Pe. Serafim (Rose) de Platina
Todos sabem que os protestantes dedicam grande parte de seu tempo lendo as Sagradas Escrituras, pois para eles isso é o que há de mais importante. Para nós, cristãos ortodoxos, as Escrituras também têm seu lugar. Porém, freqüentemente não tiramos vantagem desse fato e não percebemos a importância que elas têm para nós; ou, se percebemos, acabamos não lidando com elas com o espírito correto porque a abordagem e a literatura protestantes estão por toda a parte, ao passo que nossa abordagem ortodoxa é bem diferente.
O fato de as Escrituras serem parte essencial de nossa fé é algo que pode ser detectado em nossos ofícios. Há as leituras diárias do Novo Testamento, tanto das epístolas quanto dos evangelhos. No espaço de um ano lemos praticamente todo o Novo Testamento. Nos primeiros três dias da semana anterior à Páscoa – a festa da ressurreição de Cristo – os quatro evangelhos são lidos na igreja, e na noite de quinta-feira da Semana da Paixão são lidos doze longos trechos dos evangelhos sobre a Paixão de Nosso Senhor, com versos cantados entre cada trecho servindo de comentários. O Velho Testamento também é usado nos ofícios. Nas vesperais de cada grande dia santo são lidas três parábolas a título de prefiguração. E as Liturgias estão cheias de citações e alusões bíblicas inspiradas diretamente nas Sagradas Escrituras. Os cristãos ortodoxos também lêem a Bíblia fora dos ofícios. São Serafim, em sua vida monástica, lia semanalmente todo o Novo Testamento. Talvez porque tenhamos uma riqueza tão grande de trechos bíblicos em nossa tradição ortodoxa nos sintamos culpados de dá-las como certas, de não valorizá-las e não fazer o devido uso delas.
Um dos nossos maiores intérpretes das Sagradas Escrituras é São João Crisóstomo, um Santo Padre do século V. Ele escreveu comentários a praticamente todo o Novo Testamento, inclusive a todas as epístolas de São Paulo e a muitos livros do Velho Testamento. Em um dos sermões sobre as Escrituras, eis o que São João fala a seu rebanho:
"Exorto-vos, e não cessarei de vos exortar, a prestar atenção não apenas ao que aqui é dito, mas quando estiverdes em vossas casas também deveis vos ocupar com a leitura das Sagradas Escrituras. Que ninguém venha dizer-me palavras frias – dignas de condenação – como estas: 'Estou ocupado com um julgamento, tenho obrigações na cidade, tenho uma esposa, tenho de alimentar meus filhos, e não é minha obrigação ler as Escrituras, mas daqueles que a tudo renunciaram'. O que dizes?! Não é tua obrigação ler as Escrituras porque estás distraído com inúmeras preocupações? Ao contrário, é tua obrigação, mais do que aos outros, mais do que aos monges; eles não precisam tanto de ajuda quanto tu, que vives em meio a tais preocupações. Tu necessitas ainda mais de tratamento, pois estás constantemente sob ataque e fere-te com freqüência. A leitura das Escrituras é uma grande defesa contra o pecado. A ignorância das Escrituras é uma grande desgraça, um grande abismo. Nada saber da palavra de Deus é um desastre. Isso é o que despertou as heresias, a imoralidade; é o que virou tudo de cabeça para baixo".
Vemos aqui que a leitura das Sagradas Escrituras nos guarnece de uma poderosa arma contra as tentações mundanas que nos cercam – e não a utilizamos o bastante. A Igreja Ortodoxa, longe de desestimular a leitura das Escrituras, a encoraja. A Igreja apenas é contra a má-leitura das Escrituras, contra ler nelas suas próprias opiniões e paixões, até mesmo pecados. Quando vemos os protestantes ficarem excitados com algo que dizem estar nas Escrituras – o arrebatamento, por exemplo, ou o milênio – não somos contra sua leitura das Escrituras em si, mas contra a má-interpretação que fizeram das Escrituras. Para que nós mesmos evitemos essas ciladas, temos de entender o que é o texto sagrado e como devemos lidar com ele.
A Bíblia – as Sagradas Escrituras, o Velho e o Novo Testamento – não é um livro comum. Não é um livro que contém verdades humanas, mas verdades divinamente reveladas. É a palavra de Deus. Portanto, devemos abordá-la com reverência e coração contrito, não com mera curiosidade ou frieza acadêmica. Hoje em dia, ninguém deveria esperar que uma pessoa que não tenha simpatia pelo Cristianismo nem pelas Escrituras adote uma postura reverente. Há, porém, tamanho poder nas palavras das Escrituras – especialmente nos evangelhos – que elas podem converter uma pessoa mesmo que tal reverência esteja ausente. Ouvimos falar de casos assim em países comunistas; a polícia persegue os fiéis e interrompe suas reuniões; eles confiscam toda sua literatura: Bíblias, hinários, textos patrísticos – muitos escritos à mão. Eles os queimam, mas às vezes acontece da pessoa designada a queimá-los ou da pessoa que os recolhe ficar curiosa e começar a ler o material confiscado. E há casos em que a vida da pessoa muda. De repente, ela encontra Jesus Cristo. E fica chocada, já que foi criado com a noção de que tudo isso é um grande mal; e eis que descobre que não há mal algum, mas algo realmente fantástico.
Muitos estudiosos modernos abordam as Escrituras com espírito frio, acadêmico; eles não desejam salvar suas almas lendo as Escrituras: eles somente querem provar que são grandes acadêmicos, que são capazes de criar novas idéias; eles querem ficar famosos. Mas nós, cristãos ortodoxos, devemos nos imbuir da máxima reverência e contrição, isto é, devemos nos aproximar da palavra de Deus com o desejo de mudar nossos corações. Lemos as Escrituras para alcançar a salvação, não, como crêem alguns protestantes, porque temos certeza de que seremos salvos sem a possibilidade de cair; mas sim como aqueles que tentam manter desesperadamente a salvação que Cristo nos deu, cientes de nossa miséria espiritual. Para nós, ler as Escrituras é, literalmente, uma questão de vida ou morte. Conforme escreveu o Rei David nos Salmos: O meu coração temeu a tua palavra. Folgo com a tua palavra, como aquele que acha um grande despojo .1
A Bíblia contém a verdade, e nada mais. Portanto, é nosso dever estudar as Escrituras crendo em sua verdade, sem duvidar ou criticar. Se adotarmos uma postura crítica então não receberemos benefício algum da leitura das Escrituras, mas seremos apenas mais um entre os homens "sábios" que acham que sabem mais do que a revelação de Deus. Na verdade, os sábios deste mundo freqüentemente não captam o significado das Escrituras. Nosso Senhor assim rezou: Graças te dou, ó Pai...que escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste às criancinhas (Lucas 10:21). Em nossa abordagem, não devemos ser sofisticados, complicados, acadêmicos; devemos ser simples. E se formos simples, as palavras terão significado para nós.
