20 de agosto de 2007

O caminho da transformação espiritual

Pe. Damasceno Christiansen

Palestra proferida em 9 de junho de 2005 na Parish Life Conference da Diocese Ortodoxa Antioquina de Wichita e da Centro-América, Sioux City, Iowa.

1. Transformação, Salvação, Deificação

O tema desta Conferência – “Não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação da vossa mente” – é um pouco amedrontador por ser um tema muito vasto e abrangente. Esse tema toca exatamente no propósito central de nossas vidas enquanto cristãos ortodoxos. Nosso Senhor Jesus Cristo disse: Eu vos escolhi do mundo (João 15:19). Fomos escolhidos deste mundo para que nos tornemos cidadãos de um outro mundo: o Reino de Deus. Esse Reino começa agora, nesta vida, e continua depois de deixarmos este mundo, consumando-se na Segunda Vinda de nosso Salvador. Para que habitemos naquele Reino, para sermos seus cidadãos, temos de ser transformados.

Não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação da vossa mente (Rom. 12:2). Estas palavras da Epístola do Santo Apóstolo Paulo aos Romanos ajuda a introduzir-nos em um ensinamento divinamente inspirado: a transformação espiritual. Nesta palestra, versarei primeiramente sobre o significado teológico de transformação na Igreja Ortodoxa. Depois, apresentarei comentários dos Santos Padres a respeito do ensinamento de São Paulo sobre transformação. A seguir, fornecerei algumas sugestões práticas sobre o caminho para a transformação, com ênfase na vigilância e na oração. E, para encerrar, falarei sobre o amor autêntico, que é a marca genuína da transformação espiritual.

Conforme eu disse, esse tema da transformação está relacionado com o propósito de nossas vidas. Esse propósito é a eterna união com Deus – deificação, theosis. Mas deificação não é uma condição estática: é um crescimento sem-fim, um processo, uma ascese a Deus. Não atingimos um fim nesta vida, nem mesmo na vida futura. São Simeão, o Novo Teólogo, que atingiu o que poderíamos chamar de o maior grau possível de união com Deus, disse: "No século dos séculos, o progresso será interminável, pois o encerramento deste crescimento em direção ao fim sem fim não seria nada mais do que uma compreensão do incompreensível”. [1]

Nossa união com Deus é uma transformação contínua na semelhança de Deus, que é a semelhança de Cristo.

Eu, assim como muitos de vocês, entrei para a Igreja Ortodoxa vindo de uma formação protestante. De vez em quando algum protestante me pergunta: “Você será salvo?” É uma pergunta difícil de responder para que um protestante entenda porque a concepção protestante de salvação é muito diferente da ortodoxa. Recentemente li The Life, de Clark Carlton. Ele também é ex-protestante e compreende bem a mentalidade protestante. Carlton fez um comentário bastante criterioso a respeito da salvação no Protestantismo, afirmando que a salvação significa simplesmente mudar a postura de Deus para conosco, para que então possamos entrar no Paraíso. De acordo com esse entendimento, levam-se somente alguns minutos para ser “salvo”. [2]

Na Ortodoxia, por outro lado, a salvação é vista em termos máximos, e não mínimos. Em seu livro Orthodox Spiritual Life According to St. Silouan the Athonite, eis o que Harry Boosalis do St. Tikhon’s Seminary disse: “Para a Igreja Ortodoxa, a salvação é mais do que um perdão de pecados e transgressões. É mais do que ser justificado ou absolvido por ofensas cometidas contra Deus. De acordo com o ensinamento ortodoxo, a salvação certamente envolve perdão e justificação, mas não é limitada a isso. Para os Santos Padres da Igreja, a salvação é a aquisição da Graça do Espírito Santo. Ser salvo é ser santificado e participar na vida de Deus – é se tornar participante da Natureza Divina (2 Pedro 1:4).” [3]

Na Ortodoxia, salvação não significa apenas mudar a postura de Deus, mas mudarmos nós mesmos e sermos mudados por Deus. A salvação, em última instância, significa deificação; e deificação, conforme vimos, implica em transformação. É nos unirmos a Deus ainda mais plenamente por meio de Sua Graça, Sua Energia Incriada, na qual Ele está totalmente presente. À medida que aumentamos nossa participação na vida de Deus por meio de Sua Graça, tornamo-nos cada vez mais deificados, cada vez mais semelhantes a Cristo. Então, no momento em que partirmos desta vida, poderemos habitar para sempre com Cristo em Seu Reino porque nós “pareceremos com Ele” espiritualmente, porque brilharemos com a Graça de Deus.

Há muitos anos, em 1982, fiz uma viagem à Terra Santa. Eu ainda era catecúmeno e estava planejando ser batizado na Califórnia mais ou menos um mês depois, quando eu voltasse da viagem. Lembro-me de um dia quando eu estava em Jerusalém, na Igreja do Santo Sepulcro, de pé no Gólgota, no local onde Cristo foi crucificado. Eu estava fazendo o sinal da cruz. Uma senhora que estava ao meu lado perguntou de onde eu era. Acho que ela era grega. Quando lhe disse que eu era americano, ela respondeu, “Você é da América e é ortodoxo?” Eu disse que não era, mas em breve seria, se Deus quisesse. Ela me olhou com enorme curiosidade e disse, “Quando você for ortodoxo, você pode se tornar santo”.

Para mim, tal afirmação referia-se justamente à vida que eu estava prestes a embarcar. Eu tinha ouvido essas palavras bem ali, no Calvário, onde Cristo morreu por minha salvação para que eu pudesse me tornar santo, para que eu pudesse ter a Graça de Deus em mim no Batismo, para que eu pudesse continuar a adquirir a Graça do Espírito Santo, para que eu pudesse ser deificado.

Com sua Encarnação, morte e Ressurreição, Cristo redimiu a natureza humana, abrindo caminho para a deificação e mesmo para a redenção do corpo, que ocorrerá na Ressurreição Geral. Esta é a dimensão objetiva de nossa salvação. Mas enquanto nossa natureza já está salva, temos de pessoalmente nos apropriar dessa salvação. Esta é a dimensão subjetiva de nossa salvação. Cristo já veio a nós; agora somos nós que temos de ir até Ele e nos unirmos a Ele.

Quando lemos ensinamentos ortodoxos sobre transformação, santificação e deificação – e ainda mais quando lemos relatos de pessoas que atingiram um alto grau de santidade – tudo isso pode parecer distante de nós. De certa maneira, isso tem de parecer distante; isto é, deveríamos sentir que temos um longo caminho pela frente, porque temos mesmo. Porém, não devemos sentir que santidade e deificação estão, em última instância, fora de nosso alcance. Cada um de nós é chamado para isso. Quando me lembro do que aquela senhora me disse no Gólgota, há vinte e três anos, penso no que eu não fiz para me tornar santo, para ser transformado à semelhança de Cristo, para ser “salvo” no sentido ortodoxo máximo da palavra. Tenho certeza de que cada um de nós também consegue pensar no que não fizemos, no que poderíamos ter feito em todo o tempo que somos cristãos ortodoxos. Mas não devemos nos desesperar. Em vez disso, tal situação deveria nos levar ao arrependimento, ao desejo de dedicar nossas vidas a Cristo, ao pensamento do que podemos fazer para sermos salvos, para sermos deificados, a partir de agora.

2. Sacrifícios vivos

Com isso em mente, vamos analisar com mais detalhes a exortação de São Paulo: Não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação da vossa mente. Esse versículo faz parte de um capítulo inteiro da Escritura que versa sobre transformação espiritual. Ao examinar esse capítulo, vou fiar-me, antes de mais nada, num comentário feito por São João Crisóstomo, a quem podemos considerar como o maior comentarista ortodoxo das Escrituras. Os comentários de São João sobre as Epístolas de São Paulo são especialmente interessantes porque São João foi instruído pelo próprio São Paulo a respeito de como interpretar suas próprias epístolas. De acordo com a Vida de São João, em três ocasiões Proclus viu o Apóstolo Paulo sobre os ombros de São João, falando ao pé do ouvido enquanto ele escrevia seus comentários sobre as Epístolas.

O ensinamento de São Paulo sobre transformação espiritual – Romanos, capítulo 12 – começa nos dizendo quais as pré-condições para tal transformação. São Paulo escreve aos cristãos de Roma: Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional.

Ao comentar esta passagem, São João Crisóstomo se pergunta: “Como pode o corpo tornar-se um sacrifício? Que o olho não olhe para nada maléfico, e ele se tornará um sacrifício. Que a língua não fale nada imundo, e ela se tornará um sacrifício. Que sua mão não faça nada corrupto, e ela se tornará uma oferta em sacrifício. Mas isso não basta. Precisamos ter boas obras também. Que a mão faça caridades, que a boca abençoe aqueles que a ela se opõem, que os ouvidos encontrem consolação nos ensinamentos divinos. Pois o sacrifício não tolera coisas impuras: o sacrifício deve ser o primeiro fruto das outras ações. Entreguemos, pois, nossas mãos, nossos pés, nossas bocas e todos os nossos membros como primeiro fruto a Deus”. [4]

São João Crisóstomo afirma que, na Velha Aliança, os animais oferecidos em sacrifício morriam após o sacrifício. “Com nosso sacrifício”, diz ele, “é diferente. Esse sacrifício faz com que a coisa sacrificada viva. Quando formos capazes de mortificar nossos membros, então poderemos viver”. [5] São João refere-se a Colossenses 3:5, onde São Paulo afirma: Mortificai, pois, os vossos membros, que estão sobre a terra: a prostituição, a impureza, a afeição desordenada, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria.

Portanto, de acordo com o ensinamento de São Paulo, devemos nos apresentar como sacrifícios vivos a Deus. Agindo assim, nosso “velho homem”, nosso “homem pecador” morre, e nosso “novo homem” vive (cf. Rom. 6:6; Ef. 4:22; Col. 3:9). Mortifiquemos nossas paixões pecaminosas para que Cristo viva em nós. Morramos para nós para que possamos renascer em Cristo.

Nossa morte e renascimento são marcados primeiramente pelo Batismo, quando, de acordo com São Paulo, morremos com Cristo e ressuscitamos com Ele (cf. Rom. 6:3-4). No Batismo, recebemos a Graça do Espírito Santo em nós, unida à nossa alma, como Adão e Eva a tinham em si antes da Queda. Tal é o início de nossa salvação e deificação em Cristo; mas isso é somente o começo. Temos de continuamente mortificar o restante de nosso “velho homem”, de maneira que continuemente a nos transformar à semelhança de Cristo. Eis porque São Paulo diz: Eu morro a cada dia (I Cor. 15:31).

Cristo ofereceu-Se na Cruz em sacrifício por nós. Para que conheçamos verdadeiramente a Cristo, temos de adentrar em Seu auto-esvaziamento e oferecer um sacrifício em troca. Um sacrifício interno, que é ato e sinal de nosso amor a Deus e ao próximo. O sacrifício de nossos corações e mentes a Deus. O sacrifício de nossos egos, de nosso orgulho, de nossos laços mundanos e de nossas paixões. O sacrifício de nosso tempo e energia ao próximo, a quem nos dedicamos em nome de Cristo.

Conforme permitamos que Cristo mortifique nosso ego, nosso ser carnal é consumido no altar do amor, e o sacrifício ascende como incenso a Deus. E à medida que isso acontece, somos verdadeiramente re-criados por Cristo em novos seres: seres espirituais, com uma maneira totalmente nova de enxergar a realidade, diferente dos amantes deste mundo.

