15 de fevereiro de 2023

Onde está seu noûs e outras meditações


A concentração é um elemento fundamental para a composição do senso de identidade permanente. Ela é como uma passagem de nível. Uma coisa são os elementos que compõem realmente a sua estrutura, e outra coisa é o seu foco de atenção. O ser humano tem essa capacidade de poder fixar a atenção nele, em qualquer detalhe, por mais insignificante que seja. Quando o sujeito tem uma obsessão ou um vício extremo isso é uma atenção obsessivamente grudada em alguma coisa. A pessoa se fixou em certas sensações corporais e psíquicas que ela quer repetir, repetir, repetir, repetir. Nós podemos estreitar o nosso círculo de atenção até adquirirmos a dimensão espiritual de um tatu-bola. Nós temos essa capacidade. É como aquele filme do Clint Eastwood em que o sujeito se jogou num cacto e daí os amigos dele estavam lá, tirando os espinhos dele, e perguntaram “Por que você fez isso?” Ele disse: “É, na hora me pareceu uma boa ideia”. Então nós podemos fazer qualquer coisa porque lhe parece uma boa ideia no momento, mas quando você vai ver é uma estupidez. Nós podemos estreitar o nosso círculo de atenção até fazer com que certos pontos retornem, retornem, retornem obsessivamente. 

A maior parte dos problemas que nós temos se resolvem pela mudança do quadro geral da nossa vida, e não por alguma coisa que nós tenhamos pensado. Resolver um problema primeiro em pensamento e depois na prática é uma das coisas mais difíceis que existem. Em geral os problemas se resolvem não porque nós tenhamos a solução teórica na cabeça, mas simplesmente porque o quadro da vida mudou e o problema desapareceu. Pensar em problemas é realmente fazer buraco na água. Pensar no problema agrava a situação, mesmo porque se os problemas não piorarem pelo menos você piora. Então nós temos toda essa capacidade de estreitar o nosso circuito de atenção sempre por motivos que são passionais e irracionais completamente. 

Mas a pergunta é: “Por que nós deveríamos fazer isso?” Se nós temos a capacidade de centrar a atenção em certos pontos nós também temos uma capacidade para centrá-la em outros. Então por que não centrar a atenção naquilo que pode realmente render alguma coisa? O que pode mais render na sua vida é você se concentrar no seu senso de identidade permanente porque toda a sua experiência muda de plano no momento em que você faz esta operação, esta torção, do foco de atenção, e você começa a vivenciar o seu eu como entidade supra-corporal, que não está no corpo, apenas tem um corpo, que é um corpo provisório. 

Quando o seu senso de identidade muda e você se coloca no plano de imortalidade, então a realidade do mundo espiritual, do mundo divino, começa a aparecer para você. No instante em que esta consciência que descobriu a sua imortalidade descobre, no mesmo ato, que ela é apenas imortal, e não eterna, que ela de fato não tem um limite, ela estará aberta para todos os tipos de conhecimento, todos os tipos de experiência. Ela pode saber tudo e em princípio até o conjunto das suas experiências, o conjunto total da sua vida, pode ser vislumbrado num relance, como o é de fato nos momentos que antecedem a morte. Ou seja, essa experiência, que muitas pessoas que tiveram em estado de morte clínica, cujos relatos dizem ela ter visto toda a sua vida, você pode ter sem estar em morte clínica alguma. Você nunca vai poder expressar isso, já que transcende a sua capacidade verbal. Aí você já ganhou alguma coisa, aí você ganhou verdadeiramente uma interioridade. Essa interioridade não é comunicável. Ela é exclusivamente sua, é um mundo seu, e é um mundo completo, que abrange todas as suas experiências, todos os seres humanos que você conheceu, todos os episódios da sua vida, e episódios imaginários que você viveu. Tudo isso agora é você, e é impossível não ficar maravilhado com isso, é impossível você não ter uma sensação de júbilo e ao mesmo tempo é impossível você não perceber, por incrível que pareça, a ausência de fundamento interno de tudo isso. É como diz Santo Agostinho: “Eu sei que eu sou, mas eu não sei por que eu sou”. Você percebe claramente que você não é causa sui, percebe que a sua existência é um milagre, e é impossível que você não tenha aí um sentimento de júbilo e de gratidão e de amor pela fonte de onde você surgiu, a fonte que você não conhece, que você também não vê, mas você sabe que ela está lá. Assim como no estado de impermanência, de dispersão, no qual nós vivemos a nossa vida corporal e mental, o eu permanente está sempre lá, ainda que você não pense nele.

Quando você passa para a esfera do eu permanente, o fundamento e a causa dele também não estão visíveis, mas ele está sempre lá. E aí é possível você começar, como dizia Platão, uma segunda navegação. Mas é a alma imortal autoconsciente que fará isto. Dizer que a alma terrestre está buscando Deus é muita presunção. Só a alma imortal procura Deus. A alma mortal procura a alma imortal. Então, em primeiro lugar, você precisa buscar você mesmo. Por isso existe a famosa regra “conhece-te a ti mesmo e conhecerás a Deus”. Conhecerás a Deus depois, claro. A maior parte da conversas religiosas que circulam por aí são fúteis, porque só quem entende disso é a alma imortal. A alma mortal não sabe do que está falando.

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A concepção geral dos livros da Nova Era se baseia na concepção de que o cosmos é de natureza kantiana: o mundo é apenas fenômenos, e não a verdadeira realidade. E isso é errado evidentemente porque dentro dessa alma profunda, dentro desse ego profundo e permanente que você tem, existe uma coisa mais essencial ainda, que é a presença de Deus. E nessa você não tem controle. Isso quer dizer que esse eu profundo tem uma certa força criadora sobre o mundo exterior. Ele pode determinar alguma coisa porque esse eu profundo tem mais durabilidade, constância e presença do que qualquer coisa do mundo exterior. O mundo inteiro é constituído todo de átomos e partículas que estão separadas uma da outra, é como se fosse uma partícula aqui e a próxima partícula estaria colocada a 70 metros de distância. O mundo exterior é ainda mais descontinuo do que o nosso pensamento, então aquilo que é mais contínuo tem mais força e determina o curso das coisas. Isso quer dizer que o seu verdadeiro eu é mais real do que o seu corpo, do que sua mente, do que o mundo exterior. Ele é uma força estruturante do cosmos. 

Imagine que isto aqui [mostra algo] seja a nossa mente, e aqui estão nossas experiências picotadas. Por baixo delas tem seu eu profundo, que está ali o tempo todo. Essas experiências todas, sejam físicas ou mentais, você só as percebe, e só pode dar um sentido unificado, porque você tem uma unidade mais profunda, que não está no seu corpo nem na sua mente, mas que os abrange. Você tem aqui as aparências do mundo sensível e aqui embaixo você tem as estruturas atômicas também separadas, e por trás delas você tem um negócio que a física moderna chama de matéria escura ou energia escura, que é inacessível, mas que matematicamente os físicos sabem que tem que estar lá, onde estaria a unidade do mundo físico. Isso quer dizer que nós temos uma estrutura que é parecida com a do mundo físico, onde todas as partículas, todos os fragmentos, estão unificados por um fator permanente. 

Então é só você parar de chamar de "eu" o seu corpo e sua mente, ou seja, suas sensações, seus pensamentos, e você se voltar para aquela vivência mais profunda e permanente que está unificando tudo isso o tempo todo, e começar a chamar isto de "eu", então sua cosmovisão já mudou, você voltou para antiga cosmovisão cristã. Se esse nosso eu profundo tem uma força formadora, plasmadora, criadora sobre o mundo, ela pode afetar o curso das coisas. Então, por exemplo, todas essas formas de cura psíquica que existem no mundo, estão aí [no eu profundo], e não na mente carnal. Se o nosso cérebro pudesse curar a nós mesmos ele não ficaria doente. E os nossos pensamentos? Você vai me dizer que um aglomerado de signos e palavras vai ter um poder sobre mim? Não, não. A cura é a restauração da integridade, e a restauração da integridade só pode provir daquele que tem mais integridade ainda.  

Quando Cristo disse que aquilo que você tiver fé você vai obter de qualquer maneira, Ele está falando da sua alma imortal, não da sua alma carnal. Não é aquilo que você tem fé no estado de vigília ou no estado de sonho que vai virar realidade, mas é aquilo que você tem fé no estado de consciência permanente da sua alma imortal agora. É aquilo que você crê no instante em que você está plenamente alerta para a presença dessa unidade profunda. O que nós chamamos de fé no dia a dia são apenas pensamentos que nós temos aqui e ali, e isso não pode ter poder nenhum sobre a realidade. Jesus Cristo jamais conversou com uma alma carnal. Ele só fala para esta [alma profunda]. Se você não tem a vivência do eu profundo, do eu permanente, que não é separado do corpo e da mente, mas contém e unifica o corpo e a mente, então não adianta você ter fé. A mente não move um palito. É da alma imortal que Cristo diz "vós sois deuses". 

Note bem, essa alma é imortal, mas ela não é eterna. Nós nascemos um dia, e ao mesmo tempo já nascemos com a alma imortal. Mas não é a ela que nós temos acesso desde o início. Primeiro nós experimentamos o mundo exterior, o mundo dos pensamentos, o mundo da cultura etc. E alguém tem que nos avisar que existe uma alma imortal, e que é desta que se trata no fundo. Não só tem que avisar como tem que dar alguma dica de como é que você tem acesso àquilo. Eu estou dando a dica e é a coisa mais simples do mundo. É só você prestar atenção: você tem que penetrar num plano de vivência psíquica que deixa passar as sensações corporais e deixa passar os pensamentos, não ligando para eles ao entender que eles são coisas menores. Na medida que você faz isso sua unidade corporal e psíquica diminui e entra em ação a consciência profunda da sua alma imortal. Então é por isso que você fica como um "cadáver" durante aqueles momentos. Isso não significa que você precisa "entrar em alpha", você não deve entrar em parte alguma. Você tem que ficar exatamente onde você está. Você não precisa "parar os pensamentos", mesmo porque é impossível parar os pensamentos. Você não precisa controlar seus pensamentos, você não precisa controlar seu corpo, você não precisa fazer exercício ascético nenhum. Você não precisa fazer nada disso. É apenas uma questão "onde está o seu eu?" e "onde está seu verdadeiro tesouro?". É uma coisa muito simples, você pode fazer várias vezes por dia, você pode fazer agora mesmo. É apenas uma questão de foco. Onde está você? Quem está falando?

