22 de março de 2024

Elementos de psicologia tomista


O que há de verdadeiramente interessante na psicologia de Tomás de Aquino, ainda que lhe falte as grandes descobertas da psicologia moderna, é seu caráter estrutural, ordenado. Ela combina aquilo que é necessário, advindo principalmente das ilações da doutrina metafísica de Aristóteles, com elementos contingentes da vida orgânica, sensorial e intelectual humanas, advindos principalmente da introspecção e da meditação. O perfil de tal psicologia é tão elevado, tão genial – no sentido de que todas as descobertas posteriores poderiam ser interpretadas à luz dessa magnífica doutrina estruturante – que talvez poderíamos estar tentados a chamá-la de noologia em vez de psicologia. Parece-me que Mário Ferreira tentou algo nessa direção, mas esta suspeita a confirmarei mais tarde. Por ora, no entanto, como veremos ao final deste artigo, a psicologia tomista apresenta um nec plus ultra que a torna, por mais interessante e útil que seja, imperdoavelmente limitada. Não obstante, vejamos o que nos ensina Tomás de Aquino antes que possamos expor o que quer que seja a título de conclusão. Assim, permitamos que um dos melhores discípulos modernos deste grande santo católico romano nos eduque: Robert Brennan.

Brennan admite que o método introspectivo utilizado por Tomás de Aquino, embora seja o mais indicado para estruturar uma doutrina psicológica digna do nome, pode, e deve, ser aperfeiçoado com as descobertas da psicologia moderna. Este é, a propósito, o principal liame entre o que se ensinava na era medieval sobre a estrutura da mente humana e as descobertas contemporâneas: a introspecção.

Os tomistas costumam dividir a vida humana em três grandes partes ou componentes:

  • Vida orgânica
  • Vida sensorial
  • Vida intelectual

Vida orgânica

Quanto à vida orgânica, há pouco que possamos acrescentar ao que as ciências biológicas nos vêm ensinando ultimamente. No entanto, apesar de nos dizerem muito como é a vida orgânica, as ciências biológicas não dizem o que é a vida orgânica. O que fazem é descrever o que é vida. A vida, dizem, é um modo de organização encontrado no que antigamente se chamava de “protoplasma” (atualmente se usa citoplasma ou citosol, embora haja uma infinidade de termos correlatos na literatura científica) que se manifesta por possuir algumas propriedades como nutrição, crescimento, desenvolvimento, reprodução, adaptação etc. Ademais, a disposição muito especial das partes do ser orgânico permite que haja uma coordenação dessas funções de modo que as torne algo uno e simples.

O psicólogo não pode se satisfazer com essa explicação, não por ser incorreta, mas por ser insuficiente. A vida não pode ser encontrada no próprio organismo, ou seja, no corpo do ser vivo, sob pena de concluirmos que as propriedades da vida orgânica sejam causadas por si mesmas. A nutrição se causaria a si mesma e produziria a nutrição. O crescimento ocorre porque supostamente ele mesmo se faz crescer. Não são explicações, mas um mero agregado de palavras sem sentido. Entretanto, se tem de haver algo “anterior” ou “acima” ou “por trás” desses processos todos, o que é? E onde está?

Não há como a explicação ser física, mas tem de ser necessariamente metafísica. E mesmo assim não será plenamente satisfatória. Não cabe aqui detalharmos o hylemorfismo aristotélico do qual Aquino lança mão (leia p.ex. estes artigos), mas basta por ora reforçarmos a ideia antiga e medieval de que o mundo real proclama a existência de duas instâncias, ou princípios, imperceptíveis, mas introspectivamente detectáveis, que explicam a causa dos seres: a forma (morphe) e a matéria (hylé). Todo ser tem uma forma (fórmula, algoritmo, estrutura ontológica, determinação...) própria na qual estão reunidas todas as possibilidades de sua manifestação, e uma matéria (indeterminação, individuação, ...) pela qual é exibida sua existência. A raça angélica é uma exceção, mas isso não importa agora. O que importa é que na forma substancial (e não na forma acidental, muito menos na matéria prima e na matéria secunda) se encontra o princípio vital (ou “força” vital) a partir do qual os processos vitais acima mencionados se efetuam. É a essa forma substancial que chamamos de alma, e é por isso que se diz que “a alma é a forma do corpo”. Estão na alma todas as possibilidades de “encarnação” do homem, o que inclui não apenas o corpo, mas tudo aquilo que é “carne”, que é individuado, como os processos mentais dos sentidos externos, sentidos internos, sentimentos, emoções, vontade, intelecto. Quanto ao “eu puro”, bem, veremos mais adiante como, e se, Aquino o trata.

Aqui é impossível não pensarmos na passagem da potência ao ato porque a alma é, para o corpo, seu “ato puro”, ou seja, o “ponto de partida” supremo antes do qual, ou acima do qual, não houve uma supra-potencialidade. [Veremos adiante se as coisas realmente são assim, mas por ora nos contentemos com o raciocínio de Brennan]. É digno de nota que a enteléquia é o que varia nos seres inanimados enquanto a matéria permanece (veja uma pedra, por exemplo), ao passo que a energia é o que permanece nos seres vivos enquanto a matéria varia (veja os processos metabólicos, por exemplo). Zubiri explicou muito bem esse processo ao notar que a energia está sempre sendo, ou seja, é uma atividade difusora, enquanto a enteléquia simplesmente é, ou seja, é uma atualidade receptora. A energia procura regular-se e, mais importante, aperfeiçoar-se; é algo intrínseco. A enteléquia não apresenta essas características; é algo meramente extrínseco.