O sacrifício é doloroso. Nosso “velho homem”, nosso “homem pecador” não quer morrer no altar do sacrifício. A inércia de nossa natureza caída é muito forte. Os Santos Padres ensinam que a Queda do homem ocorreu por dois motivos. O primeiro é a auto-estima ou amor próprio (no dia em que dele comerdes [do fruto da árvore] sereis como deuses – Gen. 3:5), e o segundo é o amor aos prazeres sensuais (a árvore era boa para se comer, e agradável aos olhos – Gen. 3:6). Todos os pecados do mundo, dizem os Padres, originam-se destas duas causas. Não herdamos a culpa do pecado de Adão, mas herdamos a tendência ou inclinação para o pecado. Tal inclinação pertence a nosso “velho homem”, o homem egoísta, o homem carnal, a quem nos entregamos ao longo dos anos. Quando tentarmos mortificá-lo, ele lutará pelo seu direito de existir. É por isso que o sacrifício é tão doloroso.

A dor deste sacrifício é poderosamente expressa na autobiografia de Madre Thaisia, uma das grandes madres russas do século XIX. Certa vez ela teve um sonho no qual um dos grandes abades da Rússia, Damasceno, apareceu para ela. Abade Damasceno havia morrido há um ano e Madre Thaisia estava passando por grandes tribulações em sua vida. No sonho, o Abade Damasceno perguntou-lhe: “Você sabe o que significa o fato do véu do Templo de Jerusalém ter sido rasgado em dois, quando nosso Salvador morreu na Cruz?” Madre Thaisia respondeu que isso significa a divisão entre o Velho e o Novo Testamento. “Muito bem”, disse o Abade, “isso está de acordo com os livros. Mas pense: esse fato não se refere também à nossa vida cristã?”

Madre Thaisia começou a contemplar, e então respondeu: “Acho que significa a maneira como a alma humana se despedaça na medida em que anseia por Deus e em agradar a Deus. Ela rasga-se em duas partes, tornando-se espiritual, mas ainda pertencente ao homem carnal que habita nela; ela é rasgada, cortada e desligada da vontade externa do homem, que é doce mas inclinada ao pecado. Seu pobre coração é rasgado, cortado em pedaços. Alguns desses pedaços, impróprios mas ainda ligados a ela, são jogados ao mundo, mas os outros são transmitidos, como incenso puro, a seu Cristo. Ó, como às vezes é difícil para o coração; como ele é atormentado e sofre, literalmente, por ser cortado ao meio!”

Em seu sonho, Madre Thaisia disse essas palavras com tamanho fervor que se cobriu de lágrimas. Abade Damasceno disse a ela: “Sim, o Senhor não nos privou de Sua Graça. Será então que devemos crescer acovardados e desanimados pelos sofrimentos? Coragem!, e que seu coração se fortaleça no Senhor em esperança”. Com essas palavras, o Abade levantou-se e abençoou Madre Thaisia. Ela acordou em lágrimas, não lágrimas de sofrimento, mas de inexprimível alegria. [6]

As palavras de Madre Thaisia nos fornecem uma imagem exata do sacrifício que é exigido daqueles que conhecem a Cristo e se unem a Deus. É um sacrifício dos mais dolorosos ao ego – pois o ego morre lentamente nesse sacrifício. Mas é um sacrifício que traz grande alegria, coragem e liberdade de espírito, que se une em amor com seu Criador. Temos de “dar o sangue”, conforme afirmou o Santo Padre do Deserto Longinus do Egito, para “recebermos Espírito”.

Continuando a falar sobre o sacrifício que devemos oferecer a Deus, São João Crisóstomo novamente o compara com o sacrifício dos hebreus no Velho Testamento. Assim como os hebreus examinavam cuidadosamente os animais que ofereciam em sacrifício para terem certeza de que não teriam nenhuma mancha ou deformidade e de que estavam íntegros e saudáveis, devemos examinar a nós mesmos para que estejamos puros em todos os aspectos. Então, afirma São João, “nós poderemos também dizer com Paulo, Eu já estou pronto para ser oferecido, e o tempo da minha partida está próximo (II Tim. 4:6).... Mas isso acontecerá somente se mortificarmos o velho homem, se mortificarmos nossos membros que estão sobre a terra, se crucificarmos o mundo que está em nós.... Se, quando Elias ofereceu o sacrifício visível uma chama veio do alto e consumiu toda a água, madeira e pedras, muito mais será feito por você. E se há algo em vocês que está folgado e mundano, mas mesmo assim oferecerem o sacrifício com boas intenções, o fogo do Espírito virá do alto e consumirá essa mundanidade, aperfeiçoando todo o sacrifício”. [7]

Aqui vemos a base, o fundamento, da transformação espiritual. Temos de oferecer toda nossa vida a Cristo em sacrifício, para que Ele consuma os dejetos e recrie-nos à Sua semelhança.

3. Conformidade não, transformação sim

Agora estamos aptos a analisar o tema em seu contexto completo. Primeiro vem o sacrifício, depois a transformação. Eis por que, em Romanos 12, o primeiro precede o segundo: Apresentei os vossos corpos em sacrifício vivo, santo, aceitável a Deus...e não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação de vossa mente.

Caso mortifiquemos nosso “velho homem” no altar do sacrifício, então não estaremos nos conformando com este mundo.

O que quer dizer “este mundo”? Há diversos significados de “mundo” nas Escrituras Sagradas. Pode significar o universo material ou o mundo habitado. Em sua conotação negativa, pode significar aqueles que se opõem a Deus, e, de acordo com alguns Santos Padres, “mundo” pode referir-se às paixões ou apegos às coisas sensuais. Santo Isaque, o Sírio, afirma: “’Mundo’ é um nome genérico para todas as paixões. As paixões são estas: amor às riquezas, desejo de posses, prazeres corporais (como a paixão sexual), amor à honra (que dá origem à inveja), cobiça por poder, arrogância e orgulho de status, desejo de adornar-se com roupas luxuosas e ornamentos vãos, comichão por glória humana (que é fonte de raiva e ressentimento), e temor físico. Quando tais paixões deixam de estar ativas, o mundo está morto... Alguém disse que os santos, enquanto estavam vivos, estavam mortos; pois embora vivos na carne, eles não viviam para a carne. Verifique para quais dessas paixões você vive. Então você descobrirá o quanto está vivo para o mundo e o quanto está morto”. [8]

Com este ensinamento patrístico em mente, a frase “Não sede conformados com este mundo” pode ser entendida como “Não sede conformados com as paixões”. Os Padres afirmam que todos nós temos nossas paixões favoritas: nossa primeira paixão favorita, nossa segunda paixão favorita etc. Portanto, examinemos a nós mesmos a fim de descobrirmos quais são nossas paixões favoritas, para que possamos confessá-las no Sacramento da Confissão e arrancá-las com a ajuda de Deus.

Não sede conformados com este mundo, mas sede transformados… São João Crisóstomo, ao comentar este versículo, aponta as diferenças entre as raízes das palavras “conformar” e “transformar”. Na tradução inglesa [bem como na portuguesa – N. do T.] a raiz das palavras é a mesma, mas em grego são diferentes. A palavra grega para “conformar” vem da raiz schema, que significa pose externa, imagem exterior, investir-se de um hábito externo. Denota algo duradouro e fixo, mas algo insubstancial, que perece. Outra tradução para esta palavra é “aparência”, como numa passagem de São Paulo, quando ele usa a mesma palavra: A aparência deste mundo passa (I Cor. 7:31). Essa tradução tem a conotação que a palavra “moda” tem: algo que sempre muda, como a moda das roupas etc.

De acordo com São João Crisóstomo, quando São Paulo afirma “Não tenham a aparência deste mundo” ele escolhe a palavra “aparência” para indicar a superficialidade deste mundo de paixões. “Não tenham a aparência deste mundo de paixões”, poderíamos dizer. A palavra que São Paulo usa para “mundo” é aeon, que também pode ser traduzida como “era” ou “o mundo de acordo com o tempo” – novamente para indicar a superficialidade das delícias mundanas. São João Crisóstomo explica: “Se você falar de riquezas, ou de glória, ou de beleza pessoal, ou de luxos, ou do que quer que seja das supostamente grandes coisas do mundo, é uma moda apenas, não uma realidade, é um espetáculo e uma máscara, e não algo substancialmente permanente”. [9]

Pense nas imagens que a mídia nos apresenta como sendo dignas de admiração e emulação: o rico, o famoso, o belo. Não é precisamente a isso que São João se refere: “é uma moda apenas, não uma realidade, é um espetáculo e uma máscara”? Tudo isso perece.

Mas é diferente com a transformação espiritual. São Paulo afirma, “Sede transformados pela renovação de vossa mente”. A palavra grega original para “transformados” é metamorphosis. Ela denota algo duradouro e permanente: não como a mudança da imagem ou aparência de alguém, à exemplo da moda, mas a mudança da forma substancial e orgânica. São Paulo não está dizendo para mudarmos nossa moda ou aparência, mas para mudarmos quem nós somos. De acordo com São João Crisóstomo, São Paulo escolheu suas palavras para mostrar que “os caminhos do mundo são aparentes, mas os caminhos da virtude não são aparentes, mas um tipo de forma real com uma beleza natural toda sua, sem as fraudes e modas das coisas externas, que cedo ou tarde parecerão aquilo que são, isto é, nada. Se, então, descartarmos a moda, rapidamente chegaremos à forma”. [10]

Em outras palavras, não viva em função daquilo que perece, mas daquilo que dura para sempre. Nosso Senhor Jesus Cristo disse: Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do Homem vos dará; porque a este o Pai, Deus, o selou (João 6:27).

No mundo – o mundo das paixões – muita ênfase se dá à “imagem”: você tem de ter a “imagem” certa para ser bem sucedido neste mundo. Nosso objetivo enquanto cristãos é totalmente diferente. Temos de ser totalmente transformados para sermos bons cidadãos de outro mundo.

4. A renovação da mente

Sede transformados pela renovação de vossa mente. O que São Paulo quer dizer com renovação da mente? De acordo com São João Crisóstomo, ele quer dizer arrependimento. Somos chamados para a transformação mas, conforme nos avaliamos, constataremos que pecamos todos os dias. Isso pode nos levar ao desespero, a pensarmos “Não me transformei, e nunca conseguirei”. Eis por que São Paulo acrescentou as palavras “pela renovação de vossa mente”: para que não nos desesperemos. São João Crisóstomo escreveu: “Dado que seus ouvintes são homens, e sabendo que pecariam todos os dias, São Paulo consolou-os dizendo ‘renovem-se’ dia após dia. É o que fazemos com nossas casas: estamos sempre as consertando à medida que envelhecem. Vocês devem fazer o mesmo. Pecaram hoje? Fizeram sua alma ficar mais velha? Não desesperem, mas renovem suas almas por meio do arrependimento, das lágrimas, da Confissão, e das boas obras. E nunca parem de fazer isso”. [11]

Do ponto de vista teológico, é importante ressaltar que a “renovação da mente” da qual fala São Paulo é, na verdade, a “renovação do nous”. No original grego, a palavra mente é nous. Na teologia ortodoxa, nous é a faculdade ou poder mais elevado da alma humana. É a faculdade que conhece a Deus diretamente; é o centro de nossa personalidade, que tem experiência com a Pessoa de Deus em comunhão de amor. São Gregório Palamás e outros Santos Padres afirmam que é o nous que melhor define qual a “imagem de Deus” em nós. [12]

Na Queda do homem, o nous obscureceu-se e tornou-se doente. A Energia, Luz ou Graça Incriada de Deus tornou-se algo estranho a nós. Conforme mencionei anteriormente, por meio da obra redentora de Cristo – pelo Santo Batismo – o homem recebe a Graça de Deus novamente. Mas cada vez que um cristão batizado comete um pecado, ele mancha seu vestuário batismal, digamos assim. Ele atenua a Luz da Graça em si; ele novamente obscurece ou adoece seu nous. Ao invés de voltar-se e unir-se a Deus, seu nous volta-se para as paixões, para o amor próprio e para o amor aos prazeres sensuais. Ao voltar-se para as paixões, o nous repele a Graça de Deus, impedindo que o cristão continue no caminho da deificação em Cristo.