O que passa pela sua mente não sai pela sua boca. Para sair pela sua boca é preciso que o produto da mente vire movimento muscular. E isto o corpo não pode fazer, e a mente também não pode. Portanto, quem age realmente é a alma imortal. Você só não percebe isso porque a cultura não te dá os elementos para isso. Ela lhe dá uma visão falsa do eu e você continua acreditando nela. No fundo todo mundo sabe que as coisas são desse jeito, mas se você não tem a linguagem a coisa não é socialmente legitimada. Então, se não há a percepção da alma imortal, como pode duas almas imortais falarem uma com a outra? O diálogo é uma coisa impossível entre mentes e corpos. 

Quando digo que a cultura moderna separou uma coisa da outra e criou um dualismo insustentável, todo o conhecimento do homem também se fragmentou. Foi parar um pedaço em cada parte. Não deixa de ser uma ironia extraordinária que só quem se interessa por práticas que despertam a consciência da alma imortal sejam camaradas ateus, budistas, nova era etc. e os religiosos não. Eles têm a doutrina certa, evidentemente, a doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas eles não têm o instrumento. Eles exigem que a alma carnal pratique tudo aquilo, mas ela não pode praticar. Os outros têm a técnica certa, mas têm a doutrina errada. Então essas técnicas que circulam por aí abrem o caminho para a alma imortal, mas um caminho totalmente demoníaco, em que a alma imortal vai acreditar na sua própria substancialidade. A alma é imortal sim, mas ela não tem sua própria substância. 

Ora, eu tomo posse da minha alma imortal e descubro que sou uma força cosmológica, ou seja, que eu não sou uma vítima dos acontecimentos, mas eu estou produzindo acontecimentos. Eu tenho a força, então o que eu pedir a Deus, Ele vai me dar. O que você vai pedir? Você vai chegar na sua alma imortal com prioridades e critérios de mente e corpo? É isso que a Nova Era ensina. Se você encontrou o eu profundo então você subiu na escala da dignidade. Você não é mais um bichinho dotado de cultura. Você é realmente uma alma imortal. Ora, se você entra no seu estado angélico levando todas as suas preocupações de mente e corpo, então isso evidentemente não pode dar certo. Isso porque é a alma imortal que tem a visão de Deus, mas também é a alma imortal que a perde. Então as escolhas da alma imortal são uma coisa fundamental. Há uma escolha ainda nesse plano, mas são escolhas que a alma imortal faz em vida porque se você morreu não tem mais escolha, já está feito. A vida terrestre é o plano da escolha, é o tempo da escolha.

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O que individualiza a alma? A resposta mais certa é “eu não sei”. Eu sei que eu reconheço o universo de experiências como “meu”. Eu sou o sujeito agente, eu sei que eu não sou apenas um registro passivo de coisas que acontecem, e eu então me aproprio de certos conhecimentos e os considero “meus”. Isso que me permite dizer que eu tenho uma individualidade. Onde está exatamente o centro e o elemento unificante disso? É o que nós chamamos de eu profundo. Nós não teríamos eu nenhum se não tivéssemos um eu profundo e imortal porque tudo o que eu tomo conhecimento, seja no mundo externo, seja em mim, é fragmento. E se tudo é fragmento, como um fragmento pode unificar outros fragmentos?  Mesmo os elementos mais duráveis da minha experiência psíquica também são fragmentários. Então eu pergunto: de tudo isso que chegou ao meu conhecimento – isso tudo que eu experimentei, senti, pensei, recordei, desejei etc. – onde está esse meu centro? Onde eu digo que isto é eu? Isso não pode estar dado no próprio plano da experiência psíquica, no próprio nível da experiência psíquica, porque ela é toda fragmentária. E se ela é toda fragmentária, então como se explicaria o simples fenômeno da memória? Como eu posso recordar duas coisas que aconteceram para mim em épocas diferentes se entre elas não há conexão e se cada uma das experiências em si foi fragmentária? A própria recordação que eu estou tendo delas agora também é fragmentária.

Nada em mim permite me identificar a mim próprio como uma substância existente a não ser que essa substância realmente exista num plano que não é normalmente acessível à experiência, mas que está presente em toda a experiência. Kant diria que é um transcendental. Ele define como “transcendental” aquilo que está antes da experiência, aquilo que possibilita a experiência, e que só se revela no curso da experiência, mas que não depende dela. Só que eu diria que esse “transcendental” não é tão transcendental assim porque em certos momentos eu posso ter a vivência disso. Essa vivência não é expressa em palavras, ou seja, não posso transformá-la num conteúdo e não posso transformá-la nem mesmo num conteúdo de memória. A minha experiência do meu eu profundo não pode ser “recordada”, entre aspas, porque só pode ser recordado aquilo que se tornou objeto de memória; portanto é recordado somente aquilo que é abrangido pela memória, aquilo que é menor do que a memória, aquilo que está presente dentro dela, enquanto no caso do eu profundo a memória inteira está dentro dele. Portanto a experiência do eu profundo não pode ser recordada, ela só pode ser repetida.

Uma vez que você tem essa experiência, você não vai se recordar dos conteúdos dela. Você vai repetir a mesma experiência. E ela será sempre a mesma; eu só encontro uma imagem para designá-la. Ela é como se fosse uma melodia eterna que está tocando dentro de você, uma espécie de massa de sentimentos que prossegue inabalavelmente a mesma, e sobra sempre a figura de júbilo e de poder. Você percebe que você tem um poder sobre todos os conteúdos da sua consciência e o poder que se estende ao próprio mundo exterior. Você tem o poder de fazer acontecer coisas. Esta experiência é tão fundamental e tão impactante que você pode chegar uma conclusão tipo Nova Era: eu sou a única realidade, o meu eu pensante é o centro de tudo. Mas em seguida você percebe que este eu profundo, que é o que unifica tudo e que existe por assim dizer “acima” do tempo, também não tem em si o fundamento da sua própria existência, porque ele pode perguntar “de onde eu surgi?”, “o que é que me sustenta na existência?”

Deve haver ainda um algo mais profundo do que eu mesmo. A única relação possível que se pode estabelecer com ele é a relação de amor e gratidão sem fim, que é a única que existe. Então é por isso que Paul Claudel dizia que “Deus é aquele que em mim é mais eu do que eu mesmo”. Este é o centro unificante. Deus criou o universo como uma constelação de poderes anímicos, cada um deles praticamente ilimitado, mas eles se limitam uns aos outros e também não se constituem a si mesmos. Hoje eu entendo que esta é a verdadeira estrutura do mundo, ou seja, não é que existe um mundo físico, externo, bonitinho, funcionando por suas próprias leis, e dentro dele existem almas. Não, é o contrário. Existe o universo das almas e dentro dele existe o mundo físico. As relações entre as almas são também regidas por leis, ou seja, essa constelação das almas constitui uma realidade objetiva. Não é que nós vivemos no mundo totalmente subjetivo onde só existe o que se passa na nossa cabeça. Seria assim se cada um de nós fosse a única cabeça. Mas como existem várias [cabeças], existem várias almas pensando, e entre elas existem relações de amor, de participação, de rejeição, de ódio etc. é possível, por exemplo, que uma alma tenha mais força que a outra e a domine. Isso acontece o tempo todo. Ora, é neste plano das almas imortais que se decide salvação ou danação. É neste [plano], e não no [plano] das ações terrestres. Seria inteiramente absurdo que ações terrestres fragmentárias e passageiras fossem elas mesmas o fator decisivo quando elas são apenas a expressão local e aparente do desejo profundo da alma imortal.

Então, depois que eu entendi isso, comecei a ler de uma maneira diferente o Evangelho, entendendo que Cristo está falando para minha alma imortal, não para o meu ser terrestre.  O ser terrestre, sim, existe, mas ele é apenas um pedacinho da alma imortal. Quem toma as decisões fundamentais é a alma imortal.

Por exemplo, somente a alma imortal pode ter fé, porque a parte mortal, terrestre, é toda fragmentária: o que ela pensa num minuto ela esquece no minuto seguinte. Então, o que significaria a fé para um bicho tão impermanente, tão fragmentário? Se não houvesse uma unidade profunda do ser humano, a palavra “fé” não faria o menor sentido. E o que é a fé? A fé é a confiança em Nosso Senhor Jesus Cristo, não como um poder externo, mas como um poder que me constitui desde dentro e sobre o qual eu não tenho alcance. Ele [o Cristo] me constitui como força independente capaz de dizer “eu”, de escolher, de agir, de transformar o mundo exterior, de agir sobre as outras almas etc., e Ele permanece dentro de mim como o segredo de tudo isso, mas ao mesmo tempo também está nas outras almas. Ora, quando Santo Agostinho diz “a verdade está no interior do homem”, eu digo “interior onde?” Interior do corpo? Não é possível. Se a verdade estivesse no interior do meu corpo ela se desfaria quando o meu corpo se desfaz. Então, por exemplo, 2 + 2 é 4 é uma verdade: como é que isso pode estar no meu interior se por interior entenda corporalidade terrestre. Não faz o menor sentido. Então no dia seguinte que eu morresse 2 + 2 passaria a dar 5, 6, ou o quanto eu quisesse. É no interior do repertório de poderes da alma imortal, como uma dimensão ainda mais profunda, a qual você não tem acesso cognitivo, mas tem acesso mediante o amor. Se a coisa decisiva em nós é a escolha fundamental que a nossa alma imortal faz então os atos terrestres não são tão importantes assim. Eles são importantes como expressões da vontade profunda da alma imortal. Muitas vezes eles [os atos terrestres] expressam o horror que você tem da sua própria alma imortal, ou seja, expressam a autoliquidação da alma imortal. Em outras palavras, você está agindo como se você quisesse matá-la, como se você não aceitasse a existência desse poder autônomo que te foi conferido pelo amor divino, e você não aceita porque você não aguenta, porque é grande demais para você.

Hoje eu entendo que todos os elementos da moralidade devem ser entendidos neste plano, não no mero plano da conduta ao qual o Estado e a legislação civil têm acesso. Então é claro que se a sua alma imortal tem esse poder até de provocar acontecimentos no mundo exterior, de provocar acontecimentos psíquicos em outras pessoas, ela também tem o poder de reformar e melhorar a sua conduta na terra, mas essa capacidade é limitada porque existe a constituição do mundo físico, que não foi você que fez. Portanto aí existe uma espécie de colaboração entre os poderes da alma e os poderes de Deus. Às vezes a alma imortal tropeça nas próprias limitações da sua psique terrestre. Eis aí justamente o pecado original: se a nossa psique terrestre estivesse inteiramente à mercê da nossa alma imortal nós estaríamos no Paraíso terrestre. Mas acontece que dentro da nossa psique terrestre existem elementos que não somos nós, existem elementos que são hereditários, existem elementos que são determinados pela composição química do que você come, existem elementos semânticos que se impregnaram da sociedade toda. Portanto, no nosso ser terrestre só uma parte somos nós, a outra parte é a nossa parte impessoal. Isso se traduz, por exemplo, no fato de que todo mundo tem um nome e um sobrenome: o seu nome individualiza você, mas o seu sobrenome mostra que você é membro da família, ou seja, que você tem uma hereditariedade que remonta até um ponto que você não sabe. Estudar as obras do Lipot Szondi mostra o poder que a herança dos antepassados tem sobre a sua conduta. Isso não é a sua alma imortal, mas é o substrato material da sua existência terrestre, a qual você tem um certo poder sobre isso, mas não muito, e em geral essas dificuldades e contradições da sua psique terrestre te mantêm ocupado o tempo todo e você chama isso de “eu” sem lembrar que tudo isso são elementos soltos que você jamais poderia sequer chamar de “eu” se não existisse por baixo deles um eu mais profundo e permanente.

