que ouçamos um sermão cuja mensagem nos seja especialmente necessária. A pessoa de boa vontade que, fortalecida pela graça santificante, se esforça mediante a oração por tomar as suas decisões e resolver os seus problemas da melhor maneira possível, está recebendo a todo momento as graças atuais. Com um pequeno empurrãozinho aqui e uma suave cotovelada acolá, Deus vai guiando-a continuamente para o Céu.
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Publicado originalmente em 1956 como More than many sparrows, tanto o título americano quanto o brasileiro foram inspirados em Mateus 10:29-31: "Porventura não se vendem dois passarinhos por um asse [antiga moeda romana de cobre]? E todavia nem um só deles cairá sobre a terra sem a permissão de vosso Pai. Até os próprios cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não vos preocupeis, pois; vós valeis mais do que muitos pássaros".

10 de dezembro de 2005

A minha consciência e eu

Há tempos tenho desfrutado dos livretos de Leo J. Trese (1902-1970). Este padre americano tem o dom de ensinar eternas verdades em pequenas lições. Em Vaso de Argila (Vessel of Clay), Trese narra um dia típico de um pároco de uma pequena cidade americana. Cada capítulo corresponde a uma hora, meia-hora ou quarto-de-hora, nos quais as angústias, dúvidas e fraquezas do sacerdote são confidenciadas ao leitor. Na verdade, percebe-se que o "típico pároco" é o próprio Leo Trese, transformando a obra numa autobiografia.
Mas um dos capítulos chamou muito minha atenção. Às 10h45min (pág. 65), Trese trava um "diálogo" com sua consciência sobre o vício do fumo, algo que certamente o perturbava. Embora eu mesmo não seja fumante, não foi difícil transpor a lição de Trese aos meus próprios desvios morais (por exemplo, a gula). Em suma, Trese conclui que novos e saudáveis hábitos não devem se seguir a meras resoluções moralistas do tipo "tenho que parar de comer muito" ou "tenho que parar de assistir muita TV". Na verdade, os velhos vícios só serão genuinamente abandonados quando antes ocorrer uma mortificação interior, ou, na linguagem evangélica, um quebrantamento. É no arrependimento e no amor a Deus o início da verdadeira mudança. Caso contrário, o abandono do vício servirá apenas para reforçar o orgulho e a egolatria existentes.
* * *
Terminada a Hora Média [uma das partes de que se compõe a Liturgia das Horas, também chamado de Breviário ou Opus Dei, que todos os padres devem rezar diariamente], puxo de um cigarro com um movimento quase instintivo. Não admira: é um movimento que repito mais ou menos trinta vezes por dia. De cada vez que o faço, a consciência repreende-me com um aviso, já completamente familiar. E aqui estamos outra vez - penso amargamente - com outro cigarro na boca e um fósforo na mão; aqui estamos outra vez, a minha consciência e eu, às voltas com o mesmo assunto.

CONSCIÊNCIA: Por que não deixas de fumar?

Eu: Acho que deveria.

CONSCIÊNCIA: Pois claro! É a única coisa da tua vida que não te deixa livre. Como podes falar de mortificação se fumas maço e meio de cigarros por dia?

Eu: Mas eu gosto de fumar e sabes perfeitamente que o Dr. Fitzgerald disse que não me fazia mal. Além disso, não me esqueço de dar graças a Deus por esta pequena satisfação. Não faço bem?

CONSCIÊNCIA: É claro que não. Fazer as coisas somente por prazer parece-me um pecado. Uma ação que não tenha um fim sobrenatural não tem valor.

Eu: Estás então querendo dizer que faço mal porque gosto de ver o nascer do sol da janela do meu quarto? Ou porque gosto de respirar o perfume dos lilases na primavera, ou das folhas secas no outono? Ou porque..

CONSCIÊNCIA: Alto lá! Estávamos falando de cigarros. És capaz de dizer-me o nome de um santo que tivesse o hábito de fumar?

Eu: Muito bem, se preferes argumentos ad hominem, permite-me uma pergunta: és capaz de dizer o nome de um santo cuja canonização tenha sido recusada por fumar, mascar tabaco ou aspirar rapé? Acho que a nossa questão não é de santidade, mas de pecado; se for de santidade, talvez estejamos de acordo. Mas explica-me em que consiste o pecado de fumar, e eu deixarei de cometê-lo agora mesmo.

CONSCIÊNCIA: Bem, talvez não seja pecado, mas seria melhor deixares de fumar imediatamente.

Eu: Não, imediatamente não. Sabes o que aconteceria se deixasse de fumar imediatamente? Ficaria orgulhoso como o demônio da minha força de vontade; desprezaria os meus amigos que não fossem capazes de fazer como eu; estaria tão ocupado em pavonear o meu auto-domínio que esqueceria as mortificações mais importantes.

CONSCIÊNCIA: Mais importantes? Quais, por exemplo?

Eu: Não me digas que não sabes que a mortificação interior é mais importante que a exterior. Olha por exemplo o que acontece nas sextas-feiras à noite: batem as nove, hora em que terminam oficialmente as confissões; se eu fosse zeloso como devia, não iria correndo fechar a porta da igreja para evitar a entrada de um retardatário, mas daria uma rápida olhada pela rua para o caso de estar chegando algum filho pródigo. Ou, senão, olha para este outro exemplo: é um dia qualquer, e eu me encontro no meu escritório, com o plano de trabalho já estabelecido, quando chega alguém querendo sentar-se e falar-me de alguma bobagem. Se eu me mortificasse interiormente, descobriria nessa pessoa a vontade de Deus e não teria tanta pressa em vê-la pelas costas. Repara, finalmente, no que aconteceu no último domingo: preparava-me tranqüilamante para descansar, quando me vieram dizer que a velha sra. Ebers precisava de que a levassem de carro ao hospital, a uns oitenta quilômetros, para visitar o marido. Se fosse interiormente mortificado, não teria demorado quinze minutos a ir ao telefone e oferecer-me para levá-la. Como vês, são alguns exemplos daquilo que penso serem as mortificações mais importantes. Podia deixar de fumar e continuar a ser um terrível egoísta, negligente e insuportável. Se me abstivesse da nicotina, não conseguiria nem a metade das vantagens que meia -hora de oração me oferece todos os dias. Se amasse mais a Deus...

CONSCIÊNCIA: Sim, já sei aonde queres chegar. Se amasses mais a Deus, seria mais fácil que te mortificasses. Uma renúncia heróica é mais o resultado do que a causa da virtude. Se progredisses no amor a Deus, o teu egoísmo se desfaria como uma cebola, casca por casca, até não restar nada. Pensas que chegará um dia em que te há de parecer natural e até inevitável deixar de fumar, um dia em que encontrarás maior gosto em não fumar do que em agarrar-te a esse costume. Enfim! O melhor seria aceitarmos um empate nesta disputa e eu variar a minha linha de ataque. Quanto tempo achas que precisarias para deixar de fumar segundo o teu método?

Eu: Só Deus sabe. Há momentos em que penso que o próprio Deus desanima tentando ensinar-me a cortar o mal pela raiz. Talvez o meu aço não esteja suficientemente temperado. Mas, consciência, não me abandones; se o conseguir, há de ser com a tua ajuda. A graça faz milagres e é possível que chegue um dia em que eu encontre verdadeira alegria em jogar cinza na comida e dormir sobre uma tábua. Entretanto, continuarei a saborear uma boa refeição, com toda a gratidão que devo a Deus e com o maior respeito pela virtude da temperança. Em nome da fraternidade e com o devido respeito pela virtude da sobriedade, continuarei a tomar um aperitivo com os meus irmãos sacerdotes antes do jantar. Parece-me ser uma sã doutrina pensar que tudo o que Deus fez é bom. Com toda a certeza, a alegria de um prazer inocente é obra das suas mãos e não se pode considerar um erro. Por isso, até que...

CONSCIÊNCIA: Cuidado! Esse fósforo vai-te queimar os dedos! Vamos, acende o cigarro e deixa de filosofar. Espero que não te convertas num racionalista. De qualquer modo, agora tenho mais que fazer. Preciso afiar a ponta da próxima seta.

28 de novembro de 2005

Ciência Moderna e Sabedoria Tradicional

O germano-suíço Titus Burckhardt (1908-1984) dedicou sua vida ao estudo da cosmologia, da metafísica e das artes tradicionais. A exemplo de René Guénon e de boa parte da chamada escola tradicionalista (ou escola perenialista), Burckhardt centra suas análises a partir de aspectos antitradicionais da modernidade. Ele nos lembra que há, sim, um conhecimento que transcende a razão; no entanto, há dois grandes obstáculos que impedem o homem moderno de alcançá-lo. Primeiro, o significado da simbologia simplesmente nos é desconhecido. Segundo, o pensar estritamente científico, no sentido moderno e quantitativo da palavra, limita nossa imaginação.

Os quatro ensaios que exporei abaixo, escritos em alemão ao longo da década de 1970, procuram precisamente explicar, sob diferentes aspectos, que tipo de conhecimento é esse e como a modernidade o perverteu. Reunidos posteriormente numa edição espanhola intitulada Ciencia Moderna y Sabiduría Tradicional (os ensaios III e IV também foram traduzidos para o inglês e podem ser encontrados aqui), Burckhardt começa introduzindo o leitor nos fundamentos da cosmologia perene, para então mostrar como sua má aplicação prejudica o entendimento moderno em três ciências: Física, Biologia e Psicologia. Há ainda um quinto ensaio sobre a Divina Comédia (Dante Alighieri), que deixarei para analisar em outra oportunidade.

