22 de fevereiro de 2009

O dom de falar em línguas

O livro In Peace Let Us Pray to the Lord: An Orthodox Interpretation of the Gifts of the Spirit, do Pe. Alexis Trader, esclarece a questão da "oração em línguas", de acordo com os Santos Padres da Igreja.

O Pe. Alexis nasceu em 1965, nos Estados Unidos, e foi criado em uma família metodista fervorosa. Anos mais tarde, converteu-se à Igreja, estudou teologia ortodoxa e mudou-se em 1995 para a Grécia, a fim de estudar grego moderno em Tessalônica. Lá, tomando contato constante com os monges do Monte Athos, tomou a decisão de tornar-se monge. Hoje, ele mora no Mosteiro de Karakallou, no próprio Monte Athos.

A obra do Pe. Alexis é toda dedicada ao leitor evangélico pentecostal (ou "carismático") que, desconfiado das demonstrações bizarras da presença do "Espírito Santo" em seu meio, busca um esclarecimento mais ponderado a respeito dos dons do Espírito.

No entanto, a obra também é dedicada aos ortodoxos, pois, como veremos, há uma enorme incompreensão a respeito do que vem a ser os dons do Espírito, em especial o dom das "línguas".

O autor faz uso intenso das obras dos Santos Padres contidas na Philokalia, do Pe. John Romanides, de alguns autores e teólogos ortodoxos gregos (cujas obras só existem em idioma grego) e do Pe. Seraphim Rose. A parte que me interessa aqui é a primeira, dedicada a explicar o que vem a ser o dom de línguas. A segunda parte, voltada sobretudo aos evangélicos, procura esclarecer o que é uma experiência espiritual autêntica, como as experiências falsas são produzidas, como o movimento evangélico deixa-se enganar pelo desejo ardente de "ter experiências espirituais" etc. Esta parte, para quem leu as obras do Pe. Seraphim Rose, não será novidade.

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Em primeiro lugar, o Pe. Alexis esclarece que qualquer leitura da Bíblia tem de ser feita supondo-se que o leitor esteja em vias de deificação. Isso se explica da seguinte forma: se, para lermos uma obra de Matemática, é necessário ser minimamente experiente nessa ciência, por que para a leitura da Bíblia não se exige uma experiência equivalente? Se a experiência dos autores dos diversos livros da Bíblia era a visão divina (theosis) a partir do esforço ascético espiritual, por que não é exigido do leitor a mesma experiência? Por conseguinte, conclui-se que este é o primeiro grande erro cometido pelos "teólogos" e "especialistas" em Bíblia: eles não estão capacitados minimamente na mesma ciência que os profetas e santos autores da Bíblia estavam capacitados.

Em segundo lugar, o Pe. Alexis ensina como lidar com as aparentes divergências entre os Santos Padres a respeito de um determinado assunto. Por exemplo, quanto à natureza das "línguas", os Padres divergem em suas opiniões. Ocorre que, apesar de todos os Padres possuírem grande entendimento sobre as Sagradas Escrituras, o público para o qual dirigiam suas obras e homilias nem sempre era igualmente receptivo e capacitado, o que os forçava a adaptar um discurso adequado. Muitos Padres eram obrigados a adotar um discurso mais superficial, mais "fácil", simplório, já que o público mal se encontrava em vias de purificação do coração. Exemplos desse tipo de adaptação são, segundo o Pe. Alexis, São João Crisóstomo, São João Damasceno e, em menor grau, São Nicomedos da Santa Montanha. Assim sendo, para obtermos um esclarecimento mais preciso e profundo, é necessário que voltemo-nos aos Padres cujas obras eram dedicadas às pessoas já iluminadas ou em vias de iluminação. Estas obras encontram-se sobretudo na coletânea que hoje conhecemos pelo nome de Philokalia. São Pedro Damasceno, por exemplo, adverte a seus leitores que não fiquem chocados ou escandalizados caso encontrem divergências nas interpretações dos Santos Padres, mas exorta-os a perceberem que um tipo de interpretação é dado àqueles cujo noûs funciona adequadamente, enquanto outro tipo de interpretação é dado àqueles cujo noûs não funciona apropriadamente.