A doença do nous leva à morte spiritual. O obscurecimento do nous leva à doença espiritual, na qual não conseguimos enxergar as coisas com clareza e sobriedade. Não conseguimos enxergar as coisas como Deus as enxerga; ao invés disso, as enxergamos por meio do filtro de nossas paixões. Assim, passamos a tatear como cegos na vida, machucando a nós mesmos e ao próximo, consciente ou inconscientemente. Acabamos nos desgarrando de nosso propósito na vida, que é a união com Deus. Embora achemos que temos muitas coisas importantes a fazer, a verdade é que vagamos sem objetivo na vida; e todas as nossas atribulações servem apenas para nos distrair de nosso estado espiritual doente, do fato que não estamos cumprindo nosso verdadeiro propósito na vida. Nosso nous está doente porque nos separamos de Deus, porque corremos atrás de nossas paixões e não de Deus.

5. Vigilância e oração

A cura de nosso nous doente começa exatamente com o que temos discutido até agora: com o sacrifício de nosso “velho homem”, com a extirpação das paixões, com o arrependimento. Ao versarem sobre a cura do nous, os Santos Padres depositaram grande ênfase na prática da vigilância. A todo o momento devemos vigiar nossos pensamentos de maneira a rejeitar – extirpar – os pensamentos pecaminosos e cheios de paixão. Quando um pensamento pecaminoso surge e nós o extirpamos imediatamente, ele não chega a ser um pecado. Mas quando nós entretemos um pensamento pecaminoso, quando o cultivamos e o desenvolvemos porque nos deixamos atrair por ele, então ele se torna um pecado, separando-nos de Deus. Quando entretemos pensamentos cheios de paixão, nosso nous se obscurece, desprovendo-se da Luz da Graça Divina. Esses pensamentos levam a sentimentos cheios de paixão, e a paixão se torna um hábito. Eis por que devemos extirpar a doença onde ela surge, isto é, em nossos pensamentos.

Para extirparmos os pensamentos pecaminosos, primeiramente temos de reconhecer que tais pensamentos são nossos inimigos. Temos de perceber que eles podem nos separar de Deus. Por exemplo, quando temos um pensamento cheio de ódio e julgamento contra nosso próximo, temos de reconhecer que entreter esse pensamento nos colocará em inimizade com Deus. É então que devemos nos recusar a entretê-lo. Simplesmente o deixamos ir embora. E se ele voltar uma hora depois, ou mesmo (como frequentemente acontece) alguns minutos depois, novamente devemos extirpá-lo.

Na Igreja Ortodoxa temos um jeito especial de extirpar pensamentos: a Oração de Jesus. O efeito dessa Oração é duplo. Em primeiro lugar, a Oração nos ajuda a extirpar e afastar os pensamentos apaixonantes. Em segundo lugar, a Oração nos faz voltar continuamente a Cristo nosso Salvador em todos os momentos.

Quando praticamos a vigilância, com a ajuda da Oração de Jesus, nossa alma se abre para receber a Graça do Espírito Santo, que nos transforma e nos deifica. Não mais repelimos a Graça, mas a atraímos. Chamamos Cristo para que Ele tenha piedade de nossas almas obscurecidas, a habitar em nós de maneira mais plena, a preencher-nos com Sua vida interminável, com a Luz do Espírito Santo que Ele enviou do Pai (cf. João 15:26). É assim que nosso nous é iluminado pela Luz da Graça Incriada de Deus. “Somente o Espírito Santo pode purificar o nous”, escreveu São Diádoco de Photiki na Philokalia. “... De todas as maneiras, portanto, e em especial por meio da paz da alma, devemos nos tornar uma habitação para o Espírito Santo. Então sempre teremos a chama do conhecimento espiritual ardendo em nós”. [13]

Além de rezarmos a Oração de Jesus, devemos cultivar o hábito de clamar a Deus com nossas próprias palavras. Isso deve ser feito ao longo de todo o dia. Os Padres aconselham que evitemos os discursos longos e eloqüentes; devemos, isso sim, simplesmente rezar, de coração. Podemos clamá-Lo verbalmente ou mentalmente, dependendo da situação. Claro, devemos clamá-Lo quando a tentação nos assedia, mas de maneira alguma devemos esperar que tais momentos se apresentem. O Arquimandrita Sofrônio, discípulo de São Silouan do Monte Athos, tinha a prática de rezar a Deus toda vez que ele fosse ver ou conversar com alguém. Ele rezava para que Deus abençoasse o encontro que estava para acontecer, para que a Graça de Deus estivesse sobre esse encontro. Se simplesmente seguíssemos essa prática, pense como nossos encontros cotidianos seriam transformados, e como nossas vidas seriam diferentes.

Além de orarmos ao longo do dia conforme executamos nossas tarefas, é importante separarmos certos períodos do dia para a oração, isto é, a uma regra de orações. O conteúdo dessas orações varia de pessoa para pessoa. É bom obtermos a bênção de nosso padre ou pai espiritual a esse respeito. As orações podem consistir de orações do Livro de Orações Ortodoxo ou da Oração de Jesus, ou uma combinação delas, além das orações com nossas próprias palavras e a leitura dos versículos do Evangelho e da Epístola do dia. São Teófano, o Recluso, alerta que enquanto rezamos as orações do Livro de Orações ou a Oração de Jesus, haverá momentos em que desejaremos apenas ficar de pé, diante de Deus, com um profundo sentimento de nostalgia. Ele recomenda, nesses casos, que paremos de ler ou recitar as orações, e que voltemos a elas um pouco mais tarde. [14] “É melhor fazermos um pequeno número de orações adequadamente do que nos apressarmos em fazer um grande número de orações”, disse ele. “Após recitar cada oração, faça quantas prostrações quiser, acompanhadas por uma oração para qualquer necessidade que sinta,ou por uma oração curta comum... Você pode limitar toda a regra de orações a prostrações com orações curtas e orações com suas próprias palavras. Fique de pé e prostre-se, dizendo ‘Senhor, tem piedade’, ou alguma outra oração que expressa sua necessidade ou que louve e agradeça a Deus. Você deve ou estabelecer um número de orações ou uma duração para as orações, de maneira que você não fique com preguiça... Você deve rezar com suas palavras especialmente ao fim das orações, pedindo perdão pela distração desproposital da mente, e colocando-se nas mãos de Deus o dia inteiro”. [15]

Separar um tempo para as orações diárias é imprescindível para a vida espiritual. A família deve rezar unida diante de seus ícones. Mesmo que pouco tempo seja reservado para tal, a diferença na vida da família será enorme. Mas para que essa diferença realmente aconteça, as orações devem ser rezadas regularmente, nunca esporadicamente.

O segredo para a regra de orações é constância. Se pularmos nossa regra de orações, nossas leituras das Escrituras e nossas leituras espirituais do dia, o mundo começará a nos invadir: o mundo das paixões, o mundo das distrações. Se pularmos nossa regra de orações por dois dias, seremos invadidos ainda mais, e assim por diante. À medida que o tempo passa, teremos cada vez menos a mente de Cristo e cada vez mais a mente do mundo. Estaremos cada vez mais “conformados com este mundo”. [16]

Para que cresçamos na vida espiritual ortodoxa, temos de sacrificar raízes, como na parábola de Cristo do semeador. E para sacrificarmos raízes, devemos ter constância, consistência, em nossas orações e leituras diárias. Nesta prática também conseguimos “nos renovar dia a dia”, conforme ensinou São João Crisóstomo.

Evidentemente, as práticas diárias e contínuas da vigilância e da oração não substituem os Sacramentos da Igreja. Mas essas práticas podem nos preparar para receber os Sacramentos, e pode aprofundar nossa experiência nelas. São Simeão o Novo Teólogo diz que receber a Santa Comunhão é, em si, um tipo de deificação – pois estamos recebendo o Corpo e Sangue de nosso Salvador deificado. A prática de vigilância e oração, juntamente com o arrependimento, poderá nos ajudar a partilhar mais plenamente dessa deificação.

6. A marca principal da transformação espiritual

Bem, agora que já versamos sobre a transformação espiritual e o caminho para essa transformação, examinemos mais de perto das marcas da transformação em um cristão.

Já discutimos com alguns detalhes os dois primeiros versículos de Romanos 12. São Paulo devota o resto deste capítulo precisamente para as marcas da transformação. Continuando sua exortação, ele diz no quê nos transformaremos. Ele afirma que devemos exercitar misericórdia com alegria, para que o amor não seja fingido; amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal, preferindo-vos em honra uns aos outros; não sejais vagarosos no cuidado, sede fervorosos no espírito, servindo ao Senhor; alegrai-vos na esperança, sede pacientes na tribulação, perseverai na oração; comunicai com os santos nas suas necessidades, segui a hospitalidade. O Apóstolo continua: Abençoai aos que vos perseguem, abençoai, e não amaldiçoeis. Alegrai-vos com os que se alegram; e chorai com os que choram. Sede unânimes entre vós; não ambicioneis coisas altas, mas acomodai-vos às humildes. Não sejais sábios em vós mesmos. A ninguém torneis mal por mal; procurai as coisas honestas, perante todos os homens. Se for possível, quanto estiver em vós, tende paz com todos os homens... Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem (Rom. 12:8–18, 21).

Que belo e profundo projeto de vida cristã! É o projeto de uma vida não conformada com este mundo, mas transformada e renovada em Cristo. Cada ponto da exortação de São Paulo merece uma palestra, mas versarei aqui apenas de maneira geral. O que todos esses pontos têm em comum? Temos de amar uns aos outros, e mesmo nossos inimigos. São Paulo está apenas explicando o grande mandamento de Cristo.

A marca mais essencial da transformação espiritual é que temos amor. Nosso Senhor nos disse: Nisto todos conhecerão que sois Meus discípulos, se vos amardes uns aos outros (João 13:35).

Em novembro de 2002, um amigo nosso – Abade Jonas, do Mosteiro de São João, em Point Reyes, Califórnia – visitou o Mosteiro de Valaam, no norte da Rússia. Enquanto estava lá, o Pe. Jonas teve conversas maravilhosas com um eremita chamado Pe. Isaque, numa pequena ilha afastada da ilha principal de Valaam. O Pe. Jonas perguntou ao Pe. Isaque como podemos crescer em maturidade espiritual: em outras palavras, como somos transformados em Cristo. Ao responder esta questão, o Pe Isaque inspirou-se nos ensinamentos do Arquimandrita Sofrônio, que obviamente ele internalizara, vivendo eles na prática. Eu gostaria então de citar as palavras do Pe. Isaque que o Pe. Jonas registrou no jornal Divine Ascent [Ascese Divina], já que elas apontam ao cerne da questão da transformação espiritual. Para o Pe. Isaque, assim como para São Paulo, transformação significa amar de maneira autêntica.