Sempre é bom lembrar que o resumo foi feito com minhas próprias palavras, a partir do entendimento que pude extrair da leitura. Às vezes, traduzi frases inteiras nos trechos que enfrentei maior dificuldade de entendimento. De qualquer forma, todas as incongruências devem ser debitadas na minha conta, jamais na do autor.


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I - Cosmologia Perene

No mundo tal como é realmente, corpo, mente e espírito se entrelaçam numa ordem mais complexa do que somente "coisas" espalhadas e niveladas igualmente. Segundo as doutrinas tradicionais, o universo divide-se em três esferas: a corpórea (dada pela matéria, pelo número, pelo espaço e pelo tempo), a psíquica (livre das codições corpóreas mas ainda limitada) e a espiritual (totalmente livre de condições existenciais).

Para o homem moderno, no entanto, somente os dados registrados e medidos são reais, o que acaba engendrando uma visão um tanto totalitária do mundo. Mesmo a psicologia moderna, que poderia aliviar a visão totalitária do homem moderno, não consegue mais do que fazê-lo oscilar entre a "realidade" única das coisas exteriores e um subjetivismo psicológico desorientativo.

Ora, dizer que a Terra é plana, como os antigos poderiam eventualmente supor, é um erro muito menor do que afirmar, como os modernos o fazem, que a percepção sensorial é apenas um processo físico. Isso porque aquele é um erro sobre um aspecto particular do mundo criado enquanto este é um erro sobre a natureza do mundo criado.

Uma ciência que se limita ao corpóreo não pode ser designada como "cosmologia". Isso se explica pelo fato de que kosmos, em grego, implica em forma, uma lei interior que, conforme vimos em estudos anteriores, é negada pelos modernos. Esse aspecto qualitativo não pode ser apreendido somente pela razão, mas principalmente pela intuição espiritual, que Guénon denominava intuição intelectual.

A intuição espiritual, ao contrário do que o consenso moderno ensina, não é feeling nem premonição. A verdadeira intuição espiritual é ainda menos subjetiva do que as verdades às quais a razão chega. Por exemplo, a intuição espiritual, em seu grau mais elevado, pode referir-se à essência do próprio Deus. Ora, trata-se de uma verdade muito superior a qualquer teologia. Em resumo:

  • Teologia: deduz e ensina a partir de dogmas, limitando-se a uma visão pessoas de Deus como criador, conservador e redentor.
  • Intuição espiritual: não está ligada a nenhuma forma pré-fixada, penetrando até o fundo suprapessoal da Divindade, do Absoluto.
Ora, a metafísica é precisamente a visão espiritual que se abre ao Absoluto, ao Infinito ("para cima"). A cosmologia, por sua vez, se abre à existência, ao mundo criado ("para baixo"), mas precisa de uma metafísica para que dela extraia suas certezas últimas.
A teologia precisa validar-se a partir de uma infraestrutura cosmológica coerente. O homem moderno, ao valorizar excessivamente os progressos materiais, obstaculiza o conhecimento da onipresença e onipotência de Deus ao subordinar os aspectos qualitativos aos quantitativos. Tal postura gera erros cosmológicos que, para serem corrigidos, precisam de um "antídoto": uma visão metafísica de Deus. A concepção metafísica, por exemplo, jamais cairá na tentação de considerar um aspecto parcial do cosmo (o mundo corpóreo) como algo independente.
O objeto da cosmologia é a existência diferenciada, criada; seu pressuposto é a doutrina do Ser unitário, compreendida por sua vez na doutrina do Infinito e do Absoluto da metafísica pura. Portanto, o saber tradicional garante conhecimentos incomparavelmente mais profundos e reais do que todos os ensinamentos da ciência moderna, embora às vezes, no plano meramente empírico, as representações do saber tradicional sejam "ingênuas", isto é, simplesmente humanas.
Segundo a cosmologia cristã, o Logos é a origem do universo, a quintessência da existência na qual estão contidas todas as coisas criadas: "Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João. Este veio para testemunho, para que testificasse da luz, para que todos cressem por ele. Não era ele a luz, mas para que testificasse da luz. Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo. " (João 1:3-9).
Este aspecto cosmológico do Logos pode ser melhor descrito pela concepção de Plotino, segundo o qual o Espírito, emanado do Uno, olha o Uno e o reflete, trazendo objetividade àquilo que vê. Essa objetividade não é uma ação material, mas uma emanação, já que nada é subtraído do Uno. É fácil perceber que o Espírito é o próprio Logos, o Intelecto.
Não há dúvida de que existe uma diferença entre a representação bíblica da criação e a doutrina plotiniana da emanação da existência a partir do Uno. Mas essa diferença não é difícil de superar, uma vez que enfocamos as terminologias com o devido cuidado. Por exemplo, a Bíblia ensina que Deus criou o mundo do nada. Isso quer dizer que não havia matéria fora de Deus. Similarmente, a metafísica plotiniana ensina que o mundo emana de Deus. Outro exemplo: a Bíblia ensina que o mundo começou no mesmo momento em que Deus o criou. Segundo os filósofos gregos (Plotino inclusive), o cosmo é uma expressão de Deus e, portanto, eterno. A aparente contradição é facilmente solúvel quando entendemos que o começo do mundo não é de natureza temporal, embora o expressemos como tal pois necessitamos de uma representação simbólica que dê conta da ação de Deus.
A cosmologia cristã -- bem como a islâmica e a hebraica -- tomou de Aristóteles o pensamento analítico e de Platão a teoria dos arquétipos. Mas o que isso tudo tem a ver com fé? Ora, enquanto a cosmologia tem um caráter cognoscitivo impessoal, a fé parte de uma decisão pessoal a partir de algo pré-sentido ("a fé vem pelo ouvido"). Pois a visão antiga e medieval do mundo -- cosmologia e filosofia -- estavam estreitamente vinculadas entre si. Separaram-se precisamente quando a cosmologia se reduziu a uma mera descrição do universo visível; assim, a filosofia perdeu seu fundo universalmente válido e assume gradualmente o caráter solitário, oportunista e arbitrário que hoje a caracteriza.
II - Ciência Ignorante
Neste ensaio, Burckhardt aplica os conceitos cosmológicos e metafísicos descritos acima na análise da Física moderna. Segundo o autor, todos os erros das chamadas "ciências exatas" provém de uma má compreensão fundamental: a de que a existência do sujeito humana é prescindível nas experiências e teorias. Ora, é justamente no espelho contido no homem que os fenômenos do mundo se revelam.
Isso quer dizer que o conhecimento objetivo do mundo pressupõe certos critérios indiscutíveis que existem precisamente no sujeito individual. Afinal, tem de haver um fundo imparcial que traz unidade à ciência: é o espírito puro. Sem perceber, o homem moderno o afirma ao propor a objetividade absoluta da ciência. Ocorre que, ao matematizar tudo, a ciência moderna capta apenas o aspecto quantitativo dos fenômenos que visa explicar, peneirando o qualitativo. Para a cosmologia tradicional, são justamente os aspectos qualitativos, que transcendem os quantitativos, que interessam. Por exemplo, para o homem moderno, as cores não passam de impressões subjetivas de diferentes graus de oscilação de luz.
Nesse processo de peneiragem, a ciência moderna despreza não só as qualidades secundárias (cor, odor etc.) mas também a essência, a forma. Tal essência não se descobre por uma árdua investigação científica (moderna) simplesmente porque não são mensuráveis. Eis por que a cosmologia é direta e especulativa, pois capta as verdades de forma imediata, sem rodeios. São, digamos, "verdades poéticas". Se considerarmos a dimensão horizontal como a da existência material, a dimensão das qualidades cósmicas é vertical, pois une o inferior com o superior, o transitório com o eterno.
O suposto progresso científico é altamente duvidoso. Uma dominação não-sábia da natureza provoca conseqüências desastrosas (p.ex.: poluição, fissão atômica, controle de natalidade etc). Isso acontece porque a ciência moderna é manca, ou seja, é uma mistura de sabedoria com ignorância: enquanto a matemática lida com as características descontínuas do número, as relações contínuas e sutis são olimpicamente ignoradas.
Uma questão física que é aos modernos difícil de lidar é a respeito dos campos magnéticos. Como os campos magnéticos se sustentam? Afinal, não pode haver espaço vazio, uma típica intuição que o homem moderno não tem.
Segundo a cosmologia tradicional, o espaço está uniformemente cheio de éter. Todavia, logo depois de comprovar que não há obstáculos para o movimento de rotação da Terra, a Física moderna conclui que o éter não existe. Ora, os físicos modernos esquecem-se que este "quinto elemento", que constitui o fundamento de todos os modos de ser materiais, não possui em si nenhuma qualidade física particular. Ele representa, na verdade, o fundo contínuo do qual se destacam todas as descontinuidades materiais, de modo que não pode se opor a coisa alguma. Portanto, a inexistência do éter não poderia ter sido concluída após verificar-se que a Terra não possui obstáculos ao seu movimento.
Se a ciência moderna aceitasse a presença do éter, talvez pudesse responder se a luz se propaga como onda ou como emanação corpuscular. Ora, é provável que a propagação da luz não se explique nem de uma forma nem de outra: a luz está em relação direta com o éter e, como tal, participa da sua natureza contínua e indiferenciada. A luz é contínua como o éter.
Outro dilema diz respeito à relatividade. Supõem-se que a famosa velocidade da luz é "constante". Mas como pode um movimento com uma determinada velocidade, cuja definição seguirá sendo uma determinada relação entre espaço e tempo (km/s, por exemplo), ser em si mesmo a medida absoluta das condições do estado físico? Ora, claro está que a natureza da luz é fundamental para todo o mundo físico e que o movimento da luz representa algo assim como a "medida cósmica" do mundo. Mas por que se ater infantilmente ao valor 300.000 km/s? Ou seja, como pode a velocidade da luz ser fixa se a velocidade é medida por tempo e espaço, que são em si mesmos relativos?
É possível, portanto, que todas as distâncias entre os astros calculadas em "anos-luz" tenham uma validez tão subjetiva quanto as relações de qualquer cosmologia "obsoleta", sem falar que o conhecimento da natureza está condicionado aos limites de nossas faculdades sensoriais.
A doutrina tradicional ensina que as matérias -- visíveis ou invisíveis -- são compostas entre dois pólos: a essência plasmadora (introjetada pela ação imóvel do espírito criador) e a matéria indiferenciada (a materia prima). É como a luz incolor da qual originam-se cores num meio também incolor (água, cristal etc). No entanto, a Física moderna reduz tudo ao mundo corpuscular, ou seja, à quantidade. Fazendo isso, a Física aproxima-se perigosamente da indeterminação, afastando-se da determinação qualitativa. É o caso da cisão atômica, por exemplo.
Embora os homens antigos e medievais tivessem concepções físicas errôneas, eram sabedores de algo infinitamente mais importante: que a realidade não está limitada à matéria. Curiosamente, o homem moderno sabe que uma pequena irregularidade nos movimentos astronômicos, a inclusão de um astro estranho no sistema planetário, uma variação na trajetória solar ou qualquer outro acidente cósmico bastaria para destruir a humanidade. Não obstante, o homem moderno vive e atua como se o desenvolvimento normal e cotidiano dos ritmos da natureza lhe estivesse assegurado. Ele não pensa nem nos abismos do mundo estelar nem nas terríveis forças latentes em cada elemento da matéria. Ele contempla o céu acima de si como qualquer menino, com o Sol e as estrelas, pois a lembrança das teorias astronômicas o impede de conhecer os signos vivos, tornando-o incapaz de vê-los como são: a manifestação natural do Espírito que engloba o mundo e o ilumina.
III - A Origem das Espécies
Burckhardt inicia sua explanação sobre a origem das espécies lembrando que as quantidades se somam, mas as qualidade não: elas assumem uma nova característica, que participa de certa forma das outras mas, em verdade, é algo novo. É como a mistura de azul com amarelo com a qual se obtém o verde. O verde é um salto qualitativo em relação às cores anteriores.
Na natureza, as coisas funcionam assim também. Entre o ovo e o pássaro, entre a mariposa e a larva, há uma diferença qualitativa, um salto. Essa qualidade é dada pela forma, que, conforme vimos nos estudos anteriores, é a quintessência das qualidades de uma coisa ou de um ser, a marca de sua essência imutável.
No mundo individual ao qual nossos sentidos têm acesso, as coisas são compostas por forma (que, em essência, não é individual, mas um arquétipo) e matéria (física ou psíquica). A forma é, em outras palavras, uma unidade cognoscitiva e, como tal, está contida primordialmente na unidade mais ampla do Espírito.
Ora, com respeito aos indivíduos, a espécie (species) é um arquétipo, isto é, não é uma mera abrangência de um grupo mas uma unidade lógica ou ontológica, uma forma existencial indivisível. Por tanto, a espécie não pode "evoluir", ou seja, não pode passar gradualmente a outra espécie. Embora a espécie possua subespécies, estas ainda representam reflexos da mesma forma essencial, do mesmo arquétipo.
Pois é precisamente a confusão entre espécie e subespécie a base de toda a teoria evolucionista. Para a teoria evolucionista, uma variante de um pássaro é entendida como uma nova espécie. Ora, mesmo que eliminássemos as fronteiras entre uma espécie e outra, ainda assim estariam separadas entre si por diferenças abismais. Pois nem sequer existem formas que indiquem uma possível conexão entre as diversas ordens de seres vivos, como peixes, pássaros, répteis e mamíferos. Na verdade, pela própria lei da seleção natural, os "projetos" de uma nova espécie deveriam ser muito mais numerosos do que os antepassados.
É verdade que a paleontologia demonstra uma ordem ascendente de manifestações animais. Mas isso se explica pelo fato de que, no plano material, o que é relativamente informe e inarticulado precede sempre ao mais complexo, já que toda "matéria" é como um espelho que reflete, invertendo-a, a atividade dos arquétipos. Enquanto a essência dos arquétipos contém possibilidades riquíssimas por ser indivisível, no plano material as formas simples iniciais são pobres e as mais ricas estão subdivididas; assim, a semente existe antes do que a árvore e o botão existe antes do que a flor. O que é válido para o ser físico singular vale também, em conjunto, para o mundo animal e vegetal. Em suma, é como se o arquétipo dos arquétipos animais manifestasse no conjunto dos animais: assim como o embrião preceder o homem está para o arquétipo Homem, os animais mais simples precederem os mais complexos está para o arquétipo dos animais. Mas isso, em hipótese alguma, dá margem para uma "evolução de arquétipos". Não só não há elos perdidos como há espécies que imitam outras sem nunca deixar de ser o que foram (por exemplo, a baleia).
Todo arquétipo é um espelho que reflete a todos os demais arquétipos que, por sua vez, o refletem. O arquétipo Mamífero reflete todos os arquétipos abaixo dele (por exemplo, Cão, Gato, Baleia) que, por sua vez, refletem o arquétipo Mamífero. O fato de que os tipos cósmicos estejam compreendidos uns nos outros remete, em última instância, à unidade do Ser.
Em última instância, a tese evolucionista é uma tentativa dirigida não tanto a negar completamente o "milagre da criação", mas a isolá-lo. Em suma, o evolucionismo e todas suas contradições intrínsecas resultam da incapacidade própria da ciência moderna de conceber dimensões da realidade que não sejam encadeamentos puramente físicos. Logicamente, a origem das espécies só se aplica a partir da gradual emanação das realidades, conforme vimos acima.
Para melhor entender a descendência vertical das espécies, é preciso saber que a matéria que compõe este mundo físico nem sempre teve o mesmo grau de dureza cósmica. É como se a realidade física se "endurecesse", ou seja, se tornasse cada vez menos plasmável. Isso significa que, no plano da existência superior ao estado físico, os diversos tipos de animais estavam presentes como formas não-físicas no mundo sutil. Dali descenderam à existência física enquanto esta estivesse disposta a recebê-los.
IV - Psicologia Moderna
Burckhardt inicia sua análise da psicologia moderna face à sabedoria tradicional lembrando de um dilema já conhecido por Jung: todo julgamento feito pelo psicólogo tem de ser subjetivo pois a psique do próprio psicólogo é subjetiva. Ou, em outras palavras, a psique é o objeto da psicologia e ao mesmo tempo é o sujeito da psicologia.
No entanto, há algo em nós que escapa a essa limitação subjetiva, conseguindo percebê-la desde acima. Este algo não é outra coisa senão o espírito, o que os latinos chamavam de intellectus. Mas atenção: não confunda intelecto com razão; a razão reflete mentalmente o espírito mas é limitada ao setor ao qual está sendo aplicada. Como o homem moderno só admite dados empíricos então a razão fica limitada e esse setor. Portanto, não é de espantar que o homem moderno considere os fenômenos psíquicos como "irracionais".
Enquanto os fenômenos corpóreos podem ser observados com objetividade por um clínico, os fenômenos psíquicos não podem ser observados com a mesma objetividade por um psicólogo. Isso acontece porque o psicólogo tem de incluir o seu "eu" na experiência. É o dilema da alma tentando captar a alma. Eis aí um dos erros mais primários cometidos pela psicologia moderna: supor que o psicólogo pode se "distanciar" das experiências relatadas pelo paciente.
O psicólogo precisa de algo "acima" das experiências, de algo que o ajude a transcender o plano dos fenômenos: em suma, uma metafísica. A inteligência tem de ser algo que ultrapasse a psique.
Há dois critérios que situam a psique em seu contexto cósmico adequado: (1) a cosmologia e (2) a moral, devidamente enfocada por uma meta espiritual. A razão de ser desses critérios pode ser explicada mais ou menos assim: um rio, para mostrar o seu vigor, precisa de um obstáculo no meio do caminho, como uma rocha, um pedaço de madeira fincado no fundo do rio ou mesmo uma curva. O rio é o fluxo constante da psique, enquanto o obstáculo é o princípio imutável que mostrará à psique suas inclinações e tendências.
  • Cosmologia = dimensão impessoal e teórica da psicologia tradicional.
  • Moral = dimensão pessoal e prática da psicologia tradicional.
Ambas, juntas, dão uma visão desde acima da própria psique: é o autoconhecimento. Para a psicanálise, a moral não passa de costumes sociais que podem, algumas vezes, ser úteis mas que, geralmente, impedem o desenvolvimento normal da psique. O psicanalista torna-se então o novo sacerdote que, ao conseguir extrair os complexos reprimidos do paciente, lhe dá a absolvição dos pecados. O paciente, ao invés de distanciar de suas tendências, acaba assumindo-os como se esse fosse seu legítimo "eu".
O verdadeiro sacerdote, por outro lado, é o vigário da Verdade. O arrependimento cria uma distância entre o fiel e suas tendências caóticas e tenebrosas, possibilitando-lhe que as objetive e que restabeleça o equilíbrio com Deus. Isso acontece porque o sacerdote expressa e dá testemunho de uma presença superior.
Eis por que as doutrinas tradicionais da salvação são tão diferentes da "salvação" psicoterápica: aquelas sabem que a psique não pode curar a si mesmo. As tradições sabem que a "cura" pode vir de duas fontes: (1) do corpo, ao reequilibrar a dosagem de certas substâncias, ou (2) do espírito.
Quando a psicologia moderna atribui a um rito alguma efetividade, o remete a certas disposições psíquicas de origem ancestral. O psicólogo moderno jamais se questiona se há um sentido atemporal e sobre-humano nos ritos ou nos símbolos, como se a alma pudesse curar-se crendo na projeção ilusória de suas próprias preocupações.
Para entender um pouco melhor essas explicações, Burckhardt explica os diversos "mundos" lançando mão de uma comparação geométrica. Imagine círculos concêntricos. O círculo central representa o mundo corpóreo. Os círculos intermediários representam os diversos graus do mundo psíquico (também chamado de mundo sutil). O círculo mais externo representa o Espírito puro. Observe que os círculos mais externos contêm os círculos mais internos. Observe também que o círculo de menor abrangência é o interno, isto é, o mundo corpóreo.
Evidentemente, não é a alma individual que engloba o mundo físico; é o estado sutil inteiro que o engloba. Por um lado, a consciência subjetiva -- que é o objeto da psicologia -- acaba separando a alma de seu contexto cósmico, fazendo-a parecer isolada do mundo exterior e de sua ordem universalmente válida. Por outro lado, a mesma consciência subjetiva se serve de suas próprias faculdades congnoscitivas na confiança de que elas correspondam à ordem cósmica total. Há aí como que um processo de diferenciação e integração: a consciência individual "se separa" do mundo ao mesmo tempo que confia que ela pertença a uma ordem cósmica comum a todas as consciências individuais. É mais ou menos como se, ao mesmo tempo que sabemos que nossa alma é nossa alma, soubéssemos também que ela está imersa num mundo sutil comum a todas as almas. É o peixe que, embora sendo o peixe individual que é, também está imerso num oceano ("mundo") comum a todos os peixes e que, de certa forma, tal oceano afeta todos os peixes.
Por exemplo, a consciência de alguém que dorme e está sonhando é permeável aos influxos que atuam sobre ela advindos de diversas regiões do mundo sutil, como demonstram as premonições ou telepatias. Os sonhos podem ser feitos de recordações ou de "pegadas" de transfusão psíquica de um indivíduo a outro, embora tais casos sejam raros. Também podem ser introjetados por um Anjo, algo que fica patente naqueles sonhos que permanecem mesmo após acordarmos. Há também os sonhos infernais, que são introduzidos por uma "porta aberta" deixada pelo indivíduo. Essa "porta aberta" é normalmente alguma paixão. Esse tipo de sonho costuma pretensiosamente mesclar Deus com o "eu" pessoal, um orgulho tipicamente diabólico.
Entendemos ainda melhor essa diferenciação e integração das consciências quando nos damos conta que é o plano essencial (eidos) que as une e que é o plano material (hylé) que as diferencia. A dimensão essencial, no simbolismo da cruz, é representado pelo eixo vertical que une as consciências para além da forma que têm, enquanto o eixo horizontal é o plano sutil/psíquico que dá a cada consciência sua forma diferenciada mas, ao mesmo tempo, também as une, num certo sentido, no plano psíquico em que todas se encontram. Pode parecer estranho, à primeira vista, falar de "matéria" para a psique. No entanto, a psique ainda não é espírito puro e, portanto, possui suas determinações características, mesmo não possuindo um corpo físico próprio.
As dimensões vertical e horizontal de qualquer fenômeno psíquicos são essenciais para entendê-los. Isso é ainda mais válido para os fenômenos psíquicos, que são altamente complexos e podem ser um entrelaçamento de várias respostas: impressões sensoriais, manifestações de desejos, conseqüências de ações transcorridas, traços de disposições típicas ou hereditárias do indivíduo, expressões de seu gênio, reflexos de realidades supraindividuais etc.
Os eixos da cruz ajudam a entender que os arquétipos, segundo a utilização tradicional (platônica) do termo, são as fontes do ser e do conhecimento, e não, como pretende Jung, disposições inconscientes da ação e da imaginação. Similarmente, os instintos não são apenas uma série de reflexos automáticos da inteligência mas, na verdade, são determinações primordiais e qualitativas da própria espécie. Jung negava esta realidade, explicando os instintos a partir de "resquícios" meramente evolucionistas dos homens primordiais.
Retirando a psique de seu eixo vertical e considerando o homem apenas como um ser evoluído, não é à toa que Jung atribuía à psicanálise um caráter iniciático, como nas tradições esotéricas. Os Pais da Igreja, que não duvidaram em designar o batismo e a confirmação como ritos iniciáticos, não mais faziam do que uma "análise do inconsciente".
É verdade que Jung rompeu certos moldes puramente materialistas da ciência moderna, mas não nos resulta de nenhuma utilidade, dado que os influxos que se infiltram através dessa brecha procedem de setores psíquicos sinistros, e não do Espírito.