Para que a leitura da Bíblia seja proveitosa – para que ajude a salvar nossas almas – devemos levar uma vida espiritual de acordo com o Evangelho. As Escrituras são voltadas precisamente àqueles que estão tentando levar uma vida espiritual. Os demais em geral as lerão à toa, e nem mesmo conseguirão entender alguma coisa. São Paulo ensina: O homem natural [isto é, não-espiritual] não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente (I Coríntios 2:14). Quando mais espiritual a vida do homem, mais ele será capaz de entender a Bíblia.
Uma segunda questão. Por sermos fracos e gabarmos em nossas enfermidades, temos de rezar a Deus pedindo para que Ele abra os olhos de nosso entendimento pela Sua graça. Mesmo os discípulos de Cristo, na estrada para Emaús, não entenderam as Escrituras; eles não entenderam que era Cristo diante deles interpretando as Escrituras, até que o próprio Cristo abriu-lhes a mente (Lucas 24:45). Portanto, até que tenhamos nossas mentes abertas – algo que vem da graça de Deus – leremos as Escrituras sem entendê-las; ouviremos sem entendê-las, veremos sem vê-las.
A inspiração da Bíblia
Por que dizemos que a Bíblia é a palavra inspirada de Deus? Entre ocultistas e espíritas, há um fenômeno conhecido por psicografia, no qual a pessoa literalmente é possuída por um espírito e escreve sem usar o livro arbítrio. De fato, a última moda desse tipo de ocultismo é sentar-se em frente a uma máquina de escrever e deixar o espírito se apossar de seus dedos, até que a "mensagem espiritual" surja. Não é assim que as Sagradas Escrituras são inspiradas. Esse é o jeito dos demônios operarem. São Basílio, em sua introdução aos comentários ao livro de Isaías, afirma:
"Algumas pessoas pensam que os profetas profetizavam em êxtase, de maneira que suas mentes humanas estivessem eclipsadas pelo Espírito. Mas é contra a promessa de Deus que a inspiração divina se dê em estado de êxtase, isto é, de maneira que a pessoa saia de seu estado normal e assim forneça ensinamentos divinos, e que beneficie os outros sem que ela mesma se beneficie de suas próprias palavras...E, no geral", São Basílio prossegue, "não é irrazoável que o espírito de sabedoria deixe uma pessoa fora de si e que o espírito do conhecimento aniquile seu poder racional? A luz não produz escuridão mas, ao contrário, desperta o poder natural da visão. E o Espírito não produz trevas nas almas mas, pelo contrário, desperta a visão mental ou contemplação naqueles purificados de máculas pecaminosas".
A revelação das Sagradas Escrituras é dada aos homens santos e puros em estado exaltado e inspirado, mas eles retêm controle total de suas faculdades mentais. Aqueles que desejam entender as Escrituras devem, a exemplo dos santos, lutar por uma vida santa e pura, recebendo a graça de Deus para entender o que o Espírito Santo revelou. São Basílio, na mesma introdução, escreve:
"O primeiro grande dom, que requer uma alma cuidadosamente purificada, é conter em si inspiração divina e profetizar os mistérios de Deus. [Ele se refere à pessoa que escreve as Escrituras]. E, em seguida, o segundo dom, que igualmente requer grande e assíduo cuidado, é prestar atenção às intenções do que foi declarado pelo Espírito, e não errar em seu entendimento, mas deixar-se conduzir a esse entendimento pelo Espírito". Ou seja, o segundo dom é entender o que esses profetas, os autores das Sagradas Escrituras, escreveram em seu estado inspirado. Portanto, nós também devemos lutar para receber a graça de Deus e a inspiração para entender as Escrituras; o trabalho de interpretar as Escrituras não é nada fácil. De fato, São Basílio ensina: "Há muitos trechos das Escrituras extremamente difíceis de entender". Como assim? Ele ensina:
"Nosso Criador não desejou que fôssemos como os animais e que todas as conveniências da vida nascessem conosco [isto é, peles para nos adornar, chifres para nos defender etc.] para que o uso da mente se tornasse algo necessário; assim também são as Escrituras. Ele permitiu nelas uma ausência de clareza para benefício da mente, para que nela despertasse sua atividade. Aquilo que se obtém pelo labor se adere a nós de alguma maneira, e aquilo que é produzido por um longo período é mais sólido, enquanto que aquilo que se obtém facilmente não é muito desfrutado". Ou seja, as Escrituras são explicitamente difíceis para que forcemos nossas mentes a se elevarem a certo estado de entendimento, e não simplesmente receber de bandeja um sentido óbvio.
Tudo isso mostra que a leitura da Bíblia não é para ser encarada de maneira superficial; não é uma questão de reunir e selecionar informações. Ao invés disso, é para salvação de nossas almas. E, à medida que lemos, temos de estar imersos num processo de mudança, pois este é o propósito da Bíblia. Se não somos convertidos, é para que nos convertamos. Se já somos convertidos, é para que lutemos ainda mais. Se já estivermos lutando, é para que nos humilhemos e não pensemos que somos grande coisa. Não há estado no qual as Escrituras não se apliquem.
Isso tudo é radicalmente diferente das doutrinas protestantes, que encaram as Escrituras como se fossem um oráculo infalível (o que, na verdade, não é muito deferente da crença na infalibilidade do Papa de Roma) e que o bom senso humano é capaz de entender seu significado. Se vocês observarem as inúmeras seitas protestantes, verificarão que cada uma delas tem interpretações peculiarmente diferentes das mesmas passagens, e todas dizem que é o sentido "obviamente" correto. Às vezes eles aprendem grego e dizem que é "obviamente" o que aquele trecho grego quer dizer, enquanto outros afirmam exatamente o oposto e acham que isso é igualmente "óbvio". Como saber o que realmente essas passagens querem dizer?
Como interpretar as Escrituras
Primeiramente, vejamos alguns exemplos de como não interpretar as Escrituras.
Há inúmeras passagens nas Escrituras que parecem se contradizer. Por exemplo, Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado; porque a sua semente permanece nEle; e não pode pecar, porque é nascido de Deus (I João 3:9). De acordo com o sentido literal, vocês pensariam que uma pessoa que se torna cristã cessa de pecar. Mas se fosse assim, então para que a confissão? Por que continuamente pecamos? Será que isso significa que não somos cristãos? Mas na mesma epístola lemos: Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós (I João 1:8). Como o mesmo autor pôde escrever duas passagens tão aparentemente contraditórias? É óbvio que temos de encontrar um entendimento mais profundo nelas. Temos de entender que enquanto temos a graça de Deus, não pecamos; quando pecamos isso prova que perdemos a graça de Deus, e temos de lutar para reconquistá-la. Não devemos nos enganar achando que estamos constantemente em estado puro, sem pecado; em vez disso, estamos constantemente lutando para atingir tal estado, às vezes conseguindo, às vezes não. Eis nossa batalha cristã. Essas passagens devem ser lidas com a consciência do que significa lutar enquanto cristão ortodoxo.