“No começo de nossa jornada espiritual”, disse o Pe. Isaque, “quando somos espiritualmente imaturos, toda nossa postura religiosa é egocêntrica, emocional e racional. O nível mais profundo de consciência, a consciência noética [isto é, a consciência do nous], ainda não se abriu totalmente... Nós somos nossos egos, definidos por nossas paixões. Estamos muito longe de sermos pessoas autênticas pois estamos presos ao nosso individualismo isolado. [Mas] à medida que crescemos e ganhamos controle sobre nossas paixões, e nossas almas se purificam, a Graça ilumina nossas consciência noética. Nos tornamos mais conscientes da presença de Deus e mais conscientes dos outros. Afastamo-nos de nosso egocentrismo. O foco de nossa atenção está em Deus. À medida que isso acontece, nosso ‘Eu’ pessoal se expande, englobando os outros, de maneira que não conseguiremos mais conceber-nos isolados de Deus e de nossos irmãos... É este o laço do autêntico amor espiritual, energizado pela Graça. Quanto mais crescemos nesta consciência noética, tanto mais nosso amor englobará todos a nossa volta. Rezamos por eles de coração, e pelo mundo inteiro. Somos purificados pela Graça para que possamos amar com autenticidade, de maneira puramente altruísta. Esta é a essência de ser cristão: amar autenticamente.

“Ao amar verdadeiramente a Deus a ao próximo...somos purificados, iluminados e deificados. Somos restaurados de nosso estado caído, de nosso egocentrismo, e da tirania de nossa consciência racional e emocional. As paixões são controladas, subordinadas ao amor ao Próximo. Somos purificados de tudo aquilo que nos faz focar em nós mesmos e de todas as barreiras do amor”. [17]

7. Saindo do atoleiro

Como pode as palavras do Pe. Isaque não nos inspirar? O que nos impede de crescermos até a medida da estatura completa de Cristo, conforme diz São Paulo (Ef. 4:13)? São nossos egos, nossas paixões, que nos impedem.

Freqüentemente nos encontramos atolados em nossas vidas espirituais. Essa situação resume-se a um aspecto: temos nossos pecados centrais, nossas paixões favoritas, das quais não queremos abrir mão. Essas paixões já estão tão enraizadas em nós que julgamos impossível nos livrar delas. Mas não é impossível. Cristo disse: Tende bom ânimo, eu venci o mundo (João 16:33). Com a ajuda de Sua Graça, conseguimos superar as paixões – que, conforme vimos, engloba um dos significados do termo “mundo” nas Escrituras Sagradas.

O problema é todo nosso. O problema é que, lá no fundo, sentimos que temos “direito” às nossas paixões favoritas. “Tenho direito de estar irado”, “Tenho direito de estar ressentido”, “Tenho direito a este pequeno prazer pecaminoso”. No fundo no fundo, não queremos abrir mão de nossas paixões.

Então a questão se resume a isto: O que realmente queremos? Queremos permanecer em nosso atoleiro, para que possamos mergulhar em orgulho, amor próprio, auto-justificação, raiva, ressentimento, prazeres pecaminosos? Será que eles são tão importantes para nós a ponto de, por causa dele, abandonarmos a possibilidade de uma vida autêntica em Cristo, conforme o Pe. Isaque tão belamente descreveu?

O que queremos, afinal? Queremos seguir a moda das paixões deste mundo, que perecem, ou queremos ter Cristo habitando em nós, recriando-nos em novos seres que habitarão nEle e com Ele para sempre?

Para que saiamos de nossos atoleiros e voltemos a trilhar o caminho da transformação e da deificação, temos de nos livrar de tudo aquilo que nos separa de Deus. A vida espiritual é como remar um barco contra a correnteza. O mundo, a carne e o demônio nos empurram contra o progresso. Se nosso barco estiver cheio de pecados e paixões, não iremos a lugar nenhum. Na verdade, vamos retroceder, até mesmo afundar. Portanto, o que temos de fazer é lançar fora tudo aquilo de que gostamos para que essas coisas não nos segurem. Então estaremos prontos para seguir adiante, para aquilo que fomos criados: para a união com Deus.

8. Não meça seu próprio progresso

Para concluir, eu gostaria de acrescentar um último comentário sobre esse tema da transformação. Os Santos Padres aconselham a não medir nosso progresso espiritual. Tentar medir nosso progresso pode, por um lado, despertar orgulho e, por outro, despertar desespero. Se pensarmos, “Estou fazendo grandes progressos, estou virando santo”, então certamente não estamos fazendo progresso porque estaremos orgulhosos, e o orgulho nos separa de Deus. Por outro lado, se nos desesperarmos quanto à nossa falta de progresso, esse desespero também nos separará de Deus.

Portanto, que Deus meça nosso progresso. Que Deus seja o juiz, tanto de nós quanto dos outros.
Benjamin Franklin tinha a prática de contar e registrar diariamente suas boas ações. Do ponto de vista do mundo, essa prática pode parecer boa; mas não é isso que devemos fazer enquanto cristãos ortodoxos. Não devemos contar nossas virtudes e boas obras e nos congratularmos com isso, pois Cristo disse, Não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita (Mat.6:3). Na verdade, temos de fazer justamente o oposto: olharmos para nossos pecados. “Permita que eu enxergue meus próprios pecados e não julgue meu irmão”, conforme rezamos na Oração de Santo Efraim. Devemos nos acusar de nossos pecados, mas não nos sentenciar a ponto de nos condenar. Essa é uma distinção importante. A auto-acusação piedosa leva à responsabilidade por nossos pecados para que possamos nos arrepender deles, fazer as correções necessárias e, em última instância, nos livrar deles. A auto-condenação, por outro lado, leva ao desespero – porque, ao estabelecermos um julgamento definitivo sobre nós mesmos estaremos brincando de Deus exatamente como faríamos se estabelecêssemos um julgamento final sobre nosso próximo.

A transformação espiritual, conforme vimos, não ocorre sem a Graça do Espírito Santo. O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito (João 3:8). A transformação pela Graça de Deus é imperceptível. Nós somos mudados, mas não sabemos como e quando. Portanto, não devemos tentar experimentar momentos ou estados de transformação. Tal tentativa somente levará, no fim das contas, ao orgulho e à ilusão. Nossa tarefa é deixar para trás tudo aquilo que nos separa de Deus, voltarmos para Ele com todo o nosso ser, e deixar que Deus faça o resto.

A transformação espiritual só é perceptível em retrospecto. Um dia, olharemos para trás e perceberemos como as coisas mudaram. Talvez percebamos que não somos mais escravos de determinada paixão que, no passado, nos oprimia. Talvez, apesar das circunstâncias da vida estarem mais difíceis do que no passado, percebamos que não estamos reagindo tão negativamente quanto antes e que temos um senso de confiança de que nossas vidas estão nas mão de Deus maior do que antes. Se notarmos tais mudanças, vamos dar graças a Deus e não as creditarmos a nós, lembrando das palavras de São Diádoco: “Somente o Espírito Santo pode purificar nosso nous”. Então, continuando a praticar a vigilância, analisemos mais detidamente nosso interior a fim de descobrirmos paixões ainda mais profundas e sutis, para que as mortifiquemos no altar em sacrifício a Cristo.

Esse caminho da contínua recriação à semelhança de Cristo, do sacrifício que leva à deificação, é de fato difícil. Nosso Senhor nos disse: Estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem (Mat. 7:14). Mas este é o único caminho para que cumpramos a verdadeira razão de nossa existência.

Portanto, seguindo a exortação do Apóstolo Paulo, não nos conformemos com este século, não sigamos as modas deste mundo, não nos moldemos de acordo com as paixões. Em vez disso, sejamos transformados, transfigurados em novos seres por meio do arrependimento, por meio da cura e da purificação de nosso nous. Por meio desta transformação, passaremos a amar a Deus e nosso próximo de maneira genuína, passaremos a estar unidos a Deus através de Sua Graça, e passaremos a habitar com Cristo e Seus Santos em amor perfeito, para sempre. Amém.

Notas

1. Citado em Archbishop Basil Krivocheine, In the Light of Christ (Crestwood, N.Y.: St. Vladimir’s Seminary Press, 1986), p. 386.
2. Clark Carlton, The Life: The Orthodox Doctrine of Salvation (Salisbury, Mass.: Regina Orthodox Press, 2000), pp. 163–64.
3. Harry M. Boosalis, Orthodox Spiritual Life according to St. Silouan the Athonite (South Canaan, Pa.: St. Tikhon’s Seminary Press, 2000), p. 19.
4. St. John Chrysostom, Homilies on Romans, in The Nicene and Post-Nicene Fathers (Peabody, Mass.: Hendrickson Publishers, 1994), First Series, vol. 11, Homily 20, p. 496.
5. Ibid .
6. Abbess Thaisia: An Autobiography (Platina, Calif.: St. Herman of Alaska Brotherhood, 1989), pp. 167–69.
7. St. John Chrysostom, Homilies on Romans , Homily 20, p. 497.
8. St. Isaac the Syrian, Ascetical Homilies , Homily 2, quoted in St. Ignatius Brianchaninov, The Arena: An Offering to Contemporary Monasticism (Jordanville, N.Y., Holy Trinity Monastery, 1983), pp. 169–70.
9. St. John Chrysostom, Homilies on Romans , Homily 20, pp. 497–98.
10. Ibid., p. 498.
11. Ibid.
12. Veja, por exemplo, St. Gregory Palamas, "Topics of Natural and Theological Science," and Nikitas Stithatos, "On Spiritual Knowledge," in The Philokalia, vol. 4 (London: Faber and Faber, 1995), pp. 357, 139–40).
13. St. Diadochos of Photiki, "On Spiritual Knowledge and Discrimination," in The Philokalia, vol. 1 (London: Faber and Faber, 1979), p. 260.
14. St. Theophan the Recluse, The Path of Prayer (Newbury, Mass.: Praxis Institute Press, 1992), pp. 6–7.
15. St. Theophan the Recluse, The Spiritual Life and How to Be Attuned to It, third edition (Safford, Arizona: St. Paisius Serbian Orthodox Monastery, 2003), pp. 191–93.
16. Cf. Fr. Seraphim Rose, "In Step with Sts. Patrick and Gregory of Tours," The Orthodox Word, no. 136 (1987), pp. 272–73.
17. Abbot Jonah (Paffhausen), "A Vision of Contemporary Monasticism: Valaam and Fr. Sophrony, from Psychology to Spirituality," Divine Ascent, no. 9 (2004), pp. 9–10.
Extraído da revista The Orthodox Word, Vol. 41, Nos. 3 & 4 (#242-243, May-Aug, 2005), pp. 147-168.

17 de agosto de 2007

Como salvar tua alma

São Teófano, o Recluso

O que responder a aquele que pergunta: “Como salvar minha alma?”

Isto: Arrependa-te e, fortalecido pelo poder da graça nos Santos Mistérios, trilha o caminho dos mandamentos de Deus sob a direção que a Santa Igreja te deu por meio de seus sacerdotes. Tudo isso deve ser feito com um espírito de fé sincera, sem reservas.

Mas o que é fé?

Fé é a confissão sincera de que Deus, adorado na Trindade e criador e provedor de tudo, salva a nós, os caídos, por meio do poder da morte na Cruz do Filho de Deus, pela graça do Espírito Santo em Sua Santa Igreja. Os princípios da renovação, estabelecidos nesta vida, surgirão em toda sua glória no século dos séculos, de uma maneira que a mente não consegue compreender nem a língua expressar.

Ó, Deus nosso, como são grandes Tuas promessas!

Como, então, trilhar o caminho dos mandamentos de maneira inabalável?