17 de novembro de 2005

Algumas perguntas relevantes

Mortimer J. Adler ensina em seu How to Read a Book que uma das melhores maneiras de apreender o conteúdo de um livro bem como testar se o entendimento deles extraído está correto é formular perguntas e procurar respondê-las com suas próprias palavras. No caso da leitura sintópica -- aquela que envolve mais de um livro -- as perguntas e temas devem ser amplos o suficiente para abordá-los todos. Porcurei então fazer isso com as perguntas e respostas a seguir.

Outros livros a respeito de Filosofia Perene serão estudados, seguindo o roteiro aqui sugerido, e portanto novas perguntas serão formuladas e respondidas.

* * *

1) O que é o homem moderno? Como ele se diferencia do homem tradicional?
Homem moderno é aquele que reúne as características típicas do homem surgido a partir da Renascença, isto é, após a Idade Média. Em suma, o homem moderno:
  • É centrado na ação, isto é, despreza as causas que estão por trás dos fenômenos visíveis. Por exemplo, o homem moderno conhece muitas doenças, mas é incapaz de detectar o significado delas e sua relação com o paciente. Alguém que sofre de esclerose múltipla pode ser tratado com drogas, mas a causa da doença pode estar na psique ou no espírito ( pneuma), não necessariamente numa disfunção corporal. O homem moderno também sabe construir edifícios com robustez e grande velocidade, mas é incapaz de imprimir ao ambiente a arquitetura adequada para o viver e o lazer segundo as necessidades e objetivos do edifício. O homem tradicional, por sua vez, é centrado na contemplação, isto é, na observação meditativa que lhe pode fornecer a síntese necessária entre o mundo físico e o metafísico (supra-sensível).
  • É centrado em si, isto é, é individualista. Isso quer dizer que o homem moderno não admite princípios que estejam acima de si mesmo. A negação desses princípios leva, senão explicitamente, pelo menos à negação implícita de autoridades espirituais e intelectuais.
  • É materialista, isto é, nega a importância ou mesmo a existência de um mundo além.
  • É racionalista, isto é, nega a eficácia ou mesmo a existência de uma intuição intelectual capaz de lidar com o mundo imaterial , reservando à razão humana o título de função máxima do homem.
2) Como a modernidade influencia a ciência? Cite exemplos.
A ciência, segundo a clássica definição de Aristóteles, é o conhecimento das coisas pelas causas. Ora, a ciência pode, grosso modo, ser divida em ciência primeira e ciência segunda. A ciência segunda é a Física, isto é, o estudo da natureza, do mundo sensível, do mundo material. A ciência primeira é a Metafísica, isto é, o estudo do mundo supra-sensível, intuitivo, imaterial. Se, como vimos acima, o homem moderno nega ou despreza o mundo supra-sensível, então sua ciência é manca, ou seja, restrita às observações e pesquisas mundanas, materiais, físicas.

Por exemplo, o astrônomo moderno conhece os diversos astros, suas trajetórias, compoosições físico-químicas etc. Mas o astrólogo tradicional, embora não tivesse à sua disposição os instrumentos e laboratórios atuais, conhece algo mais: a influência que os astros podem imprimir na psique a na sociedade humana.

3) Por que democracia e igualdade são conceitos tipicamente modernos?
Uma vez que o homem moderno nega autoridades espirituais superiores a si mesmo, então não há diferença entre as naturezas dos homens, ou seja, todos os homens são naturalmente iguais entre si. O homem tradicional, pelo contrário, sabe que há castas ou arquétipos distintos entre os homens.

Já que não há tais diferenças essenciais entre os homens, então elas reduzem-se a diferenças meramente substanciais. Daí conclui-se que o poder, se não vem daquele que é maior em termos qualitativos, virá daquele que é maior em termos quantitativos, isto é, da maioria dos homens. Eis o conceito de democracia: o poder baseado na opinião da maioria, ao contrário da aristocracia, que é o poder baseado numa elite inclinada e inspirada para o comando político-militar.

4) Explique o que é "forma" e "matéria", citando exemplos.
Forma e matéria são os princípios que explicam o devir (mudança, movimento). A matéria não é nem isto nem aquilo mas apenas pode ser isto ou aquilo. A forma é a coisa determinada, real.

Por exemplo, a matéria de uma casa é a madeira, enquanto sua forma é a idéia de casa. Embora ainda sejam necessários dois outros princípios para explicar o devir -- a causa motriz (o arquiteto) e a causa final (habitação) --, esses dois princípios podem ser reduzidos à forma (a idéia da casa está no arquiteto e a habitação é a forma final a que tende a casa).

