25 de março de 2024

Trechos selecionados de C. S. Lewis sobre os Salmos


Por que às vezes um colega lhe explica melhor a matéria do que o próprio professor?

O colega de classe pode ajudar mais do que o professor porque sabe menos. A dificuldade que queremos que ele nos explique é a mesma com a qual ele teve de lidar recentemente. O especialista a superou há tanto tempo que já se esqueceu. Ele agora vê o assunto de uma maneira mais genérica e sob uma luz tão diferente que não consegue perceber o que está verdadeiramente inquietando o aluno; enxerga dezenas de outras dificuldades, menos a que realmente perturba o estudante.

A imagem cristã de justiça é perfeita. Mas a imagem judaica, embora humana, é muito útil também. Ninguém é bom ante a justiça divina. Mas também ninguém é bom ante a justiça humana.

Acho que há razões muito boas para considerar a imagem cristã do juízo de Deus como muito mais profunda e muito mais segura para nossas almas do que a judaica. Mas isso não significa que a concepção judaica deva ser simplesmente descartada. Eu, pelo menos, acredito que ainda posso alimentar-me bem dela.

Ela complementa a imagem cristã de uma forma muito importante, pois o que nos amedronta na imagem cristã é a pureza infinita do padrão a partir do qual nossas ações serão julgadas. Sabemos, porém, que nenhum de nós jamais se aproximará desse padrão. Estamos todos no mesmo barco. Devemos todos concentrar as nossas esperanças na misericórdia de Des e na obra de Cristo, não em nossa bondade. A imagem judaica de uma ação civil, por sua vez, nos lembra claramente que talvez estejamos em falta não somente em relação aos padrões divinos (o que é óbvio), mas também a um padrão absolutamente humano que todas as pessoas lógicas reconhecem e que nós, em geral, desejamos impor sobre os outros. É quase certo que haja demandas não satisfeitas, demandas humanas, contra cada um de nós; afinal, quem seria capaz de acreditar que, em meio a tantas relações entre empregadores e empregados, marido e mulher, pais e filhos, entre querelas e colaborações, tenha sempre agido (excluindo-se os atos de caridade ou generosidade) com absoluta honestidade e justiça? É claro que esquecemos a maioria das injustiças que cometemos. As partes injustiçadas, no entanto, não esquecem, mesmo quando perdoam. E Deus não esquece. E mesmo o pouco que conseguimos lembrar é terrível o bastante. Poucos de nós temos, em plena medida, dado a nossos alunos, pacientes ou clientes (ou como quer que chamemos nossos “consumidores”) aquilo que recebemos. Nem sempre cumprimos com a justa parte que nos cabe em algum trabalho cansativo quando encontramos um colega ou parceiro que possa ser enganado a fim de carregar todo o fardo.

Quanto mais elevado intelectual e espiritualmente, maior o potencial para a perversidade e impiedade. Quanto mais próximo de Deus, maior o pecado. Por outro lado, a suposta inocência das pessoas ignorantes e carnais deve ser encarada com muita cautela.

Parece haver, no universo moral, uma regra geral que pode ser formulada da seguinte maneira: “Quanto mais alto se é, mais perigo se corre”. O “homem sensual comum”, eventualmente infiel à esposa, que às vezes fica embriagado e é sempre um pouco egoísta, que de vez em quanto (mesmo sem desrespeitar a lei) se revela leviano em relação aos seus ideais, certamente é, de acordo com os padrões comuns, um tipo “inferior” se comparado ao homem cuja alma está ocupada com alguma grande causa, à qual ele submeterá seus prazeres, sua riqueza e até mesmo sua segurança. Mas é o segundo homem que pode verdadeiramente fazer algo perverso – um membro da Inquisição ou do Comitê de Segurança Pública. São os grandes homens, os potenciais santos – e não os homenzinhos comuns – que se tornam fanáticos impiedosos. Os que estão mais bem preparados para morrer por uma causa podem facilmente se tornar os que estão mais preparados para matar por ela. Observa-se o mesmo princípio em ação em um campo (comparativamente) tão irrelevante como a crítica literária; a obra mais brutal, o mais irritante entre todos os críticos, odiado por quase todos os autores, talvez seja o mais honesto e desinteressado, o homem que se importa mais apaixonada e abnegadamente com a literatura. Quanto mais alta a aposta, maior a tentação de entregar-se ao jogo. Não devemos sobrevalorizar a relativa inocência das pessoas pequenas, sensuais e frívolas. Elas não estão acima, mas abaixo de algumas tentações.

[...]

Os judeus pecaram mais do que os pagãos, não porque estivesses mais longe de Deus, mas porque estavam mais próximos dele. Pois o sobrenatural, quando adentra uma alma humana, faz com que ela se abra para novas possibilidades do bem e do mal. A partir desse ponto, a estrada se divide em duas: um caminho para a santidade, o amor, a humildade, e o outro para o orgulho espiritual, a hipocrisia, o zelo perseguidor. E não há caminho de volta para as virtudes e os vícios triviais de uma alma adormecida. Se o chamado divino não nos tornar melhores, nos tornará muito piores. De todos os homens maus, os homens maus religiosos são os piores. De todos os seres criados, o mais maldoso é aquele que originalmente ficava na presença do próprio Deus. Parece não haver saída para isso.

Esvaziar a natureza (trovão, planetas etc.) de divindade a torna mais, e não menos, divina. Adorar a natureza a priva de seu caráter divino, ao contrário do que se poderia supor.

[E]mbora sutil, é significativa a diferença entre ouvir no trovão a voz de Deus ou a voz de um deus. Como vimos, mesmo nos mitos de criação, os deuses têm uma origem. A maioria deles tinha pais e mães, e nós frequentemente sabemos quais foram seus locais de nascimento. Não é uma questão de autoexistência ou de eternidade. A existência lhes é imposta, como a nós, por causas precedentes. Eles são, como nós, criaturas ou produtos, embora sejam mais afortunados que nós por serem mais fortes, mais belos e imortais. Como nós, eles são os atores do drama cósmico, e não seus autores. Platão compreendeu isso plenamente. Seu Deus cria os deuses e os preserva da morte por seu poder, então a imortalidade não é inerente a eles. Em outras palavras, a diferença entre acreditar em Deus e em muitos deuses não é uma questão puramente aritmética. Como já foi dito por alguém, a palavra “deuses” não é efetivamente o plural de Deus, pois Deus não tem plural. Assim, quando ouvimos a voz de um deus no trovão, assustamo-nos, pois a voz de um deus não é, em verdade, uma voz do além-mundo, do incriado. Vamos ainda mais longe quando abstraímos a voz desse deus – ou quando imaginamos esse deus como um anjo, como um servo do outro Deus. O trovão torna-se não menos, e sim mais divino. Ao esvaziar a natureza de um teor de divindade – ou, melhor ainda, das divindades – nós a associamos à deidade e ela passa a ser, então, a portadora das mensagens. Há um sentido no qual a adoração à natureza a silencia – como se uma criança ou um selvagem ficassem tão impressionados com o uniforme do carteiro que deixassem de receber as cartas.

Prestar louvor, agradecer e elogiar são atos típicos de pessoas humildes, equilibradas e capazes. Quem elogia e agradece pouco ou com dificuldade são pessoas potencialmente desajustadas.

Nunca havia notado que toda apreciação transborda espontaneamente em forma de louvor a não ser que (a às vezes até mesmo se) a timidez ou o medo de incomodar os outros forem deliberadamente evocados. O mundo está cercado de louvor: amantes elogiam seus amados e suas amadas; os leitores elogiam seu poeta preferido; os caminhantes elogiam o campo; os jogadores elogiam seus jogos favoritos; há o louvor ao clima, aos vinhos, às louças, aos atores, aos carros, aos cavalos, às faculdades, aos países, a personagens históricos, a crianças, flores, montanhas, selos e insetos raros e, às vezes, até mesmo a políticos e estudiosos. Eu não havia notado como as mentes mais humildes e, ao mesmo tempo, mais equilibradas e capazes prestavam mais louvores, enquanto as excêntricas, desajustadas e descontentes elogiavam menos. [...] Exceto onde as circunstâncias intoleravelmente adversas interferem, o louvor parece quase ser uma manifestação de saúde interior.

[...]

Penso que temos prazer em louvar o que apreciamos porque o louvor não somente expressa como também complementa a apreciação; ele é a própria consumação dessa apreciação. Quando amantes continuamente dizem um ao outro o quão belo ele (ou ela) é, não o fazem apenas por dever; o prazer é incompleto até que seja expresso.