São Mateus afirma: E a ninguém na terra chamais vosso pai (23:9). Muitos protestantes interpretam esse trecho literalmente, recusando-se assim a chamar qualquer sacerdote de "Padre". Mas o próprio livro de São Mateus chama a Abraão de nosso pai (3:9). Claro, esse trecho se refere a pais que estão mortos; é uma diferença. Em sua epístola aos Hebreus, São Paulo fala de pais e profetas do Velho Testamento; eles também estão mortos. Mas ele também fala de pais vivos: Porque ainda que tivésseis dez mil aios em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; porque eu pelo evangelho vos gerei em Jesus Cristo (I Cor 4:15). Aqui ele afirma com clareza que "Eu sou teu pai espiritual". Ele não afirma isso com muitas palavras, então os protestantes fazem vista grossa. No entanto, ele está dizendo que você não tem muitos pais, portanto tem alguns, e eu sou um deles porque "vos gerei em Jesus Cristo". Esse trecho parece contradizer o Senhor, que diz E a ninguém na terra chamais vosso pai. Mas Nosso Senhor está falando dAquele Pai; há somente um Pai no sentido de que ninguém mais é Pai. Há outros pais em sentido limitado: há alguns pais espirituais, há pais na carne..., todos são pais, mas de tipos diferentes; assim como Ele diz: "Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso Mestre, que é o Cristo" (Mateus 23:10).
Literal vs. não-literal
Certa vez, recebemos a visita de um grupo de protestantes que diziam interpretar a Bíblia de maneira absolutamente literal. Questionei-lhes a respeito do trecho que diz "Se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos" (João 6:53). A primeira coisa que disseram foi: "Bem, isto não é para ser tomado literalmente". Eles se contradisseram imediatamente. Eles acham que aceitam tudo literalmente, mas abrem exceções aos trechos que não concordam com suas crenças.
Muitos trechos das Escrituras só podem ser compreendidos em um contexto dogmático – que a pessoa recebe de outras escrituras ou de outra fonte, seja da autoridade da Igreja ou de opiniões pessoais de algum professor. Alguns adventistas, comentando a promessa do Senhor ao bom ladrão – Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso (Lucas 23:43) – defendem a idéia de que o trecho está mal traduzido; o correto seria Em verdade te digo hoje que estarás..., pois eles crêem que quando uma pessoa morre, sua alma adormece, e portanto o ladrão não poderia estar com Cristo no Paraíso hoje. Eis um exemplo de alteração do significado das Escrituras para que se conforme com suas próprias crenças. E como sua doutrina dogmática está incorreta neste ponto, sua interpretação das Escrituras também estará.
Questões assim surgem quando nos detemos em versículos da Bíblia de maneira isolada. Muitos protestantes discutem por horas, às vezes anos, em tais questões. É importante não nos deixarmos atolar nelas. Devemos entender os princípios para uma correta interpretação das Escrituras. Eis o que ensina São João Crisóstomo, em sua homilia sobre Filipenses:
"Não devemos nos apegar às palavras das Escrituras e arrancá-las de suas conexões e contextos. Não devemos tomar palavras isoladamente, desprovendo-as do apoio das palavras que a precedem e que a seguem, simplesmente para ridicularizá-las e fraudá-las. Pois se até mesmo nos tribunais, onde se examinam as questões mundanas, apresentamos tudo o que serve ao caso – lugar e tempo, causas, pessoas e muito mais – então não seria absurdo citar a esmo palavras das Escrituras quando temos diante de nós a luta pela vida eterna?"
É precisamente o que fazem muitos protestantes; como não dominam o contexto nem possuem o dogma teológico completo, eles citam as Escrituras a esmo: "É óbvio que isto significa aquilo". Mas as Escrituras devem ser inseridas no devido contexto, tanto no livro em que são citadas como no resto da Bíblia, e em todo ensinamento do Cristo conforme transmitido por Sua Igreja.
Uma questão espinhosa nas Sagradas Escrituras é saber o que deve ser interpretado literalmente e o que não deve ser interpretado literalmente. Não podemos responder essa questão na base do "bom senso" porque isso só fomentaria o surgimento de novas seitas. São Simeão, o Novo Teólogo, um grande Santo Padre do século XI, explica essa questão de forma concisa:
"Cristo, o Mestre de tudo, ensina diariamente por meio do Santo Evangelho, falando algumas coisas de maneira velada, quando Ele faz uso de parábolas, para que poucos possam entender. E algumas dessas coisas Ele explica mais tarde a seus discípulos, dizendo A vós vos é dado conhecer os mistérios do reino de Deus, mas aos outros por parábolas (Lucas 8:10). Mas outras coisas Ele fala abertamente, para todos, conforme atestou o Apóstolo, Eis que agora falas abertamente, e não dizes parábola alguma (João 16:29)... Portanto, é nosso dever investigar e descobrir quais palavras o Senhor ensinou de maneira clara e aberta e quais Ele ensinou de maneira velada, por parábolas".
São Simeão dá exemplos de quando Nosso Senhor fala abertamente. Por exemplo, Amai a vossos inimigos (Mateus 5:44). Devemos entender isso literalmente. Ou, nas beatitudes: Bem-aventurados os que choram pois serão consolados etc. Devemos entender da maneira como está escrito; é tempo de chorar. E mais, Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus (Mateus 3:2); ou Quem ama sua vida perdê-la-á (João 12:25); ou Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me (Mateus 16:24).
Algumas dessas coisas são difíceis de cumprir. Outras são dificílimas até mesmo para nossas mentes humanas captar. Mas, com o conhecimento do Reino dos Céus e a vida espiritual, elas se tornam claras e são interpretadas literalmente, mesmo que às vezes com o uso de metáforas.
Como exemplos de parábolas, São Simeão fala da fé enquanto grão de mostarda (Lucas 13:31), ou do Reino dos Céus enquanto pérola de grande valor (Mateus 13:45), ou fermento (Mateus 13:33). Continua São Simeão:
"Portanto, reflitam, eu vos imploro, sobre a grandeza da sabedoria de Deus, que por meio de tais exemplos sensoriais, aparentemente rasteiros, pinta para nós como um artista que esboça em nossa mente aquilo que é impensável e inacessível. Ele age assim para que os descrentes permaneçam cegos, desprovidos de conhecimento das boas coisas do céu, pois se tornaram indignos em função de sua descrença; e para que os crentes, por outro lado, ao ouvirem e receberem com fé a mensagem da parábola, possam enxergar a verdade e conhecer limpidamente a realidade nas coisas que são mostradas pelas parábolas, pois as parábolas são as imagens das coisas espirituais" (Homilia 53).
São Simeão também ensina que, além do que é dito abertamente, as epístolas dos Apóstolos contêm muitas coisas ocultas.