No entanto, cabe aqui uma explicação importante quanto ao conceito moderno de matéria. Para o homem moderno, matéria é a composição sólida/líquida/gasosa de algo. Embora tal definição não esteja totalmente incorreta -- Aristóteles também a utilizava assim -- ela é parcial. Conforme disse acima, matéria é um princípio, ou seja, é algo que está por trás das manifestações visíveis. Tal princípio é universal, ou seja, é potencialidade pura (pode ser qualquer coisa). A substância às quais nossos olhos enxergam é também substância, mas não universal como a matéria mas relativa. A diferença entre a substância universal (matéria primeira ou materia prima) e a substância relativa (matéria segunda ou materia secunda) é que esta é caracterizada pela quantidade, enquanto aquela não pois é apenas um princípio. É por isso que Santo Tomás de Aquino chamava a matéria segunda de materia signata quantitate.

5) Qual a diferença entre quantidade e qualidade?

A diferença é que a qualidade refere-se à forma enquanto a quantidade refere-se à matéria (no sentido moderno do termo, isto é, relativo).

6) Por que a modernidade está ligada à quantidade?

Porque a modernidade nega o princípio essencial das manifestações. Por exemplo, uma doença mental pode ser estudada a partir da falta (ou excesso) de certas enzimas ou hormônios produzidos pelo corpo. No entanto, tal estudo estaria reduzindo a mente ao espaço, ignorando o fato de que a mente é algo que se desenvolve exclusivamente no tempo. Isto quer dizer que o tratamento de doenças mentais via administração de drogas cuida apenas das relações corporais que a mente exerce, e não da doença propriamente dita, que é mental.

7) Relacione materialismo com individualismo.

A matéria é o princípio que separa, que distingüe os seres, mesmo sendo da mesma espécie.

8) Relacione uniformidade com individualismo.

À medida que os homens se afastam do princípio essencial das manifestações, eles se afastam daquilo que é capaz de unir e explicar os fenômenos. Por exemplo, um homem intempestivo pode ser entendido a partir da casta e da raça a que pertence, mas para isso é necessário admitir que há arquétipos fora e acima dos homens particulares e relativos.

Reduzidos a seus aspectos quantitativos (materiais), os homens não diferem qualitativamente entre si, dando fruto assim a graus cada vez maiores de uniformidade. Não é à toa que a ciência moderna, restrita aos aspectos quantitativos das coisas, seja utilizada exclusivamente na produção em massa (industrialização), engendrando assim uma uniformização até mesmo do aspecto externo do mundo.

10 de novembro de 2005

Émile Boutroux

Segue um antigo estudo que fiz do excelente livrinho introdutório de Émile Boutroux sobre Aristóteles. Este livro foi o primeiro da coleção Biblioteca de Filosofia, editada por Olavo de Carvalho e publicada pela Editora Record.
* * *
Título: Aristóteles
Autor: Émile Boutroux
Editora: Record
Título original: Aristote (francês)
Tradutor: Carlos Nougué
Revisão e notas: Olavo de Carvalho
Ano de publicação da edição original: 1925
Ano de publicação da edição brasileira: 2000


Lógica

“É uma análise racional das condições a que deve satisfazer um raciocínio para que sua conclusão seja concebida como necessária.”

Instrumentos do pensamento

1) Noções
  • Categoremas: noções universais: gênero, espécie, diferença, próprio, acidente.
  • Categorias: gêneros irredutíveis das palavras, os gêneros supremos: essência (1ª classe), quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, situação, maneira de ser, ação, paixão (2ª classe).
  • Relações lógicas: a) identidade, b) oposição: contrariedade, contradição, relação privação-posse.
2) Proposições: reunião dos conceitos
  • Conceitos isolados não são verdadeiros nem falsos.
  • Só as proposições comportam verdade e erro.
3) Raciocínio: consiste essencialmente no silogismo.
  • Colocadas certas coisas, alguma outra resulta necessariamente.
  • Silogismo mais importante é a indução (particular-> geral).
A ciência e os instrumentos do pensamento
  • Ciência: conhecimento das coisas pelas causas, isto é, das coisas enquanto necessárias.
  • Este conhecimento é realizado quando conseguimos ligar a coisa à sua causa.
  • Há três tipos de ligações:
  1. Conjunções que sempre se realizam (ciência perfeita).
  2. Conjunções que geralmente se realizam (ciência imperfeita, limitada à possibilidade).
  3. Conjunções que pouco ou nunca se realizam (fora da ciência).
  • Se obtém ciência pela demonstração.
  • Apodíctica: ciência da demonstração.
  • Demonstração faz-se por silogismo direto do primeiro tipo de ligação.
  • Há três elementos na demonstração:
  1. O sujeito.
  2. O atributo, que se liga ao sujeito por um liame de necessidade.
  3. Princípios gerais sobre os quais se funda a demonstração.
  • Estes princípios gerais são indemonstráveis; caso contrário, teríamos progressão ao infinito ou círculo vicioso.
  • Portanto, cada ciência tem seus princípios.
  • De onde vêm os princípios?
  1. Não são inatos.
  2. Não são recebidos de fora.
  3. Há em nós uma disposição para concebê-los.
  4. Por efeito da experiência, essa disposição passa ao ato.
  5. Pois isto é a indução (particular-> geral), pela qual conhecemos os primeiros princípios próprios a cada ciência.
  • Demonstração supõe definição.
  • Similarmente, é necessário que haja definições indemonstráveis.
  • A definição faz-se pela indicação do gênero próximo e das diferenças específicas. [Humanos são animais racionais. Animal=gênero (sobrenome). Racional=diferença específica (nome)] (Kelley, The Art of Reasoning).
  • Resumo: uma coisa é necessária quando é ligada a uma essência específica.
  • Dialética: é a lógica do provável; está abaixo da apodíctica.
  • Parte de opiniões, e não de definições necessárias em si.
  • O dialético raciocina silogisticamente, mas partindo do verossímil.
  • Verossímil: essência apenas genérica, ainda não determinada pela diferença específica.
  • Retórica: busca tornar o verossímil persuasivo.
  • A dialética está para a lógica assim como a retórica está para a moral.
  • Modo de raciocínio da retórica é o entimema.
  • Entimema é o silogismo no qual uma das três proposições é subentendida.
  • Erística: prende-se aos acidentes.
  • Portanto, raciocínio erístico é puro sofisma.


Metafísica

Ampliação da noção de ciência
  • Nem toda ciência lida com o geral.
  • A ciência tem dois modos, dois graus.
  • Há a ciência em potência e a ciência em ato.
  • Ciência em ato: tem por objeto o ser perfeitamente determinado, o indivíduo.
  • Eis aí a idéia-mestra do aristotelismo: o geral não é o princípio constitutivo do ser; o individual não se reduz ao geral; [ciência lida com o geral, mas deve haver uma que lida com o indivíduo].
  • Por exemplo: toda a ciência do geral não chegaria a construir a individualidade de Sócrates.
  • O conhecimento dos indivíduos obtém-se por uma intuição.
  • Assim, a especulação abstrata será impotente para nos fazer conhecer a natureza.
Os princípios do ser
  • O ser está submetido ao devir [A significação do termo devir não é unívoca. [...] Às vezes se chama “mudança” ou “movimento”] J. Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia.
  • Se o devir existe então há princípios não engendrados [não originados, não gerados, não produzidos, Dicionário Aurélio] que o explicam.
  • Tais princípios são quatro:
  1. Uma matéria ou substrato, teatro da mudança, teatro da substituição de uma maneira de ser por outra.
  2. Uma forma.
  3. Uma causa motrriz.
  4. Um objetivo.
  • Por exemplo, os princípios de uma casa:
  1. Matéria = madeira.
  2. Forma = idéia da casa.
  3. Causa motriz = arquiteto.
  4. Objetivo = habitação.
  • Esses princípios reduzem-se em dois:
  1. Matéria = madeira.
  2. Forma = idéia da casa.
  3. Causa motriz = arquiteto = forma num sujeito já realizado. [O arquiteto tem a idéia da casa em mente. Portanto, a causa motriz é a própria idéia da casa (forma) num sujeito].
  4. Objetivo = habitação = forma a que a casa tende.
  • Eis, portanto, os dois princípios necessários, suficientes e não engendrados que explicam o devir:
  1. Matéria (não é nem isto, nem aquilo: pode tornar-se isto ou aquilo).
  2. Forma (o que faz da matéria uma coisa determinada e real; é a alma da coisa; não confundir forma com figura, como a mão de uma estátua, que é apenas a figura de uma mão, e não a forma de uma mão).
  • Aristóteles aproxima os dois princípios, remetendo-os à potência e ao ato:
  1. Matéria é potência, capaz de dois contrários: ser e não-ser. A matéria tem uma disposição para receber a forma, deseja-o.
  2. Forma é ato, é o acabamento natural da matéria.
  • Resumo: o devir deriva do ser-em-potência, intermediário entre o ser e o não-ser.
O ser e a imperfeição
  • Pois é desse ser-em-potência (isto é, da matéria) que origina-se tudo o que é indeterminado e imperfeito porque...
  • A matéria, em certo sentido, resiste à forma.
  • Eis por que as criações da natureza são sempre imperfeitas.
  • Eis por que produzem-se muitas coisas desprovidas de objetivo, dado que nascem pela exclusiva ação de forças mecânicas.
  • Eis por que a matéria é o princípio da contingência dos futuros, pois da matéria origina-se o acaso.
  • O acaso é necessário apenas mecanicamente, mas não por finalidade.
  • Ou seja, o evento fortuito, do ponto de vista da finalidade, é indeterminável e incognoscível.
  • Resumo: a matéria é a causa da imperfeição dos seres, e do mal.
Deus e o devir

Explicar o ser atendo-nos a seus elementos próximos não basta.
  • O ser, que está submetido ao devir, só pode ser explicado com base num ser eterno.
  • Existência de Deus se prova:

    1. Popularmente: pela perfeição gradual dos seres e pela finalidade que reina na natureza.
    2. Cientificamente: pela análise das condições do movimento; é o que chamamos de argumento do primeiro motor.
    • Movimento é a relação da matéria com a forma, é mudança.
    • O movimento do mundo é eterno.
    • Portanto, o tempo é necessariamente eterno, pois sem movimento não há tempo.
    • Movimento implica em móvel e motor.
    • Exemplo: o carro é o móvel e seu motor o motor.
    • O mundo, móvel eterno, implica num motor imóvel.
    • Este motor imóvel é o que chamamos Deus.
    • Em suma, há dois princípios que fundam a demonstração da existência de Deus:
    1. O ato é anterior à potência [Apenas com base no atual se pode entender o potencial, J. Ferrater Mora]; Deus é portanto ato puro.
    2. O condicionado (dependente) supõe o incondicionado (independente).
    Que é Deus?