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As línguas são explicitamente mencionadas em dois livros da Bíblia: nos Atos dos Apóstolos e em I Coríntios.

ATOS 2:1-17

E, cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos concordemente no mesmo lugar; e de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem. E em Jerusalém estavam habitando judeus, homens religiosos, de todas as nações que estão debaixo do céu. E, quando aquele som ocorreu, ajuntou-se uma multidão, e estava confusa, porque cada um os ouvia falar na sua própria língua. E todos pasmavam e se maravilhavam, dizendo uns aos outros: Pois quê! não são galileus todos esses homens que estão falando? Como, pois, os ouvimos, cada um, na nossa própria língua em que somos nascidos? Partos e medos, elamitas e os que habitam na Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto e Ásia, e Frígia e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros romanos, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, todos nós temos ouvido em nossas próprias línguas falar das grandezas de Deus. E todos se maravilhavam e estavam suspensos, dizendo uns para os outros: Que quer isto dizer? E outros, zombando, diziam: Estão cheios de mosto. Pedro, porém, pondo-se em pé com os onze, levantou a sua voz, e disse-lhes: Homens judeus, e todos os que habitais em Jerusalém, seja-vos isto notório, e escutai as minhas palavras. Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia. Mas isto é o que foi dito pelo profeta Joel: E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos terão sonhos. (Atos 2:1-17).

Há, neste trecho, três manifestações da graça que, para o leitor desatento, poderão passar despercebidas ou confundidas. São elas:

1) "E todos [isto é, os Apóstolos]...começaram a falar noutras línguas". Este trecho refere-se às palavras das súplicas comuns que não eram simplesmente palavras expressas mentalmente ou racionalmente, mas palavras faladas no coração pelo Espírito Santo.

2) "...conforme o Espírito Santo lhes concedia [isto é, aos Apóstolos] que falassem". Este trecho refere-se ao dom da profecia, ou seja, à capacidade de esclarecer as Escrituras, assim como Cristo esclareceu as Escrituras aos Apóstolos na estrada de Emaús.

3) "...cada um os ouvia falar na sua própria língua". Este trecho refere-se ao fato das palavras dos Apóstolos terem sido compreendidas por aqueles cuja língua materna não era o hebraico. Aqui, a explicação de São Gregório de Nissa é mais convincente e coerente do que a explicação de São Gregório, o Teólogo. Segundo São Gregório de Nissa, os Apóstolos falaram em hebraico, enquanto os ouvintes entenderam em suas próprias línguas -- neste caso, o Espírito teria "traduzido" as palavras de São Pedro nos corações de cada ouvinte para suas próprias línguas. Mas, segundo São Gregório, o Teólogo, os Apóstolos teriam falado eles mesmos em diversas línguas estrangeiras, e os ouvintes apenas seguiram ouvindo o que lhes era dito -- porém, segundo o Pe. Alexis, São Gregório, o Teólogo, teria preferido esta versão para "incrementar" o milagre, fazendo-o operar do lado dos Apóstolos, e não dos ímpios judeus (o que atesta o que falamos acima, isto é, que os Santos Padres eventualmente tinham de adaptar as explicações teológicas a fim de buscar o efeito correto nos ouvintes). No entanto, o próprio São Gregório, o Teólogo, confessa que há uma interpretação alternativa, que é, justamente, a oferecida por São Gregório de Nissa. Se levarmos em conta questões práticas, a interpretação de São Gregório de Nissa é a que faz sentido. Não há porque supormos que os Apóstolos falaram simultaneamente em línguas diferentes, pois esse tipo de comportamento desordenado não é característico de homens modestos e equilibrados como os Apóstolos. De acordo com o Ancião Porfírio (+1991), a interpretação de São Gregório de Nissa é a correta, dado que o próprio Ancião Porfírio passou por uma experiência idêntica no Monte Athos: ele falava em grego, enquanto uma mulher o entendia em francês (sendo que a mulher não sabia absolutamente nada do idioma grego). Ainda segundo o Pe. Porfírio, os Santos Padres estavam cientes do milagre da compreensibilidade, mas o mistério era tão fabuloso que preferiam até mesmo evitar comentar sobre ele.