Há casos estreitamente relacionados com essa questão dos significados místicos vs. literais, nos quais objetos materiais são citados para que nossas mentes se elevem às realidades espirituais. Isso não quer dizer que devemos ficar procurando símbolos nas Escrituras, como se tudo ali tivesse um significado a mais; é uma questão de elevar-nos a um nível espiritual onde possamos começar a entender a realidade espiritual da qual os autores inspirados freqüentemente versavam. Assim, quando David diz, Soltaste as minhas ataduras (Salmos 115:16), ele não se refere apenas às ataduras físicas, mas trata-se de um símbolo para o livramento da corrupção e da morte. Este é o sentido místico. Mas ele não está usando a imagem mundana das "ataduras" somente para expressar o sentido místico, a ausência de corrupção ou a imortalidade; ele também versa, ao mesmo tempo, de um segundo nível de significado, usando a imagem física enquanto oportunidade para expressar a verdade espiritual da libertação da corrupção. Se já conhecemos o ensinamento cristão sobre a queda de Adão, a corrupção do mundo e nossa redenção por Jesus Cristo, e se já estamos lutando para elevar-nos a esse nível espiritual, não necessitamos de comentários que nos expliquem as palavras, isto é, os Santos Padres até nos ajudariam, mas não precisaríamos de um comentário deles simplesmente para nos informar que "x=y". As próprias palavras expressam esse sentido espiritual. Qualquer um que leia e reze com os Salmos já experimentou isso. Especialmente em tempos de aflição, as palavras dos Salmos adquirem um novo e mais profundo significado; descobrimos que as coisas físicas referem-se a nossas aflições e depressões, e a nossa necessidade de receber libertação de Cristo.
Os ofícios ortodoxos estão cheios desse tipo de linguagem, a qual chamamos de poesia sacra. A chave para entender essa poesia é viver uma vida espiritual, que é a respeito da qual versam as Escrituras.
Em suma, o entendimento das Escrituras requer a graça de Deus. São Simeão, o Novo Teólogo, dá uma excelente imagem disso:
"O conhecimento espiritual é como uma casa construída em meio à sabedoria grega e mundana, em cujo interior encontra-se o conhecimento das Sagradas Escrituras – como se fosse um cofre bem aferrolhado – e o inexprimível tesouro escondido nesse conhecimento, isto é, a graça divina. Aqueles que nela adentram não conseguem enxergar esse tesouro se o cofre não lhes for aberto, mas esse cofre não pode ser desaferrolhado pela sabedoria humana. Eis por que as pessoas que pensam de maneira mundana não conhecem o tesouro espiritual que se esconde por trás do cofre do conhecimento espiritual. E assim como aquele que carrega esse cofre nos ombros não consegue enxergar o tesouro que lá se encontra, assim também aquele que lê e decora as Escrituras, recitando-as todas como se fossem um simples salmo, é incapaz só por isso de adquirir a graça do Espírito Santo, que nelas se esconde. Pois assim como aquilo que se esconde no cofre não pode ser revelado pelo próprio cofre, assim também o que está oculto pelas Sagradas Escrituras não pode ser revelado pelas próprias Escrituras" (Homilia 39).
Essa passagem é muito interessante; ela mostra claramente como os protestantes estão errados – pois as Escrituras não revelam o significado das Escrituras. Em vez disso, é a graça de Deus que o revela. São Simeão prossegue:
"Quando Deus habita em nós e revela-Se a nós conscientemente, é então que despertamos para o conhecimento, isto é, passamos a entender na realidade aqueles mistérios ocultos nas divinas Escrituras. Mas é impossível conquistarmos isso de outra maneira. Aqueles que não sabem e não experimentaram o que estou falando ainda não saborearam a doçura da vida imortal que possuem as palavras divinas, e ostentam apenas seu próprio conhecimento; eles depositam a esperança de sua salvação somente no conhecimento das Escrituras e no fato de que as conhecem de cor. Após a morte, essas pessoas serão mais severamente julgadas do que as que nunca ouviram falar das Escrituras. Especialmente aqueles que se desviaram em sua ignorância, corrompendo o significado das divinas Escrituras e interpretando-as de acordo com suas paixões. Para eles, o poder das Escrituras é inacessível... Aquele que tem toda a Escritura nos lábios não consegue entender e conquistar a glória e o poder místicos nela ocultos se não cumprir os mandamentos de Deus e receber o Consolador, o Espírito da Verdade. É Ele que pode lhe abrir as palavras das Escrituras enquanto livro, e mostrar-lhe a glória mística que nelas se encontra e pode, ao mesmo tempo, mostrar-lhe o poder e a glória de Deus, as boas coisas nelas ocultas, juntamente com a vida eterna que delas abunda. Mas todas essas coisas estarão ocultas e desconhecidas para aqueles que tratam com descuido e desdém os mandamentos de Deus".
Portanto, para lermos e entendermos a Bíblia, devemos viver de acordo com os mandamentos, recebendo a graça do Espírito Santo, até mesmo da maneira que os autores dos livros sagrados viviam. E devemos ser ávidos e zelosos em nossa leitura. São João Damasceno, um grande Santo Padre ortodoxo do século VIII, que resumiu o ensinamento dos primeiros Padres em seu livro Da Fé Ortodoxa, disse: "Batamos casualmente, mas com avidez e persistência, e não desistamos, pois assim se nos abrirá. Se lermos uma e depois duas vezes e mesmo assim não entendermos o que lemos, não nos desencorajamos. Persistamos, reflitamos e investiguemos, pois está escrito Pergunta a teu pai, e ele te informará; aos teus anciãos, e eles te dirão (Deuteronômio 32:7). Pois nem todos têm conhecimento. Aproveitemos, da fonte do paraíso, toda água pura e corrente que brota vida eterna; alegremo-nos nelas; alegremo-nos gulosamente nelas para nossa própria saciedade, pois elas contêm a graça que jamais se exauri".
Outra questão importante referente à abordagem adequada ante as Escrituras é a humildade, isto é, não devemos esperar "entender" logo na primeira leitura, como se nosso bom senso fosse capaz disso; o que devemos ter é a idéia muito humilde de que provavelmente uma grande porção do entendimento do que acabamos de ler nos escapou, mesmo nos trechos mais "óbvios". Essa humildade é fundamental, pois a causa de todas as seitas protestantes, que se baseiam em diferentes interpretações bíblicas, é o orgulho. Eles lêem e pensam: "Eu entendi o que está escrito". E estão errados. Quando lemos as Escrituras, devemos pensar: "Entendi um pouquinho, meus padres me ensinaram, li comentários e ouvi sermões a respeito, meu entendimento está de acordo com o que a Tradição da Igreja me ensinou, mas, mesmo assim, não confio totalmente no que penso ter entendido". Não podemos simplesmente aceitar a primeira idéia que brota em nossas mentes – nem a segunda, nem a terceira; devemos nos aprofundar, verificando o que os Padres ensinam, o que a Igreja ensina, como ela se encaixa nos demais livros da Bíblia, sempre pensando que nosso conhecimento das Escrituras – não importa o quanto saibamos – é sempre deficiente; nunca sabemos o bastante; temos de estar sempre aptos a aprender mais.
