Pe. Serafim (Rose) de Platina
Esta Patrologia apresentará os Padres da espiritualidade ortodoxa; portanto, seu escopo e objetivo são diferentes dos cursos comuns de Patrologia. Nosso objetivo aqui será duplo: (1) Apresentar os fundamentos teológicos da vida espiritual ortodoxa – a natureza e o objetivo da luta espiritual, a visão patrística da natureza humana, as características da atividade da graça divina e do esforço humano etc.; e (2) fornecer o ensinamento prático dessa vida espiritual ortodoxa, caracterizando os estados espirituais, tanto bons quanto ruins, nos quais as pessoas se encontram ou passarão no decurso de suas lutas espirituais. Portanto, questões estritamente dogmáticas sobre a natureza de Deus, a Santíssima Trindade etc. serão abordadas somente quando apresentarem alguma relação com a vida espiritual; e muitos Santos Padres, cuja literatura lida principalmente com essas questões dogmáticas e somente secundariamente com as questões da vida espiritual, não serão abordados de maneira alguma. Em suma, será em essência um estudo dos Padres da Philokalia, aquela coleção de livros espirituais ortodoxos reunida na aurora da era moderna, pouco antes do despertar da bárbara Revolução Francesa, cujos efeitos finais estamos testemunhando em nossos dias de anarquia e governos ateístas.
Nos últimos tempos, o interesse pela Philokalia e seus Santos Padres tem crescido consideravelmente. Em particular, os mais recentes Padres, tais como São Simeão, o Novo Teólogo, São Gregório, o Sinaíta, e São Gregório Palamás, começaram a ser estudados e algumas de suas obras traduzidas e impressas em inglês e em outras línguas ocidentais. É até possível dizer que em alguns seminários e círculos acadêmicos eles estão “na moda”, em total contraste com o século XIX, quando eles estavam “fora de moda” na maioria das academias teológicas ortodoxas (ao contrário dos melhores mosteiros, que sempre preservaram suas memórias enquanto santos e viveram com base em suas obras).
Mas esse dado apresenta um grande perigo que deve aqui ser enfatizado. O fato das obras mais profundamente espirituais estarem “na moda” não é, de maneira alguma, uma coisa boa. Na verdade, seria muito melhor que os nomes desses Padres permanecessem desconhecidos do que serem objeto de estudo de acadêmicos racionalistas e “convertidos malucos”, que não extraem benefício algum delas mas somente aumentam seu orgulho insensível por “saberem mais” sobre elas do que os outros, ou – pior ainda – começarem a seguir suas instruções espirituais sem preparação adequada e sem guiamento espiritual. Mas isso não quer dizer que o amante da verdade deva abandonar a leitura dos Santos Padres; que Deus não o permita! Mas significa que nós – acadêmicos, monges ou simples leigos – devemos nos aproximar desses Padres com temor a Deus, humildade e grande desconfiança em relação à nossa própria sabedoria e capacidade de julgamento. Nós nos aproximamos deles para aprendermos e, acima de tudo, devemos admitir que necessitamos de um guia. E os guias existem: em nossa época, quando os anciãos já se foram, nossos guias devem ser os Padres que nos ensinaram como ler – e como não ler – as obras ortodoxas sobre a vida espiritual. Se o próprio Abençoado Ancião Paísio Velichkovsky, o compilador da Philokalia em eslavo, ficou “paralisado de temor” ao ser informado de que tais livros seriam impressos e que não mais circulariam em manuscritos entre alguns poucos mosteiros, então com ainda mais temor deveríamos nos aproximar deles e entender a causa desse temor, para que não caia sobre nós a catástrofe espiritual que ele anteviu.