    • Deus desempenha o papel de primeiro motor.
    • Deus é ato puro.
    • Deus é isento de indeterminação.
    • Deus é isento de imperfeição.
    • Deus é isento de mudança.
    • Deus é imóvel.
    • Deus é imutável.
    • Deus é o pensamento que tem por objeto tão-somente o pensamento.
    • Deus é vida eterna.
    • Deus excelente.
    • Deus é soberanamente feliz.
    • Deus pensa, movendo o mundo sem mover a si mesmo.
    Física Geral

    Princípio e objeto de estudo
    • [A Metafísica ocupa-se das causas primeiras. A Física ocupa-se das causas segundas, que operam na natureza] J. Ferrater Mora.
    • A Metafísica tem por objeto o ser imóvel e incorpóreo, Deus (às vezes, Aristóteles mesmo chamava esta ciência de “filosofia teológica”) .
    • A Física tem por objeto o ser móvel e corporal.
    • O princípio fundamental da Física é que Deus e a natureza não fazem nada em vão, que a natureza tende sempre ao melhor e ao mais belo [princípio do melhor].
    Deus e a natureza
    • Mas é Deus necessário nesta ordem e harmonia? Não seria a harmonia da natureza fruto do acaso? Não, responde Aristóteles, porque o acaso só é feliz como exceção, e não por regra. E os monstros [corpos de conformação anômala, Aurélio]? Monstros existem porque a natureza se engana, pois ela é constituída de matéria
    • Não importa que não vemos Deus agindo, porque Deus age inteligentemente; é como a arte, também não vemos seu princípio agindo.
    • Ocorre que a natureza é uma causa, mas não é a única. A natureza tem de agir em cooperação com a matéria. E a matéria não se deixa submeter à natureza inteiramente.
    • Então, de um lado, o princípio do melhor é legítimo na explicação das coisas da natureza; este princípio representa a forma ou destinação das coisas.
    • Por outro lado, a natureza é sempre imperfeita em algum ponto, pois é ela constituída de matéria.
    • Portanto, a explicação teleológica (finalista) deve ser empregada para completar a explicação mecânica.
    A natureza e o devir
    • O devir (movimento, mudança) é a actualização de um possível.
    • A mudança possui quatro espécies:
    1. Mudança substancial: do nascer ao perecer, do não-ser ao ser, e vice-versa.
    2. Mudança quantitativa: aumento ou diminuição.
    3. Mudança qualitativa: passagem de uma substância a outra.
    4. Mudança espacial: deslocamento.
    • Como é este último que condiciona os outros três, Aristóteles detém-se no estudo dele, analisando a natureza do lugar.
    • O lugar do corpo é o limite interior do corpo ambiente, ou seja, do corpo onde aquele está encerrado.
    • O tempo é o número do movimento.
    • O contínuo é a característica do tempo e do espaço. É divisível ao infinito.
    • Portanto, fora do mundo não há espaço nem tempo.
    • Todas as quatro mudanças estão condicionadas à mudança espacial, mas ela não é a única que explica as mudanças. A mudança qualitativa é irredutível ao espaço, isto é, tem algo a mais, que é a nova substância que se torna.
    • Eis por que Aristóteles põe como princípio a distinção qualitativa das substâncias
    Matemáticas
    • As matemáticas lidam apenas com as relações de grandeza, a quantidade e o contínuo, fazendo abstração das outras qualidades físicas.
    • Tratam, assim, das coisas que são imóveis sem existir à parte, essências intermediárias entre o mundo e Deus.
    • O matemático isola, por abstração, a forma da matéria.
    Cosmologia

    [Teoria geral do mundo, ou do cosmo] J. Ferrater Mora
    • O mundo é belo e bom, tanto quanto o permite a resistência do elemento material.
    • O mundo tem uma forma perfeita: a forma esférica.
    • O mundo compõe-s de duas metades desiguais:
    1. O mundo supralunar ou celeste: onde estão grudadas as estrelas fixas.
    2. O mundo infralunar ou terrestre.
    • A matéria das estrelas é o éter, ou quinto elemento, que é incorruptível.
    • Os outros elementos são corruptíveis.
    • O céu dos planetas é feito de uma substância cada vez menos pura à medida que se afasta do céu das estrelas fixas.
    Astronomia
    • Todos os seres celestes são esféricos.
    • O primeiro céu é uma esfera.
    • Os planetas são movidos pelas esferas; a terra é esférica [É como se o planeta fosse a “parte visível” da esfera, mas um ser animado, racional, superior ao homem] Edward.
    • Aristóteles admitia 33 esferas, porém teve de acrescentar 22 esferas (as chamadas esferas antagonistas) para que as esferas dos astros exteriores não interferissem nas esferas dos astros interiores.
    • Total = 55 esferas.
    Meteorologia
    • Os fenômenos meteorológicos resultam da ação mútua de quatro elementos.
    • Como esses quatro elementos são corruptíveis, Aristóteles busca para os meteoros explicações empíricas e mecânicas.
    • P.ex.: ventos são movimentos de vapores resultante de diferenças de temperatura.
    Biologia
    • A alma é a forma do corpo, isto é, o corpo é o instrumento da alma.
    • A alma vence o corpo pouco a pouco pois, como vimos, a matéria tende a resistir à forma.
    • Este triunfo da alma dá origem a três graus na vida psíquica:
    1. Nutritividade: comum a todos os seres vivos; dela procede a vida e a morte.
    2. Sensibilidade: comum aos animais e ao homem.
    3. Inteligência: exclusiva do homem.
    Anatomia e Fisiologia Animais
    Anatomia: estrutura dos órgãos
    Fisiologia: função dos órgãos
    [Aurélio]

    Anatomia e Fisiologia Gerais
    • As partes do organismo se dividem em duas espécies:
    1. Homogêneo: veias, ossos, unhas, pêlos, chifres, gordura, sebo, sangue, medula, leite, membranas.
    2. Heterogêneo:coração, diafragma, órgãos dos sentidos, órgãos do movimento, encéfalo.
    • Os sentidos consistem em “ser movido”, “sofrer alterações”, e se dividem em duas espécies:
    1. Sentidos mediatos: atuam por meio do ar: visão, audição e olfato.
    2. Sentidos imediatos: atuam por contato: tato e paladar.
    • Quanto à hereditariedade, Aristóteles ensina que o novo ser (embrião) forma-se de substâncias diferentes dos próprios pais, isto é, da mistura do esperma com o mênstruo resulta o embrião.
    • Do homem nasce a alma e da mulher o corpo.
    Anatomia e Fisiologia Comparadas

    Aristóteles estudou as diferenças e semelhanças orgânicas.
  • Ele elaborou a lei de divisão do trabalho: a natureza, sempre que possível, emprega dois órgãos para duas funções diferentes.
  • Ele estudou também a fisiognomia, isto é, a relação do físico com o moral.

  • Zoologia

    Ciência que trata dos animais [Aurélio]
    • Aristóteles procura classificar os animais basendo-se em suas semelhanças, distinguindo a essência do acidente:
    1. Animais que têm sangue (vertebrados):
      a) Vivíparos verdadeiros
      b) Ovovivíparos
      c) Ovíparos
    2. Animais que não têm sangue (invertebrados):
      a) Moluscos
      b) Crustáceos
      c) Testáceos
      d) Insetos
    Psicologia
    Ciência que estuda a psique (alma, espírito) e o comportamento. [Definição adaptada do Aurélio]
    • O que diferencia o homem dos outros animais é o núus.
    • Sensação: é a transmissão da forma do objeto ao sujeito: por causa dela, os animais são capazes de prazer e dor e, portanto, de desejos e paixões.
    • Imaginação: é a nova aparição da imagem, pois a sensação durou mais tempo que o limiar.
    • Memória: é a imagem reconhecida como percepção passada.
    • Núus é o conhecimento das causas primeiras; não tem nascimento, é eterno, nunca está passivo (em potência), mas sempre ativo (em ato); não tem órgão; é a inteligência.
    • Funções da alma animal (sensação, imaginação, prazer, dor, memória, desejos, paixões).
    • Núus pathéticos: inferior, passivo, mesclado com a alma animal.
    1. Função teórica: como tabula rasa, funcionando com imagens e influência do núus superior. É o núus superior que liberta da sensação o geral que está nela contido.
    2. Função prática: aplicação das idéias teóricas.
      a) pela produção
      b) pela ação
    • Núus theoréticos, apathos, absoluto, superior: superior; procede a priori, partindo das causas.
    • Vontade: combinação da inteligência (núus) com desejo (alma animal); no entanto, esse desejo pode ser engendrado pela razão (eis a vontade), e não necessariamente apenas pela sensação (isso seria apenas apetite); o desejo fornece fins a realizar, enquanto a inteligência fornece os meios.
    • Livre-arbítrio: é faculdade da autodeterminação, ou seja, justamente a capacidade de decidir entre a vontade (razão) e o apetite (sensação).
    Filosofia prática

    É a filosofia das coisas humanas. O homem não é um animal, ou seja, tem um fim que não se realiza imediata e necessariamente.