Eu espero que tudo se torne óbvio sem que eu precise provar. Eu não posso provar nada disso, eu só posso descrever e as pessoas que concluam que é assim mesmo. Então é por isso que uma atenção excessiva aos problemas terrestres só pode te desviar do que é essencial, e esses problemas constituem quase que a totalidade das nossas preocupações no dia a dia e eles constituem a substância do juízo moral que nós fazemos de nós mesmos e dos outros.

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-- A estrutura geral só existe na realidade quando ela é manifestada num caso concreto.

-- Não. A estrutura da realidade existe como possibilidade permanente, e não apenas em casos concretos. O mundo real não se compõe só dos fatos já manifestados, ele se compõe de estruturas repetíveis. O esquema de possibilidades limita a realidade, é a moldura da realidade, portanto ele está na realidade. Não é verdade que as estruturas gerais só existem nos singulares. Elas existem como tais. A forma de existência dessas estruturas gerais é na forma de esquemas de possibilidade ou regras de possibilidade, portanto limites da realidade. Elas existem como limites da realidade, e não como realidades em si mesmas. Dizer que as estruturas gerais só existem nos singulares é o mesmo que dizer que os singulares só existem nas estruturas gerais. Não é assim. Essas duas coisas não são separáveis. Elas são distinguíveis, mas não são separáveis. É por isso que o nominalismo está errado. Nunca podemos aceitar a objeção nominalista que diz que esses conceitos gerais são apenas construções mentais que você fez em cima da realidade porque o que essas construções expressam são limites intransponíveis da realidade. O nominalista faz essa confusão porque ele confunde o modo de existência dos entes com o modo de existência dos limites dos entes. Ele confunde, por assim dizer, o conteúdo material do território com o limite dele. Esse limite é imposto materialmente, então como dizer que isso é apenas uma construção mental? Muito mais reais [do que os limites criados pelo homem] são os limites que existem por si mesmos. Por exemplo, o limite entre duas espécies animais. Faça você o que fizer, as cadelas não vão começar a parir gatos. Então a espécie "cão" não é só um "esquema mental" inventado para agrupar entes, mas é algo que realmente limita as possibilidades do próprio cão. Não é porque nós o chamamos de "cão" que ele não pode agir como gato. Não é porque eu chamo uma cadela de "cadela" que ela não pode parir um gato. Ela não tem essa possibilidade.

Quando nós partimos da narrativa/descrição/nomeação dos entes singulares para a expressão das relações que existem entre eles, nós passamos do mundo do dado, do mundo dos fatos, para o mundo da possibilidade, e portanto da impossibilidade também. Este mundo é às vezes mais duro, mais resistente, que o mundo real. Dentro do mundo real temos uma certa margem de manobra, mas quando entra no pssível e no possível temos limites intrasponíveis. O conceito das espécies não é formado por indução, mas é formado por uma transposição do mundo empírico, da realidade dada, para o mundo da possibilidade. Essa transposição é imediata. Por exemplo, se vamos camnhando por uma rua e tem ali um cachorro deitado. Ele pode continuar deitado, pode levantar e vir abanando o rabo, pode latir, pode morder. Se você percebe o cachorro, mas você não percebe que ele pode fazer todas essas coisas, você não percebeu o cachorro. Perceber que ali há um cachorro é perceber que pode acontecer tudo isso. Perceber um ente é perceber seu círculo de latência, que é o conjunto do que ele pode fazer imediatamente. Perceber um ente é perceber um círculo de latência imediatamente e inseparavelmente dele. Isso não é uma dedução que se faz depois. Uma coisa é ter apenas a sensação visual de cachorro, mas ela não implica a consciência de que ali há um cachorro. É apenas uma estimulação visual. Perceber um cachorro é perceber que ali há um animal que pode se comportar como um cachorro, e não como gato ou como galinha.

Esta faculdade os escolásticos chamavam de estimativa. Ela não é separada da percepção, ela não é um raciocínio. A aparência do bicho está patente, mas há um círculo de latência que percebemos, e ele está dado na nossa própria reação. O nominalista não percebe direito o que se passa na sua consciência no instante em que ele conhece. Como sua autoobservação está prejudicada, o nominalista a substitui por um esquema lógico. Ele passa da realidade para a linguagem. Isso é a grande tentação humana. A serpente convenceu Eva não com fatos, mas com raciocínios. Ela operava apenas dentro do universo da linguagem. A inteligência poderosa é aquela que fica próxima da experiência real, que não foge da complexidade mediante as imposições de automatismos linguísticos ou lógicos. Um aspecto da realidade, através do indivíduo portador de uma inteligência poderosa, se incorpora na linguagem, enquanto nos outros é apenas a linguagem que se repete. Deus opera da realidade para a linguagem, o diabo opera da linguagem para uma nova, e falsa, realidade.

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A pessoa pode dizer "o que vai salvar a sua alma não é o conhecimento que você tem, mas é a prática das virtudes". Ora, só há um caminho para a prática das virtudes, que é a conquista da transparência e a longa e dificultosa transmutação dos seus vícios originários em alguma virtude. É só isso que existe, o resto é fingimento de virtude. Se você cumprir um receituário de virtudes isso não será o caminho para salvar a sua alma; pelo contrário, isso vai tampar a sua alma porque você não sabe o abismo que tem dentro dela. Você está se fazendo de inocente. Você não tem a verdadeira consciência do pecado. Então, a sua conduta exterior, que lhe parece tão bonitinha e pode servir de modelo para os outros, é uma coisa que foi construída em cima de sua verdadeira personalidade para escondê-la. A coisa já é baseada numa mentira.

Se você acha que a instrução religiosa pode te ajudar, ela não pode te ajudar de maneira alguma. Ela só pode servir se você tiver feito esse trabalho primeiro, senão ela não serve para nada. Ela só serve para você virar, como diz na Bíblia, um sepulcro caiado: tem lá um sepulcro, está tudo morto, e você pinta de branco. O conhecimento de Deus passa pelo conhecimento da sua alma, e o conhecimento da sua alma passa por essa transmutação alquímica dos vícios em virtudes, a qual não se pode realizar de maneira alguma, não digo sem extensa cultura, mas sem a busca incessante de uma cultura ilimitada.

Você tem que saber tudo o que você precisa saber para chegar a ter o máximo de transparência na sua alma e poder falar com responsabilidade de quem viveu, de quem observou, de quem refletiu e de quem conhece. A cultura verdadeira só acontece quando o conjunto de elementos adquiridos através de leituras, estudos etc. se transformaram em instrumento de autotransparência, e portanto de transparência com a realidade total. Somente aí existe a cultura. Ler um monte de coisas e esquecer logo em seguida significa não apender nada. Se as leituras que você teve não tiveram um impacto profundo na sua alma então você não aprendeu nada.

Se você não se conhece, o que você vai confessar? As pessoas não sabem confessar seus pecados porque sua memória é confusa, porque faltam os elementos para narrar a si mesmas o que passou dentro delas, ou seja, não tem aquela transparência necessário para chegar a fazer uma confissão nem mesmo perante o próprio Deus.

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Tudo o que você sabe de você mesmo por experiência são elementos que vêm e passam. Todas as suas impressões sensíveis vêm e passam; os seus estados anímicos vêm e passam; e até as sínteses que você tenta fazer da sua biografia também vêm e passam. Porém, se tudo fosse passageiro não haveria o menor fio de unidade entre uma coisa e outra, quer dizer, você só teria estados separados.

A tendência geral da nossa cultura é achar que não existe nada além desses estados, quer dizer, que em cima disso você cria uma ilusão chamada o seu “eu”, recria um arremedo de unidade, como se você fosse um personagem, mas essa tese me parece absolutamente impossível, porque se todos esses estados, e todos esses conhecimentos e ideias, vêm e passam, vocês imaginem a capacidade construtiva e unificante que eu teria que ter para construir um personagem com isto. Às vezes nós não conseguimos sequer juntar duas ideias que nós temos, quer dizer, eu penso uma coisa aqui, penso outra contraditória lá, e você não consegue achar a unidade, quanto mais não seria impossível eu mesmo criar a unidade do meu personagem.

Então eu suponho que é o contrário: existe uma unidade profunda, que não chega a ser expressa, mas que está subentendida em todas essas vivências temporárias. [Essas vivências] se unificam temporalmente graças à continuidade deste eu profundo, cuja origem também desconheço, mas que sem dúvida é precisamente o que eu chamo de “eu”. Me lembrei de uma conferência do Julián Marías, que assisti muito tempo atrás, em que ele se colocou uma pergunta: caso existisse uma imortalidade, e caso eu tenha acesso a ela, o que eu levaria para lá? Ele disse que, sem dúvida, levaria aquilo que faz com que eu seja eu, e dispensaria o resto. Ora, mas o que faz que você seja você não é nenhuma das experiências que você teve, não é a associação de estados, não é a associação de ideias, não é o fluxo de palavras, não é nada: é uma espécie de fio da meada que está por trás de tudo isso, que continua constante, e que permite que você, ao se lembrar do que você era aos três anos, você sinta a mesma unidade pessoal: eu era eu naquele tempo, eu me reconheço, eu me recordo de mim naquela época e sei que era o mesmo que está aqui agora.