1 Trata-se do Salmo 119(118, LXX):161-162. (N. do T.)
Todos sabem que os protestantes dedicam grande parte de seu tempo lendo as Sagradas Escrituras, pois para eles isso é o que há de mais importante. Para nós, cristãos ortodoxos, as Escrituras também têm seu lugar. Porém, freqüentemente não tiramos vantagem desse fato e não percebemos a importância que elas têm para nós; ou, se percebemos, acabamos não lidando com elas com o espírito correto porque a abordagem e a literatura protestantes estão por toda a parte, ao passo que nossa abordagem ortodoxa é bem diferente.
O fato de as Escrituras serem parte essencial de nossa fé é algo que pode ser detectado em nossos ofícios. Há as leituras diárias do Novo Testamento, tanto das epístolas quanto dos evangelhos. No espaço de um ano lemos praticamente todo o Novo Testamento. Nos primeiros três dias da semana anterior à Páscoa – a festa da ressurreição de Cristo – os quatro evangelhos são lidos na igreja, e na noite de quinta-feira da Semana da Paixão são lidos doze longos trechos dos evangelhos sobre a Paixão de Nosso Senhor, com versos cantados entre cada trecho servindo de comentários. O Velho Testamento também é usado nos ofícios. Nas vesperais de cada grande dia santo são lidas três parábolas a título de prefiguração. E as Liturgias estão cheias de citações e alusões bíblicas inspiradas diretamente nas Sagradas Escrituras. Os cristãos ortodoxos também lêem a Bíblia fora dos ofícios. São Serafim, em sua vida monástica, lia semanalmente todo o Novo Testamento. Talvez porque tenhamos uma riqueza tão grande de trechos bíblicos em nossa tradição ortodoxa nos sintamos culpados de dá-las como certas, de não valorizá-las e não fazer o devido uso delas.
Um dos nossos maiores intérpretes das Sagradas Escrituras é São João Crisóstomo, um Santo Padre do século V. Ele escreveu comentários a praticamente todo o Novo Testamento, inclusive a todas as epístolas de São Paulo e a muitos livros do Velho Testamento. Em um dos sermões sobre as Escrituras, eis o que São João fala a seu rebanho:
"Exorto-vos, e não cessarei de vos exortar, a prestar atenção não apenas ao que aqui é dito, mas quando estiverdes em vossas casas também deveis vos ocupar com a leitura das Sagradas Escrituras. Que ninguém venha dizer-me palavras frias – dignas de condenação – como estas: 'Estou ocupado com um julgamento, tenho obrigações na cidade, tenho uma esposa, tenho de alimentar meus filhos, e não é minha obrigação ler as Escrituras, mas daqueles que a tudo renunciaram'. O que dizes?! Não é tua obrigação ler as Escrituras porque estás distraído com inúmeras preocupações? Ao contrário, é tua obrigação, mais do que aos outros, mais do que aos monges; eles não precisam tanto de ajuda quanto tu, que vives em meio a tais preocupações. Tu necessitas ainda mais de tratamento, pois estás constantemente sob ataque e fere-te com freqüência. A leitura das Escrituras é uma grande defesa contra o pecado. A ignorância das Escrituras é uma grande desgraça, um grande abismo. Nada saber da palavra de Deus é um desastre. Isso é o que despertou as heresias, a imoralidade; é o que virou tudo de cabeça para baixo".
Vemos aqui que a leitura das Sagradas Escrituras nos guarnece de uma poderosa arma contra as tentações mundanas que nos cercam – e não a utilizamos o bastante. A Igreja Ortodoxa, longe de desestimular a leitura das Escrituras, a encoraja. A Igreja apenas é contra a má-leitura das Escrituras, contra ler nelas suas próprias opiniões e paixões, até mesmo pecados. Quando vemos os protestantes ficarem excitados com algo que dizem estar nas Escrituras – o arrebatamento, por exemplo, ou o milênio – não somos contra sua leitura das Escrituras em si, mas contra a má-interpretação que fizeram das Escrituras. Para que nós mesmos evitemos essas ciladas, temos de entender o que é o texto sagrado e como devemos lidar com ele.
A Bíblia – as Sagradas Escrituras, o Velho e o Novo Testamento – não é um livro comum. Não é um livro que contém verdades humanas, mas verdades divinamente reveladas. É a palavra de Deus. Portanto, devemos abordá-la com reverência e coração contrito, não com mera curiosidade ou frieza acadêmica. Hoje em dia, ninguém deveria esperar que uma pessoa que não tenha simpatia pelo Cristianismo nem pelas Escrituras adote uma postura reverente. Há, porém, tamanho poder nas palavras das Escrituras – especialmente nos evangelhos – que elas podem converter uma pessoa mesmo que tal reverência esteja ausente. Ouvimos falar de casos assim em países comunistas; a polícia persegue os fiéis e interrompe suas reuniões; eles confiscam toda sua literatura: Bíblias, hinários, textos patrísticos – muitos escritos à mão. Eles os queimam, mas às vezes acontece da pessoa designada a queimá-los ou da pessoa que os recolhe ficar curiosa e começar a ler o material confiscado. E há casos em que a vida da pessoa muda. De repente, ela encontra Jesus Cristo. E fica chocada, já que foi criado com a noção de que tudo isso é um grande mal; e eis que descobre que não há mal algum, mas algo realmente fantástico.
Muitos estudiosos modernos abordam as Escrituras com espírito frio, acadêmico; eles não desejam salvar suas almas lendo as Escrituras: eles somente querem provar que são grandes acadêmicos, que são capazes de criar novas idéias; eles querem ficar famosos. Mas nós, cristãos ortodoxos, devemos nos imbuir da máxima reverência e contrição, isto é, devemos nos aproximar da palavra de Deus com o desejo de mudar nossos corações. Lemos as Escrituras para alcançar a salvação, não, como crêem alguns protestantes, porque temos certeza de que seremos salvos sem a possibilidade de cair; mas sim como aqueles que tentam manter desesperadamente a salvação que Cristo nos deu, cientes de nossa miséria espiritual. Para nós, ler as Escrituras é, literalmente, uma questão de vida ou morte. Conforme escreveu o Rei David nos Salmos: O meu coração temeu a tua palavra. Folgo com a tua palavra, como aquele que acha um grande despojo .1
A Bíblia contém a verdade, e nada mais. Portanto, é nosso dever estudar as Escrituras crendo em sua verdade, sem duvidar ou criticar. Se adotarmos uma postura crítica então não receberemos benefício algum da leitura das Escrituras, mas seremos apenas mais um entre os homens "sábios" que acham que sabem mais do que a revelação de Deus. Na verdade, os sábios deste mundo freqüentemente não captam o significado das Escrituras. Nosso Senhor assim rezou: Graças te dou, ó Pai...que escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste às criancinhas (Lucas 10:21). Em nossa abordagem, não devemos ser sofisticados, complicados, acadêmicos; devemos ser simples. E se formos simples, as palavras terão significado para nós.