    Divide-se em três partes:

    1) Ética ou Moral: regra da vida individual
    2) Econômica: regra da vida familiar
    3) Política: regra da vida social

    Moral
    • O bem para um ser vivo está para a plena realização da atividade que lhe é próprio assim como a felicidade para o homem está para a realização da atividade propriamente humana.
    • Felicidade é a constante atividade de nossas faculdades propriamente humanas, isto é, intelectuais; felicidade é a ação guiada pela razão.
    • A virtude é o elemento constitutivo da felicidade.
    • Virtude é um hábito caracterizado pela realização perfeita da parte superior da alma humana, das potências humanas.
    • Virtude é a forma da felicidade.
    • Saúde, beleza, fortuna, filhos, amigos são a matéria da felicidade.
    • A natureza humana é dupla: intelectual (que lida com o necessário) e moral (que lida com o contingente).
    • Há, portanto, dois tipos de virtudes correspondentes à duplicidade da natureza humana:
    1. Virtudes dianoéticas (intelectuais): são os hábitos perfeitos da parte inteligente da alma; são as mais elevadas; dependem de instrução, não da vontade; a ciência (ou contemplação) é a virtude que confere maior felicidade ao homem e é a que está mais próxima da divindade; o órgão da ciência é o núus. Há dois graus de inteligência: a) Inteligência científica, cujas virtudes são o núus (que conhece os primeiros princípios) e a ciência (que deduz desses princípios as verdades particulares); núus+ciência=sapiência. b) Inteligência logística, cujas virtudes são a arte (capacidade de produzir algo em vista de um fim) e o julgamento (inteligência prática).
    2. Virtudes éticas (morais): como as virtudes dianoéticas são muito raras, pois o homem está ligado ao corpo, resta-lhe as virtudes éticas; são hábitos da alma; tendem a escolher a justa medida para a natureza humana e determina o julgamento prático do homem inteligente; são muito numerosas; p.ex.: justiça e amizade.
    Econômica
    • A família aumenta o grau de perfeição do indivíduo.
    • Relação entre homem e mulher:
      1) Homem tem autoridade sobre a mulher porque ele é mais perfeito.
      2) Mas a mulher é livre.
      3) Portanto, relação é de amizade e reciprocidade.
    • Relação entre pais e filhos:
      1) Criança não têm direito nenhum porque ela é parte do pai.
      2) Mas pai tem de velar pelo bem do filho.
      3) Portanto, pai deve comunicar sua perfeição ao filho, e o filho deve se apropriar dela.
    • Relação entre senhor e escravo:
      1) Escravidão é necessária e legítima porque escravo é um ser próprio só para trabalhos corporais.
      2) O senhor está para o intelectual assim como o escravo está para o corporal.
      3) O senhor está para a forma assim como o escravo está para a matéria.
    Política

    Aristóteles trata da política de duas entidades:

    1) do Estado
    • Política é o aperfeiçoamento da econômica.
    • Política é a causa final das famílias.
    • Portanto, finalidade do Estado é a felicidade dos cidadãos, velando pelas virtudes e bens interiores, e só depois exteriores.
    • Propriedade e família são úteis ao Estado, pois ele é o todo e aquelas as partes.
    • Portanto, Estado deve regulamentá-las, não eliminá-las.
    • Estado deve educar os cidadãos, visando formar hábitos morais nas crianças, tendo em vista o bem da inteligência: gramática, ginástica, música e desenho; atividades mecânicas e utilitárias devem ser descartadas.
    2) das Constituições
    • Para cumprir a finalidade do Estado, são necessários dois órgãos:
      i. Leis, que são a representação prática da razão.
      ii. Magistrado, para os casos precisos e específicos.
    • Há dois tipos de formas de governo:
    1. Formas justa de governo (um só governante = Realeza; muitos governantes = Aristocracia; a maioria governa = Poliarquia).
    2. Forma corrupta de governo (um só governante = Tirania; muitos governantes = Oligarquia; a maioria governa = Democracia).
    • A aristocracia é o melhor porque reúne ordem (somente os de boa situação cultural são cidadãos) e liberdade (muitos cidadãos podem governar).
    Retórica
    • Retórica é a aplicação da dialética aos fins da política.
    • Essencial da retórica: os meios oratórios:
    1. Que se relacionam com o assunto:
      - Tem de fazer as afirmações aparecerem verdadeiras
      - Para isso, precisa de provas
      - Quanto às provas: os silogismos da dialética estão para as induções assim como os entimemas da retórica estão para os exemplos
    2. Que se relacionam com o orador:
      - Tem de fazer o orador aparecer dotado de inteligência, probidade e benevolência
      - Que se relacionam com o ouvinte
      - Tem de saber excitar e aplacar paixões
      - Estuda a idade e as disposições da platéia
    Estética
    Parte da filosofia que lida com a arte.
    • Caracteres essenciais do belo: simetria, coordenação, precisão.
    • Belo é geral, e não particular.
    • A essência da arte é a imitação, pois o homem está propenso a imitar, extraindo prazer disso.
    • Mas o homem imita o quê? A natureza, ou seja, principalmente a essência interna, ideal, das coisas naturais e, também, a aparência externa.
    • As artes produzem um efeito chamado catarse.
    • Catarse é a supressão de uma paixão que dominava e turbava a alma; é um tratamento homeopático.
    • Mas tem de ser uma excitação salutar, que se submete a uma medida e a uma lei.
    • As artes mais elevadas são a poesia e a música.
    Poética
    • O que restou de Aristóteles foi praticamente só o estudo da tragédia.
    • Tragédia é a imitação de uma ação séria, completa.
    • Excita o terror e a piedade.
    • Ação deve apresentar não apenas aquilo que necessariamente teria acontecido, mas aquilo que poderia ter acontecido.
    Gramática
    • As palavras fundam-se mais num acordo dos homens entre si do que na natureza
      - Portanto, a formação das palavras é mais arbitrária do que analógica.

    25 de outubro de 2005

    O Reino da Quantidade

    Dando prosseguimento aos estudos de metafísica e filosofia perene, resumirei aqui os sete primeiros capítulos da obra-prima de René Guénon: El Reino de la Cantidad y los Signos de los Tiempos (1945). Mais tarde tratarei do restante.

    Originalmente escrita em francês, dizem que há uma edição em língua portuguesa. Se há, é deveras difícil de encontrá-la.

    PLANO GERAL

    Grosso modo, Guénon retoma as idéias lançadas em A Crise do Mundo Moderno, adicionando-lhe conteúdo mais relevante, seja para lhe dar um aspecto mais doutrinal, seja porque diversos acontecimentos entre um livro e outro trouxeram novas luzes a respeito do mundo moderno e seu pensar. Em suma, Guénon pretende delinear as diferenças fundamentais entre a ciência tradicional e a ciência profana (moderna).

    CAPÍTULO 1 - QUALIDADE E QUANTIDADE

    Para começar, é necessário partirmos da primeira de todas as dualidades cósmicas: a da Parucha e Prakriti, segundo a doutrina hindu, ou da essência e substância. Essência e substância são, em suma, a mesma coisa que forma e matéria. Igualmente, o que chamamos de ato e potência é equivalente a essência e substância.

    Diz-se então que a qualidade é o conteúdo da essência, e não está restrita exclusivamente ao nosso mundo, mas está suscetível a uma transposição que universaliza sua significação. Por exemplo: não estamos precisamente nos referindo à qualidade de Deus quando falamos de seus atributos, dado que seria manifestamente impossível atribuir-Lhe determinações quantitativas?

    A quantidade, por outro lado, tende ao lado substancial da manifestação. Não seria correto, no entanto, afirmar que a quantidade tende ao lado material da manifestação porque a palavra materia não é aquilo que entendemos modernamente como matéria. Segundo os escolásticos, a matéria é a substância, ou seja, o princípio passivo da manifestação universal, a potencialidade pura (Pakriti). Eles a chamavam de materia prima.

    CAPÍTULO 2 - MATERIA SIGNATA QUANTITATE

    Como disse, a materia não deve ser identificada com a matéria dos modernos, mas sim com a hylé aristotélica, substância universal, potência pura. A palavra materia também pode ser usada em seu sentido relativo, ou seja, quando associada à eidos para designar as duas faces essencial e substancial das existências particulares.

    Era esta a distinção que os escolásticos viam entre materia prima (substância universal) e materia secunda (substância em seu sentido relativo). A materia secunda nunca era potência pura. A substância universal é o único princípio que pode chamar-se propriamente de ininteligível, pois não há nada nela passível de ser conhecido. Portanto, não é do lado substancial que devemos buscar as explicações das coisas, mas do lado essencial.