Fonte: C. S. Lewis, Lendo os Salmos, Editora Ultimato, Viçosa, Brasil, 2015.

22 de março de 2024

Elementos de psicologia tomista


O que há de verdadeiramente interessante na psicologia de Tomás de Aquino, ainda que lhe falte as grandes descobertas da psicologia moderna, é seu caráter estrutural, ordenado. Ela combina aquilo que é necessário, advindo principalmente das ilações da doutrina metafísica de Aristóteles, com elementos contingentes da vida orgânica, sensorial e intelectual humanas, advindos principalmente da introspecção e da meditação. O perfil de tal psicologia é tão elevado, tão genial – no sentido de que todas as descobertas posteriores poderiam ser interpretadas à luz dessa magnífica doutrina estruturante – que talvez poderíamos estar tentados a chamá-la de noologia em vez de psicologia. Parece-me que Mário Ferreira tentou algo nessa direção, mas esta suspeita a confirmarei mais tarde. Por ora, no entanto, como veremos ao final deste artigo, a psicologia tomista apresenta um nec plus ultra que a torna, por mais interessante e útil que seja, imperdoavelmente limitada. Não obstante, vejamos o que nos ensina Tomás de Aquino antes que possamos expor o que quer que seja a título de conclusão. Assim, permitamos que um dos melhores discípulos modernos deste grande santo católico romano nos eduque: Robert Brennan.

Brennan admite que o método introspectivo utilizado por Tomás de Aquino, embora seja o mais indicado para estruturar uma doutrina psicológica digna do nome, pode, e deve, ser aperfeiçoado com as descobertas da psicologia moderna. Este é, a propósito, o principal liame entre o que se ensinava na era medieval sobre a estrutura da mente humana e as descobertas contemporâneas: a introspecção.

Os tomistas costumam dividir a vida humana em três grandes partes ou componentes:

  • Vida orgânica
  • Vida sensorial
  • Vida intelectual

Vida orgânica

Quanto à vida orgânica, há pouco que possamos acrescentar ao que as ciências biológicas nos vêm ensinando ultimamente. No entanto, apesar de nos dizerem muito como é a vida orgânica, as ciências biológicas não dizem o que é a vida orgânica. O que fazem é descrever o que é vida. A vida, dizem, é um modo de organização encontrado no que antigamente se chamava de “protoplasma” (atualmente se usa citoplasma ou citosol, embora haja uma infinidade de termos correlatos na literatura científica) que se manifesta por possuir algumas propriedades como nutrição, crescimento, desenvolvimento, reprodução, adaptação etc. Ademais, a disposição muito especial das partes do ser orgânico permite que haja uma coordenação dessas funções de modo que as torne algo uno e simples.

O psicólogo não pode se satisfazer com essa explicação, não por ser incorreta, mas por ser insuficiente. A vida não pode ser encontrada no próprio organismo, ou seja, no corpo do ser vivo, sob pena de concluirmos que as propriedades da vida orgânica sejam causadas por si mesmas. A nutrição se causaria a si mesma e produziria a nutrição. O crescimento ocorre porque supostamente ele mesmo se faz crescer. Não são explicações, mas um mero agregado de palavras sem sentido. Entretanto, se tem de haver algo “anterior” ou “acima” ou “por trás” desses processos todos, o que é? E onde está?

Não há como a explicação ser física, mas tem de ser necessariamente metafísica. E mesmo assim não será plenamente satisfatória. Não cabe aqui detalharmos o hylemorfismo aristotélico do qual Aquino lança mão (leia p.ex. estes artigos), mas basta por ora reforçarmos a ideia antiga e medieval de que o mundo real proclama a existência de duas instâncias, ou princípios, imperceptíveis, mas introspectivamente detectáveis, que explicam a causa dos seres: a forma (morphe) e a matéria (hylé). Todo ser tem uma forma (fórmula, algoritmo, estrutura ontológica, determinação...) própria na qual estão reunidas todas as possibilidades de sua manifestação, e uma matéria (indeterminação, individuação, ...) pela qual é exibida sua existência. A raça angélica é uma exceção, mas isso não importa agora. O que importa é que na forma substancial (e não na forma acidental, muito menos na matéria prima e na matéria secunda) se encontra o princípio vital (ou “força” vital) a partir do qual os processos vitais acima mencionados se efetuam. É a essa forma substancial que chamamos de alma, e é por isso que se diz que “a alma é a forma do corpo”. Estão na alma todas as possibilidades de “encarnação” do homem, o que inclui não apenas o corpo, mas tudo aquilo que é “carne”, que é individuado, como os processos mentais dos sentidos externos, sentidos internos, sentimentos, emoções, vontade, intelecto. Quanto ao “eu puro”, bem, veremos mais adiante como, e se, Aquino o trata.

Aqui é impossível não pensarmos na passagem da potência ao ato porque a alma é, para o corpo, seu “ato puro”, ou seja, o “ponto de partida” supremo antes do qual, ou acima do qual, não houve uma supra-potencialidade. [Veremos adiante se as coisas realmente são assim, mas por ora nos contentemos com o raciocínio de Brennan]. É digno de nota que a enteléquia é o que varia nos seres inanimados enquanto a matéria permanece (veja uma pedra, por exemplo), ao passo que a energia é o que permanece nos seres vivos enquanto a matéria varia (veja os processos metabólicos, por exemplo). Zubiri explicou muito bem esse processo ao notar que a energia está sempre sendo, ou seja, é uma atividade difusora, enquanto a enteléquia simplesmente é, ou seja, é uma atualidade receptora. A energia procura regular-se e, mais importante, aperfeiçoar-se; é algo intrínseco. A enteléquia não apresenta essas características; é algo meramente extrínseco.

Vida sensorial

Consciência. Brennan explica que a diferença entre os vegetais e os animais é a presença da consciência. Como a origem latina da palavra deixa transparecer (conscire), a consciência é uma atividade que dá a entender a existência de um conhecido e um conhecedor. A consciência é mais restrita que a mera vida mental. A consciência implica que o animal tem uma atenção especial aos processos mentais das sensações, sentimentos, ações etc. A vida mental inclui não apenas isso, mas também uma classe enorme de objetos que escapam à consciência, mas, assim mesmo, fazem parte do universo do animal. Ambas, vida mental e particularmente a vida consciente, são nada mais nada menos do que uma capacidade de previsão. Sim, pois elas trazem à vida animal o mundo exterior e, agora de certa forma interiorizado, podem elaborar, combinar e reagir ante ele.

Senso comum. É a capacidade da percepção propriamente, pois é a capacidade de perceber os objetos que estão presentes aqui e agora a nossos sentidos externos. O senso comum é, portanto, o princípio de todos os sentidos externos, é ele quem faz a síntese de todos os estímulos recebidos dos sentidos externos. Além disso, o senso comum é responsável por informar-nos sobre certas características: espaciais (extensão superficial, forma, solidez, distância, tamanho e movimento) e temporais (experiência de duração, experiência de ritmo). E a percepção (i.e., senso comum) apresenta algumas peculiaridades: ambiguidades (o mesmo estímulo pode produzir efeitos mentais diferentes, como percepção de proximidade, similitudes, continuidade, inclusividade, familiaridade, percepção de conjunto), ilusões (agrupamentos de linhas e ângulos, extensão interrompida, ilusões de contorno, ilusões de contraste, ilusões de perspectiva, ilusões de movimento).

Imaginação. A função da imaginação é representar – ou seja, reapresentar – coisas que já foram percebidas pelos sentidos, mas que não estão atualmente presentes. Ela complementa o senso comum. A imaginação é, portanto, uma espécie de “armazém” de impressões sensoriais e, claro, uma revivescência das experimentações prévias. Obviamente a revivescência será menos vivaz que uma percepção. Em relação à percepção, a imagem apresenta menos intensidade, estabilidade e inteireza. Ela se divide em dois tipos: (a) imaginação reprodutiva (tentativas de cópia das experiências sensoriais), (b) imaginação criativa (implica propósito, atenção e seleção a fim de recombinar imagens de impressões sensoriais prévias). Sua importância para a vida mente é: (1) prover significado à mente através de imagens para posterior elaboração de ideias, (2) auxílio à mente para resolução de problemas.