É curioso porque todos nós sabemos que existe [o eu permanente], e se não existisse nós não poderíamos sequer contar a nossa história. Nós teríamos que ter uma capacidade construtiva quase divina. Isso sim seria um milagre: eu, só tendo vivências separadas atomísticas, conseguir com a minha força criativa inventar um personagem que se sobreponha a tudo isso. Eu acho isso tão utópico, tão louco. Ou seja, o sujeito primeiro afirma o caráter fragmentário da sua experiência e depois diz que você a unificou. Mas como, se eu só tenho experiências fragmentárias? Como é que eu poderia unificar tudo isso? É absolutamente contraditório e impossível, quer dizer, um pobre bichinho, solto no fluxo de experiências atomísticas, ele por si mesmo inventa uma forma transcendente, uma forma a priori de entendimento, e se unifica a si próprio. Isso não dá para fazer, quer dizer, se eu já não fosse eu mesmo antes da minha experiência eu não poderia ter experiência nenhuma. Então a unidade profunda do eu é a condição de toda a experiência. Esta unidade, para usar um termo kantiano, é transcendental no sentido de que ela é necessária para que você tenha experiência, mas você só toma consciência dela ao refletir retroativamente sobre a experiência. Porém, na hora que você reflete você vê que você está refletindo sobre algo que estava dentro da experiência e que sempre esteve ali e que, de certo modo, é mais real do que todo o fluxo das experiências que vieram e passaram. Então, esse, digamos, “sentimento” do eu profundo é quando você nota que somente isso é real, e somente isso é seu verdadeiro eu, e que todo o resto foram elementos que vieram e passaram – alguns se incorporaram, outros não, outros foram embora pra sempre –, mas aquilo está presente e aquilo é real porque todas as outras experiências ideias etc. são coisas realmente temporárias, são transitórias, são evanescentes, não têm substancialidade alguma. É aí que vem o famoso verso do Apollinaire: les jours s’en vont je demeure (“os dias se vão e eu fico”). Misteriosamente eu fico. Então eu só posso entender que este eu permanente, que é de certo modo anterior e transcendente a toda experiência, é o verdadeiro substrato ontológico da minha pessoa. Se existe algo em mim que mereça o nome de “ser”, de “ente”, é isto. O resto, não. O resto são apenas estados, são qualidades.

Este eu profundo, agora embora você só tome consciência dele no curso da experiência, e depois de muita experiência, você vê que ele está subentendido em toda a experiência, que é ele que articula – não articula racionalmente, mas é ele que, por assim dizer, “colore” com a sua cor pessoal todo o campo da sua experiência.

Note bem: quando você se refere a uma outra pessoa é a isso que você está se referindo; quando você fala com uma pessoa é com este eu profundo dela que você está falando; você está falando com aquilo nela que você acha que tem unidade e tem permanência, você não está falando com o estado passageiro dela. Vamos supor que eu estou falando com uma pessoa e eu tenho certeza que aquilo com quem eu estou falando é apenas um estado passageiro que ela vai vivenciar e desaparecer em seguida, eu não posso conversar com a pessoa porque seria como conversar com uma sombra, como uma impressão lançada na parede por uma lanterna mágica, como conversar com um fantasma. Seria uma coisa horrorosa. Então nós não apenas temos esse sentimento da nossa permanência interna, mas nós sabemos que as pessoas com quem nós conversamos também o têm, e são esses eus profundos que se comunicam na verdade. Porém o eu profundo não tem instrumentos de comunicação próprios porque todos os instrumentos de comunicação foram recebidos do meio externo, da linguagem, do aprendizado etc. Então sempre tem uma certa defasagem, mas a confiança de um eu profundo na existência do outro é a base de toda a convivência humana, quer dizer, você só pode se dirigir a uma pessoa como ser humano se você admite que ela tem esta unidade, que ela existe efetivamente, que ela não é somente uma impressão passageira sua e muito menos dela própria. Se eu for achar que a pessoa é apenas uma impressão passageira eu também seria uma impressão passageira e evidentemente todo diálogo se torna impossível. Dizem que René Descartes às vezes olhava pela janela e via as pessoas andando e ele disse “que prova eu tenho de que essas pessoas têm alguma existência interior, que não são apenas máquinas que estão se movendo?” Esse é um estado evidentemente patológico.

Esta consciência desse eu permanente pode ser reativada diariamente. Você pode sempre se lembrar de quem você é verdadeiramente. É quando você se coloca nesta posição que aí você pode falar com Deus, você pode orar, porque aí você é uma alma verdadeira que está se dirigindo ao Espírito eterno. Então você tem que ter alguma substancialidade para você falar com Deus.

Por outro lado isto nos mostra que se fomos criados neste sentido como almas Imortais então não existe a famosa “identidade suprema” de que fala o Hinduísmo, que diz que você vai se desfazer, se diluir, no mar da divindade. Se você pudesse ser diluído no mar da divindade você deveria ser uma impressão passageira também para o próprio Deus, que vai integrar você nEle e te esquecer. Mas se é para Ele te esquecer, se é para você ser apenas como se fosse uma cristalização, um cristal que aparece na superfície da água e depois se dissolve na água – que é uma imagem que é muito usada por esses místicos orientais –, Deus não te constituiria como alma imortal. Então é importante entender que Deus tem um amor pessoal por esta forma que ele criou, por este eu imortal, e Ele quer te preservar como tal, ao mesmo tempo você nesse estado reconhece que você não tem substância além do amor divino, mas que o amor divino pressupõe ao mesmo tempo essa dualidade eterna, essa diferença eterna, entre criatura e criador. Ao mesmo tempo a criatura sabe que ela não tem consistência ontológica própria, embora ela tenha uma identidade ontológica própria, mas não uma consistência, não uma substância. Nós somos obra do amor divino, mas é uma obra que veio para ficar. Não foi para ser diluída. Você não vai cair na inexistência. Deste ponto de vista nós podemos dizer que a doutrina hindu está errada, está flagrantemente errada; é um erro que se consagrou há milênios e ficar buscando a identidade suprema é como fazer buraco na água. Alguns místicos do sufismo, o próprio Ibn Arabi, o grande codificador da teoria da unidade, ele mesmo reconhece que esta dualidade [entre criador e criatura] é eterna, que é marcada por uma relação de amor e não de absorção no sentido ontológico. Nós não fomos feitos apenas como uma forma para ser dissolvida, senão nós seríamos como um capricho de Deus, que nos fez para durar um tempinho e desaparecer. De fato não é assim.

Porém, para entender isso é preciso que você se coloque do ponto de vista do sentimento do eu profundo, que acompanha você desde que você nasceu e que permanece idêntico a si mesmo como uma melodia sem fim ao longo de todas as experiências que você vai vivendo. Essa tomada de consciência é uma coisa maravilhosa, não há coisa mais importante na vida do que isso. Você pode refazer o seu processo histórico tendo esta consciência da sua unidade profunda, que no caso do outro [outra pessoa] você não tem o sentimento da identidade. Você sabe que ele tem essa identidade. Como você chega a captar algo disso? Pelo amor que você tem pela pessoa, tanto as pessoas que te rodeiam quanto os filósofos que você está lendo. Se somos constituídos pelo amor divino, então é somente o amor ao próximo que nos dá a verdadeira dimensão do que que o outro é. Fora disso não tem como você compreendê-lo.

* * *

Hoje, quando você fala que “Deus criou o mundo”, isso evoca imediatamente a ideia do design inteligente, que Deus fez um projeto constituído de um conjunto de leis cósmicas que determina as formas e propriedades de cada ente. Acontece que a doutrina católica diz que Deus criou o mundo do nada. Ora, de que substância Ele pode ter preenchido este mundo senão dEle mesmo? Isso quer dizer que Deus não cria coisas no sentido de manipular alguma matéria e lhes dar uma forma. Ele infunde a Sua própria forma. Criando a criatura Deus não age sobre ela como uma força externa. Ele a constitui de Si próprio.

Para ler o capítulo I do livro III da Suma Contra os Gentios, é preciso colocar-nos mentalmente no nível de abstração e universalidade requerido pelo assunto. Santo Tomás aí trata da origem primeira de tudo o que existe. Não se trata, portanto, de imaginar uma “força” que aja de algum modo sobre as “coisas”, pois isso não só pressupõe a existência de “coisas”, mas define o agente de modo errôneo por uma noção transitiva, a de “força”, quando é claro que a ideia mesma de movimento transitivo exige algo em direção ao qual se transita. Mas Deus não tinha direção a que transitar. Trata-se, isso sim, de compreender que se existência é o estado daquilo que existe, então ela própria não pode existir nesse sentido, pois então se reduziria a um existente entre outros. Também não se pode compreender a existência como soma ou conjunto daquilo que existe, pois nesse caso ela não teria nenhum atributo próprio senão aqueles que estão nos existentes ou aqueles que resultam das relações entre eles e, portanto, ela nada seria por si mesma.

Para apreender a noção de existência você tem de fazer um esforço de imaginação para conceber a total inexistência do que quer que seja. Se nós falamos de criação, então nada existia. Então vamos suprimir tudo. Suprimo o cosmos, suprimo a história, suprimo todos os mentes reais ou irreais, suprimo até mesmo a consciência humana – a começar pela sua própria – e tente conceber o que sobra. É o nada? Sim, certamente é o nada. Se você suprimiu tudo o que existe, sobra o quê? O nada. Mas não pode ser o nada absoluto porque sabemos que alguma coisa de fato existe, e se algo existe é porque é possível. Excluindo todos os existentes sobra um “nada”, mas um “nada” cheio de possibilidades. Se você excluir até mesmo essas possibilidades você terá declarado que tudo é impossível, mas você sabe que algo é possível, pois algo aconteceu. O “nada” que sobra quando suprimimos todos os existentes não é pois propriamente um “nada”,  mas um feixe de possibilidades. Quais possibilidades? Todas as que se realizaram e todas as que ainda podem se realizar. Isso é o que chamamos “existência”: a possibilidade de que os existentes existam. A possibilidade dos existentes não existe como eles existem: existe independentemente deles. Se a possibilidade fosse coexistente com os entes, todos eles teriam que existir ao mesmo tempo, e nós sabemos que não é assim. A possibilidade não depende dos existentes, os existentes é que dependem dela. Mais ainda: a possibilidade transcende infinitamente os existentes, pois abrange também todas as relações possíveis entre eles. O conjunto das relações possíveis entre os existentes não pode ser deduzido da soma dos atributos de todos eles, pois há possibilidades acidentais que não derivam desses atributos. Ou seja, a possibilidade abrange não somente todos os entes possíveis, mas todas as possíveis relações entre eles, inclusive relações acidentais que não decorrem da natureza nem dos atributos deles. Para cada conjunto de atributos de um ente há em volta um conjunto imensamente maior de acidentes possíveis, e estes, se são possíveis, fazem parte da possibilidade e estão contidos naquele “nada” que você encontrou suprimido mentalmente a totalidade do que existe. A palavra “possibilidade” é usada hoje em dia apenas como medida de uma conjectura que fazemos sobre este ou aquele ente, sobre este ou aquele conjunto de entes, ou sobre este ou aquele fato. Mas uma coisa é a possibilidade considerada ao nível dos entes, isto é, tomando-se entes já existentes. Por exemplo, é possível um burro voar? Você está subentendendo que existe burro, que existe voo, portanto que existente atmosfera, que existe espaço etc. Você está usando a possibilidade no sentido de uma medida da sua conjectura. Mas uma coisa é a possibilidade considerada no nível dos entes, outra é a possibilidade considerada em si mesma, acima e antes da existência de qualquer ente. No primeiro sentido, a possibilidade é uma relação entre entes, no segundo é a constituição desses entes como essências.