Não é possível responder a esta pergunta em poucas palavras, pois a vida é algo complexo. Eis o que é necessário:

a) Arrependa-te, e voltando-te ao Senhor, admita teus pecados, chora por eles com coração contrito, e confessa-os ao teu pai espiritual. Prometa em palavra e em coração, perante a face do Senhor, não mais ofendê-Lo com teus pecados.

b) Assim, obedecendo a Deus em mente e coração, esforça-te a cumprir corporalmente os deveres e questões que tua vida lhe impõe.

c) Acima de tudo, guarda teu coração dos maus pensamentos e sentimentos – orgulho, convencimento, raiva, julgamento, ódio, inveja, desdém, desânimo, apego a coisas e pessoas, pensamentos dispersos, ansiedade, todos os prazeres sensuais e tudo o que separa a mente e o coração de Deus.

d) Para que permaneças firme no caminho, decide, antes de mais nada, a não se negar àquilo que reconheces como necessário, mesmo que isto signifique a morte. Para conseguir isto, quando te resolveres a cumprir tal decisão, ofereça tua vida a Deus para que não vivas para ti, mas para Deus somente.

e) Viver assim é ofertar-te a Deus, e não depender de ti próprio; a arena espiritual desta vida é a paciência, ou seja, uma postura inabalável nas fileiras da vida redimida, esforçando-te alegremente em meio a todos os desconfortos e desprazeres a ela relacionados.

f) O sustento da paciência é a , ou a garantia de que, esforçando-te desta maneira para Deus, tu serás Seu servo e Ele será teu Mestre, que vê todos os teus esforços, regozija-Se neles e os valoriza; a esperança de que o sempre-protetor auxílio de Deus estará pronto e a te esperar, e descerá sobre ti quando precisares, de que Deus não te abandonará no fim da tua vida e, preservando-te enquanto fiel a Seus mandamentos, em meio às tentações, te guiará pela morte a Seu Reino eterno; o amor, que medita dia e noite no querido Senhor e em tudo procura agradá-Lo, evitando a todo custo ofendê-Lo em pensamento, palavras e obras.

g) As armas dessa vida são: a oração na igreja e em casa, especialmente a oração mental; o jejum, de acordo com as forças de cada um e as regras da Igreja; vigilância; solidão; trabalhos físicos; confissão freqüente de pecados; Santa Comunhão; leitura da Palavra de Deus e das obras dos Santos Padres; conversas com pessoas piedosas; consulta constante ao pai espiritual sobre todos os eventos externos e internos da vida. O fundamento de todos esses labores em medida, tempo e espaço é a sabedoria, aconselhando-te com aqueles que têm experiência.

h) Guarda-te com temor. Para isso, lembra-te do fim – morte, julgamento, inferno, o Reino Celestial. Acima de tudo, esteja atento a ti mesmo: preserve tua mente sóbria e teu coração despreocupado.

i) Estabeleça como objetivo o ardor do fogo do espírito, de maneira que arda em teu coração e, reunindo toda tua força, comece a edificar teu homem interior e, finalmente, queime as ervas daninhas de teus pecados e paixões.

Disponha tua vida desta maneira e, com a graça de Deus, tu serás salvo.

Orthodox Life, Vol. 27., No. 6 (Nov.-Dez., 1977), pág. 37-38.

13 de agosto de 2007

Como ler a Bíblia

Pe. Serafim (Rose) de Platina
Todos sabem que os protestantes dedicam grande parte de seu tempo lendo as Sagradas Escrituras, pois para eles isso é o que há de mais importante. Para nós, cristãos ortodoxos, as Escrituras também têm seu lugar. Porém, freqüentemente não tiramos vantagem desse fato e não percebemos a importância que elas têm para nós; ou, se percebemos, acabamos não lidando com elas com o espírito correto porque a abordagem e a literatura protestantes estão por toda a parte, ao passo que nossa abordagem ortodoxa é bem diferente.

O fato de as Escrituras serem parte essencial de nossa fé é algo que pode ser detectado em nossos ofícios. Há as leituras diárias do Novo Testamento, tanto das epístolas quanto dos evangelhos. No espaço de um ano lemos praticamente todo o Novo Testamento. Nos primeiros três dias da semana anterior à Páscoa – a festa da ressurreição de Cristo – os quatro evangelhos são lidos na igreja, e na noite de quinta-feira da Semana da Paixão são lidos doze longos trechos dos evangelhos sobre a Paixão de Nosso Senhor, com versos cantados entre cada trecho servindo de comentários. O Velho Testamento também é usado nos ofícios. Nas vesperais de cada grande dia santo são lidas três parábolas a título de prefiguração. E as Liturgias estão cheias de citações e alusões bíblicas inspiradas diretamente nas Sagradas Escrituras. Os cristãos ortodoxos também lêem a Bíblia fora dos ofícios. São Serafim, em sua vida monástica, lia semanalmente todo o Novo Testamento. Talvez porque tenhamos uma riqueza tão grande de trechos bíblicos em nossa tradição ortodoxa nos sintamos culpados de dá-las como certas, de não valorizá-las e não fazer o devido uso delas.

Um dos nossos maiores intérpretes das Sagradas Escrituras é São João Crisóstomo, um Santo Padre do século V. Ele escreveu comentários a praticamente todo o Novo Testamento, inclusive a todas as epístolas de São Paulo e a muitos livros do Velho Testamento. Em um dos sermões sobre as Escrituras, eis o que São João fala a seu rebanho:

"Exorto-vos, e não cessarei de vos exortar, a prestar atenção não apenas ao que aqui é dito, mas quando estiverdes em vossas casas também deveis vos ocupar com a leitura das Sagradas Escrituras. Que ninguém venha dizer-me palavras frias – dignas de condenação – como estas: 'Estou ocupado com um julgamento, tenho obrigações na cidade, tenho uma esposa, tenho de alimentar meus filhos, e não é minha obrigação ler as Escrituras, mas daqueles que a tudo renunciaram'. O que dizes?! Não é tua obrigação ler as Escrituras porque estás distraído com inúmeras preocupações? Ao contrário, é tua obrigação, mais do que aos outros, mais do que aos monges; eles não precisam tanto de ajuda quanto tu, que vives em meio a tais preocupações. Tu necessitas ainda mais de tratamento, pois estás constantemente sob ataque e fere-te com freqüência. A leitura das Escrituras é uma grande defesa contra o pecado. A ignorância das Escrituras é uma grande desgraça, um grande abismo. Nada saber da palavra de Deus é um desastre. Isso é o que despertou as heresias, a imoralidade; é o que virou tudo de cabeça para baixo".

Vemos aqui que a leitura das Sagradas Escrituras nos guarnece de uma poderosa arma contra as tentações mundanas que nos cercam – e não a utilizamos o bastante. A Igreja Ortodoxa, longe de desestimular a leitura das Escrituras, a encoraja. A Igreja apenas é contra a má-leitura das Escrituras, contra ler nelas suas próprias opiniões e paixões, até mesmo pecados. Quando vemos os protestantes ficarem excitados com algo que dizem estar nas Escrituras – o arrebatamento, por exemplo, ou o milênio – não somos contra sua leitura das Escrituras em si, mas contra a má-interpretação que fizeram das Escrituras. Para que nós mesmos evitemos essas ciladas, temos de entender o que é o texto sagrado e como devemos lidar com ele.

A Bíblia – as Sagradas Escrituras, o Velho e o Novo Testamento – não é um livro comum. Não é um livro que contém verdades humanas, mas verdades divinamente reveladas. É a palavra de Deus. Portanto, devemos abordá-la com reverência e coração contrito, não com mera curiosidade ou frieza acadêmica. Hoje em dia, ninguém deveria esperar que uma pessoa que não tenha simpatia pelo Cristianismo nem pelas Escrituras adote uma postura reverente. Há, porém, tamanho poder nas palavras das Escrituras – especialmente nos evangelhos – que elas podem converter uma pessoa mesmo que tal reverência esteja ausente. Ouvimos falar de casos assim em países comunistas; a polícia persegue os fiéis e interrompe suas reuniões; eles confiscam toda sua literatura: Bíblias, hinários, textos patrísticos – muitos escritos à mão. Eles os queimam, mas às vezes acontece da pessoa designada a queimá-los ou da pessoa que os recolhe ficar curiosa e começar a ler o material confiscado. E há casos em que a vida da pessoa muda. De repente, ela encontra Jesus Cristo. E fica chocada, já que foi criado com a noção de que tudo isso é um grande mal; e eis que descobre que não há mal algum, mas algo realmente fantástico.

Muitos estudiosos modernos abordam as Escrituras com espírito frio, acadêmico; eles não desejam salvar suas almas lendo as Escrituras: eles somente querem provar que são grandes acadêmicos, que são capazes de criar novas idéias; eles querem ficar famosos. Mas nós, cristãos ortodoxos, devemos nos imbuir da máxima reverência e contrição, isto é, devemos nos aproximar da palavra de Deus com o desejo de mudar nossos corações. Lemos as Escrituras para alcançar a salvação, não, como crêem alguns protestantes, porque temos certeza de que seremos salvos sem a possibilidade de cair; mas sim como aqueles que tentam manter desesperadamente a salvação que Cristo nos deu, cientes de nossa miséria espiritual. Para nós, ler as Escrituras é, literalmente, uma questão de vida ou morte. Conforme escreveu o Rei David nos Salmos: O meu coração temeu a tua palavra. Folgo com a tua palavra, como aquele que acha um grande despojo .1

A Bíblia contém a verdade, e nada mais. Portanto, é nosso dever estudar as Escrituras crendo em sua verdade, sem duvidar ou criticar. Se adotarmos uma postura crítica então não receberemos benefício algum da leitura das Escrituras, mas seremos apenas mais um entre os homens "sábios" que acham que sabem mais do que a revelação de Deus. Na verdade, os sábios deste mundo freqüentemente não captam o significado das Escrituras. Nosso Senhor assim rezou: Graças te dou, ó Pai...que escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste às criancinhas (Lucas 10:21). Em nossa abordagem, não devemos ser sofisticados, complicados, acadêmicos; devemos ser simples. E se formos simples, as palavras terão significado para nós.

Para que a leitura da Bíblia seja proveitosa – para que ajude a salvar nossas almas – devemos levar uma vida espiritual de acordo com o Evangelho. As Escrituras são voltadas precisamente àqueles que estão tentando levar uma vida espiritual. Os demais em geral as lerão à toa, e nem mesmo conseguirão entender alguma coisa. São Paulo ensina: O homem natural [isto é, não-espiritual] não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente (I Coríntios 2:14). Quando mais espiritual a vida do homem, mais ele será capaz de entender a Bíblia.

Uma segunda questão. Por sermos fracos e gabarmos em nossas enfermidades, temos de rezar a Deus pedindo para que Ele abra os olhos de nosso entendimento pela Sua graça. Mesmo os discípulos de Cristo, na estrada para Emaús, não entenderam as Escrituras; eles não entenderam que era Cristo diante deles interpretando as Escrituras, até que o próprio Cristo abriu-lhes a mente (Lucas 24:45). Portanto, até que tenhamos nossas mentes abertas – algo que vem da graça de Deus – leremos as Escrituras sem entendê-las; ouviremos sem entendê-las, veremos sem vê-las.