    No entanto, o homem moderno, ao mesmo tempo que atribui certas propriedades à matéria, também por vezes se refere à suposta inércia da matéria. Ora, a matéria não pode ser inerte porque apenas a materia prima é inerte. Ao confundir materia prima com materia secunda, o homem moderno acaba criando mistérios e paradoxos onde antes não havia. A materia secunda tem de conter alguma determinação porque senão confundiria-se com a materia prima. Daí que dizer que a matéria contém propriedade e é inerte é um paradoxo. Ou seja, a materia secunda não pode ser uma materia secunda qualquer. Eis que Santo Tomás chamava a materia secunda de materia signata quantitate (matéria caracterizada pela quantidade), ou seja, o que está nela inerente é a quantidade. A quantidade é uma das condições mesmas da existência do mundo sensível/corporal. A quantidade é a condição básica de nosso mundo, ou seja, aquilo que está no nível mais inferior.

    CAPÍTULO 3 - MEDIDA E MANIFESTAÇÃO

    A associação mais freqüente que se tem feito a respeito da origem da palavra materia é a que vincula à palavra mater. Trata-se de algo conveniente, uma vez que a matéria, efetivamente, é um princípio passivo, "feminino". Todavia, é também possível vincula-la à palavra metiri (medir). Ocorre que medição implica em determinação, e determinação é algo que não se aplica à materia prima, mas à materia secunda. Portanto, a noção de medida aplica-se à materia secunda.
    A medida se refere principalmente ao domínio da quantidade contínua, ou seja, das coisas que possuem um caráter espacial, e não temporal, uma vez que o tempo não é passível de medição direta mas indireta, por meio do deslocamento (espaço). Ocorre que a quantidade contínua não pode ser quantidade pura porque não pode ser medida com exatidão. Isso acontece porque é o número a base de toda medida, mas as magnitudes contínuas não podem ser medidas com precisão pelos números. Há sempre um "arredondamento" a ser feito, por mais preciso que seja o instrumento de medida. Portanto, tomemos cuidado pois, na realidade, a quantidade não é o que se mede mas aquilo pelo qual as coisas são medidas.
    A medida é portanto uma "atribuição", uma "determinação" necessariamente implícita em toda a manifestação, em qualquer ordem sob qualquer modo.
    Se vê aqui que a idéia de medida está em íntima conexão com a idéia de "ordem", ou seja, àquilo que se refere à produção do universo manifestado. As tradições costumam referir-se a uma iluminação (o Fiat Lux do Gênesis) , dado que o caos é identificado simbolicamente com as trevas; o caos é a potencialidade a partir da qual se atualizará a manifestação.
    A idéia de medida também implica em geometria. Claro, trata-se da geometria simbólica, iniciática, não a geometria matemática moderna. Foi Leibnitz que disse: dum Deus calculat et cogitationem exercet, fit mundus (enquanto Deus calcula e exerce seu pensamento, o mundo se faz).
    CAPÍTULO 4 - QUANTIDADE ESPACIAL E ESPAÇO QUALIFICADO
    Como vimos, a extensão não é pura mas simplesmente um modo da quantidade. Para que o espaço fosse puramente quantitativo, seria necessário que fosse inteiramente homogêneo, isto é, que suas partes não pudessem ser distinguidas entre si por nenhuma outra característica que não fosse suas respectivas magnitudes.
    No fundo, dizer que um corpo não é mais que sua extensão, quantitativamente falando, quer dizer que sua superfíceis e seu volume são o próprio corpo, com todas as suas propriedades, o que é manifestamente absurdo.
    Entre as determinações corporais que são incontestavelmente de ordem puramente espacial e que, por conseguinte, podem se considerar verdadeiramente como modificações da extensão, não há somente a magnitude dos corpos, mas também sua situação. Será essa situação algo também puramente quantitativo?
    A resposta é não. Isso fica fácil de perceber, por exemplo, quando temos um triângulo e um quadrado de áreas iguais. É evidente que eles não são a mesma coisa, apesar de suas superfícies serem iguais! E mais: na teoria das figuras semelhantes, a similitude se define exclusivamente pela forma e é totalmente independente da magnitude das figuras, ou seja, é de ordem puramente qualitativa. Em essência, tais formas são conjuntos de tendências em direção.
    Resumindo: a noção de direção é o verdadeiro elemento qualitativo do espaço, enquanto a noção de magnitude é o verdadeiro elemento quantitativo do espaço. Portanto, o espaço é o que poderíamos chamar de espaço qualificado.
    CAPÍTULO 5 - AS DETERMINAÇÕES QUALITATIVAS DO TEMPO
    O tempo está mais afastado da quantidade pura do que o espaço. Isso acontece porque enquanto o espaço pode ser medido, o tempo, pelo contrário, não pode ser medido senão reduzindo-o à dimensão espacial.
    Os fenômenos corporais são os únicos que se situam tanto no espaço quanto no tempo; no entanto, os fenômenos de ordem mental não têm nenhum caráter espacial; pelo contrário, se desenvolvem no tempo. No entanto, há aqueles que tentam reduzir os fenômenos mentais à quantidade; o que os "psicofisiólogos" determinam quantitativamente não são, na realidade, os fenômenos mentais, mas apenas algumas de suas concomitâncias corporais. A idéia de uma psicologia quantitativa representa a maior aberração do cientificismo moderno.
    A natureza essencial dos acontecimentos aparece como muito mais ligada ao tempo do que os corpos estão ligados ao espaço, o que serve de indício para deduzirmos que o tempo possui um caráter muito mais qualitativo do que quantitativo.
    A verdade é que o tempo não é algo que se desenvolve uniformemente e, por conseguinte, sua representação geométrica por uma linha reta não passa de uma idéia excessivamente simplificada e, no fim das contas, falsa. A verdadeira representação do tempo é a dos ciclos. A representação cíclica estabelece precisamente uma correspondência entre as fases de um ciclo temporal e as direções do espaço.
    Vejamos uma exposição mais ou menos completa da doutrina dos ciclos temporais:
    1) Cada fase de um ciclo temporal tem sua qualidade própria, que influi sobre a determinação dos acontecimentos. Nas diferentes fases do ciclo, séries de acontecimentos comparáveis entre si não se cumprem em durações iguais. É precisamente por essa razão que os acontecimentos se desenvolvem hoje com uma velocidade sem par nas épocas anteriores, velocidade que se acelerará até o fim do ciclo.
    2) A marcha do ciclo possui uma direção descendente, isto é, o processo de manifestação implica cronologicamente num afastamento gradual do princípio.
    3) A manifestação se efetua desde o pólo positivo (ou essencial) da existência até o pólo negativo (ou substancial). Portanto, as coisas devem tomar um aspecto cada vez menos qualitaqtiva e cada vez mais quantitativo. Este último período é propriamente chamado de Reino da Quantidade.
    CAPÍTULO 6 - O PRINCÍPIO DA INDIVIDUAÇÃO
    Os escolásticos consideravam a materia como o principium individuationis. Ora, mas por que seria a matéria o princípio de individuação? Não seria melhor dizer que é a forma o aspecto da manifestação que realmente representa o princípio de individuação, já que os indivíduos são tais e quais conforme condicionados pela forma, e não pela matéria?
    Na verdade, a questão do "princípio da individuação" se resume a isto: os indivíduos de uma mesma espécie participam de uma mesma natureza. Mas, mesmo assim, o que faz os indivíduos da mesma espécie serem distintos entre si? De que ordem é a determinação que se agrega à natureza específica para fazer dos indivíduos , dentro da mesma espécie, serem distintos? É a esta determinação que os escolásticos chamam de materia, isto é, a quantidade ou materia secunda de nosso mundo. Assim, materia ou quantidade aparece propriamente como um princípio de "separatividade". Além do mais, pode-se dizer que a quantidade é uma determinação que se agrega à espécie, dado que a espécie é exclusivamente qualitativa.
    Chegamos agora à seguinte conclusão: nos indivíduos, a quantidade predominará tanto mais sobre a qualidade quanto mais eles estiverem reduzidos a não ser mais do que simples indivíduos. Isso quer dizer que quanto menos distinções qualitativas os indivíduos tiverem entre si, mais individuais (quantitativos) serão. A quantidade não pode fazer mais do que separar os indivíduos, e nunca uni-los.
    CAPÍTULO 7 - A UNIFORMIDADE CONTRA A UNIDADE
    Se considerarmos o conjunto deste domínio de manifestações que é nosso mundo, podemos dizer que, à medida que nos distanciamos da unidade principal, as existências tornam-se cada vez menos qualitativas e cada vez mais qualitativas.
    Na quantidade pura, as "unidades" se distinguem entre si apenas numericamente. Aqui vislumbramos o chamado "princípio dos indiscerníveis", em virtude do qual não podem existir em nenhuma parte dois seres idênticos, isto é, semelhantes sob todos os aspectos.
    A conclusão a que chegamos é que a uniformidade, para ser possível, teria de supor seres desprovidos de todas as qualidades e reduzidos a não mais que simples "unidades numéricas". Todos os esforços humanos modernos no sentido de realizar tal uniformidade não podem ter como resultado senão o despojo mais ou menos completo a todos os seres de suas qualidades próprias.
    Embora seja impossível reduzir os seres à sua quantidade pura, a tentativa de fazê-lo os desproverá cada vez mais de suas qualidades distintas. Por exemplo, se a educação uniforme é incapaz de dar a alguns indivíduos qualidades que não têm, é ao contrário muito provável que asfixie em todos os outros as possibilidades que se destacam do nível comum; é assim que a "nivelação" opera sempre por baixo, nunca por cima. Mas o ocidental moderno não contenta em impor apenas essa educação; ele uniformiza também até o aspecto exterior das coisas, por meio da indústria.
    Ora, dado o desejo moderno de constituir uma ciência completamente quantitativa, é inevitável que as aplicações práticas que daí derivem também conterão o mesmo caráter quantitativo.