Em suma: as "línguas" do Pentecostes não têm nada a ver com os vários idiomas compreendidos no local, mas às palavras ouvidas pelos Apóstolos expressas pelo Espírito em seus corações. Os vários idiomas compreendidos são outro milagre, uma outra instância do que ali se passou.


I CORÍNTIOS 14:1-33

Segui o amor, e procurai com zelo os dons espirituais, mas principalmente o de profetizar. Porque o que fala em língua desconhecida não fala aos homens, senão a Deus; porque ninguém o entende, e em espírito fala mistérios. Mas o que profetiza fala aos homens, para edificação, exortação e consolação. O que fala em língua desconhecida edifica-se a si mesmo, mas o que profetiza edifica a igreja. E eu quero que todos vós faleis em línguas, mas muito mais que profetizeis; porque o que profetiza é maior do que o que fala em línguas, a não ser que também interprete para que a igreja receba edificação. E agora, irmãos, se eu for ter convosco falando em línguas, que vos aproveitaria, se não vos falasse ou por meio da revelação, ou da ciência, ou da profecia, ou da doutrina? Da mesma sorte, se as coisas inanimadas, que fazem som, seja flauta, seja cítara, não formarem sons distintos, como se conhecerá o que se toca com a flauta ou com a cítara? Porque, se a trombeta der sonido incerto, quem se preparará para a batalha? Assim também vós, se com a língua não pronunciardes palavras bem inteligíveis, como se entenderá o que se diz? porque estareis como que falando ao ar. Há, por exemplo, tanta espécie de vozes no mundo, e nenhuma delas é sem significação. Mas, se eu ignorar o sentido da voz, serei bárbaro para aquele a quem falo, e o que fala será bárbaro para mim. Assim também vós, como desejais dons espirituais, procurai abundar neles, para edificação da igreja. Por isso, o que fala em língua desconhecida, ore para que a possa interpretar. Porque, se eu orar em língua desconhecida, o meu espírito ora bem, mas o meu entendimento fica sem fruto. Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com o entendimento; cantarei com o espírito, mas também cantarei com o entendimento. De outra maneira, se tu bendisseres com o espírito, como dirá o que ocupa o lugar de indouto, o Amém, sobre a tua ação de graças, visto que não sabe o que dizes? Porque realmente tu dás bem as graças, mas o outro não é edificado. Dou graças ao meu Deus, porque falo mais línguas do que vós todos. Todavia eu antes quero falar na igreja cinco palavras na minha própria inteligência, para que possa também instruir os outros, do que dez mil palavras em língua desconhecida. Irmãos, não sejais meninos no entendimento, mas sede meninos na malícia, e adultos no entendimento. Está escrito na lei: Por gente de outras línguas, e por outros lábios, falarei a este povo; e ainda assim me não ouvirão, diz o Senhor. De sorte que as línguas são um sinal, não para os fiéis, mas para os infiéis; e a profecia não é sinal para os infiéis, mas para os fiéis. Se, pois, toda a igreja se congregar num lugar, e todos falarem em línguas, e entrarem indoutos ou infiéis, não dirão porventura que estais loucos? Mas, se todos profetizarem, e algum indouto ou infiel entrar, de todos é convencido, de todos é julgado. Portanto, os segredos do seu coração ficarão manifestos, e assim, lançando-se sobre o seu rosto, adorará a Deus, publicando que Deus está verdadeiramente entre vós. Que fareis, pois, irmãos? Quando vos ajuntais, cada um de vós tem salmo, tem doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação. Faça-se tudo para edificação. E, se alguém falar em língua desconhecida, faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua vez, e haja intérprete. Mas, se não houver intérprete, esteja calado na igreja, e fale consigo mesmo, e com Deus. E falem dois ou três profetas, e os outros julguem. Mas, se a outro, que estiver assentado, for revelada alguma coisa, cale-se o primeiro. Porque todos podereis profetizar, uns depois dos outros; para que todos aprendam, e todos sejam consolados. E os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas. Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz, como em todas as igrejas dos santos. (I Coríntios 14:1-33).