O Abençoado Paísio, em sua carta ao Arquimandrita Teodósio da Ermida de São Sofrônio [1], escreveu: “A publicação de livros patrísticos, tanto em grego quanto em eslavo, é algo que me deixa paralisado de alegria e temor. Alegria porque não estarão fadados ao esquecimento, e os fiéis poderão adquiri-los com mais facilidade; com temor porque serão vendidos como livros quaisquer, não apenas para monges mas para todos os cristãos ortodoxos, e estes poderão, após estudar a arte da oração mental de maneira independente, sem instrução de alguém com experiência, se deixar enganar e blasfemar contra tais obras santas e irrepreensíveis, que foram testemunhadas por tantos Santos Padres... e, por causa dessas blasfêmias, surgiriam dúvidas a respeito dos ensinamentos dos Santos Padres”. A prática da Oração de Jesus, concluiu o Abençoado Paísio, é possível somente sob obediência monástica.
Em nossa época de luta ascética tão débil, são poucos os que se esforçam na oração mental (ou que ao menos saibam do que se trata); mas os alertas do Abençoado Paísio e demais Santos Padres valem também para aqueles que se esforçam pouco, como os cristãos ortodoxos de hoje. Quem quer que leia a Philokalia e demais obras dos Santos Padres, e até mesmo muitas vidas de santos, esbarrará em trechos sobre oração mental, visão divina, deificação e demais estados espirituais exaltados, e é essencial que os cristãos ortodoxos saibam o que pensar e sentir sobre tais trechos.
Portanto, vejamos o que dizem os Santos Padres sobre isso e a abordagem que devemos adotar perante os Santos Padres em geral.
O Abençoado Ancião Macário de Optina (+ 1860) achou necessário escrever um “Alerta aos que lêem obras patrísticas espirituais e desejam praticar a Oração mental de Jesus” [2]. Este grande Padre nos ensina, de maneira muito clara, qual deve ser nossa postura diante de tais estados espirituais: “Os Santos Padres escreveram sobre os notáveis dons espirituais não para que qualquer um os receba de maneira indiscriminada, mas para aqueles que não os têm possam ouvir sobre tais dons e revelações recebidos por aqueles que foram dignos e possam, dessa maneira, se conscientizar de suas grandes e profundas fraquezas e insuficiências, e possam crescer em humildade, pois isto é mais necessário à salvação do que todas as demais obras e virtudes”. E eis o que diz São João da Escada (século VI): “Assim como um miserável, ao vislumbrar os tesouros do rei, fica ainda mais ciente de sua pobreza; assim também o espírito, ao ler os grandes feitos dos Santos Padres, involuntariamente se tornará mais humilde na sua maneira de pensar” (Degrau 26:25). Dessa forma, nossa abordagem em relação à literatura dos Santos Padres deve ser de humildade.
Novamente, eis o que diz São João da Escada: “Admirar os esforços dos santos é louvável; emulá-los é salvífico; mas desejar repentinamente imitá-los é algo sem sentido e impossível” (Degrau 4:42). Santo Isaque, o Sírio, (século VI) ensina em sua segunda homilia (resumida pelo Ancião Macário de Optina, op. cit., pág. 364): “Aqueles que buscam doces sentimentos espirituais na oração, e especialmente aqueles que aspiram prematuramente por visões e contemplações espirituais, caem nas armadilhas do inimigo e no reino das trevas e do obscurantismo mental, sendo abandonados pela providência de Deus e entregues aos demônios porque seus orgulhosos anseios estão acima de sua medida e dignidade”. Portanto, devemos nos aproximar dos Santos Padres com a intenção humilde de começar a vida espiritual no degrau mais baixo, e nem mesmo sonhar em alcançar tais estados espirituais exaltados, que estão totalmente acima de nossa capacidade. São Nilo de Sora (+ 1508), um recente Padre russo, escreveu em sua Regra Monástica (cap. 2): “O que dizer daqueles que, em seus corpos mortais, receberam alimento imortal, que foram dignos de receber, nesta transitória vida, uma porção das alegrias que nos aguardam em nossa terra natal celestial?... Nós, que estamos sobrecarregados com tantos pecados e depredados por paixões, somos indignos até mesmo de ouvir tais palavras. Apesar disso, ao depositar nossa esperança na graça de Deus, encorajamo-nos a manter as palavras das santas escrituras em nossas mentes, de maneira que possamos pelo menos aumentar a consciência da degradação em que nos encontramos”.