A palavra “essência” designa o que um ente é independentemente de ele existir ou não. Portanto já se entende que na possibilidade estavam contidas todas as essências, não os entes existentes, que só passaram a estar lá depois de existir. O que é a essência? É a forma da sua possibilidade. O que é a essência de um gato? É o que o gato será se ele existir. O que é a essência de um dragão verde com bolinhas cor-de-rosa? É o que ele será quando existir, se existir. Como cada ente existente é alguma coisa, isto é, tem alguma essência, e como tudo aquilo que existe é necessariamente possível, é forçoso concluir que no plano da possibilidade pré-existente todas as existências já eram o que viriam a tornar-se na existência real. Ora, entre as essências existem as relações lógicas e incontornáveis, independentes e prévias à existência dos entes que as manifestam. Os entes matemáticos ilustram isso de uma maneira esplêndida. Antes que existisse qualquer objeto esférico os pontos da superfície da esfera já eram equidistantes do seu centro. Antes de existir um quadrado já era forçoso que cortado pela diagonal o futuro quadrado resultasse em dois triângulos isósceles. Portanto, se todas as essências já estavam presentes na possibilidade total antes que qualquer ente a elas correspondente viesse à existência, temos de admitir também que todas as relações lógicas entre todas as essências possíveis já estavam contidas na possibilidade total. Mas entre os entes há relações que, sem ser ilógicas, são alheias à lógica no sentido de que não podem ser deduzidos das essências: são relações acidentais. Se essas relações não estivessem contidas na possibilidade total seriam impossíveis e, portanto, jamais apareceriam na existência. Como aparecem é necessário concluir que elas estavam lá.

Como todas essas essências e todas essas possibilidades – sob que forma, sob que modalidade – estavam presentes na possibilidade total? Estariam lá de maneira confusa e mesclada, só se distinguindo ao longo do processo da existenciação, ou seja, as possibilidades eram todas confusas e no momento que elas existiram elas se distinguiram? Isso seria o mesmo que dizer que no curso de sua vinda à existência essas essências realizaram uma possibilidade que não estava na possibilidade total, ou seja, realizaram uma possibilidade impossível. Ora, é claro que não é possível essa hipótese. As essências e suas relações, inclusive acidentais, estão todas presentes na possibilidade total e estão lá em modo perfeitamente ordenado e límpido – inclusive as relações acidentais, que não estão mescladas e confusas. O que você encontrou ao suprimir todos os existentes começa a se parecer cada vez menos com um “nada”. Ele é antes a ordem prévia a todas as possibilidades manifestadas no curso da existência. Pergunte-se agora se a possibilidade universal pode ser concebida apenas como um sistema teórico e hipotético, passivo e inerme, de equações e relações lógicas quaisquer, sem nenhuma existência em si mesma. A resposta clara é: se a possibilidade total não existe então não existe possibilidade nenhuma. A possibilidade universal não existe portanto como possibilidade no sentido fraco da palavra, como quando dizemos que um jogo de xadrez tem a possibilidade de terminar com a vitória das negras ou das brancas. Ao contrário, contendo em si todas as possibilidades de existência ela abrange e contém a existência, toda a existência. A existência deriva da possibilidade e não esta daquela. Contendo em si a existência ela nem pode ser inexistente nem pode existir como os entes. Ela tem uma modalidade especial de existência. Como dizem os escolásticos, ela existe de modo eminente. Ela existe mais do que a totalidade dos existentes, contendo em si a existência na sua totalidade bem como a inexistência que limita a existência, ela é a existência da existência.

Então, por favor, não conceba Deus como um Ser Supremo. Isso é figura de linguagem. Deus é a existência da existência, a própria possibilidade da existência, portanto a existência é um aspecto da possibilidade. A possibilidade enxerta a existência na existência. E de onde vem essa existência? Dela própria.

* * *

Nós sabemos que nós temos um eu porque Deus tem um eu e Ele infundiu em nós. Deus, quando cria o ser humano, cria o corpo dele por um meio e com uma matéria e sua autoconsciência por outro meio e outra matéria. O corpo ele cria com o “barro”, e a autoconsciência com seu “sopro”. As pessoas acham que o sopro é a vida, no sentido biológico. Não poder ser porque antes de criar o homem Deus já havia criado os pássaros, os mamíferos, os répteis, os peixes etc. e todos tinham vida. Então não é possível que ao criar Adão ele não tivesse vida animal alguma. O sopro é algo mais do que a vida animal. Deus sopra Seu espírito.

Isso quer dizer que nossa compreensão de nossa própria autoconsciência nós só temos graças a um influxo divino, graças à ação do Espírito Santo em nós, senão nós não teríamos de jeito nenhum. Os animais não têm isso. Você nunca vai ver um animal se recordando da sua vida e se arrependendo do seus erros, nem lamentando o mal que aconteceu. Os animais têm alguma consciência, mas não autoconsciência no sentido humano, de se enxergar como uma substância vivente que persiste ao longo do tempo e que é autor das suas ações e é responsável por ela, que é a base de toda moralidade possível.

Hume demonstrou por A mais B, de maneira definitiva, que não temos experiência do nosso eu, no entanto nós sabemos que ele existe porque se não existisse eu não poderia nem estar dizendo isto aqui. Nós sabemos que em nós mesmos existe algo inacessível à experiência e é este algo inacessível à experiência que nos permite ter experiência e compreendê-la.

Ora, a prece é justamente uma aproximação a este núcleo da autoconsciência. Na prece você busca a raiz da autoconsciência no espírito divino. Como você faz isso? Você não pode sair para fora da sua autoconsciência, portanto você não vai poder ver a origem da autoconsciência como uma “coisa”, uma entidade separada. Esta origem é algo que te envolve, te abarca e te contém de algum modo, e você não pode ter acesso a essa origem saindo para fora de si mesmo. Se você sair você apaga a autoconsciência tornando impossível saber a raiz dela. Portanto, o modo da autoconsciência sondar sua própria raiz é através da participação e intensificação. Esta intensificação é a operação dificílima que a prece possibilita. Enquanto você está repetindo as palavras da prece algo se passa na sua consciência, e esse algo que se passa é uma espécie de “retorno” da autoconsciência à sua origem. Origem que não é conhecida como “coisa”, mas é conhecida como participação e intensificação. É próprio da autoconsciência ser sempre mais consciência. A busca da raiz da consciência no Espírito divino se dá através da intensificação dessa consciência. Como você percebe que isso está funcionando? Você vai tendo intuições cada vez mais claras de milhões de coisas. Você vai ficando mais inteligente não no sentido operacional – inteligência verbal, inteligência matemática etc. –, mas no sentido de que você tem mais arraigamento na realidade. Realidade – isso está bastante demonstrado na obra do Xavier Zubiri – é uma coisa que só existe para o ser humano. Quando faz calor, o bicho sente calor evidentemente, mas ele não sabe que o calor é quente em si mesmo. Ele não tem essa ideia. Existe o ser, e o ser tem as suas características próprias e independentes de nós. Esta é a dimensão de realidade. É o Espírito Santo que permite o arraigamento da nossa consciência na realidade, um arraigamento cada vez mais intenso, cada vez mais profundo, cada vez mais claro. É o Espírito que permite também, na medida que você tem esse arraigamento, você não está conhecendo só a realidade, mas aí você está conhecendo também a si mesmo, no sentido de conhecer o que é a sua autoconsciência, você saber que ela é um milagre, você saber que você só tem um eu porque Deus te emprestou o eu dEle e que através da participação na autoconsciência divina – que é uma participação ínfima, infinitesimal – você consegue algo que nenhum outro animal consegue. Sem esta autoconsciência como seria possível, por exemplo, o arrependimento dos pecados? Não dá, você não conseguiria nem ter uma autoconsciência biográfica, você não poderia ver a sua vida como uma narrativa ao longo do tempo. Ela seria apenas uma sequência de episódios inconexos, que você nem sabe se se passaram com o mesmo personagem, ou dois, ou três, ou quatro, ou vinte. Mas é esta percepção da unidade transcendente da nossa persoalidade é o que você obtém através da prece, através da intensificação da experiência da autoconsciência. A autoconsciência não pode se intensificar a si mesma, por nenhum esforço. Para fazer isso seria preciso que ela fosse uma entidade independente. Onde nós temos independência é na operação de nossas funções cognitivas normais – memória, razão, imaginação etc. –, mas quanto à consciência de realidade não há nada no ser humano, nenhuma função biológica, que explique consciência de realidade.

Você pode tomar todas as funções cerebrais humanas e você verá que elas seriam exatamente a mesma se todos os pensamentos dela e todas as percepções fossem fictícias. Por exemplo, quando você hipnotiza uma pessoa o cérebro dela continua funcionando igualzinho, mas só a consciência que não unifica.

* * *

Diz Jean Daujat: 

“Como a Física é essencialmente ciência do mundo sensível e ciência dos fatos e como ela repousa inteira sobre a observação e a experiência – como ela não estuda senão os fenômenos sensíveis e observáveis – as pessoas são geralmente levadas a crer que o objeto que ela busca e que ela consegue conhecer intelectualmente é o mundo sensível: são os corpos, os fatos, os fenômenos sensíveis. Um pouco de atenção refletida logo mostra que não é nada disso, que a Física como toda ciência humana conhece não um objeto real e sensível, mas um objeto inteligível, que não tem a realidade senão no espírito que conhece, um objeto que não pertence ao mundo sensível, mas ao mundo das abstrações, um objeto que não é um ser individual como todas as coisas sensíveis reais, mas uma essência universal. ‘O geômetra nos falará de linhas absolutamente retas, de planos perfeitos, de curvas sem erros; o físico de corpos absolutamente rígidos e/ou absolutamente elásticos, ou ainda de gases perfeitos; o químico nos falará de corpos perfeitamente puros etc.’, afirma Hélène Metzger no livro Les concepts scientifiques. ‘É a abstração que fornece as noções de número, de linha, de superfície, de ângulo, de massa, de força, de pressão’, escreve Pierre Duhem em La théorie physique. Massa, força, pressão, sólido indeformável, gás perfeito, corpo puro do químico, outros tantos objetos inteligíveis não são nem coisas nem fatos sensíveis. O físico está sempre à busca de uma noção abstrata”.