A inspiração da Bíblia

Por que dizemos que a Bíblia é a palavra inspirada de Deus? Entre ocultistas e espíritas, há um fenômeno conhecido por psicografia, no qual a pessoa literalmente é possuída por um espírito e escreve sem usar o livro arbítrio. De fato, a última moda desse tipo de ocultismo é sentar-se em frente a uma máquina de escrever e deixar o espírito se apossar de seus dedos, até que a "mensagem espiritual" surja. Não é assim que as Sagradas Escrituras são inspiradas. Esse é o jeito dos demônios operarem. São Basílio, em sua introdução aos comentários ao livro de Isaías, afirma:

"Algumas pessoas pensam que os profetas profetizavam em êxtase, de maneira que suas mentes humanas estivessem eclipsadas pelo Espírito. Mas é contra a promessa de Deus que a inspiração divina se dê em estado de êxtase, isto é, de maneira que a pessoa saia de seu estado normal e assim forneça ensinamentos divinos, e que beneficie os outros sem que ela mesma se beneficie de suas próprias palavras...E, no geral", São Basílio prossegue, "não é irrazoável que o espírito de sabedoria deixe uma pessoa fora de si e que o espírito do conhecimento aniquile seu poder racional? A luz não produz escuridão mas, ao contrário, desperta o poder natural da visão. E o Espírito não produz trevas nas almas mas, pelo contrário, desperta a visão mental ou contemplação naqueles purificados de máculas pecaminosas".

A revelação das Sagradas Escrituras é dada aos homens santos e puros em estado exaltado e inspirado, mas eles retêm controle total de suas faculdades mentais. Aqueles que desejam entender as Escrituras devem, a exemplo dos santos, lutar por uma vida santa e pura, recebendo a graça de Deus para entender o que o Espírito Santo revelou. São Basílio, na mesma introdução, escreve:

"O primeiro grande dom, que requer uma alma cuidadosamente purificada, é conter em si inspiração divina e profetizar os mistérios de Deus. [Ele se refere à pessoa que escreve as Escrituras]. E, em seguida, o segundo dom, que igualmente requer grande e assíduo cuidado, é prestar atenção às intenções do que foi declarado pelo Espírito, e não errar em seu entendimento, mas deixar-se conduzir a esse entendimento pelo Espírito". Ou seja, o segundo dom é entender o que esses profetas, os autores das Sagradas Escrituras, escreveram em seu estado inspirado. Portanto, nós também devemos lutar para receber a graça de Deus e a inspiração para entender as Escrituras; o trabalho de interpretar as Escrituras não é nada fácil. De fato, São Basílio ensina: "Há muitos trechos das Escrituras extremamente difíceis de entender". Como assim? Ele ensina:

"Nosso Criador não desejou que fôssemos como os animais e que todas as conveniências da vida nascessem conosco [isto é, peles para nos adornar, chifres para nos defender etc.] para que o uso da mente se tornasse algo necessário; assim também são as Escrituras. Ele permitiu nelas uma ausência de clareza para benefício da mente, para que nela despertasse sua atividade. Aquilo que se obtém pelo labor se adere a nós de alguma maneira, e aquilo que é produzido por um longo período é mais sólido, enquanto que aquilo que se obtém facilmente não é muito desfrutado". Ou seja, as Escrituras são explicitamente difíceis para que forcemos nossas mentes a se elevarem a certo estado de entendimento, e não simplesmente receber de bandeja um sentido óbvio.

Tudo isso mostra que a leitura da Bíblia não é para ser encarada de maneira superficial; não é uma questão de reunir e selecionar informações. Ao invés disso, é para salvação de nossas almas. E, à medida que lemos, temos de estar imersos num processo de mudança, pois este é o propósito da Bíblia. Se não somos convertidos, é para que nos convertamos. Se já somos convertidos, é para que lutemos ainda mais. Se já estivermos lutando, é para que nos humilhemos e não pensemos que somos grande coisa. Não há estado no qual as Escrituras não se apliquem.

Isso tudo é radicalmente diferente das doutrinas protestantes, que encaram as Escrituras como se fossem um oráculo infalível (o que, na verdade, não é muito deferente da crença na infalibilidade do Papa de Roma) e que o bom senso humano é capaz de entender seu significado. Se vocês observarem as inúmeras seitas protestantes, verificarão que cada uma delas tem interpretações peculiarmente diferentes das mesmas passagens, e todas dizem que é o sentido "obviamente" correto. Às vezes eles aprendem grego e dizem que é "obviamente" o que aquele trecho grego quer dizer, enquanto outros afirmam exatamente o oposto e acham que isso é igualmente "óbvio". Como saber o que realmente essas passagens querem dizer?

Como interpretar as Escrituras

Primeiramente, vejamos alguns exemplos de como não interpretar as Escrituras.

Há inúmeras passagens nas Escrituras que parecem se contradizer. Por exemplo, Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado; porque a sua semente permanece nEle; e não pode pecar, porque é nascido de Deus (I João 3:9). De acordo com o sentido literal, vocês pensariam que uma pessoa que se torna cristã cessa de pecar. Mas se fosse assim, então para que a confissão? Por que continuamente pecamos? Será que isso significa que não somos cristãos? Mas na mesma epístola lemos: Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós (I João 1:8). Como o mesmo autor pôde escrever duas passagens tão aparentemente contraditórias? É óbvio que temos de encontrar um entendimento mais profundo nelas. Temos de entender que enquanto temos a graça de Deus, não pecamos; quando pecamos isso prova que perdemos a graça de Deus, e temos de lutar para reconquistá-la. Não devemos nos enganar achando que estamos constantemente em estado puro, sem pecado; em vez disso, estamos constantemente lutando para atingir tal estado, às vezes conseguindo, às vezes não. Eis nossa batalha cristã. Essas passagens devem ser lidas com a consciência do que significa lutar enquanto cristão ortodoxo.

São Mateus afirma: E a ninguém na terra chamais vosso pai (23:9). Muitos protestantes interpretam esse trecho literalmente, recusando-se assim a chamar qualquer sacerdote de "Padre". Mas o próprio livro de São Mateus chama a Abraão de nosso pai (3:9). Claro, esse trecho se refere a pais que estão mortos; é uma diferença. Em sua epístola aos Hebreus, São Paulo fala de pais e profetas do Velho Testamento; eles também estão mortos. Mas ele também fala de pais vivos: Porque ainda que tivésseis dez mil aios em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; porque eu pelo evangelho vos gerei em Jesus Cristo (I Cor 4:15). Aqui ele afirma com clareza que "Eu sou teu pai espiritual". Ele não afirma isso com muitas palavras, então os protestantes fazem vista grossa. No entanto, ele está dizendo que você não tem muitos pais, portanto tem alguns, e eu sou um deles porque "vos gerei em Jesus Cristo". Esse trecho parece contradizer o Senhor, que diz E a ninguém na terra chamais vosso pai. Mas Nosso Senhor está falando dAquele Pai; há somente um Pai no sentido de que ninguém mais é Pai. Há outros pais em sentido limitado: há alguns pais espirituais, há pais na carne..., todos são pais, mas de tipos diferentes; assim como Ele diz: "Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso Mestre, que é o Cristo" (Mateus 23:10).

Literal vs. não-literal

Certa vez, recebemos a visita de um grupo de protestantes que diziam interpretar a Bíblia de maneira absolutamente literal. Questionei-lhes a respeito do trecho que diz "Se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos" (João 6:53). A primeira coisa que disseram foi: "Bem, isto não é para ser tomado literalmente". Eles se contradisseram imediatamente. Eles acham que aceitam tudo literalmente, mas abrem exceções aos trechos que não concordam com suas crenças.

Muitos trechos das Escrituras só podem ser compreendidos em um contexto dogmático – que a pessoa recebe de outras escrituras ou de outra fonte, seja da autoridade da Igreja ou de opiniões pessoais de algum professor. Alguns adventistas, comentando a promessa do Senhor ao bom ladrão – Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso (Lucas 23:43) – defendem a idéia de que o trecho está mal traduzido; o correto seria Em verdade te digo hoje que estarás..., pois eles crêem que quando uma pessoa morre, sua alma adormece, e portanto o ladrão não poderia estar com Cristo no Paraíso hoje. Eis um exemplo de alteração do significado das Escrituras para que se conforme com suas próprias crenças. E como sua doutrina dogmática está incorreta neste ponto, sua interpretação das Escrituras também estará.

Questões assim surgem quando nos detemos em versículos da Bíblia de maneira isolada. Muitos protestantes discutem por horas, às vezes anos, em tais questões. É importante não nos deixarmos atolar nelas. Devemos entender os princípios para uma correta interpretação das Escrituras. Eis o que ensina São João Crisóstomo, em sua homilia sobre Filipenses:

"Não devemos nos apegar às palavras das Escrituras e arrancá-las de suas conexões e contextos. Não devemos tomar palavras isoladamente, desprovendo-as do apoio das palavras que a precedem e que a seguem, simplesmente para ridicularizá-las e fraudá-las. Pois se até mesmo nos tribunais, onde se examinam as questões mundanas, apresentamos tudo o que serve ao caso – lugar e tempo, causas, pessoas e muito mais – então não seria absurdo citar a esmo palavras das Escrituras quando temos diante de nós a luta pela vida eterna?"

É precisamente o que fazem muitos protestantes; como não dominam o contexto nem possuem o dogma teológico completo, eles citam as Escrituras a esmo: "É óbvio que isto significa aquilo". Mas as Escrituras devem ser inseridas no devido contexto, tanto no livro em que são citadas como no resto da Bíblia, e em todo ensinamento do Cristo conforme transmitido por Sua Igreja.

Uma questão espinhosa nas Sagradas Escrituras é saber o que deve ser interpretado literalmente e o que não deve ser interpretado literalmente. Não podemos responder essa questão na base do "bom senso" porque isso só fomentaria o surgimento de novas seitas. São Simeão, o Novo Teólogo, um grande Santo Padre do século XI, explica essa questão de forma concisa:

"Cristo, o Mestre de tudo, ensina diariamente por meio do Santo Evangelho, falando algumas coisas de maneira velada, quando Ele faz uso de parábolas, para que poucos possam entender. E algumas dessas coisas Ele explica mais tarde a seus discípulos, dizendo A vós vos é dado conhecer os mistérios do reino de Deus, mas aos outros por parábolas (Lucas 8:10). Mas outras coisas Ele fala abertamente, para todos, conforme atestou o Apóstolo, Eis que agora falas abertamente, e não dizes parábola alguma (João 16:29)... Portanto, é nosso dever investigar e descobrir quais palavras o Senhor ensinou de maneira clara e aberta e quais Ele ensinou de maneira velada, por parábolas".

São Simeão dá exemplos de quando Nosso Senhor fala abertamente. Por exemplo, Amai a vossos inimigos (Mateus 5:44). Devemos entender isso literalmente. Ou, nas beatitudes: Bem-aventurados os que choram pois serão consolados etc. Devemos entender da maneira como está escrito; é tempo de chorar. E mais, Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus (Mateus 3:2); ou Quem ama sua vida perdê-la-á (João 12:25); ou Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me (Mateus 16:24).

Algumas dessas coisas são difíceis de cumprir. Outras são dificílimas até mesmo para nossas mentes humanas captar. Mas, com o conhecimento do Reino dos Céus e a vida espiritual, elas se tornam claras e são interpretadas literalmente, mesmo que às vezes com o uso de metáforas.

Como exemplos de parábolas, São Simeão fala da fé enquanto grão de mostarda (Lucas 13:31), ou do Reino dos Céus enquanto pérola de grande valor (Mateus 13:45), ou fermento (Mateus 13:33). Continua São Simeão:

"Portanto, reflitam, eu vos imploro, sobre a grandeza da sabedoria de Deus, que por meio de tais exemplos sensoriais, aparentemente rasteiros, pinta para nós como um artista que esboça em nossa mente aquilo que é impensável e inacessível. Ele age assim para que os descrentes permaneçam cegos, desprovidos de conhecimento das boas coisas do céu, pois se tornaram indignos em função de sua descrença; e para que os crentes, por outro lado, ao ouvirem e receberem com fé a mensagem da parábola, possam enxergar a verdade e conhecer limpidamente a realidade nas coisas que são mostradas pelas parábolas, pois as parábolas são as imagens das coisas espirituais" (Homilia 53).