Em auxílio à nossa humilde intenção de ler os Santos Padres, devemos começar pelos livros patrísticos mais elementares, isto é, aqueles que nos ensinam o ABC. Um noviço de Gaza do século VI escreveu a um grande ancião, São Barsanúfio, mais ou menos no mesmo espírito que os inexperientes estudantes ortodoxos de hoje: “Possuo livros dogmáticos e, quando os leio, sinto que minha mente é transferida de pensamentos passionais para a contemplação dos dogmas”. E o Ancião lhe respondeu: “Não quero que você se ocupe desses livros, pois eles exaltam demais a mente; mas é melhor estudar as obras dos Anciãos que tornam a mente humilde. Não digo isso para fazer pouco caso dos livros dogmáticos mas como um conselho para você; pois os alimentos são diferentes”. (Perguntas e Repostas, nº 544). Um objetivo importante desta Patrologia será precisamente indicar quais livros são os mais adequados aos iniciantes, e quais devem ser deixados para mais tarde.
Repetindo: diferentes livros patrísticos são adequados para cristãos ortodoxos em diferentes condições de vida: aqueles que são voltados especialmente para reclusos não são aplicáveis a monges vivendo em comunidade; aqueles que se aplicam a monges em geral não serão diretamente relevantes aos leigos; e, em todas as situações, o alimento espiritual dedicado àqueles que já têm alguma experiência será indigesto aos iniciantes. Quando certo equilíbrio na vida espiritual tenha sido alcançado pela prática ativa dos mandamentos de Deus dentro da Igreja Ortodoxa, por meio da leitura proveitosa das obras elementares dos Santos Padres e do guiamento de padres vivos – então um grande benefício de todos as obras dos Santos Padres será extraído, aplicando-as às próprias condições de vida. Eis o que o Bispo Ignácio Brianchaninov escreveu a respeito: “Tem-se notado que os noviços nunca conseguem adaptar os livros às suas próprias condições, mas se deixam levar pela tendência do livro. Se um livro fornece conselhos espirituais sobre o silêncio e apresenta os abundantes frutos espirituais que se seguem ao profundo silêncio, o iniciante invariavelmente sentirá um forte desejo de entrar em reclusão em algum deserto inabitado. Se um livro versa sobre obediência incondicional sob a direção de um guia espiritual, o iniciante inevitavelmente desenvolverá um desejo de abraçar uma vida rígida, em completa submissão a um ancião. Deus não condescendeu aos nossos tempos nenhum desses dois tipos de vida. Mas os livros dos Santos Padres que descrevem esses estados podem influenciar um iniciante de maneira tão forte que, de pura ignorância e inexperiência, ele facilmente decidirá deixar o lugar onde vive e onde tem totais condições para ser salvo praticando os mandamentos evangélicos, e se entregará a um sonho impossível de vida perfeita, retratada de maneira vívida e sedutora em sua imaginação”. Portanto, conclui ele: “Jamais confie em seus pensamentos, opiniões, sonhos, impulsos ou inclinações, mesmo que eles lhe ofereçam uma vida monástica das mais santas” (A Arena, cap. 10). Aquilo que o Bispo Ignácio diz sobre monges aplica-se também aos leigos, guardando-se as devidas proporções nas condições de vida envolvidas. Comentários específicos sobre leituras espirituais para leigos serão fornecidos ao final.