Ele [Daujat] tem toda a razão, mas se fosse só esse o problema não seria um grande problema porque todo o conhecimento humano é obtido através da abstração. O problema é a separação entre os dois tipos de abstração: (1) uma é a abstração que capta a forma inteligível de um ente concreto e o nomeia segundo a sua espécie da qual ele, na sua diferenciação individual, não é senão uma manifestação possível inteiramente compatível com a essência geral da espécie – portanto aí você tem uma subida do nível da abstração sem separação do mundo concreto; (2) mas quando nós tomamos uma qualidade que não existe em si mesma e, além de separamos a qualidade, só estudamos os aspectos dela que são matematizáveis e mesmo assim não todos os aspectos matematizáveis, mas só aquele que o cientista quer observar em particular. Aí você fugiu completamente do mundo concreto e o que você vai obter no fim é um esquema de limites que descreve o comportamento de certas propriedades consideradas sob determinados ângulos. A soma desses ângulos não vai recompor nenhum universo e muito menos um objeto concreto qualquer que seja porque no objeto concreto a primeira coisa que o primeiro tipo de abstração nos dá é uma diferença que tem que ser pressuposta em todo o conhecimento científico e que nenhum conhecimento científico pode justificar, que é a diferença entre essência e existência.

Quando nós chamamos um gato de “gato” nós estamos entendendo que a essência é gato, mas nós estamos captando essa essência na existência, no gato efetivamente existente. Isso é uma coisa que só o ser humano pode fazer. Os animais não podem. O ser humano pode captar o universal no individual concreto. Ora, captar o universal em si mesmo qualquer computador faz: você coloca lá o conceito universal e ele tira um monte de deduções. Mas nenhum computador pode distinguir entre o conceito geral de uma espécie e a existência ou não do ente que a manifesta. Isso somente o ser humano pode fazer. Isso é de fato a capacidade intelectual mais alta. As outras capacidades todas são idealmente mecanizáveis e o ideal

mesmo da ciência é reduzir-se inteiramente a observações mecanizáveis, sem participação humana. Quanto mais observações e mensurações possam ser feitas por máquinas sem a participação e interferência direta humana tanto mais o praticante da ciência respectiva diz que ela está evoluída. E essas observações e medições, por mais exatas que sejam, estão a léguas de distância da distinção fundamental que é de essência e existência.

Isso quer dizer que somente a capacidade racional de um ser humano concreto, existente, de carne e osso, vivo, pode operar essa junção e validar o conhecimento científico em face do mundo real. E isso é precisamente a ocupação da filosofia. Ora, formar uma pessoa para exercer esta função é completamente diferente de formá-la para exercer uma ciência. Para exercer uma ciência existe uma outra diferença importante: um cientista não precisa acreditar no que a ciência dele está dizendo. Ele pode até encarar tudo aquilo como um jogo que não fará a mais mínima diferença na prática. Ele não pode acreditar precisamente porque acreditar é dizer que alguma coisa é real, é verdadeira. Uai, a ciência não tem nada a ver com o real e o verdadeiro, tem apenas a ver com o exato. Então quer dizer que a veracidade das conclusões científicas está na sua exatidão e na sua coincidência com certas observações muito particulares e muito limitadas, operadas não só em cima de qualidade separadas, mas de aspectos dessas qualidades. Veja que em última análise se trata de uma certeza de ordem meramente formal cujo vínculo com a realidade é muito remoto e que portanto não pode implicar uma crença, ou seja, uma crença de que as coisas são realmente assim.

O cientista pode, na melhor das hipóteses, dizer que observado sob certo aspecto, sob certo ângulo, com tal e qual critério, com estas limitações, tal coisa parece verdadeira. Isso é o máximo que a ciência pode dizer. Isso quer dizer que o tipo de responsabilidade intelectual que se exige de um cientista é o contrário do que se exige de nós, filósofos. Ele tem que ser apenas idôneo nas suas observações e cálculos. Ele não precisa saber qual é o nível de veracidade daquilo que ele está dizendo portanto não precisa saber qual é o nível de credibilidade. Todo o critério de credibilidade científica vem do consenso, de uma classe.

* * *

Quando Santo Tomás de Aquino diz que a amizade consiste em querer as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas ele está falando de uma unidade de propósito, de uma unidade de meta na vida. Ora, qualquer pessoa cuja meta na vida seja de ordem exclusivamente material, econômico, social, não serve para você. Você deve sumariamente se afastar dessas pessoas porque existe uma série de coisas na vida que, embora sejam necessárias para nós, pelo simples fato de serem necessárias não podem ser metas. Por exemplo, você precisa de uma casa, comer, beber, descansar, casar e ter filho, emprego, tudo isso são coisas necessárias à subsistência. Ora, aquilo que é necessário à subsistência não pode ser ao mesmo tempo objetivo da existência. O objetivo tem que estar muito acima de tudo isso. Todas essas coisas, todos esses elementos, vêm a nós como coisas que ora nos ajudam, ora nos atrapalham. Mas a partir do momento que o indivíduo as colocou como meta da existência ele já cortou toda a ligação que possa haver entre ele e o sentido da existência.

O ser humano é o bicho que tem a capacidade de perceber o universal no particular. A missão dele, a função dele, está determinada por isto. O homem é o animal criado para descobrir o que está além dele, o que está além do mundo sensível, e para realizar o seu destino nesta esfera. Ninguém tem o direito de não querer isso. Se o sujeito diz que quer ser um escritor, um poeta, um pintor etc., ainda que o nome do que está dizendo seja uma coisa socialmente relevante, mesmo aí ela está na esfera puramente material.

Se a pessoa sente em si o borbulhar do gênio – não quer dizer que ela vai ser um grande pintor etc. – ela vai descobrir que está voltada para o mistério da existência. Ela quer saber o que está para lá. Se a pessoa não tem isso sumariamente afaste-se dela. Trate-as evidentemente com respeito e deferência, mas com a distância devida, porque ela está abaixo daquilo que é estruturalmente exigido do ser humano.

O sujeito pode ter nascido na maior pindaíba, mas está focado no objetivo mais alto da existência, enquanto outro pode ter nascido em berço de ouro e ser um pateta que está voltado somente para o estômago, para o sexo, para essas besteiras.

Pense assim: se uma coisa é necessária à sua subsistência ela é um meio de subsistência. Se ela é meio então não pode ser objetivo. O objetivo tem que ser necessariamente aquilo que não é meio, mas aquilo que é a justificação, a finalidade, e não tem que servir para nada.  

Ora, se o homem é o único ser capaz de apreender o universal no singular, e não há nenhum outro ser ao qual nós podemos olhar em torno para que nós possamos nos medir por ele, então significa o seguinte: a percepção humana tem uma validade universal em si. Ela é de fato a medida de todas as coisas. Isso já está onde no livro do Gênesis: o ser humano é colocado no centro da realidade. O Jardim do Éden está colocado no centro do mundo. Justamente nisto que a percepção humana reflete a imagem divina. Este é de fato o eixo de construção do universo. A percepção que o ser humano tem das coisas não é nivelável à percepção que os animais têm. A nossa [percepção] dá a medida da percepção deles. Nós podemos entender como um urso percebe, ou como uma formiga percebe, ou como um coelho percebe. Eles não podem saber como nós percebemos e não podem sequer se compreender uns aos outros. O conjunto das espécies animais só se unifica cognitivamente no ser humano. O ser humano percebe como ele próprio e ele consegue recriar os mundos subjetivos percebidos por essas várias criaturas e articular numa totalidade coerente. Diga-me que outro animal você conhece, ou outro ser qualquer, é capaz de captar o universal no singular. Nem mesmo os anjos. Nós temos que ter respeito pela percepção humana porque ela é de fato a medida do real no universo objetivo.

Veja se dentro do sujeito tem aquela chama que o eleva acima do mundo social vulgar, se ele tem aquele chamado de Deus para as coisas mais altas. Se não tem, afaste-se dessa pessoa, ela não vale nada. Se existe um princípio que justifica uma separação hierárquica entre os seres humanos é esse. Não é uma separação social, econômica, racial, porque tudo isso é materialismo. Hierarquizar a pessoa pelo dinheiro que ela tem no bolso ou porque é preto ou porque é branco: isso é tudo materialismo, isso é coisa de cachorro, não é um critério humano, é um critério canino. Não aceite nada disso, mas julgue as pessoas pelo critério da chama do espírito. Se a pessoa não tem foi ela que se pôs abaixo. Foi ela que não quis atender ao apelo de Deus, foi ela que negou a vocação humana.

Ocupe o posto de dignidade intelectual e espiritual que lhe foi dado pelo próprio Deus. Não hesite em manifestar claramente a sua desaprovação à conduta das pessoas [que negam a chama do espírito]. Da altura que a pessoa está ela não tem nada que julgar o que você está fazendo. Para você o anormal é ela porque o ser humano foi feito para ser como você é. Você está seguindo o que Deus mandou. Deus fez de você uma criatura espiritual e portanto você é capacitado a fazer as perguntas mais altas e esperar encontrar respostas. A pessoa está agindo como um animal e é ela que está querendo te julgar? É verdade que aqueles que atendem o chamamento de uma coisa superior acabam arriscando mais do que os outros, mas de qualquer modo eles têm este mérito Inicial porque quando uma pessoa que atende a vocação espiritual erra e entra no caminho do mal ela faz muito mal. Não é como um idiota medíocre qualquer que só consegue fazer o mal em quantidade limitada, mas esse é o risco que nós temos que correr.

 Fonte: Olavo de Carvalho, aulas do Seminário de Filosofia.

13 de fevereiro de 2023

Alquimia


O filósofo suíço Titus Burckhardt, conhecido no meio perenialista por suas obras de estilo claro e conciso, escreveu em 1960 um livro sobre alquimia que rapidamente se tornou referência entre os estudiosos de religiões comparadas e do público em geral. O objetivo aqui não é apresentar os detalhes da obra, os quais o leitor faz bem em consultar diretamente a fonte, mas fornecer um panorama geral do que o autor entende ser a essência da alquimia.

Alquimia não tem a ver exatamente com transformar metais comuns em ouro, nem com a ideia de que a alquimia teria sido uma precursora da química moderna. Embora ambas as posturas de fato existiam de certa maneira no meio alquímico, Burckhardt as denuncia como fruto do preconceito moderno contra as antigas artes esotéricas, cujo objetivo se encontra mais além dos fins meramente utilitários e imediatos que a modernidade pressupõe.

De início, a título introdutório, Burckhardt salienta o fato de que o espírito humano, ao afastar-se da multiplicidade das coisas do mundo e ao mesmo tempo ao aproximar-se da unidade indistinta, ganha uma nova “visão” que não poderia ser detalhada e analisada tal como a visão que temos deste mundo. No entanto, este mundo passa a ser-lhe transparente, e o que deixa transparecer é o brilho dos arquétipos eternos, ou, caso a visão ainda não tenha se estabelecido por completo, deixa entrever ao menos os símbolos neste mundo que despertarão a “memória” ou a “intuição” desses arquétipos. Eis o que Burckhardt chama de “contemplação hermética da natureza”. Portanto, a despeito de ser uma visão vertical exata dos arquétipos, será necessariamente uma visão horizontal inexata do cosmo.