Cogitação (“instinto”). Brennan chama de “instinto” a faculdade da cogitação, às vezes também chamada por alguns medievalistas de “estimação”, embora este seja um termo mais reservado ao instinto animal. Trata-se da capacidade sensorial de reconhecer um objeto como agradável/útil/bem ou repulsivo/inútil/mal. É a cogitação que permite aos homens reagir emocionalmente aos objetos que lhe são apresentados. No entanto, o mais surpreendente da cogitação está no fato de que há uma teleologia nela, ou seja, há um caráter finalista, de finalidade, em sua operação. Isso é surpreendente porque tendemos a atribuir finalidade apenas à atividade racional e suas operações de deliberação, raciocínio, comparação etc. A razão é posta em marcha com uma finalidade, mas, estranhamente, a cogitação também, embora não consigamos conscientemente detectar quais seriam suas finalidades. Contudo, o caráter altamente plástico da cogitação faz dela alvo das intervenções da inteligência, que é capaz, ao longo da vida humana, de moldar a cogitação a ponto de alterá-la, para melhor ou pior, sua ação. Reside aí a principal diferença entre a estimação animal e a cogitação humana.

Memória. A memória complementa a cogitação e a imaginação no sentido de que ela também procura suprir a baixíssima capacidade de retenção do senso comum. A única diferença entre imaginação e memória é que a memória adiciona o caráter de preteridade, ou seja, de passado, à imagem (por “imagem” não entendamos apenas o meramente visual, mas toda uma experiência) que estamos revivescendo na consciência. Assim como na imaginação, a memória também é dividida em dois tipos, que correspondem paralelamente aos dois tipos de imaginação: (a) memória simples (um processo passivo de recordação) e (b) reminiscência (um processo dirigido pelo intelecto, a exemplo da imaginação criativa e semelhante à inferência, que é um processo mais elaborado que marca a passagem do conhecido para o desconhecido). A revivescência na memória simples e na reminiscência obedecem a três princípios básicos: semelhança, contraste e propinquidade (i.e., aproximação). De maneira geral, os três princípios são o mesmo: quando um aspecto ou pedaço de uma memória é evocado, resgata-se por associação mais aspectos ou pedaços desse passado. O papel da memória na vida mental é evidente no caso do aprendizado. Sem memória não há sobre o que aprender.

Apetência (sentimentos, emoções; “paixões”). Se todos os sentidos internos que mencionamos acima são processos cognitivos, ou seja, a consciência é informada com o que vem de fora, no caso dos sentimentos e emoções o processo cognitivo se inverte em um processo apetitivo: é o mundo exterior que é “informado” pela consciência. Os sentimentos são os dados mais elementares da apetência: trata-se de um movimento meramente agradável ou desagradável ante o que é apresentado à consciência e ao organismo como um todo. A emoção é um sentimento acompanhado de alterações fisiológicas (coração, circulação, ruborização, respiração, dilatação pupilar etc.). As emoções são cognitivas, ou seja, palavras ou gestos as podem despertar, e em seguida são apetitivas, ou seja, a consciência se adere de maneira positiva ou negativa ao objeto ou situação. As repostas motoras seguem-se a tal aderência. Eis um esquema que resume as emoções. Já o vimos antes, e melhor, em Martín Echavarría e Magda Arnold.

Vida intelectual

Há duas grandes faculdades ou operações no intelecto: a inteligência e a vontade. Inteligência significa “ler dentro”, ou seja, ler para além das aparências, dos acidentes. É uma força capaz de abstrair elementos invisíveis aos sentidos externos e internos e extrair das coisas suas substâncias, suas causas, seus fins remotos. Ela possui três elementos ou etapas: conceito, juízo e inferência.

A vontade é semelhante à apetência sensorial, mas aqui trata-se de uma apetência intelectual, ou seja, ela é movida não pelos sentidos internos apenas, mas também pelo que a inteligência lhe apresenta.

A vida intelectual é composta de 6 elementos. A tabela abaixo resume a operação do intelecto. Observe que a inteligência é chamada por Brennan de “pensamento”. São, para ele, palavras sinônimas.

Conceito. Trata-se de um conteúdo individual consciente que representa a essência de um objeto. O que o intelecto faz para extrair o conceito é agudizar uma qualidade superficial ou uma progressão do particular para o universal. Este processo de conceituação é também chamado de abstração. Na teoria tomista este processo é duplo: (1) o intelecto ativo despoja os aspectos materiais do conteúdo dos sentidos internos e revela assim a natureza desnuda que jaz em seu interior, depositado tal revelação em uma species impressa para que (2) o intelecto passivo possa propriamente concluir o trabalho da ideação ao expressar a natureza abstraída à consciência na forma de uma species expressa, ou seja, um conceito.

Importante notar que o tal “conteúdo dos sentidos internos” é provavelmente o que Tomás de Aquino quis dizer com o fantasma, ou seja, a síntese do produto perceptivo. O fantasma, no entanto, é um conceito um tanto críptico na teoria de Tomás de Aquino.

Juízo. Para abordarmos um objeto ou situação qualquer o intelecto tem de se empenhar em abstrair seus diversos aspectos. E mais: a impressão inicial produzida por um objeto é frequentemente imperfeita, o que exige esforços ainda mais intensos e prolongados do intelecto. Por sucessivos refinamentos, o intelecto começa a formar juízos. O juízo é, portanto, uma expressão consciente das relações que existem entre certos objetos. É um contínuo processo de composição e divisão mental.

Mas para que o intelecto se comprometa com o juízo é necessário um processo de consentimento, ou seja, de adesão ao juízo. Há fatores externos que podem impedir, ou compelir, o intelecto ao consentimento. E é fácil entender o porquê: ao formar o juízo, sua própria contemplação pela consciência provoca a reação da apetência sensorial, que pode, por exemplo, rejeitar esse juízo. Ou, pelo contrário, uma apreciação lógica (ou uma preferência, ou um sentimento de satisfação etc.) pode fazer o intelecto aderir ao juízo.

Inferência. Trata-se de um processo puramente intelectual de caráter, digamos, “investigativo”. Agora a percepção sensorial não desempenha mais nenhum papel. O que a inferência faz diferentemente do juízo é construir novos conteúdos mentais. Mas ela não faz isso mediante silogismos lógicos, como muitos poderiam supor. Claro, se a pessoa souber, e puder, lançar mão desse tipo de recurso, ótimo. Mas o fato é que a inferência é posta em marcha pelo intelecto de maneira automática, natural, inconsciente. Não se trata de algo calculado, mas sim espontâneo.

Vontade. Também chamada volição, trata-se da apetência intelectual. Sua manifestação característica é a motivação para uma posterior persistência de ação.

A motivação surge somente depois que o valor de um objeto ou situação – ou seja, sua vantagem ou desvantagem – for conscientemente apreciado pelo sujeito. No entanto, ocorre que mesmo que já não apreciemos um determinado valor, os sentimentos prazerosos associados a ele continuam a operar por muito tempo depois e, por isso, muitos concluam que os valores não têm papel intelectual, mas são meros sentimentos de simpatia ou antipatia. No entanto, frequentemente ocorre que o sujeito vacila em apreciar o valor de maneira positiva ou negativa, e, portanto, a necessária motivação para a ação não surge. Assim, o intelecto precisa continuar a atuar e mediante comparações, eliminações, novos enfoques etc. para que aprecie o valor com clareza. Só a partir daí a motivação necessária para inclinar-se ou afastar-se do objeto poderá concretizar-se. É claro, e veremos logo abaixo, que a força do hábito também pode desempenhar um papel central neste desenrolar.

Depois de ter se decidido por uma linha de ação, a vontade se exerce para conseguir seus objetivos, o que no seio da psicologia tomista se chama tendência determinante. Trata-se de um impulso persistente da vontade – poderíamos até mesmo chamar de um “surto” – para conseguir seus objetivos. Um exemplo um tanto surpreendente deste fenômeno da volição se verifica na hipnose: a tendência determinante se prolonga durante a vida consciente a fim de garantir o cumprimento do objetivo. Casos semelhantes observamos entre os poliglotas, que passam a falar outro idioma sem estarem conscientes de suas regras gramaticais, ou entre os músicos, que tocam seus instrumentos inconscientes dos detalhes da técnica que empregam.