Para que a leitura da Bíblia seja proveitosa – para que ajude a salvar nossas almas – devemos levar uma vida espiritual de acordo com o Evangelho. As Escrituras são voltadas precisamente àqueles que estão tentando levar uma vida espiritual. Os demais em geral as lerão à toa, e nem mesmo conseguirão entender alguma coisa. São Paulo ensina: O homem natural [isto é, não-espiritual] não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente (I Coríntios 2:14). Quando mais espiritual a vida do homem, mais ele será capaz de entender a Bíblia.
Uma segunda questão. Por sermos fracos e gabarmos em nossas enfermidades, temos de rezar a Deus pedindo para que Ele abra os olhos de nosso entendimento pela Sua graça. Mesmo os discípulos de Cristo, na estrada para Emaús, não entenderam as Escrituras; eles não entenderam que era Cristo diante deles interpretando as Escrituras, até que o próprio Cristo abriu-lhes a mente (Lucas 24:45). Portanto, até que tenhamos nossas mentes abertas – algo que vem da graça de Deus – leremos as Escrituras sem entendê-las; ouviremos sem entendê-las, veremos sem vê-las.
A inspiração da Bíblia
Por que dizemos que a Bíblia é a palavra inspirada de Deus? Entre ocultistas e espíritas, há um fenômeno conhecido por psicografia, no qual a pessoa literalmente é possuída por um espírito e escreve sem usar o livro arbítrio. De fato, a última moda desse tipo de ocultismo é sentar-se em frente a uma máquina de escrever e deixar o espírito se apossar de seus dedos, até que a "mensagem espiritual" surja. Não é assim que as Sagradas Escrituras são inspiradas. Esse é o jeito dos demônios operarem. São Basílio, em sua introdução aos comentários ao livro de Isaías, afirma:
"Algumas pessoas pensam que os profetas profetizavam em êxtase, de maneira que suas mentes humanas estivessem eclipsadas pelo Espírito. Mas é contra a promessa de Deus que a inspiração divina se dê em estado de êxtase, isto é, de maneira que a pessoa saia de seu estado normal e assim forneça ensinamentos divinos, e que beneficie os outros sem que ela mesma se beneficie de suas próprias palavras...E, no geral", São Basílio prossegue, "não é irrazoável que o espírito de sabedoria deixe uma pessoa fora de si e que o espírito do conhecimento aniquile seu poder racional? A luz não produz escuridão mas, ao contrário, desperta o poder natural da visão. E o Espírito não produz trevas nas almas mas, pelo contrário, desperta a visão mental ou contemplação naqueles purificados de máculas pecaminosas".
A revelação das Sagradas Escrituras é dada aos homens santos e puros em estado exaltado e inspirado, mas eles retêm controle total de suas faculdades mentais. Aqueles que desejam entender as Escrituras devem, a exemplo dos santos, lutar por uma vida santa e pura, recebendo a graça de Deus para entender o que o Espírito Santo revelou. São Basílio, na mesma introdução, escreve:
"O primeiro grande dom, que requer uma alma cuidadosamente purificada, é conter em si inspiração divina e profetizar os mistérios de Deus. [Ele se refere à pessoa que escreve as Escrituras]. E, em seguida, o segundo dom, que igualmente requer grande e assíduo cuidado, é prestar atenção às intenções do que foi declarado pelo Espírito, e não errar em seu entendimento, mas deixar-se conduzir a esse entendimento pelo Espírito". Ou seja, o segundo dom é entender o que esses profetas, os autores das Sagradas Escrituras, escreveram em seu estado inspirado. Portanto, nós também devemos lutar para receber a graça de Deus e a inspiração para entender as Escrituras; o trabalho de interpretar as Escrituras não é nada fácil. De fato, São Basílio ensina: "Há muitos trechos das Escrituras extremamente difíceis de entender". Como assim? Ele ensina:
"Nosso Criador não desejou que fôssemos como os animais e que todas as conveniências da vida nascessem conosco [isto é, peles para nos adornar, chifres para nos defender etc.] para que o uso da mente se tornasse algo necessário; assim também são as Escrituras. Ele permitiu nelas uma ausência de clareza para benefício da mente, para que nela despertasse sua atividade. Aquilo que se obtém pelo labor se adere a nós de alguma maneira, e aquilo que é produzido por um longo período é mais sólido, enquanto que aquilo que se obtém facilmente não é muito desfrutado". Ou seja, as Escrituras são explicitamente difíceis para que forcemos nossas mentes a se elevarem a certo estado de entendimento, e não simplesmente receber de bandeja um sentido óbvio.
Tudo isso mostra que a leitura da Bíblia não é para ser encarada de maneira superficial; não é uma questão de reunir e selecionar informações. Ao invés disso, é para salvação de nossas almas. E, à medida que lemos, temos de estar imersos num processo de mudança, pois este é o propósito da Bíblia. Se não somos convertidos, é para que nos convertamos. Se já somos convertidos, é para que lutemos ainda mais. Se já estivermos lutando, é para que nos humilhemos e não pensemos que somos grande coisa. Não há estado no qual as Escrituras não se apliquem.
Isso tudo é radicalmente diferente das doutrinas protestantes, que encaram as Escrituras como se fossem um oráculo infalível (o que, na verdade, não é muito deferente da crença na infalibilidade do Papa de Roma) e que o bom senso humano é capaz de entender seu significado. Se vocês observarem as inúmeras seitas protestantes, verificarão que cada uma delas tem interpretações peculiarmente diferentes das mesmas passagens, e todas dizem que é o sentido "obviamente" correto. Às vezes eles aprendem grego e dizem que é "obviamente" o que aquele trecho grego quer dizer, enquanto outros afirmam exatamente o oposto e acham que isso é igualmente "óbvio". Como saber o que realmente essas passagens querem dizer?
Como interpretar as Escrituras
Primeiramente, vejamos alguns exemplos de como não interpretar as Escrituras.
Há inúmeras passagens nas Escrituras que parecem se contradizer. Por exemplo, Qualquer que é nascido de Deus não comete pecado; porque a sua semente permanece nEle; e não pode pecar, porque é nascido de Deus (I João 3:9). De acordo com o sentido literal, vocês pensariam que uma pessoa que se torna cristã cessa de pecar. Mas se fosse assim, então para que a confissão? Por que continuamente pecamos? Será que isso significa que não somos cristãos? Mas na mesma epístola lemos: Se dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e não há verdade em nós (I João 1:8). Como o mesmo autor pôde escrever duas passagens tão aparentemente contraditórias? É óbvio que temos de encontrar um entendimento mais profundo nelas. Temos de entender que enquanto temos a graça de Deus, não pecamos; quando pecamos isso prova que perdemos a graça de Deus, e temos de lutar para reconquistá-la. Não devemos nos enganar achando que estamos constantemente em estado puro, sem pecado; em vez disso, estamos constantemente lutando para atingir tal estado, às vezes conseguindo, às vezes não. Eis nossa batalha cristã. Essas passagens devem ser lidas com a consciência do que significa lutar enquanto cristão ortodoxo.