1) "Falar em línguas" não é uma questão de línguas estrangeiras muito menos de balbuciar coisas sem sentido, mas trata-se da oração incessante no coração pelo Espírito. É uma interpretação dada por Orígenes (185-255), a qual os Padres Capadócios não rejeitaram. Infelizmente, nos tempos de São João Crisóstomo (+407), começou a circular a opinião de que o "dom das línguas" era a capacidade (dom) dos Apóstolos em falar nos idiomas das pessoas a quem proclamavam o Evangelho. Em seus comentários sobre essa epístola de São Paulo, São João Crisóstomo identifica as variedades de línguas com o dom apostólico da compreensibilidade no Pentecostes, mas confessa que "todo este trecho é extremamente obscuro". No entanto, São Nikitas Stithatos, sem alegar qualquer obscuridade, identifica as variedades de línguas com a oração incessante e silenciosa no coração pelo Espírito.

2) Ademais, as traduções modernas da Bíblia são péssimas, e só ajudam a piorar a situação. O trecho que colei acima é da Bíblia "Almeida Corrigida e Fiel" (ACF), uma espécie de "King James Version" portuguesa. O autor identifica uma série de erros de tradução na KJV que, não sem surpresa, são repetidos na ACF. Isso ocorre porque os tradutores, assumindo que as "línguas" são idiomas, interpretaram e traduziram a Bíblia de acordo com essa crença.

=> Versículo 2: "Porque o que fala em língua desconhecida não fala aos homens, senão a Deus; porque ninguém o entende". A tradução correta é: "Porque o que fala com uma língua não fala aos homens, senão a Deus; porque ninguém o ouve".

=> Versículo 10: "Há, por exemplo, tanta espécie de vozes no mundo, e nenhuma delas é sem significação". A tradução correta é: "Há, por exemplo, tanta espécie de vozes no mundo, e nenhuma delas é muda". (O original grego é a phonon, isto é, sem voz).

=> Versículo 8: "Porque, se a trombeta der sonido incerto, quem se preparará para a batalha?". A tradução correta é: "Porque, se a trombeta não manifestar seu som, quem se preparará para a batalha?".

=> Versículo 11: "Mas, se eu ignorar o sentido da voz, serei bárbaro para aquele a quem falo, e o que fala será bárbaro para mim". A tradução correta é: "Mas, se eu ignorar a intensidade da voz, serei bárbaro para aquele a quem falo, e o que fala seerá bárbaro para mim". (O original grego é dynamin, isto é, intensidade, volume, força, poder).

3) Outros trechos das epístolas do Novo Testamento que se referem à oração incessante no coração:

=> Orai sem cessar. (I Tessalonicenses 5:17).

=> Falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais; cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração. (Efésios 5:19).

=> E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai. (Gálatas 4:6).

=> E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos. (Romanos 8:26-27).

4) Por fim, vale lembrar que as exortações de São Paulo aos coríntios são até hoje seguidas em algumas comunidades monásticas do Monte Athos. Após os ofícios, se não há peregrinos no local, os monges rezam silenciosamente com seus cordões de oração. Mas, se há forasteiros presentes, mesmo que seja somente uma pessoa, os monges seguem a exortação de São Paulo e lêem os livros dos ofícios, assim como nas demais igrejas e mosteiros, para que os peregrinos (os "indoutos") possam dizer o seu "Amém" e serem edificados e instruídos.