Atenção. Trata-se de uma direção da consciência a algum objeto ou situação. Não basta um mero “dar-se conta”, mas uma verdadeira mudança de um estado de receptividade para um estado de reconhecimento ativo. Aqui cabe fazer uma interessante distinção entre dois tipos de atenção: (1) atenção sensorial involuntária, que é um mero dar-se conta causado pela força atrativa do objeto e (2) atenção intelectual voluntária, que é um ato da vontade propriamente, a qual procura limitar os sentidos e o intelecto a certas características particulares e apartá-las do pano de fundo da experiência. A atenção possui as seguintes características: (a) alcance (ou “amplitude”), que é o limite que acabamos de mencionar, (b) intensidade (ou “força”), pois a atenção intelectual vem também acompanhada de atividades especiais da percepção, (c) disposições temporais (“tempo”), ou seja, a atenção não é um processo perfeitamente contínuo, mas apresenta flutuações e vacilos.

Associação. Trata-se da tendência natural em agrupar em constelações os conteúdos dos pensamentos e imagens. Mas, para além de uma tendência natural e espontânea, a associação pode ser controlada pela vontade mediante a criação antecipada de esquemas que funcionem como meta, dentro dos quais o material adequado será selecionado e/ou eliminado.

Ação. A ação humana é diferente da ação animal. A ação animal é isolada, enquanto a ação humana penetra em todos os recônditos da mente e, por esforço volitivo, criar atitudes e disposições persistentes que influem em todos os movimentos exteriores. Evidentemente a ação volitiva também se deixa influenciar pelo ambiente exterior, mas seu exercício contínuo de alguma forma atenua pouco a pouco essa influência exterior a ponto de tornar-se a ação em algo “natural” ou “animal” ou “automático”. De modo muito genérico, podem-se dividir as ações em três grandes classes: (a) reações de defesa (evitar situações desagradáveis), (b) reações substitutivas (quando não é possível evitá-la, mas ao menos contorná-la ou compensar seu impacto), (c) solução de conflitos (repressão dos desejos e instintos sensoriais em favor de um ideal de vida intelectualmente superior).

Hábito. Nas palavras de Brennan, o hábito é “uma disposição que se desenvolve mediante o exercício experimental da inteligência e da vontade em virtude da qual estamos preparados a atuar de uma maneira natural, eficiente e metódica. Isso significa, naturalmente, que o hábito é um aspecto de nossa vida mental superior, dado que supõe a existência e o exercício de discernimento e controle”. A criação de um hábito permite a aquisição gradual de certa prontidão, facilidade e satisfatoriedade de resposta.

A ideia por trás da criação de hábitos é que o homem é aperfeiçoável, melhorável e, mais importante, que a mente humana é indeterminada. O homem pode eleger uma meta e concentrar seus esforços mentais e volitivos na direção de cumpri-la. As características principais dos hábitos são: (a) uniformidade (tendência a produzir as mesmas ações), (b) facilidade, (c) propensão, (d) independência da atenção.

A criação de hábitos é fundamental para o desenvolvimento da vida mental. Sem hábitos não há progresso intelectual possível.

Caráter. São os aspectos particulares de um indivíduo que o diferenciam dos demais indivíduos. Em outras palavras, o caráter é o “princípio de ação inteligentemente regida”. Os três fatores que compõem o caráter são: (1) ação (movimentos corporais, expressão facial, gestos, linguagem etc., ou seja, tudo aquilo que responsavelmente o indivíduo faz para interagir com o cosmos e com os homens), (2) reconhecimento de valores (valor é isoladamente o fator mais importante do caráter porque o valor é a verdadeira soma e substância dos motivos e é a razão por trás de toda a conduta humana) e (3) hábito (como dissemos acima, o cultivo do intelecto e da vontade, ou a falta desse cultivo, é um traço característico do caráter).

O produto típico do caráter é o ideal. A primeira fase é constituída pela emulação, ou seja, pela aprovação interior à pessoa que se erige como ideal. A segunda fase é constituída pela imitação. Em seguida a compensação, ou seja, as permutas que o homem cogita fazer em prol de seu ideal e, claro, se o ideal for impossível de cumprir deverá ser substituído por algo mais viável e prático. Por fim, o ideal se torna um motivo para agir. Aqui é notória a semelhança entre “ideal” e o conceito de “sentido” popularizado por Viktor Frankl.

Eu (“ego”). É a consciência de si mesmo, a consciência de eu. É o elemento de nossa existência que não é pensamento, nem percepção, nem imagem, nem sentimento, nem sensação. O eu é o mantenedor de todas as nossas ações. Quem nega a existência do eu nega sua própria existência.

Há três tipos ou manifestações do eu: (1) eu social (expressa as relações com o mundo, como quando dizemos “eu moro em Serra do Salitre”, por exemplo), (2) eu pessoal (designa a estrutura interna da mente e seus atributos, como quando dizemos “eu sou uma pessoa solitária”, por exemplo) e (3) eu puro (é o sujeito de toda e qualquer experiência mental, a raiz de nossas ações, como quando dizemos “eu sinto, eu vejo, eu conheço etc.”, por exemplo). O eu puro é evidentemente o eu do qual se fundam os outros dois eus. No entanto, transtornos de personalidade podem substituir os eu social e o eu pessoal, causando enormes dificuldades ao indivíduo. Cabe lembrar, por fim, que Tomás de Aquino não se refere ao eu humano dessa forma, mas o chama de persona.

* * *

Eis um esquema no qual Brennan resume as faculdades (ou “potencialidade”, ou “capacidades”, ou “potências”) humanas.

* * *

É notória a ausência do noûs e do coração na psicologia tomista. Para que o ser humano possa conhecer o que quer que seja acerca de Deus e do mundo transcendente, necessariamente terá de fazê-lo mediante os sentidos sensoriais e sua dominância pelo intelecto e pela vontade. Em última instância, a ideia de que Deus comunica-se diretamente com o homem sem a intermediação da criação é inconcebível no entender tomista. Do ponto de vista cristão ortodoxo, é no coração que Deus se comunica diretamente com os homens com a condição de que esteja purificado. E, uma vez que o noûs não mais esteja disperso, e imerso, nas paixões e interesses do ego, mas regresse ao coração purificado, ou seja, ao centro da afetividade humana, poderá ser iluminado pelas energias (logoi) divinas.

É claro que Deus também se comunica indiretamente por meio da criação. Mas os santos e mestres ortodoxos deixam claro que tal mediação é débil, distante, intricada e, finalmente, castrada e falível.

A psicologia tomista, portanto, é certamente interessante e verdadeira, mas imperdoavelmente limitada. Suponho que se Tomás tivesse pleno acesso às obras dos grandes santos orientais talvez sua psicologia fosse ainda mais interessante, iluminadora e verdadeira. Quem sabe alguém tome esta hercúlea tarefa para si e complete a obra tomista com os ensinamentos inerrantes dos Santos Padres.

Fonte: Robert Brennan, Psicología general, Ediciones Morata, Madrid, Espanha, 1953.

15 de março de 2024

A tríade trágica


Todo ser humano passa pela tríade trágica: dor/sofrimento (todo mundo vai sofrer), culpa (todo mundo vai errar) e morte (todo mundo vai morrer). A única forma de não passar por essa tríade seria não existir.

Passo 1. Aceitar/admitir a tríade trágica com coragem. Portanto, a pergunta "por que eu?" não faz sentido à luz da tríade trágica. O que faz sentido é perguntar-se "por que agora?" ou, melhor ainda, "por que não eu?"

Passo 2. Compreender o trauma. Em outras palavras, buscar compreender o sofrimento mediante a contextualização, entendendo como o sofrimento aconteceu. A ideia não é encontrar uma "explicação" para o sofrimento, mas preparar para a posterior conferência de novos significados às experiências traumáticas. O sentido da vida continua a existir nas experiências traumáticas porque elas fazem parte da vida. A ideia não é buscar um "porquê", mas um "para quê". O homem que enfrenta o sofrimento e é capaz de transformar o sofrimento em conquista é o que Frankl chama de homo patiens e também de “homem superior”, por ser esta a maior capacidade humana. Alberto Nery chama esta transformação de “alquimia do sentido”.