Ora, se os arquétipos “reúnem” a multiplicidade do mundo, ademais das possibilidades de manifestação que lhes são próprios, é justo que nos perguntemos o que causa essa multiplicidade. Trata-se, claro, da matéria, pois é ela o elemento passivo e receptivo de toda manifestação. No entanto, e aqui está um elemento importante para entender os processos alquímicos, a “matéria psíquica” também se comporta assim, ou seja, ela é similarmente o polo passivo e receptivo da alma.  Por outro lado, o polo essencial, formal, da alma é o espírito. Quando o espírito se projeta sobre uma matéria psíquica, imprime nela a “forma pessoal” da alma e, assim, constitui o ser pessoal. Assim como a luz de um ambiente se projeta em todos os lados, mas ao atingir uma superfície qualquer o raio de luz se reflete de acordo com as características dessa superfície, assim também o espírito ganha certa "pessoalidade" ao projetar-se sobre uma matéria psíquica. Assim, não é descabido nos referirmos a esse “espírito refletido” como o espírito pessoal do ser individual em questão.

Para que a alma se livre de suas turbações é preciso que alma e espírito se livrem de seus vínculos toscos e superficiais. É como se ambos se divorciassem para se casarem novamente depois. Tipicamente, a matéria amorfa se põe ao fogo, derrete, purifica e, finalmente, concreta-se em um cristal perfeito. Aqui entra uma curiosa associação entre a alquimia e a astrologia, já que ambas derivam do mesmo legado hermético, assim como a Terra e o Céu se relacionam entre si. Enquanto o astrólogo indica o significado do zodíaco e os planetas, o alquimista indica o significado dos elementos e os metais. Os doze signos do zodíaco são uma imagem simplificada dos arquétipos que, de forma imutável, contém o espírito. Por outro lado, os elementos fogo, ar, água e terra mostram materialmente as diferenças fundamentais da materia prima (cabe não confundir materia prima, conforme entendido pelos escolásticos e pelos adeptos do perenialismo, com a matéria-prima da indústria moderna; cf. RenéGuénon). Observe, portanto, que “acima” estão os astros, que “espelham” o espírito, e “abaixo” estão os elementos, que “espelham” a matéria. À medida que os planetas se situam em suas distintas posições mútuas, eles “realizam” as possibilidades contidas no zodíaco, representando temporalmente as possibilidades contidas nesse zodíaco, representando assim os modos de operar do espírito que “descende” do Céu à Terra. Da mesma forma, os metais (prata, mercúrio, cobre, ouro, ferro, estanho, chumbo) são os primeiros frutos da materia prima maturados pelo espírito. Em suma, as propriedades cósmicas se manifestam ativamente nos planetas e passivamente nos metais. Por ser passivo e inerte, os metais expressam um estado de conhecimento íntimo, desligado de formas racionais, isto é, trata-se de um conhecimento interior do próprio corpo caótico, opaco, embaçado pelas paixões e hábitos. No corpo, a alma e o espírito encontram-se como que “viscosos”, obscurecidos, misturados com a terra; no entanto, uma vez purificado, o “metal nobre” adquire um modo de existência espiritual.

No entanto, para converter os metais comuns em prata e ouro é necessário antes reduzi-los à sua materia prima. Assim também é necessário que a alma se livre de suas concreções e contradições interiores sob pena de não ser dúctil o bastante para que o espírito lhe imprima uma nova forma. A materia prima da alma é a substância básica da consciência, mas, também, é a substância de todas as almas e de todo o cosmo. Mas que não pense o leitor que a alquimia tenha qualquer valor psicoterápico. Não se trata disso, mas, pelo contrário, o alquimista necessita antes dissolver suas inibições e “complexos” preexistentes para estar apto a executar a obra alquímica. A redução alquímica da alma, ou seja, a redução do consciente diferenciado (individualizado) ao consciente indiferenciado, produz um obscurecimento da alma, uma entrada a um estado caótico, a um estado que Burckhardt chama de “matéria bruta” (me parece algo semelhante à materia secunda dos escolásticos), estado no qual a alma, embora não esteja em seu estado de pureza original (não é materia prima), contém possibilidades diferenciáveis, ou seja, possibilidades ainda não definidas de maneira clara e ordenada. Mas o consciente descobrirá, mais adiante, o “fundo da alma”, ou seja, o espelho da alma humana, a materia prima, capaz de refletir a luz do espírito universal de maneira límpida. Assim, o caos da alma, a “matéria bruta”, é como o chumbo, e o fundo da alma é como a prata.

A materia prima, como essência receptiva, é afim à Natureza, ou seja, à “força unitária” que dá ritmo universal tanto ao mundo exterior quanto ao mundo interior. É a shakti, que, segundo Burckhardt, abraça amorosamente a todos os seres e, ao mesmo tempo, tiraniza todos os seres com sua força destruidora, com a morte, com a ação do tempo e do espaço. A cor da shakti é escura. A Natureza é a força motriz das transmutações, é a “energia potencial” das coisas. Aqui cabe observar que a obra da Natureza, da shakti, é uma ininterrupta sucessão de dissoluções e cristalizações, na qual a dissolução é apenas um primeiro passo para a conjunção de uma nova forma na matéria. Similarmente, o alquimista, sob o lema solve et coagula, dissolve as concreções imperfeitas da alma, as reduz à sua matéria e as cristaliza novamente em uma forma mais nobre. Mas como isso ocorreria? Ora, a obra só pode ser realizada em harmonia com a Natureza, com a shakti, como se ela provesse uma espécie de “vibração” espiritual engendrada durante a obra e que enlaçasse o reino humano com o reino cósmico. Na Natureza, o enxofre alquímico representa o polo ativo e o mercúrio representa o polo passivo, e não é difícil deduzir que a relação mútua de ambos polos é simular à relação sexual do homem com a mulher. Por conseguinte, na psique humana, o enxofre denota o espírito, a vontade, enquanto o mercúrio denota o aspecto receptivo, passiva ou “plástico” da alma. Da perfeita união de ambas as causas procriadoras nasce o ouro. No campo físico a Natureza se manifesta em quatro propriedades, a saber: calor e secura (enxofre) e frio e umidade (mercúrio).

Aqui cabe citar Burckhard textualmente:

As quatro propriedades naturais ou modos de operação associados, respectivamente, com enxofre e mercúrio, podem, de acordo com o ciclo de cristalizações e dissoluções, ser variadamente ligados entre si. A geração só ocorre quando as propriedades do enxofre e do mercúrio se interpenetram. Se a secura do enxofre se unir exclusivamente ao frio do mercúrio, de modo que a fixação e a contração se acumulem sem que o calor expansivo do enxofre e a umidade resolutiva do mercúrio neutralizem a combinação, então um congelamento é produzida em todo o organismo psíquico ou corporal; no plano vital é o congelamento da velhice, e no plano ético, a ganância; de forma mais geral e ao mesmo tempo profunda, é a limitação da consciência individual a si mesma, o estado de morte da alma que não conservou sua receptividade e vitalidade originais em relação ao espírito ou ao mundo dos objetos. Ao contrário, uma associação exclusiva das propriedades calor-umidade, ou expansão-dissolução, determina a volatilização das forças; equivale ao estado de dissolução da paixão, do vício e da dispersão do espírito. É significativo que ambos os desequilíbrios geralmente se manifestem ao mesmo tempo. Ocorre que um engendra o outro: o congelamento das potências da alma leva à dispersão, e o fogo de uma paixão desenfreada causa a morte interior; a alma mesquinha em si mesma e fechada ao espírito será arrastada pelo turbilhão das impressões que se dissolvem. O equilíbrio criativo é alcançado quando a força expansiva do enxofre e a força adstringente do mercúrio mantêm o equilíbrio no fiel da balança, enquanto a força fixadora do elemento masculino se liga frutuosamente com a faculdade resolutiva do feminino. Este é o verdadeiro "casamento" de ambos os polos.

O alquimista alcança a plenitude graças à obra hermética, pois ela domina as forças primordiais do enxofre e do mercúrio que nele se encontram em estado de “matéria bruta”, caótica e latente em sua alma. O corpo do alquimista serve de ponto de apoio da obra, desde que esteja limpo das febres da paixão, pois será ele que atuará como “ponte” objetiva ente o microcosmo humano e o macrocosmo e permitirá ao alquimista atingir um estado contemplativo.

Do ponto de vista psicológico, o ego não apenas não é o núcleo da personalidade como é algo que separa a consciência (eu) da luz do espirito puro, ou seja, é o ego que impede que a luz atinja a consciência. A Psicologia é por definição incapaz de observar a luz porque a alma humana é incapaz de sair de si mesma e observar sua própria fonte, assim como é impossível iluminar o sol com um espelho. Portanto a consciência, o campo psíquico, encontra-se como que envolta por dois inconscientes: um inconsciente espiritual (cf. Jean-Claude Larchet), que vem de cima e é impenetrável, e um inconsciente inferior, que vem de baixo, e em si é amorfo e puramente potencial.

A obra alquímica se divide em fases, as quais Burckhardt relaciona com a cosmologia hindu. Novamente vale a pena ler tal descrição em suas próprias palavras:

Sem dúvida a divisão mais antiga é a que designa as fases ou etapas da obra com cores, e possivelmente se deriva de um determinado processo metalúrgico, como a limpeza e coloração de um metal. A partir do enegrecimento (melanosis, nigredo) da matéria ou da “pedra” se dá o branqueamento (leucosis, albedo) e, por fim, a vermelhidão (iosis, rubedo). [...] É curioso que as três cores básicas – negro, branco e vermelho – designem, na cosmologia hindu, os três movimentos básicos (gunas) da materia prima (prakriti), a saber: o negro se associa ao movimento que se aparta da luz original e que simbolicamente se dirige para baixo (tamas); o branco representa a ascensão em direção à luz da origem (sattwa), e o vermelho simboliza a tendência à expansão no plano da própria manifestação (rajas). Se transferimos estes significados à obra alquímica, nos surpreende que seja o vermelho e não o branco a cor que represente o resultado final, enquanto a doutrina hindu do cosmo estabelece que, primeiro, tamas, a força descendente, se ancora na obscuridade; então rajas, ao estender-se em sentido horizontal, desenvolve a pluralidade, e, por fim, sattwa sobe como uma chama branca e luminosa e a devolve à sua origem. No entanto, precisamente as três cores alquímicas na cosmologia hindu indicam com clareza o ponto de vista da alquimia e o alcance de seu simbolismo. Depois da “espiritualização do corpo” que, de certa forma, representa o branqueamento e que procede o enegrecimento ou putrefação, se produz, finalmente, a “corporificação do espírito”, com sua cor púrpura.