São Mateus afirma: E a ninguém na terra chamais vosso pai (23:9). Muitos protestantes interpretam esse trecho literalmente, recusando-se assim a chamar qualquer sacerdote de "Padre". Mas o próprio livro de São Mateus chama a Abraão de nosso pai (3:9). Claro, esse trecho se refere a pais que estão mortos; é uma diferença. Em sua epístola aos Hebreus, São Paulo fala de pais e profetas do Velho Testamento; eles também estão mortos. Mas ele também fala de pais vivos: Porque ainda que tivésseis dez mil aios em Cristo, não teríeis, contudo, muitos pais; porque eu pelo evangelho vos gerei em Jesus Cristo (I Cor 4:15). Aqui ele afirma com clareza que "Eu sou teu pai espiritual". Ele não afirma isso com muitas palavras, então os protestantes fazem vista grossa. No entanto, ele está dizendo que você não tem muitos pais, portanto tem alguns, e eu sou um deles porque "vos gerei em Jesus Cristo". Esse trecho parece contradizer o Senhor, que diz E a ninguém na terra chamais vosso pai. Mas Nosso Senhor está falando dAquele Pai; há somente um Pai no sentido de que ninguém mais é Pai. Há outros pais em sentido limitado: há alguns pais espirituais, há pais na carne..., todos são pais, mas de tipos diferentes; assim como Ele diz: "Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso Mestre, que é o Cristo" (Mateus 23:10).
Literal vs. não-literal
Certa vez, recebemos a visita de um grupo de protestantes que diziam interpretar a Bíblia de maneira absolutamente literal. Questionei-lhes a respeito do trecho que diz "Se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos" (João 6:53). A primeira coisa que disseram foi: "Bem, isto não é para ser tomado literalmente". Eles se contradisseram imediatamente. Eles acham que aceitam tudo literalmente, mas abrem exceções aos trechos que não concordam com suas crenças.
Muitos trechos das Escrituras só podem ser compreendidos em um contexto dogmático – que a pessoa recebe de outras escrituras ou de outra fonte, seja da autoridade da Igreja ou de opiniões pessoais de algum professor. Alguns adventistas, comentando a promessa do Senhor ao bom ladrão – Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso (Lucas 23:43) – defendem a idéia de que o trecho está mal traduzido; o correto seria Em verdade te digo hoje que estarás..., pois eles crêem que quando uma pessoa morre, sua alma adormece, e portanto o ladrão não poderia estar com Cristo no Paraíso hoje. Eis um exemplo de alteração do significado das Escrituras para que se conforme com suas próprias crenças. E como sua doutrina dogmática está incorreta neste ponto, sua interpretação das Escrituras também estará.
Questões assim surgem quando nos detemos em versículos da Bíblia de maneira isolada. Muitos protestantes discutem por horas, às vezes anos, em tais questões. É importante não nos deixarmos atolar nelas. Devemos entender os princípios para uma correta interpretação das Escrituras. Eis o que ensina São João Crisóstomo, em sua homilia sobre Filipenses:
"Não devemos nos apegar às palavras das Escrituras e arrancá-las de suas conexões e contextos. Não devemos tomar palavras isoladamente, desprovendo-as do apoio das palavras que a precedem e que a seguem, simplesmente para ridicularizá-las e fraudá-las. Pois se até mesmo nos tribunais, onde se examinam as questões mundanas, apresentamos tudo o que serve ao caso – lugar e tempo, causas, pessoas e muito mais – então não seria absurdo citar a esmo palavras das Escrituras quando temos diante de nós a luta pela vida eterna?"
É precisamente o que fazem muitos protestantes; como não dominam o contexto nem possuem o dogma teológico completo, eles citam as Escrituras a esmo: "É óbvio que isto significa aquilo". Mas as Escrituras devem ser inseridas no devido contexto, tanto no livro em que são citadas como no resto da Bíblia, e em todo ensinamento do Cristo conforme transmitido por Sua Igreja.
Uma questão espinhosa nas Sagradas Escrituras é saber o que deve ser interpretado literalmente e o que não deve ser interpretado literalmente. Não podemos responder essa questão na base do "bom senso" porque isso só fomentaria o surgimento de novas seitas. São Simeão, o Novo Teólogo, um grande Santo Padre do século XI, explica essa questão de forma concisa:
"Cristo, o Mestre de tudo, ensina diariamente por meio do Santo Evangelho, falando algumas coisas de maneira velada, quando Ele faz uso de parábolas, para que poucos possam entender. E algumas dessas coisas Ele explica mais tarde a seus discípulos, dizendo A vós vos é dado conhecer os mistérios do reino de Deus, mas aos outros por parábolas (Lucas 8:10). Mas outras coisas Ele fala abertamente, para todos, conforme atestou o Apóstolo, Eis que agora falas abertamente, e não dizes parábola alguma (João 16:29)... Portanto, é nosso dever investigar e descobrir quais palavras o Senhor ensinou de maneira clara e aberta e quais Ele ensinou de maneira velada, por parábolas".
São Simeão dá exemplos de quando Nosso Senhor fala abertamente. Por exemplo, Amai a vossos inimigos (Mateus 5:44). Devemos entender isso literalmente. Ou, nas beatitudes: Bem-aventurados os que choram pois serão consolados etc. Devemos entender da maneira como está escrito; é tempo de chorar. E mais, Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus (Mateus 3:2); ou Quem ama sua vida perdê-la-á (João 12:25); ou Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me (Mateus 16:24).
Algumas dessas coisas são difíceis de cumprir. Outras são dificílimas até mesmo para nossas mentes humanas captar. Mas, com o conhecimento do Reino dos Céus e a vida espiritual, elas se tornam claras e são interpretadas literalmente, mesmo que às vezes com o uso de metáforas.
Como exemplos de parábolas, São Simeão fala da fé enquanto grão de mostarda (Lucas 13:31), ou do Reino dos Céus enquanto pérola de grande valor (Mateus 13:45), ou fermento (Mateus 13:33). Continua São Simeão:
"Portanto, reflitam, eu vos imploro, sobre a grandeza da sabedoria de Deus, que por meio de tais exemplos sensoriais, aparentemente rasteiros, pinta para nós como um artista que esboça em nossa mente aquilo que é impensável e inacessível. Ele age assim para que os descrentes permaneçam cegos, desprovidos de conhecimento das boas coisas do céu, pois se tornaram indignos em função de sua descrença; e para que os crentes, por outro lado, ao ouvirem e receberem com fé a mensagem da parábola, possam enxergar a verdade e conhecer limpidamente a realidade nas coisas que são mostradas pelas parábolas, pois as parábolas são as imagens das coisas espirituais" (Homilia 53).
São Simeão também ensina que, além do que é dito abertamente, as epístolas dos Apóstolos contêm muitas coisas ocultas.