Passo 3. Aprender a praticar o perdão. O perdão é uma escolha, mas pode ser aprendido e exercido. Perdoar é uma noção de magnanimidade, ou seja, é colocar-se acima do sofrimento. Mas note que a ideia é não apenas perdoar o próximo quando somos vítimas, mas perdoar a si mesmo porque boa parte do nosso sofrimento tem a ver com culpa. Quando nos culpamos nos colocamos como vítimas de nós mesmos. Lembre-se: a culpa faz de você outra pessoa, portanto culpar-se prolongadamente é não apenas prejudicial, mas irracional. A culpa é um privilégio que nos faz refletir, mas não podemos nos deter na culpa. Para as pessoas religiosas, perdoar a Deus é fundamental porque as experiências traumáticas podem fazer com que elas percam sua fé.

Portanto, superar um trauma significa que aquilo não vai doer mais, ou pelo menos não dói a ponto de lhe “ferir” novamente. O trauma será lembrado como um pesadelo, como algo que durou pouco. É como uma cicatriz que aponta para uma ferida que um dia doeu.

Fonte: Alberto Nery, A logoterapia e a superação de traumas emocionais, YouTube, 2019.

14 de março de 2024

A guerra invisível


Vimos em inúmeras postagens neste blog que todo aperfeiçoamento espiritual requer um processo fundamental sem o qual o progresso que se obtenha neste campo não passará de ilusão ou coisa pior. Trata-se da purificação do coração. Jesus Cristo deixou claríssimo, ao contrário do que popularmente se acredita hoje em dia, que é do coração que saem os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Isso é assim porque os homens, por amor-próprio, cultivam sua imagem, sua grandeza, sua reputação, seu orgulho. Fazem deuses de si mesmos e assim se autoiludem ao construírem uma torre de Babel em seus corações. Essa torre, esse ídolo, é o ego. O ego ocupa o coração do homem e é ele quem produz todo tipo de impureza e maldade.

A purificação do coração é pré-requisito para o progresso espiritual. Sem ele todo pretenso aprimoramento será apenas e tão-somente mais um tijolo na torre do ego. Imerso em sua própria ilusão, o indivíduo assegura que está progredindo espiritualmente quando, na verdade, está progredindo na estrada da perdição.

É neste contexto que a obra do padre católico romano Lorenzo Scupoli foi traduzida e editada por São Nicodemos Hagiorita e posteriormente revisada por São Teófano, o Recluso. Ambos reconheceram o enorme valor e importância dessa obra para os cristãos contemporâneos.

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A purificação do coração apresenta três caminhos:

a. Caminho moral: a disciplina da vontade e do caráter para neutralizar as paixões ao mesmo tempo que enaltece as virtudes.

b. Caminho contemplativo: a disciplina do intelecto, pela qual o homem educa os sentidos, a memória e a imaginação ao mesmo tempo que se educa para perceber Deus em todas as coisas materiais e Sua ação na história. Um estágio mais avançado incluir livrar a mente das imagens sensíveis (visão e imaginação) a fim de atingir a gnosis e a sophia.

c. Caminho noético: a disciplina do noûs, pela qual o homem, mediante deprecações (súplicas), orações, intercessões, e ações de graças (1 Timóteo 2:1), comunica-se com Deus para obter o necessário para atingir a hesychia. Este estágio é o da oração pura, na qual a imaginação e o intelecto cessam de intrometer-se na comunhão com Deus.

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Eis os destaques dos 53 pontos da guerra invisível:

1. Somos chamados à perfeição, e a maior e mais perfeita aspiração dos homens é aproximar-se de Deus e viver em união com Ele. No entanto, há nos homens vontades e desejos que clamam por satisfação e que não obstante nada tem a ver com a vontade de Deus. É necessário, portanto, que os homens lutem incessantemente contra si mesmos e contra tudo aquilo que desencadeie e insufle suas vontades e desejos. O homem nunca será livre enquanto for escravo de suas paixões.

Há 4 disposições fundamentais para essa guerra:

a. Sempre desconfie de você em tudo.

b. Cultive em seu coração a confiança única e exclusiva em Deus.

c. Lute sem cessar.

d. Coloque-se constantemente em estado de oração.

2. Deus quer que tenhamos consciência e experiência de nossa insignificância. Deus é a fonte suprema de toda boa ação e bom pensamento. Há 4 atitudes a serem tomadas aqui:

a. Conscientize-se de sua insignificância. “O fundamento de toda virtude é a conscientização da fraqueza humana”. (São Máximo, o Confessor)

b. Peça ajuda a Deus em orações calorosas e humildes.

c. Acostume-se a ser cauteloso e temer seus inúmeros inimigos.

d. Se cair em alguma transgressão, rapidamente volte-se à conscientização de sua fraqueza. Deus permite nossas transgressões para que nos tornemos cônscios de nossa fraqueza. Note, no entanto, que nem sempre Deus usa este subterfúgio, mas apenas quando as atitudes a, b e c acima não são seguidas e/ou não surtem efeito. Deus também faz uso, nestes casos, de “má sorte”, doenças, tribulações perigos, necessidades.

3. Não devemos simplesmente desconfiar de nós mesmos e nos desesperar. Não, devemos desconfiar de nós mesmos e confiar em Deus. É Ele quem sabe o que é realmente bom para nós. A vitória (salvação) lhe será concedida.

4. O critério que distingue o homem autoconfiante do homem que confia em Deus é que aquele, quando cai, se lamenta profundamente e prepara planos para superar a queda e, no futuro, ser bem-sucedido, enquanto este, quando cai, se lamenta moderadamente e conscientiza-se da sua falta de confiança em Deus.

5. O homem que se lamenta profundamente é aquele que se orgulha profundamente, que tem uma opinião muito elevada de si mesmo.

6. Na guerra invisível somos todos perdedores, sem exceção. Os únicos que vencem são aqueles que lutam confiando em Deus. Toda vitória é dEle, não sua.

7. A mente tem de se livrar da ignorância da seguinte forma: (a) Implorar em oração para que o Espírito derrame Sua luz divina em nossos corações, (b) procurar sabedoria nos escritos dos homens santos e entender que a vitória não vem das vitorias no mundo, mas das vitorias espirituais. Na calúnia e na difamação está a verdadeira glória, no perdoar os inimigos e fazer-lhes o bem está a verdadeira magnanimidade, no desprezo pelo mundo está a verdadeira força e poder, na obediência voluntaria está a verdadeira coragem e força de espírito, na superação de suas más tendências está o verdadeiro louvor.

8. Não julgue as coisas de maneira imediata, apenas pelas aparências. É necessário certo desapego, certa distância, para em seguida julgar as coisas e situações com a mente.

9. O cultivo da mente implica em não se contentar com a ignorância, mas, por outro lado, também em não a afogar com conhecimento excessivo, ou seja, com meras curiosidades. O orgulho da vontade é visível à mente, que pode esforçar-se em corrigi-lo. Mas o orgulho da mente será visto de que forma? Quem poderá curá-lo? Eis que a mente tem certa proeminência em relação à vontade, e eis que o orgulho da mente é pior que o orgulho da vontade.

10. E como fazer a vontade de Deus e não a sua? (a) Somente com um coração puro é possível discernir quando estamos fazendo a vontade de Deus ou quando, sub-repticiamente, estamos fazendo nossa própria vontade, (b) se você é incapaz, ou sente-se inseguro, de perceber se Deus está movendo as coisas externamente, mas sobretudo internamente, mantenha pelo menos a disposição de tentar perceber Sua vontade e confie nos mais experientes, (c) o homem que faz a vontade de Deus nunca “prefere” uma coisa em relação a outra porque preferir é obviamente introduzir sua vontade na atividade, (d) o homem deve antes buscar agradar a Deus do que escapar do inferno ou ganhar o céu (é melhor dar um pouco de dinheiro a um mendigo para agradar a Deus do que doar uma fortuna para ganhar o céu).

11. Deus mantém os homens vivos a cada momento, a cada instante, todo o tempo. Ele os criou do nada. Honrar Sua grandeza e majestade é uma conclusão óbvia a que todos deveríamos chegar.

12. Há duas vontades no homem: a vontade inteligente superior e a vontade sensorial inferior. O livre arbítrio fundamentalmente inclina-se para uma ou outra, e um dos objetivos supremos da guerra invisível é precisamente não se inclinar pelos ditames da vontade inferior carnal, impetuosa e “apaixonada”. Uma vez que o livre arbítrio se enrede nos ditames da vontade carnal, aí permanecerá como um cabresto mantém um burro de carga sob controle. Para livrar-se dessa vontade inferior dos desejos, a ajuda da graça de Deus é imprescindível. O cristão, que é chamado não apenas para aprimorar-se, mas para aperfeiçoar-se, deve forçar-se a negar esses desejos de maneira total. Isso significa não apenas abandonar os desejos mais enraizados e escravizantes, mas os menores também. O cristão tem de aprender a amar a guerra invisível.