São Barsanúfio aponta, em outra Resposta (nº 62), algo muito importante para nós que abordamos os Santos Padres de maneira excessivamente acadêmica: “Aquele que se preocupa com sua salvação não deveria perguntar [aos Anciãos, isto é, ler obras patrísticas] sobre a aquisição somente de conhecimento, pois o conhecimento incha (I Cor. 8:1), conforme disse o Apóstolo; mais correto é perguntar sobre as paixões e como deveria viver, isto é, como ser salvo; pois isto é necessário e leva à salvação”. Portanto, não se deve ler os Santos Padres a título de mera curiosidade ou exercício acadêmico, sem a intenção ativa de praticar o que eles ensinam, de acordo com seu próprio nível espiritual. Os “teólogos” modernos já nos fizeram o favor de demonstrar que é perfeitamente possível possuir muita informação abstrata sobre os Santos Padres sem absolutamente nenhum conhecimento espiritual. Eis o que disse São Macário, o Grande, dessa gente (Homilia 17:9): “Assim como um mendigo que sonha que é rico mas, ao acordar, se vê novamente pobre e nu, assim também aqueles que deliberam sobre a vida espiritual parecem falar logicamente mas, à medida em que não se verifica neles nenhum tipo de experiência, poder e confirmação sobre aquilo que versam, eles permanecerão em um tipo de fantasia”.
São Barsanúfio, ao responder a um noviço que pensa ter caído em soberba e orgulho ao falar sobre os Santos Padres (Resposta nº 697), nos ensina um teste para que detectemos se nossa leitura dos Santos Padres é real ou acadêmica: “Quando tu conversas sobre a vida dos Santos Padres e sobre suas Respostas, deverias condenar-te dizendo: Ai de mim! Como posso falar das virtudes dos Padres enquanto eu mesmo não adquiri nada e não progredi em nada? E eu vivo instruindo os demais para seu próprio benefício; como podem as palavras do Apóstolo não se aplicarem a mim: Tu, pois, que ensinas a outro, não te ensinas a ti mesmo? (Rom. 2:21)”. Portanto, a postura diante dos ensinamentos dos Santos Padres deve ser de auto-reprovação.
Enfim, devemos nos lembrar que o propósito de ler os Santos Padres não é obter um tipo de “divertimento espiritual” ou reforçar nossa retidão ou conhecimento superior ou estado “contemplativo”, mas apenas nos auxiliar na prática do caminho ativo da virtude. Muitos Santos Padres tratam da diferença entre a vida “ativa” e a “contemplativa” (ou, mas precisamente, “noética”), mas que fique claro que tal diferença não se refere, como alguns pensam, a uma distinção artificial entre a vida “comum” da “Ortodoxia exterior” ou das meras “boas obras” e a vida “interior” cultivada somente por monges ou por alguma elite intelectual; não mesmo. Há apenas uma vida espiritual ortodoxa, e ela é vivida por todo ortodoxo praticante, seja monge ou leigo, seja iniciante ou avançado; “ação” ou “prática” (praxis em grego) é o caminho, e “visão” (theoria) ou “deificação” é o fim. Quase todos os escritos patrísticos se referem à vida da ação, não a da visão; esta é mencionada somente para nos lembrar do objetivo de nossos esforços e lutas, que nesta vida é experimentada somente por alguns dos grandes santos, mas desfrutada em plenitude somente nos séculos dos séculos. Mesmo os escritos mais exaltados da Philokalia, conforme escreveu o Bispo Teófano, o Recluso, no prefácio do volume final da Philokalia em russo, “têm em vista não a vida noética, mas quase que exclusivamente a vida ativa”.
No entanto, mesmo com esta introdução, os cristãos ortodoxos deste século de conhecimento inchado que desejam ler os Santos Padres em seu pleno sentido e contexto ortodoxos não escaparão de algumas ciladas. Portanto, paremos por aqui e, antes de começar a Patrologia em si, examinemos brevemente alguns dos erros que têm sido cometidos por leitores contemporâneos, com a intenção de formar uma boa noção de como não ler os Santos Padres.
Notas:
1. Edição do Mosteiro de Optina da Vida e Obra do Ancião Paísio, pág. 265-267.
2. De sua coletânea de Cartas aos Monges, Moscou, 1862, pág. 358-380 (em russo).
2. De sua coletânea de Cartas aos Monges, Moscou, 1862, pág. 358-380 (em russo).
Publicado na revista The Orthodox Word, Vol.11, nº 1 (Jan-Fev 1975), pág. 35-41.