São Simeão também ensina que, além do que é dito abertamente, as epístolas dos Apóstolos contêm muitas coisas ocultas.

Há casos estreitamente relacionados com essa questão dos significados místicos vs. literais, nos quais objetos materiais são citados para que nossas mentes se elevem às realidades espirituais. Isso não quer dizer que devemos ficar procurando símbolos nas Escrituras, como se tudo ali tivesse um significado a mais; é uma questão de elevar-nos a um nível espiritual onde possamos começar a entender a realidade espiritual da qual os autores inspirados freqüentemente versavam. Assim, quando David diz, Soltaste as minhas ataduras (Salmos 115:16), ele não se refere apenas às ataduras físicas, mas trata-se de um símbolo para o livramento da corrupção e da morte. Este é o sentido místico. Mas ele não está usando a imagem mundana das "ataduras" somente para expressar o sentido místico, a ausência de corrupção ou a imortalidade; ele também versa, ao mesmo tempo, de um segundo nível de significado, usando a imagem física enquanto oportunidade para expressar a verdade espiritual da libertação da corrupção. Se já conhecemos o ensinamento cristão sobre a queda de Adão, a corrupção do mundo e nossa redenção por Jesus Cristo, e se já estamos lutando para elevar-nos a esse nível espiritual, não necessitamos de comentários que nos expliquem as palavras, isto é, os Santos Padres até nos ajudariam, mas não precisaríamos de um comentário deles simplesmente para nos informar que "x=y". As próprias palavras expressam esse sentido espiritual. Qualquer um que leia e reze com os Salmos já experimentou isso. Especialmente em tempos de aflição, as palavras dos Salmos adquirem um novo e mais profundo significado; descobrimos que as coisas físicas referem-se a nossas aflições e depressões, e a nossa necessidade de receber libertação de Cristo.

Os ofícios ortodoxos estão cheios desse tipo de linguagem, a qual chamamos de poesia sacra. A chave para entender essa poesia é viver uma vida espiritual, que é a respeito da qual versam as Escrituras.

Em suma, o entendimento das Escrituras requer a graça de Deus. São Simeão, o Novo Teólogo, dá uma excelente imagem disso:

"O conhecimento espiritual é como uma casa construída em meio à sabedoria grega e mundana, em cujo interior encontra-se o conhecimento das Sagradas Escrituras – como se fosse um cofre bem aferrolhado – e o inexprimível tesouro escondido nesse conhecimento, isto é, a graça divina. Aqueles que nela adentram não conseguem enxergar esse tesouro se o cofre não lhes for aberto, mas esse cofre não pode ser desaferrolhado pela sabedoria humana. Eis por que as pessoas que pensam de maneira mundana não conhecem o tesouro espiritual que se esconde por trás do cofre do conhecimento espiritual. E assim como aquele que carrega esse cofre nos ombros não consegue enxergar o tesouro que lá se encontra, assim também aquele que lê e decora as Escrituras, recitando-as todas como se fossem um simples salmo, é incapaz só por isso de adquirir a graça do Espírito Santo, que nelas se esconde. Pois assim como aquilo que se esconde no cofre não pode ser revelado pelo próprio cofre, assim também o que está oculto pelas Sagradas Escrituras não pode ser revelado pelas próprias Escrituras" (Homilia 39).

Essa passagem é muito interessante; ela mostra claramente como os protestantes estão errados – pois as Escrituras não revelam o significado das Escrituras. Em vez disso, é a graça de Deus que o revela. São Simeão prossegue:

"Quando Deus habita em nós e revela-Se a nós conscientemente, é então que despertamos para o conhecimento, isto é, passamos a entender na realidade aqueles mistérios ocultos nas divinas Escrituras. Mas é impossível conquistarmos isso de outra maneira. Aqueles que não sabem e não experimentaram o que estou falando ainda não saborearam a doçura da vida imortal que possuem as palavras divinas, e ostentam apenas seu próprio conhecimento; eles depositam a esperança de sua salvação somente no conhecimento das Escrituras e no fato de que as conhecem de cor. Após a morte, essas pessoas serão mais severamente julgadas do que as que nunca ouviram falar das Escrituras. Especialmente aqueles que se desviaram em sua ignorância, corrompendo o significado das divinas Escrituras e interpretando-as de acordo com suas paixões. Para eles, o poder das Escrituras é inacessível... Aquele que tem toda a Escritura nos lábios não consegue entender e conquistar a glória e o poder místicos nela ocultos se não cumprir os mandamentos de Deus e receber o Consolador, o Espírito da Verdade. É Ele que pode lhe abrir as palavras das Escrituras enquanto livro, e mostrar-lhe a glória mística que nelas se encontra e pode, ao mesmo tempo, mostrar-lhe o poder e a glória de Deus, as boas coisas nelas ocultas, juntamente com a vida eterna que delas abunda. Mas todas essas coisas estarão ocultas e desconhecidas para aqueles que tratam com descuido e desdém os mandamentos de Deus".

Portanto, para lermos e entendermos a Bíblia, devemos viver de acordo com os mandamentos, recebendo a graça do Espírito Santo, até mesmo da maneira que os autores dos livros sagrados viviam. E devemos ser ávidos e zelosos em nossa leitura. São João Damasceno, um grande Santo Padre ortodoxo do século VIII, que resumiu o ensinamento dos primeiros Padres em seu livro Da Fé Ortodoxa, disse: "Batamos casualmente, mas com avidez e persistência, e não desistamos, pois assim se nos abrirá. Se lermos uma e depois duas vezes e mesmo assim não entendermos o que lemos, não nos desencorajamos. Persistamos, reflitamos e investiguemos, pois está escrito Pergunta a teu pai, e ele te informará; aos teus anciãos, e eles te dirão (Deuteronômio 32:7). Pois nem todos têm conhecimento. Aproveitemos, da fonte do paraíso, toda água pura e corrente que brota vida eterna; alegremo-nos nelas; alegremo-nos gulosamente nelas para nossa própria saciedade, pois elas contêm a graça que jamais se exauri".

Outra questão importante referente à abordagem adequada ante as Escrituras é a humildade, isto é, não devemos esperar "entender" logo na primeira leitura, como se nosso bom senso fosse capaz disso; o que devemos ter é a idéia muito humilde de que provavelmente uma grande porção do entendimento do que acabamos de ler nos escapou, mesmo nos trechos mais "óbvios". Essa humildade é fundamental, pois a causa de todas as seitas protestantes, que se baseiam em diferentes interpretações bíblicas, é o orgulho. Eles lêem e pensam: "Eu entendi o que está escrito". E estão errados. Quando lemos as Escrituras, devemos pensar: "Entendi um pouquinho, meus padres me ensinaram, li comentários e ouvi sermões a respeito, meu entendimento está de acordo com o que a Tradição da Igreja me ensinou, mas, mesmo assim, não confio totalmente no que penso ter entendido". Não podemos simplesmente aceitar a primeira idéia que brota em nossas mentes – nem a segunda, nem a terceira; devemos nos aprofundar, verificando o que os Padres ensinam, o que a Igreja ensina, como ela se encaixa nos demais livros da Bíblia, sempre pensando que nosso conhecimento das Escrituras – não importa o quanto saibamos – é sempre deficiente; nunca sabemos o bastante; temos de estar sempre aptos a aprender mais.

1 Trata-se do Salmo 119(118, LXX):161-162. (N. do T.)

7 de agosto de 2007

Como ler os Santos Padres

Pe. Serafim (Rose) de Platina
Esta Patrologia apresentará os Padres da espiritualidade ortodoxa; portanto, seu escopo e objetivo são diferentes dos cursos comuns de Patrologia. Nosso objetivo aqui será duplo: (1) Apresentar os fundamentos teológicos da vida espiritual ortodoxa – a natureza e o objetivo da luta espiritual, a visão patrística da natureza humana, as características da atividade da graça divina e do esforço humano etc.; e (2) fornecer o ensinamento prático dessa vida espiritual ortodoxa, caracterizando os estados espirituais, tanto bons quanto ruins, nos quais as pessoas se encontram ou passarão no decurso de suas lutas espirituais. Portanto, questões estritamente dogmáticas sobre a natureza de Deus, a Santíssima Trindade etc. serão abordadas somente quando apresentarem alguma relação com a vida espiritual; e muitos Santos Padres, cuja literatura lida principalmente com essas questões dogmáticas e somente secundariamente com as questões da vida espiritual, não serão abordados de maneira alguma. Em suma, será em essência um estudo dos Padres da Philokalia, aquela coleção de livros espirituais ortodoxos reunida na aurora da era moderna, pouco antes do despertar da bárbara Revolução Francesa, cujos efeitos finais estamos testemunhando em nossos dias de anarquia e governos ateístas.

Nos últimos tempos, o interesse pela Philokalia e seus Santos Padres tem crescido consideravelmente. Em particular, os mais recentes Padres, tais como São Simeão, o Novo Teólogo, São Gregório, o Sinaíta, e São Gregório Palamás, começaram a ser estudados e algumas de suas obras traduzidas e impressas em inglês e em outras línguas ocidentais. É até possível dizer que em alguns seminários e círculos acadêmicos eles estão “na moda”, em total contraste com o século XIX, quando eles estavam “fora de moda” na maioria das academias teológicas ortodoxas (ao contrário dos melhores mosteiros, que sempre preservaram suas memórias enquanto santos e viveram com base em suas obras).

Mas esse dado apresenta um grande perigo que deve aqui ser enfatizado. O fato das obras mais profundamente espirituais estarem “na moda” não é, de maneira alguma, uma coisa boa. Na verdade, seria muito melhor que os nomes desses Padres permanecessem desconhecidos do que serem objeto de estudo de acadêmicos racionalistas e “convertidos malucos”, que não extraem benefício algum delas mas somente aumentam seu orgulho insensível por “saberem mais” sobre elas do que os outros, ou – pior ainda – começarem a seguir suas instruções espirituais sem preparação adequada e sem guiamento espiritual. Mas isso não quer dizer que o amante da verdade deva abandonar a leitura dos Santos Padres; que Deus não o permita! Mas significa que nós – acadêmicos, monges ou simples leigos – devemos nos aproximar desses Padres com temor a Deus, humildade e grande desconfiança em relação à nossa própria sabedoria e capacidade de julgamento. Nós nos aproximamos deles para aprendermos e, acima de tudo, devemos admitir que necessitamos de um guia. E os guias existem: em nossa época, quando os anciãos já se foram, nossos guias devem ser os Padres que nos ensinaram como ler – e como não ler – as obras ortodoxas sobre a vida espiritual. Se o próprio Abençoado Ancião Paísio Velichkovsky, o compilador da Philokalia em eslavo, ficou “paralisado de temor” ao ser informado de que tais livros seriam impressos e que não mais circulariam em manuscritos entre alguns poucos mosteiros, então com ainda mais temor deveríamos nos aproximar deles e entender a causa desse temor, para que não caia sobre nós a catástrofe espiritual que ele anteviu.