13. Passo a passo para superar os desejos (as paixões da vontade inferior): (a) assim que notar seu surgimento, force-se imediatamente em não as atender, (b) crie um sentimento de raiva contra eles, (c) peça ajuda e força a Cristo, (d) se possível, faça o contrário do que sugere a paixão, (e) cultive uma resolução interior que torne impossível inclinar-se a tais tendências impetuosas como, por exemplo, considerar-se genuinamente digno de todo insulto e assim acolhê-los com alegria.

14. A luta contra as paixões será obviamente reforçada pela oposição do inimigo, que vai tentar te convencer de que a luta é inglória e que a rendição é inevitável. Mas isso é absolutamente falso: “Deus concedeu a nosso arbítrio um poder tão grande que mesmo que todas as faculdades humanas, o mundo inteiro e todos os demônios se unam contra a vontade, não a subjugarão”. Isso significa que não há desculpa, por mais “plausível” que seja, que justifique inclinar-se a nenhum impulso de nenhuma paixão. No entanto, entenda que você é apenas um homem, ou seja, você isoladamente é incapaz de vencer essas batalhas. É necessário reunir em ti a convicção de sua impotência humana para, a partir daí, pedir em oração a ajuda de Deus. Persevere, e a ajuda virá.

15. Para uma guerra rápida e vitoriosa, você deve centrar-se em todas as suas paixões, mas especialmente no amor-próprio, caracterizado pela autoindulgência e pela autopiedade. No entanto, não esqueça que o inimigo está nas mãos de Deus, ou seja, a vitória será retrasada pelo simples motivo de que Deus quer que você lute com todas as suas forças até o fim. Tenha isso claro: não há homem que esteja livre dessa guerra, “seja em vida, seja na morte”.

16. Ao acordar de manhã reze a Oração de Jesus por alguns momentos e ponha-se imediatamente em guarda, sabendo que à sua esquerda está seu inimigo e à sua direita está seu Comandante, o próprio Cristo, e Sua mãe, a Santíssima Virgem, e seus santos e anjos. O inimigo imediatamente ventilará em sua alma impulsos para a autoindulgência e lhe “garantirá” que ceder será melhor e menos custoso. Neste instante invoque a ajuda do Alto e, mesmo que lhe cause dor [combater o ego], insista na labuta espiritual. A vitória, isto é, a coroa que receberá nesta e na próxima vida, virá mediante incessantes batalhas. Retome o que ensinamos no passo 13.

17. Ataque primeiro aquilo que mais lhe perturba, ou seja, o maior obstáculo a seu progresso espiritual. A única exceção é quando algo repentinamente surge no transcurso do dia. Neste caso, ataque estes eventos insurgentes primeiro.

18. Alguns passos para prevenir os ataques súbitos: (a) toda manhã antecipe mentalmente as ocasiões favoráveis e desfavoráveis aos impulsos e irritações, (b) se o impulso surge, procure “descer” imediatamente a seu coração e isole o impulso, (c) se não lograr êxito, não expresse o impulso ou irritação nem por palavras, olhares ou gestos, (d) eleve-se a Deus e procure substituir o mal impulso por um bom impulso, (e) e o mais importante: elimine as causas dos impulsos.

“No trato com as pessoas, você será auxiliado lembrando-se de que elas também são criaturas de Deus, moldadas, assim como você, à imagem e semelhança de Deus e pelas mãos todo-poderosas do Deus vivo; que elas estão redimidas e regeneradas pelo precioso sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; que elas também são seus irmãos e membros da mesma humanidade, as quais é errado odiá-las nem mesmo em pensamento. [...] Lembre-se especialmente de que, mesmo que supostamente elas sejam dignas de desprezo e hostilidade, se conceder-lhes suas amizade e amor, você estará assemelhando-se a Deus, que ama todas as Suas criaturas e não despreza a nenhuma delas”.

19. Quanto às paixões sexuais: (a) Evite contato com o sexo oposto para combater paixões luxuriosas, (b) preste atenção à ociosidade e à preguiça, observando de perto seus pensamentos, (c) nunca desobedeça a seus mestres e pais espirituais, (d) nunca julgue seu irmão quando cair, mas tome seu exemplo com humildade, (e) não se imagine superior e imune aos ataques do inimigo.

20. A negligência se forma quando formamos o hábito de só fazermos o que gostamos. Fazer o que se gosta leva, em última instância, à paralisia, à inação, à preguiça. Você tem de entender que fazer uma única vontade de Deus, uma simples genuflexão a Seu favor, vale infinitamente mais do que todos os tesouros da terra. Combata a negligência tendo a ciência de que o que quer que faça você enfrentará não muitos, mas apenas um e o mesmo inimigo, e que ele, por mais forte que você que seja, será derrotado porque você confia na ajuda de Deus, que é infinitamente superior a seu inimigo.

21. Evite direcionar seus sentidos externos a esmo, em busca de prazer e satisfação de seus gostos. Uma técnica para não se deixar contaminar pelos sentidos é treinar seu olhar a estar convicto de que, por trás de tudo o que se vê, ouve, cheira, sente etc. está o próprio Deus, que dá ao que quer que seja sua beleza, bondade, verdade, perfeição. É o conteúdo interior das coisas que deve impressioná-lo, não seu aspecto aparente. Lembre-se, você é uma criatura inteligente, não um animal. Encontre nas criaturas seu Criador.

22. Aproveite para ascender a Cristo e Sua história na terra quando ouvir, ver ou sentir coisas que O evoquem. Por exemplo, rochas, mar, pedras, espinhos, martelos, o amor entre Suas criaturas, sol, água, vinho, vestes, murmúrios, dor, aflição, luto etc. etc.

23. Similarmente, a beleza das coisas, o sol, os céus, o cantar dos pássaros, a beleza das pessoas: tudo aponta para o Criador e, mais ainda, tudo isso é palha ante a beleza e o esplendor do Reino de Deus. Evidentemente, estes métodos não precisam ser usados sempre, mas quando necessário. A ideia é que você saiba reunir sua mente e seu coração no Senhor.

24. A virilidade da alma é enfraquecida ao entregar-se a paixões, belezas, texturas, sons prazerosos etc. Guarde seus sentidos para fortalecer sua alma.

25. Acima de tudo, guarde sua língua. O que move a língua é o coração. Os sentimentos que buscam expressar-se em palavras são em sua maioria egóicos porque expressam a lisonja de nosso amor-próprio e nos apresentam, imaginamos, sob a melhor luz. Na maioria dos casos, a loquacidade é sinônimo de conversa vazia. Da conversa vazia vêm as críticas, as calúnias, as fofocas, as sementes da discórdia, a vaidade, o falar com superioridade, o autoelogio disfarçado etc. O silêncio é um dos maiores aliados na guerra invisível. O hábito do silêncio se adquire praticando.

26. Sobre a imaginação. Os objetos sensíveis e os sentidos externos são com carimbos, e a imaginação a marca do carimbo. Mas dado que a imaginação é uma força desprovida de razão e age de maneira puramente mecânica, obedecendo as leis de associação de imagens, enquanto a vida espiritual é a imagem da pura liberdade, concluímos que a atividade da imaginação é incompatível com a vida espiritual. A imaginação é um poder da alma que, por sua própria natureza, é incapaz de adentrar no âmbito da união com Deus. Os Santos Padres ensinam que a imaginação é como uma ponte da qual os demônios se aproveitam para atingir a alma, mesclando-se a ela. Filósofos e pensadores a usam para especular sobre as coisas do Alto, as quais são inacessíveis à imaginação e à fantasia, mas sem antes purificar sua mente das paixões e imagens ilusórias do mundo sensível. O resultado é que ensinam mentiras e não encontram a verdade. Esforce-se em limpar a imaginação de impressões externas mediante a oração e o recolhimento. Quando estiver cansado, desfrute da liberdade em reflexões divinas e contemplações, mas somente aquelas contidas das Escrituras e naquilo que as criaturas de Deus inspirarem; elas são imateriais e, portanto, afins à mente.