Há casos estreitamente relacionados com essa questão dos significados místicos vs. literais, nos quais objetos materiais são citados para que nossas mentes se elevem às realidades espirituais. Isso não quer dizer que devemos ficar procurando símbolos nas Escrituras, como se tudo ali tivesse um significado a mais; é uma questão de elevar-nos a um nível espiritual onde possamos começar a entender a realidade espiritual da qual os autores inspirados freqüentemente versavam. Assim, quando David diz, Soltaste as minhas ataduras (Salmos 115:16), ele não se refere apenas às ataduras físicas, mas trata-se de um símbolo para o livramento da corrupção e da morte. Este é o sentido místico. Mas ele não está usando a imagem mundana das "ataduras" somente para expressar o sentido místico, a ausência de corrupção ou a imortalidade; ele também versa, ao mesmo tempo, de um segundo nível de significado, usando a imagem física enquanto oportunidade para expressar a verdade espiritual da libertação da corrupção. Se já conhecemos o ensinamento cristão sobre a queda de Adão, a corrupção do mundo e nossa redenção por Jesus Cristo, e se já estamos lutando para elevar-nos a esse nível espiritual, não necessitamos de comentários que nos expliquem as palavras, isto é, os Santos Padres até nos ajudariam, mas não precisaríamos de um comentário deles simplesmente para nos informar que "x=y". As próprias palavras expressam esse sentido espiritual. Qualquer um que leia e reze com os Salmos já experimentou isso. Especialmente em tempos de aflição, as palavras dos Salmos adquirem um novo e mais profundo significado; descobrimos que as coisas físicas referem-se a nossas aflições e depressões, e a nossa necessidade de receber libertação de Cristo.
Os ofícios ortodoxos estão cheios desse tipo de linguagem, a qual chamamos de poesia sacra. A chave para entender essa poesia é viver uma vida espiritual, que é a respeito da qual versam as Escrituras.
Em suma, o entendimento das Escrituras requer a graça de Deus. São Simeão, o Novo Teólogo, dá uma excelente imagem disso:
"O conhecimento espiritual é como uma casa construída em meio à sabedoria grega e mundana, em cujo interior encontra-se o conhecimento das Sagradas Escrituras – como se fosse um cofre bem aferrolhado – e o inexprimível tesouro escondido nesse conhecimento, isto é, a graça divina. Aqueles que nela adentram não conseguem enxergar esse tesouro se o cofre não lhes for aberto, mas esse cofre não pode ser desaferrolhado pela sabedoria humana. Eis por que as pessoas que pensam de maneira mundana não conhecem o tesouro espiritual que se esconde por trás do cofre do conhecimento espiritual. E assim como aquele que carrega esse cofre nos ombros não consegue enxergar o tesouro que lá se encontra, assim também aquele que lê e decora as Escrituras, recitando-as todas como se fossem um simples salmo, é incapaz só por isso de adquirir a graça do Espírito Santo, que nelas se esconde. Pois assim como aquilo que se esconde no cofre não pode ser revelado pelo próprio cofre, assim também o que está oculto pelas Sagradas Escrituras não pode ser revelado pelas próprias Escrituras" (Homilia 39).
Essa passagem é muito interessante; ela mostra claramente como os protestantes estão errados – pois as Escrituras não revelam o significado das Escrituras. Em vez disso, é a graça de Deus que o revela. São Simeão prossegue:
"Quando Deus habita em nós e revela-Se a nós conscientemente, é então que despertamos para o conhecimento, isto é, passamos a entender na realidade aqueles mistérios ocultos nas divinas Escrituras. Mas é impossível conquistarmos isso de outra maneira. Aqueles que não sabem e não experimentaram o que estou falando ainda não saborearam a doçura da vida imortal que possuem as palavras divinas, e ostentam apenas seu próprio conhecimento; eles depositam a esperança de sua salvação somente no conhecimento das Escrituras e no fato de que as conhecem de cor. Após a morte, essas pessoas serão mais severamente julgadas do que as que nunca ouviram falar das Escrituras. Especialmente aqueles que se desviaram em sua ignorância, corrompendo o significado das divinas Escrituras e interpretando-as de acordo com suas paixões. Para eles, o poder das Escrituras é inacessível... Aquele que tem toda a Escritura nos lábios não consegue entender e conquistar a glória e o poder místicos nela ocultos se não cumprir os mandamentos de Deus e receber o Consolador, o Espírito da Verdade. É Ele que pode lhe abrir as palavras das Escrituras enquanto livro, e mostrar-lhe a glória mística que nelas se encontra e pode, ao mesmo tempo, mostrar-lhe o poder e a glória de Deus, as boas coisas nelas ocultas, juntamente com a vida eterna que delas abunda. Mas todas essas coisas estarão ocultas e desconhecidas para aqueles que tratam com descuido e desdém os mandamentos de Deus".
Portanto, para lermos e entendermos a Bíblia, devemos viver de acordo com os mandamentos, recebendo a graça do Espírito Santo, até mesmo da maneira que os autores dos livros sagrados viviam. E devemos ser ávidos e zelosos em nossa leitura. São João Damasceno, um grande Santo Padre ortodoxo do século VIII, que resumiu o ensinamento dos primeiros Padres em seu livro Da Fé Ortodoxa, disse: "Batamos casualmente, mas com avidez e persistência, e não desistamos, pois assim se nos abrirá. Se lermos uma e depois duas vezes e mesmo assim não entendermos o que lemos, não nos desencorajamos. Persistamos, reflitamos e investiguemos, pois está escrito Pergunta a teu pai, e ele te informará; aos teus anciãos, e eles te dirão (Deuteronômio 32:7). Pois nem todos têm conhecimento. Aproveitemos, da fonte do paraíso, toda água pura e corrente que brota vida eterna; alegremo-nos nelas; alegremo-nos gulosamente nelas para nossa própria saciedade, pois elas contêm a graça que jamais se exauri".
Outra questão importante referente à abordagem adequada ante as Escrituras é a humildade, isto é, não devemos esperar "entender" logo na primeira leitura, como se nosso bom senso fosse capaz disso; o que devemos ter é a idéia muito humilde de que provavelmente uma grande porção do entendimento do que acabamos de ler nos escapou, mesmo nos trechos mais "óbvios". Essa humildade é fundamental, pois a causa de todas as seitas protestantes, que se baseiam em diferentes interpretações bíblicas, é o orgulho. Eles lêem e pensam: "Eu entendi o que está escrito". E estão errados. Quando lemos as Escrituras, devemos pensar: "Entendi um pouquinho, meus padres me ensinaram, li comentários e ouvi sermões a respeito, meu entendimento está de acordo com o que a Tradição da Igreja me ensinou, mas, mesmo assim, não confio totalmente no que penso ter entendido". Não podemos simplesmente aceitar a primeira idéia que brota em nossas mentes – nem a segunda, nem a terceira; devemos nos aprofundar, verificando o que os Padres ensinam, o que a Igreja ensina, como ela se encaixa nos demais livros da Bíblia, sempre pensando que nosso conhecimento das Escrituras – não importa o quanto saibamos – é sempre deficiente; nunca sabemos o bastante; temos de estar sempre aptos a aprender mais.
1 Trata-se do Salmo 119(118, LXX):161-162. (N. do T.)