O Abençoado Paísio, em sua carta ao Arquimandrita Teodósio da Ermida de São Sofrônio [1], escreveu: “A publicação de livros patrísticos, tanto em grego quanto em eslavo, é algo que me deixa paralisado de alegria e temor. Alegria porque não estarão fadados ao esquecimento, e os fiéis poderão adquiri-los com mais facilidade; com temor porque serão vendidos como livros quaisquer, não apenas para monges mas para todos os cristãos ortodoxos, e estes poderão, após estudar a arte da oração mental de maneira independente, sem instrução de alguém com experiência, se deixar enganar e blasfemar contra tais obras santas e irrepreensíveis, que foram testemunhadas por tantos Santos Padres... e, por causa dessas blasfêmias, surgiriam dúvidas a respeito dos ensinamentos dos Santos Padres”. A prática da Oração de Jesus, concluiu o Abençoado Paísio, é possível somente sob obediência monástica.

Em nossa época de luta ascética tão débil, são poucos os que se esforçam na oração mental (ou que ao menos saibam do que se trata); mas os alertas do Abençoado Paísio e demais Santos Padres valem também para aqueles que se esforçam pouco, como os cristãos ortodoxos de hoje. Quem quer que leia a Philokalia e demais obras dos Santos Padres, e até mesmo muitas vidas de santos, esbarrará em trechos sobre oração mental, visão divina, deificação e demais estados espirituais exaltados, e é essencial que os cristãos ortodoxos saibam o que pensar e sentir sobre tais trechos.

Portanto, vejamos o que dizem os Santos Padres sobre isso e a abordagem que devemos adotar perante os Santos Padres em geral.

O Abençoado Ancião Macário de Optina (+ 1860) achou necessário escrever um “Alerta aos que lêem obras patrísticas espirituais e desejam praticar a Oração mental de Jesus” [2]. Este grande Padre nos ensina, de maneira muito clara, qual deve ser nossa postura diante de tais estados espirituais: “Os Santos Padres escreveram sobre os notáveis dons espirituais não para que qualquer um os receba de maneira indiscriminada, mas para aqueles que não os têm possam ouvir sobre tais dons e revelações recebidos por aqueles que foram dignos e possam, dessa maneira, se conscientizar de suas grandes e profundas fraquezas e insuficiências, e possam crescer em humildade, pois isto é mais necessário à salvação do que todas as demais obras e virtudes”. E eis o que diz São João da Escada (século VI): “Assim como um miserável, ao vislumbrar os tesouros do rei, fica ainda mais ciente de sua pobreza; assim também o espírito, ao ler os grandes feitos dos Santos Padres, involuntariamente se tornará mais humilde na sua maneira de pensar” (Degrau 26:25). Dessa forma, nossa abordagem em relação à literatura dos Santos Padres deve ser de humildade.

Novamente, eis o que diz São João da Escada: “Admirar os esforços dos santos é louvável; emulá-los é salvífico; mas desejar repentinamente imitá-los é algo sem sentido e impossível” (Degrau 4:42). Santo Isaque, o Sírio, (século VI) ensina em sua segunda homilia (resumida pelo Ancião Macário de Optina, op. cit., pág. 364): “Aqueles que buscam doces sentimentos espirituais na oração, e especialmente aqueles que aspiram prematuramente por visões e contemplações espirituais, caem nas armadilhas do inimigo e no reino das trevas e do obscurantismo mental, sendo abandonados pela providência de Deus e entregues aos demônios porque seus orgulhosos anseios estão acima de sua medida e dignidade”. Portanto, devemos nos aproximar dos Santos Padres com a intenção humilde de começar a vida espiritual no degrau mais baixo, e nem mesmo sonhar em alcançar tais estados espirituais exaltados, que estão totalmente acima de nossa capacidade. São Nilo de Sora (+ 1508), um recente Padre russo, escreveu em sua Regra Monástica (cap. 2): “O que dizer daqueles que, em seus corpos mortais, receberam alimento imortal, que foram dignos de receber, nesta transitória vida, uma porção das alegrias que nos aguardam em nossa terra natal celestial?... Nós, que estamos sobrecarregados com tantos pecados e depredados por paixões, somos indignos até mesmo de ouvir tais palavras. Apesar disso, ao depositar nossa esperança na graça de Deus, encorajamo-nos a manter as palavras das santas escrituras em nossas mentes, de maneira que possamos pelo menos aumentar a consciência da degradação em que nos encontramos”.

Em auxílio à nossa humilde intenção de ler os Santos Padres, devemos começar pelos livros patrísticos mais elementares, isto é, aqueles que nos ensinam o ABC. Um noviço de Gaza do século VI escreveu a um grande ancião, São Barsanúfio, mais ou menos no mesmo espírito que os inexperientes estudantes ortodoxos de hoje: “Possuo livros dogmáticos e, quando os leio, sinto que minha mente é transferida de pensamentos passionais para a contemplação dos dogmas”. E o Ancião lhe respondeu: “Não quero que você se ocupe desses livros, pois eles exaltam demais a mente; mas é melhor estudar as obras dos Anciãos que tornam a mente humilde. Não digo isso para fazer pouco caso dos livros dogmáticos mas como um conselho para você; pois os alimentos são diferentes”. (Perguntas e Repostas, nº 544). Um objetivo importante desta Patrologia será precisamente indicar quais livros são os mais adequados aos iniciantes, e quais devem ser deixados para mais tarde.

Repetindo: diferentes livros patrísticos são adequados para cristãos ortodoxos em diferentes condições de vida: aqueles que são voltados especialmente para reclusos não são aplicáveis a monges vivendo em comunidade; aqueles que se aplicam a monges em geral não serão diretamente relevantes aos leigos; e, em todas as situações, o alimento espiritual dedicado àqueles que já têm alguma experiência será indigesto aos iniciantes. Quando certo equilíbrio na vida espiritual tenha sido alcançado pela prática ativa dos mandamentos de Deus dentro da Igreja Ortodoxa, por meio da leitura proveitosa das obras elementares dos Santos Padres e do guiamento de padres vivos – então um grande benefício de todos as obras dos Santos Padres será extraído, aplicando-as às próprias condições de vida. Eis o que o Bispo Ignácio Brianchaninov escreveu a respeito: “Tem-se notado que os noviços nunca conseguem adaptar os livros às suas próprias condições, mas se deixam levar pela tendência do livro. Se um livro fornece conselhos espirituais sobre o silêncio e apresenta os abundantes frutos espirituais que se seguem ao profundo silêncio, o iniciante invariavelmente sentirá um forte desejo de entrar em reclusão em algum deserto inabitado. Se um livro versa sobre obediência incondicional sob a direção de um guia espiritual, o iniciante inevitavelmente desenvolverá um desejo de abraçar uma vida rígida, em completa submissão a um ancião. Deus não condescendeu aos nossos tempos nenhum desses dois tipos de vida. Mas os livros dos Santos Padres que descrevem esses estados podem influenciar um iniciante de maneira tão forte que, de pura ignorância e inexperiência, ele facilmente decidirá deixar o lugar onde vive e onde tem totais condições para ser salvo praticando os mandamentos evangélicos, e se entregará a um sonho impossível de vida perfeita, retratada de maneira vívida e sedutora em sua imaginação”. Portanto, conclui ele: “Jamais confie em seus pensamentos, opiniões, sonhos, impulsos ou inclinações, mesmo que eles lhe ofereçam uma vida monástica das mais santas” (A Arena, cap. 10). Aquilo que o Bispo Ignácio diz sobre monges aplica-se também aos leigos, guardando-se as devidas proporções nas condições de vida envolvidas. Comentários específicos sobre leituras espirituais para leigos serão fornecidos ao final.

São Barsanúfio aponta, em outra Resposta (nº 62), algo muito importante para nós que abordamos os Santos Padres de maneira excessivamente acadêmica: “Aquele que se preocupa com sua salvação não deveria perguntar [aos Anciãos, isto é, ler obras patrísticas] sobre a aquisição somente de conhecimento, pois o conhecimento incha (I Cor. 8:1), conforme disse o Apóstolo; mais correto é perguntar sobre as paixões e como deveria viver, isto é, como ser salvo; pois isto é necessário e leva à salvação”. Portanto, não se deve ler os Santos Padres a título de mera curiosidade ou exercício acadêmico, sem a intenção ativa de praticar o que eles ensinam, de acordo com seu próprio nível espiritual. Os “teólogos” modernos já nos fizeram o favor de demonstrar que é perfeitamente possível possuir muita informação abstrata sobre os Santos Padres sem absolutamente nenhum conhecimento espiritual. Eis o que disse São Macário, o Grande, dessa gente (Homilia 17:9): “Assim como um mendigo que sonha que é rico mas, ao acordar, se vê novamente pobre e nu, assim também aqueles que deliberam sobre a vida espiritual parecem falar logicamente mas, à medida em que não se verifica neles nenhum tipo de experiência, poder e confirmação sobre aquilo que versam, eles permanecerão em um tipo de fantasia”.

São Barsanúfio, ao responder a um noviço que pensa ter caído em soberba e orgulho ao falar sobre os Santos Padres (Resposta nº 697), nos ensina um teste para que detectemos se nossa leitura dos Santos Padres é real ou acadêmica: “Quando tu conversas sobre a vida dos Santos Padres e sobre suas Respostas, deverias condenar-te dizendo: Ai de mim! Como posso falar das virtudes dos Padres enquanto eu mesmo não adquiri nada e não progredi em nada? E eu vivo instruindo os demais para seu próprio benefício; como podem as palavras do Apóstolo não se aplicarem a mim: Tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? (Rom. 2:21)”. Portanto, a postura diante dos ensinamentos dos Santos Padres deve ser de auto-reprovação.

Enfim, devemos nos lembrar que o propósito de ler os Santos Padres não é obter um tipo de “divertimento espiritual” ou reforçar nossa retidão ou conhecimento superior ou estado “contemplativo”, mas apenas nos auxiliar na prática do caminho ativo da virtude. Muitos Santos Padres tratam da diferença entre a vida “ativa” e a “contemplativa” (ou, mas precisamente, “noética”), mas que fique claro que tal diferença não se refere, como alguns pensam, a uma distinção artificial entre a vida “comum” da “Ortodoxia exterior” ou das meras “boas obras” e a vida “interior” cultivada somente por monges ou por alguma elite intelectual; não mesmo. Há apenas uma vida espiritual ortodoxa, e ela é vivida por todo ortodoxo praticante, seja monge ou leigo, seja iniciante ou avançado; “ação” ou “prática” (praxis em grego) é o caminho, e “visão” (theoria) ou “deificação” é o fim. Quase todos os escritos patrísticos se referem à vida da ação, não a da visão; esta é mencionada somente para nos lembrar do objetivo de nossos esforços e lutas, que nesta vida é experimentada somente por alguns dos grandes santos, mas desfrutada em plenitude somente nos séculos dos séculos. Mesmo os escritos mais exaltados da Philokalia, conforme escreveu o Bispo Teófano, o Recluso, no prefácio do volume final da Philokalia em russo, “têm em vista não a vida noética, mas quase que exclusivamente a vida ativa”.

No entanto, mesmo com esta introdução, os cristãos ortodoxos deste século de conhecimento inchado que desejam ler os Santos Padres em seu pleno sentido e contexto ortodoxos não escaparão de algumas ciladas. Portanto, paremos por aqui e, antes de começar a Patrologia em si, examinemos brevemente alguns dos erros que têm sido cometidos por leitores contemporâneos, com a intenção de formar uma boa noção de como não ler os Santos Padres.

Notas:
1. Edição do Mosteiro de Optina da Vida e Obra do Ancião Paísio, pág. 265-267.
2. De sua coletânea de Cartas aos Monges, Moscou, 1862, pág. 358-380 (em russo).

Publicado na revista The Orthodox Word, Vol.11, nº 1 (Jan-Fev 1975), pág. 35-41.