27. O cristão deve evitar que os percalços da vida agitem o coração: medos, sofrimentos, tristezas e alegrias repentinas, doenças, ferimentos, mortes de parentes, guerras, incêndios, memórias de pecados e transgressões passadas etc. A ideia é entender que, no que quer que lhe acometa ao cristão, ele tem de inserir esse acontecimento em sua vida espiritual e confiar na Providência. Se algo de bom e positivo lhe acontece, eis uma oportunidade para arrepender-se. Se algo de mal e negativo, eis uma oportunidade para cogitar se são meus pecados que estão me conduzindo a tal situação ou, ainda, Deus está me provando. Não importa o que aconteça ao coração, o homem tem a virtude e a capacidade de suportar o sofrimento e reestabelecer a paz em si mesmo contanto que se submeta a Deus.

28. Se acontecer de você cometer alguma falta pequena, como falar algo grosseiro, perder a calma, um desejo ardente se acender, um pensamento inadequado se formar etc., não se condene ou se julgue. Tal condenação ou julgamento vem, ao contrário do que inicialmente poderíamos supor, de nosso orgulho, de nosso ego. Todos os pecados já foram rasgados na cruz de Jesus Cristo. Estão já perdoados. Portanto, para que desça a graça é necessário fundir o sentimento de culpa com o sentimento de perdão em um só sentimento, aliado à firme decisão de não mais voltar a incorrer nesse pecado. O inimigo vai tentar convencê-lo de que esse exercício de arrependimento pode esperar só mais um pouquinho e, de pouquinho em pouquinho, a visão do pecado torna-se cada vez mais turva até que, com o tempo, o pecado faça parte de seus hábitos e se normalize.

29. O inimigo não tem uma única tática para combater o homem. Ele adota diferentes táticas a depender da situação de cada ser humano.

30. Uma tática muito comum do inimigo é manter o homem em pecado ao dissuadi-lo dos pensamentos que poderiam trazer-lhe à consciência sua vida perniciosa e, agindo assim, lhe aprofunda mais no pecado. No lugar dos pensamentos saudáveis, o inimigo implanta pensamentos insanos. Quanto mais cego, mais insana se tornará a pessoa e, assim, mais perdida.

31. No entanto, àqueles que de alguma forma atingiram a consciência de sua vida insana o inimigo insufla pensamentos de procrastinação (“depois”, “mais tarde” etc.). Lembre-se: o que está nas suas mãos é o hoje, o agora, o neste momento. O amanhã pertence a Deus. Tome a firme decisão de mudar agora, de emendar-se agora. O amanhã poderá distrai-lo mais e a resolução e visão que agora tem poderá perder-se. De novo, a hora é agora. Somente a prática vai fortalecer a visão que tem e a decisão que deve tomar. Adiá-la necessariamente irá enfraquecê-la. Isso vale também para quem leva uma vida decente: a oportunidade de fazer o bem não deve ser deixada escapar.

32. Outra tática do inimigo é “limpar o terreno”, ou seja, é sugerir ao cristão que tem avançado na vida espiritual que ele não precisa de conselhos de fora, de conhecimentos daqueles mais experientes como santos, staretzi (anciãos), homens sábios etc. A ajuda externa seria desnecessária. O novato se entrega a seus próprios conhecimentos e tentativas pessoais.

33. O inimigo também adota a tática de enviar pedras de tropeço e ciladas para que o cristão tropece.

34. Mais uma tática do inimigo é lisonjeá-lo, é sugerir que você está no caminho certo, que você atingiu um grande patamar espiritual etc. Por mais que seja verdade, ou seja, por mais que você tenha realmente crescido espiritualmente, orgulhar-se disso jogará por terra todo seu progresso. A chave para evitar essa sugestão diabólica é fortalecer a convicção de que você é nada. Suas disposições, sua existência, as leis que regem seu corpo, sua alma, sua essência, as pessoas que cuidaram de você, as pessoas cuja união possibilitaram sua existência, enfim, tudo o que há de bom em você tem sua raiz em Deus, no Logos, no Criador. Medite bem e conclua que orgulhar-se de suas conquistas é um ato profundamente falso, profundamente egoísta.

35. Algumas armas a serem usados pelos cristãos na guerra invisível: (a) atacar a paixão que mais lhe prejudica, a que mais lhe causa derrotas, (b) nunca parar, ou seja, nunca abandonar a guerra contra a paixão quando atingir algumas vitorias; a guerra nesta vida termina no fim desta vida, (c) seja sábio e sensato ao atribuir práticas espirituais como jejuns, orações, trabalhos físicos etc.; faça algo que seja desafiador, mas, ao mesmo tempo, que não lhe castigue amargamente, (d) ataque a paixão no momento exato em que surge; o momento da batalha é agora, esqueça o passado e o futuro, a batalha é agora, (e) transforme-se em um inimigo do conforto, do prazer, da autoindulgência, (f) comece sua batalha fazendo uma confissão geral; trata-se não apenas de algo conveniente, mas necessário.

36. Quanto à prática das virtudes, concentre-se em adquirir uma e, com o tempo, outra, e assim por diante; não procure adquirir todas, ou mesmo algumas, de uma vez, mas lembre-se que, uma vez conquistada uma, a seguinte será mais fácil.

37. Atingir uma virtude significa que ao executá-la emprega-se o mesmo esforço e a mesma prontidão que empregava quando você não a executava. Em outras palavras, é como se a virtude passasse a fazer parte de sua natureza, de sua essência. Portanto, de manhã procure prever os momentos em que enfrentará dificuldades ao executá-la e, à noite, relembre os momentos em que foi incapaz de executá-la. Prepara-se antes e revise depois, eis uma estratégia inteligente. E não se esqueça, evidentemente, de pedir ajuda do Alto, sem a qual nada será conquistado: Deus se regozija quando alcançamos uma virtude e, ao mesmo tempo, quando o fazemos pelo simples objetivo de agradá-Lo.

38. O trajeto para a conquista das virtudes apresenta um aspecto diretamente proporcional ao trajeto que percorremos fisicamente. Quanto mais caminhamos, mais nos cansamos. No caminho das virtudes, no entanto, quanto mais avançamos, mais fortes nos tornamos. Isso acontece porque estar forte no mundo espiritual significa ao mesmo tempo estar fraco no mundo sensível. Ademais, a ajuda do Alto deposita-se na parte superior da alma, enquanto a parte inferior, carnal, não recebe nenhuma ajuda.

39. Por isso, uma vez mais, reforçamos a importância de escapar dos prazeres carnais e da luxúria em geral.

40. (a) Quando uma ocasião favorável se apresentar, sempre pratique a virtude. Mesmo em situações menores, praticá-la lhe dará forças quando as situações mais importantes se apresentarem. Não zombe das oportunidades que Deus lhe dá em resposta às suas próprias orações. (b) Lembre-se que, apesar de Deus não desejar seu pecado e das demais pessoas, mesmo eles são permitidos por Ele para nossa admoestação e humildade; aceitemos esse cálice como vindo das próprias mãos de Deus.

41. e 42. (a) O sinal de que estamos praticando a virtude é que a exercemos mesmo em momentos de esfriamento e obscurecimento da alma. (b) Quanto mais fracos forem os impulsos carnais, mais isso quer dizer que progredimos nas virtudes. (c) Quanto mais fácil for o arranque para a prática de uma virtude, tanto mais isso significa que fizemos um bom progresso. (d) Se a mente ascende facilmente a bons pensamentos com pouco ou nenhum esforço, eis outro sinal de progresso espiritual. (e) Idem para a oração, que cumpre-se sem perambular em pensamentos e conjecturas. (f) Quando lágrimas fluírem naturalmente durante um pensamento ou memória, isso também denota progresso espiritual. (g) Quando pensamentos elevados descem ao coração e ali permanecem por tempo prolongado, eis outro sinal de progresso.

43. Querer-se livrar de uma aflição é dar-lhe mais importância do que realmente tem. As aflições têm de ser suportadas com paciência, com confiança em Deus, com humildade. Elas durarão o tempo que tiverem de durar. Querer livrar-se delas é uma questão de orgulho, de petulância.

44. Quando fazemos algum progresso, o inimigo o tentará fazendo-lhe acreditar que está próximo da perfeição e, assim, que você deveria exercer ainda mais esforço físico e mental para atingi-la. Isso acabará lhe atirando no abismo. As mortificações são em geral uma tentação e uma perdição para os homens. Busque fazer aquilo que é proporcional às suas condições morais. Não imite os santos externamente, mas os imite nas disposições da alma e do espírito.