Portanto, Burckhardt conclui que a transformação de metais comuns em ouro não é o verdadeiro propósito da alquimia. Pelo contrário, quem persegue este objetivo jamais o obterá. O que o alquimista deve almejar é que a obra, a obtenção do elixir, sirva de apoio simbólico à sua transformação interior. Burckhardt não descarta a possibilidade, bastante plausível em sua opinião, de que o alquimista, portador já do “ouro” em seu interior, obtenha ouro também na obra alquímica, ou seja, que se realize uma transformação metalúrgica a partir de uma transformação espiritual. Tal opinião se sustenta na ideia de que tal “milagre” não seria menos espantoso do que o milagre da transformação interior. O salto que se produz no interior do homem, que necessariamente tem de contar com a ajuda do Alto, também pode perfeitamente se produzir na obtenção do ouro na obra alquímica.

Fonte: Titus Burckhardt, Alquimia, Plaza & Janes Editores, Esplugas de Llobregat, Espanha, 1976.

7 de fevereiro de 2023

O homem que brinca


A essência da brincadeira é o divertimento, ou seja, é quando há um influxo da mente que rompe o determinismo absoluto do cosmo físico. O mundo físico é o mundo do necessário, do determinado, da operação de forças cegas. A brincadeira rompe esse mundo, para o qual não passa de uma atividade supérflua, literalmente “inútil”. A brincadeira situa-se fora das antíteses sabedoria-loucura, verdade-falsidade, virtude-vício, bem-mal, porque a brincadeira é amoral, ou seja, não desempenha nenhuma função moral.

O historiador holandês Johan Huizinga se rende e não define precisamente o que vem a ser brincadeira, mas simplesmente a declara como uma função ou operação da vida animal e humana. Mas, há algumas características que marcam a brincadeira, a saber:

- É uma atividade voluntária, ou seja, totalmente livre e inecessária. Tampouco há uma obrigação moral em desempenhá-la.

- Não é uma atividade da “vida normal” ou da “vida real”. Isso não significa que não seja séria, pois é evidente que o grau de absorção e devoção a que se dedicam seus praticantes se trata, sim, de algo muito sério.

- É uma atividade desinteressante. Em outras palavras, ela se situa como um interlúdio em nossas vidas diárias. A brincadeira adorna a vida, a amplifica e nesse sentido funciona como uma “necessidade” para o indivíduo e a sociedade em razão do sentido e do valor expressivo, das associações espirituais e sociais. Em suma, a brincadeira é um item cultural central livre de interesses materiais e necessidades biológicas.

- É uma atividade reclusa, isolada, limitada. Ela possui suas próprias razões, seu próprio sentido e seus próprios limites temporais e espaciais. Talvez a melhor palavra para descrever essa característica é “ordem”. A brincadeira cria sua própria ordem para além da confusão e da imperfeição da vida comum. É por isso que, em linhas gerais, a brincadeira tende a ser esteticamente bela, encantadora, cativante. Ela claramente conta com ritmo e harmonia.

- É uma atividade tensa. Quanto mais competitiva a brincadeira (o que chamamos em português de “jogo”), tanto mais o binômio tensão-solução se aplicará. Dentro de suas regras, a destreza, coragem, tenacidade e, acima de tudo, a retidão do jogador estará à prova. Aqui pouco ou nada importa que seja “só uma brincadeira”. A palavra “só” vem do hábito de avaliar as coisas sob o ponto de vista utilitário e “sério” da vida. De um ponto de vista vital, a brincadeira é fundamental, embora “inútil”.

- É uma atividade secreta. A ideia aqui é que dentro de seu círculo, dentro de suas linhas, as leis e costumes da vida comum não se aplicam. A brincadeira é para “nós”, não para os “outros”.

- É um fingimento. Em outras palavras, conscientemente sabemos que todos ali estão fingindo nos papéis que desempenham, mas a ideia da brincadeira é precisamente, entre outros aspectos, fingir. É um faz-de-conta, afinal.

Huizinga nota que os rituais portam exatamente as mesmas características da brincadeira, com especial atenção ao aspecto de que “eleva” os participantes a um nível distinto da vida mundana comum. Não se engane. A brincadeira é profundamente séria, assim como os rituais também o pretendem ser. Nos rituais presenciamos não apenas a tensão que mencionamos acima, mas algo ainda maior: uma elação.  Novamente, cuidado com o hábito de rebaixar a brincadeira a algo “meramente” tolo, pueril, inútil, frívolo. O fato de ser frívola não torna a brincadeira algo “inferior”. Nos rituais, os insights cósmicos e o desenvolvimento social daí engendrado são fundamentais. O bem-estar da comunidade passa pelo desempenho da “brincadeira dos rituais”. Uma brincadeira, sem dúvida, mas uma brincadeira sagrada.

O argumento central de Huizinga, cabe salientar, não é que os jogos e brincadeiras sejam um entre muitos elementos culturais, mas que os jogos e brincadeiras precedem todos os demais elementos culturais. A cultura emerge das brincadeiras e jogos arcaicos. A eles se somam valores físicos, intelectuais, morais e espirituais que os elevam a um nível cultural, ou seja, que conferem à outrora desinteressada brincadeira uma característica de “interesse”. Em outras palavras, numa brincadeira o que está “em jogo” é um fato ideal, é concluir a brincadeira de maneira bem-sucedida. Elevada ao nível cultural, haverá um resultado concreto, além do ideal, também “em jogo”. Quem vence a brincadeira ganha uma certa aparência de superioridade e, por conseguinte, certa reputação, fama, estima, honra, heroísmo,  que pode ou não, a depender da brincadeira, estender-se ao grupo ao qual faz parte. Observe que a virtude, a honra, a nobreza e a glória fazem parte, antes de tudo, do campo da competição, ou seja, da brincadeira.

* * *

Brincadeira e direito. É óbvio, diz Huizinga, a semelhança entre uma ação na justiça e uma competição. Competir é brincar. O tribunal é como um círculo sagrado. Os juízes atuam fora da “vida normal”. Os códigos legais são um sistema de regras restritivas, enquanto as ações na justiça são como um jogo de sorte, uma “batalha verbal”. Observe que por trás dos conceitos ético-jurídicos de “certo” e “errado” estão os conceitos lúdicos de “ganhar” e “perder”.

Brincadeira e guerra. No fundo, as guerras se travam menos por questões econômicas e forças políticas e mais por orgulho, vaidade, desejo de prestígio etc. As grandes guerras, sejam as do mudo antigo sejam as atuais guerras modernas, se fundam na ideia de glória, e não tento em teorias racionais e dinamismos políticos. Em vez de “consultar os deuses” mediante jogos de azar, oráculos, disputas verbais, a brincadeira da guerra obtém a validação divina mediante a vitória na guerra. A guerra é uma forma de divinação. Algo dos antigos códigos de honra, beleza, virtude e lealdade permanecem na forma de relações diplomáticas, como honra a tratados, assinatura de tratados de paz após a derrota, troca de prisioneiros etc. A ausência do elemento lúdico torna a civilização impossível.

Brincadeira e vida intelectual. Nos tempos antigos, as competições intelectuais giravam em torno sobretudo sobre a origem do cosmo e a ordem das coisas. As competições de enigmas (conhecimento esotérico) versavam sobre nomes secretos, origem do mundo, objetos sagrados. Era uma questão de alta sabedoria postular uma pergunta para a qual ninguém tinha uma resposta. A resposta a uma questão enigmática não era formulada mediante raciocínios lógicos ou após longas reflexões, mas era algo repentino, que tinha de surgir de maneira espontânea, “natural”, em flashes. As competições de enigma eram, portanto, uma brincadeira, um jogo. Destes jogos surgiu a filosofia tal como a conhecemos hoje, em especial a filosofia e a teosofia dos Upanishads, a filosofia intuitiva dos pré-socráticos etc.  Os antigos filósofos eram como campeões, falavam em tom de profecia e arrebatamento. O espírito competitivo da vida intelectual se pode vislumbrar bem com as disputas escolásticas medievais. Todo conhecimento apresenta certo elemento de polêmica, e a polêmica não pode se divorciar do espírito lúdico.

Brincadeira e poesia. A poesia não tem função meramente estética. Nas civilizações florescentes, a poesia tem uma função socialmente vital. Transmite jovialidade, alegria, regozijo, júbilo. Era exercitada em competições, e o objetivo não era estético, mas sobretudo de romper feitiços. Ademais, a poesia tinha a nobre função de expressar sentimentos e aspectos importantes da vida da comunidade. A poesia sempre precedeu a prosa, pois era vista como o veículo adequado para expressar coisas sagradas e solenes. Enquanto os enigmas transmitiam conhecimento, a poesia transmitia beleza. A arte da poesia, claro, difere do discurso comum porque emprega termos, imagens, figuras de linguagem etc. especiais. O eterno hiato entre ser e ideia só pode ser vencido pelo arco-íris da imaginação. E precisamente o que a linguagem poética faz com as imagens é brincar com elas. Conforme a civilização avança e ganha certa amplitude espiritual, as atividades que continham elementos originários lúdicos os vão perdendo (direito, guerra, comércio, técnica, ciência etc.). A poesia, no entanto, é exclusivamente lúdica, e assim conseguiu permanecer viva tal qual até hoje.

Em suma, conclui Huizinga:

“A verdadeira civilização não pode existir na ausência de um certo elemento lúdico, pois a civilização pressupõe limitação e domínio do ego, a capacidade de não confundir suas próprias tendências com a meta última e mais elevada, mas entender que ela está encerrada em certos limites livremente aceitos. A civilização, em certo sentido, sempre será jogada de acordo com certas regras, e a verdadeira civilização sempre exigirá jogo limpo. “Fair play” nada mais é do que boa-fé expressa em termos de jogo. Assim, a trapaça destrói a própria civilização. Para ser uma força criadora de cultura sólida, esse elemento lúdico deve ser puro. Não deve consistir no obscurecimento ou rebaixamento dos padrões estabelecidos pela razão, fé ou humanidade. Não deve ser uma aparência falsa, um disfarce de propósitos políticos por trás da ilusão de uma forma lúdica genuína. O verdadeiro jogo não conhece propaganda; seu objetivo está em si mesmo, e seu espírito familiar é uma feliz inspiração”.

Fonte: Johan Huizinga, Homo Ludens, Angelico Press, Kettering, OH, EUA, 2016.