45. O amor-próprio engendra o vício do julgamento alheio. O problema é que o julgamento alheio não apenas se funda no orgulho, mas o alimenta, que retroativamente alimenta o julgamento alheio. O inimigo se aproveita desse fenômeno e abre nossos olhos. Sim, ele abre nossos olhos, mas não àquilo que fazemos e dizemos, mas àquilo que os outros fazem e dizem. Prestamos especial atenção aos gestos, palavras, posturas e ações alheias com o objetivo de encontrar defeitos e, assim, julgar e condenar o próximo. Para superar esse vício, (1) repila o pensamento de julgamento imediatamente, lembrando-se das boas qualidades do próximo, (2) lembre-se de seus próprio defeitos e falhas (“cura-te a ti mesmo” (Lucas 4:23), “tira primeiro a trave do teu olho” (Mateus 7:5)), (3) lembre-se que quando julgamos severamente alguém isso significa que uma pequena raiz da mesma maldade existe no seu coração, e que é essa mesma raiz no coração que permite que você faça suposições sobre os outros e os condene.

46. O que é necessário para que a oração surta seu pleno poder? (1) Manter sempre vivo a intenção de servir a Deus em tudo o que fizer. (2) Manter viva a fé de que Deus quer conceder-lhe tudo o que é necessário para servi-Lo corretamente. (3) Manter viva a intenção de fazer a vontade de Deus, e não reduzir a vontade de Deus à sua vontade. Nossa vontade está sempre contaminada em maior ou menor grau com o amor-próprio, o que a torna suspeita. Se genuinamente não souber qual é a vontade de Deus, peça para Ele lhe esclareça. E não se esqueça que as virtudes são agradáveis a Deus, mas elas devem ser exercidas com o intuito de agradá-Lo e servi-Lo, e não motivos espúrios quaisquer. (4) A oração por virtudes tem de ser feita concomitantemente com esforços genuínos de sua parte para exercê-las, sob pena de tentar a Deus. Rezar de maneira negligente, ou pedir a um santo que lhe ajude sem que você mesmo “se ajude”, é hipocrisia. (5) Combinar na oração os 4 elementos básicos ensinados por São Basílio, o Grande: (a) glorifique a Deus, (b) dê graças a Ele pelas bênçãos e misericórdias que lhe concede, (c) confesse suas faltas e transgressões, (d) peça-Lhe o que necessita, especialmente do que necessita para sua salvação. (6) Mantenha viva a confiança da generosidade imensurável de Deus, mas também em Jesus Cristo. E não se esqueça de pedir ajuda à Mãe de Deus, aos anjos, santos, pastores, mestres, ao anjo da guarda, ao seu santo padroeiro etc. (7) Rezar com incansável entusiasmo e diligência, ou seja, não esperar que o que pede venha em curto prazo. Mantenha viva em seu coração a fé em Sua ajuda. Mesmo que não receba o que pediu, não procure entender o porquê, mas entenda que poderá receber algo diferente do que pediu ou, mesmo que não receba absolutamente nada, lembre-se de sua própria indignidade.

47. Quanto à oração mental, ou oração interior, trata-se da oração feita com a mante (noûs) em silêncio no coração. É como reunir, ou efetivamente “recordar”, a oração no coração. A ideia é que o coração sinta (“se afete”) por aquilo que é rezado. Há ainda a oração perfeita, que é a oração rezada pelo Espírito Santo no coração do fiel cristão.

48. Rezar com o livro de orações é não apenas útil, mas necessário. No entanto, é comum que a mente divague enquanto rezemos. A oração torna-se algo mecânico, frio. A ideia é combinar mente e coração em uma e mesma direção. Para isso: (1) Reflita ao longo do dia sobre a oração, mas não no momento da própria oração. Relembre sua importância, seu objetivo, seu mérito, seu propósito. Dessa forma, no momento de rezar, será mais fácil que a mente se concentre na oração e o coração responda afetivamente a ela. (2) Decore a oração para que a mente mais facilmente possa se concentrar-se nela, e não se lembrar dela. (3) Não se entregue à leitura das orações sem antes se preparar para ela. A mente tem de estar calma, livre de preocupações, aflições, perigos etc. (4) Lembre-se que orar significa colocar-se diante de Deus. (5) Leia as orações com atenção, com a mente no coração. Se a mente divagar, volte a leitura ao ponto onde a mente começou a divagar. (6) Se durante a oração surgir de repente algum tema que lhe chame a atenção e sobre o qual necessita orar, pare a leitura de orações e reze sobre o tema que lhe surgiu até que se encontre satisfeito. (7) Quando tenha terminado suas orações, não pense que a mente pode livremente divagar no resto do dia e esquecer-se do Alto. Lembre-se que a mente sempre tem de preservar um “estado de oração” e não se esqueça que Deus está sempre presente em todos os lugares. (8) A oração tem de ser feita completa e sem interrupções, diariamente. Se um dia você reza bem e no outro não, e essa oscilação se torna um hábito, nunca a oração se estabelecerá e seus frutos não serão colhidos.

49. A vida de oração deve começar pela memorização das orações do livro de orações. Quando se enxertarem, então aprenderemos a rezar de maneira pessoal, ou seja, o coração aprenderá a rezar adequadamente. Não tente rezar por sua própria conta sem que o coração sinta um impulso e uma necessidade reais. Por regra geral, as orações espontâneas são egoístas, orgulhosas, petulantes.

50. Escolha uma oração curta para ser rezada ao longo do dia e habituar sua mente e seu coração a rezá-la. Recitar uma oração curta é o ideal, mas de qualquer forma o objetivo aqui é manter a atenção viva na lembrança de Deus.

51. A Oração de Jesus deve ser rezada não apenas com palavras, mas com a mente e o coração. Seu conteúdo tem de ser sentido, repercutido, no coração. Com o tempo e muita prática, as palavras desaparecem e apenas o movimento da mente (noûs) e do coração permanecem. (1) Reserve em sua regra de oração um tempo para a Oração de Jesus. (2) Aumente a quantidade de orações na medida em que desfrutar dela. (3) Não a recite de maneira atabalhoada, mas com atenção, lembrando sempre que o coração tem de repercutir seu conteúdo. (4) Insira a oração nos intervalos de seu dia, sempre que possível. (5) Acrescente uma reverência a cada recitação. Essa prática fortalece o poder da oração e seus frutos. (6) Leia a Philokalia, especialmente São Simeão, o Novo Teólogo, São Gregório do Sinai, São Nicéforo, São Calixto e Santo Ignácio. (7) Ao rezá-la concentre-se na parte no coração físico, ou seja, na porção logo acima do mamilo esquerdo. Se uma sensação dolorida surgir, mova a atenção para a parte superior do peito. (8) Tenha um pai espiritual experiente. Não aceite as insinuações do inimigo de que você alcançou a oração mental. (9) Não estabeleça uma meta temporal para alcançar esta oração. Isso levará muito, muito tempo. Não tente controlar o progresso, ele não está sob seu alcance.

52. Mais orientações para rezar. (1) Coma, durma e descanse com moderação. Não se entregue a comidas e bebidas de acordo com os impulsos e desejos imediatos. Não dê trégua à carne. (2) Reduza o contato com o mundo exterior o mais que possível. Quando a oração se estabelecer, você saberá o que pode ser acrescentado em termos de contato exterior. (3) Leia livros espirituais e adequados à sua condição. Vá a igreja quando puder porque simplesmente estar ali já sugere um clima de oração. (4) O progresso na vida espiritual exige progresso na vida cristã. Purifique-se mediante a confissão regular. (5) Não omita nenhum tipo de oração, sejam as orações do livro de orações, sejam as orações livres, sejam os breves apelos a Deus, seja a Oração de Jesus.

53. A oração é uma arma invencível na guerra invisível apenas quando tiver se estabelecido incessantemente no coração. Neste ponto, o coração torna-se impenetrável pelo inimigo. No entanto, até que isso aconteça, a oração mesmo assim não apenas é valiosa, como é a arma mais importante na guerra invisível. Assim que uma imagem se formar na alma, seja de alguém que lhe fez mal, ou de alguma mulher bonita, ou de bens, roupas, o que seja, resista recorrendo à oração e, em geral, à Oração de Jesus.

Fonte: Lorenzo Scupoli, editado por São Nicodemos, o Hagiorita, e revisado por São Teófano, o Recluso, Unseen Warfare, St. Vladimir’s Seminary Press, Crestwood, NY, EUA, 1997.