Vida sensorial

Consciência. Brennan explica que a diferença entre os vegetais e os animais é a presença da consciência. Como a origem latina da palavra deixa transparecer (conscire), a consciência é uma atividade que dá a entender a existência de um conhecido e um conhecedor. A consciência é mais restrita que a mera vida mental. A consciência implica que o animal tem uma atenção especial aos processos mentais das sensações, sentimentos, ações etc. A vida mental inclui não apenas isso, mas também uma classe enorme de objetos que escapam à consciência, mas, assim mesmo, fazem parte do universo do animal. Ambas, vida mental e particularmente a vida consciente, são nada mais nada menos do que uma capacidade de previsão. Sim, pois elas trazem à vida animal o mundo exterior e, agora de certa forma interiorizado, podem elaborar, combinar e reagir ante ele.

Senso comum. É a capacidade da percepção propriamente, pois é a capacidade de perceber os objetos que estão presentes aqui e agora a nossos sentidos externos. O senso comum é, portanto, o princípio de todos os sentidos externos, é ele quem faz a síntese de todos os estímulos recebidos dos sentidos externos. Além disso, o senso comum é responsável por informar-nos sobre certas características: espaciais (extensão superficial, forma, solidez, distância, tamanho e movimento) e temporais (experiência de duração, experiência de ritmo). E a percepção (i.e., senso comum) apresenta algumas peculiaridades: ambiguidades (o mesmo estímulo pode produzir efeitos mentais diferentes, como percepção de proximidade, similitudes, continuidade, inclusividade, familiaridade, percepção de conjunto), ilusões (agrupamentos de linhas e ângulos, extensão interrompida, ilusões de contorno, ilusões de contraste, ilusões de perspectiva, ilusões de movimento).

Imaginação. A função da imaginação é representar – ou seja, reapresentar – coisas que já foram percebidas pelos sentidos, mas que não estão atualmente presentes. Ela complementa o senso comum. A imaginação é, portanto, uma espécie de “armazém” de impressões sensoriais e, claro, uma revivescência das experimentações prévias. Obviamente a revivescência será menos vivaz que uma percepção. Em relação à percepção, a imagem apresenta menos intensidade, estabilidade e inteireza. Ela se divide em dois tipos: (a) imaginação reprodutiva (tentativas de cópia das experiências sensoriais), (b) imaginação criativa (implica propósito, atenção e seleção a fim de recombinar imagens de impressões sensoriais prévias). Sua importância para a vida mente é: (1) prover significado à mente através de imagens para posterior elaboração de ideias, (2) auxílio à mente para resolução de problemas.

Cogitação (“instinto”). Brennan chama de “instinto” a faculdade da cogitação, às vezes também chamada por alguns medievalistas de “estimação”, embora este seja um termo mais reservado ao instinto animal. Trata-se da capacidade sensorial de reconhecer um objeto como agradável/útil/bem ou repulsivo/inútil/mal. É a cogitação que permite aos homens reagir emocionalmente aos objetos que lhe são apresentados. No entanto, o mais surpreendente da cogitação está no fato de que há uma teleologia nela, ou seja, há um caráter finalista, de finalidade, em sua operação. Isso é surpreendente porque tendemos a atribuir finalidade apenas à atividade racional e suas operações de deliberação, raciocínio, comparação etc. A razão é posta em marcha com uma finalidade, mas, estranhamente, a cogitação também, embora não consigamos conscientemente detectar quais seriam suas finalidades. Contudo, o caráter altamente plástico da cogitação faz dela alvo das intervenções da inteligência, que é capaz, ao longo da vida humana, de moldar a cogitação a ponto de alterá-la, para melhor ou pior, sua ação. Reside aí a principal diferença entre a estimação animal e a cogitação humana.

Memória. A memória complementa a cogitação e a imaginação no sentido de que ela também procura suprir a baixíssima capacidade de retenção do senso comum. A única diferença entre imaginação e memória é que a memória adiciona o caráter de preteridade, ou seja, de passado, à imagem (por “imagem” não entendamos apenas o meramente visual, mas toda uma experiência) que estamos revivescendo na consciência. Assim como na imaginação, a memória também é dividida em dois tipos, que correspondem paralelamente aos dois tipos de imaginação: (a) memória simples (um processo passivo de recordação) e (b) reminiscência (um processo dirigido pelo intelecto, a exemplo da imaginação criativa e semelhante à inferência, que é um processo mais elaborado que marca a passagem do conhecido para o desconhecido). A revivescência na memória simples e na reminiscência obedecem a três princípios básicos: semelhança, contraste e propinquidade (i.e., aproximação). De maneira geral, os três princípios são o mesmo: quando um aspecto ou pedaço de uma memória é evocado, resgata-se por associação mais aspectos ou pedaços desse passado. O papel da memória na vida mental é evidente no caso do aprendizado. Sem memória não há sobre o que aprender.

Apetência (sentimentos, emoções; “paixões”). Se todos os sentidos internos que mencionamos acima são processos cognitivos, ou seja, a consciência é informada com o que vem de fora, no caso dos sentimentos e emoções o processo cognitivo se inverte em um processo apetitivo: é o mundo exterior que é “informado” pela consciência. Os sentimentos são os dados mais elementares da apetência: trata-se de um movimento meramente agradável ou desagradável ante o que é apresentado à consciência e ao organismo como um todo. A emoção é um sentimento acompanhado de alterações fisiológicas (coração, circulação, ruborização, respiração, dilatação pupilar etc.). As emoções são cognitivas, ou seja, palavras ou gestos as podem despertar, e em seguida são apetitivas, ou seja, a consciência se adere de maneira positiva ou negativa ao objeto ou situação. As repostas motoras seguem-se a tal aderência. Eis um esquema que resume as emoções. Já o vimos antes, e melhor, em Martín Echavarría e Magda Arnold.

Vida intelectual

Há duas grandes faculdades ou operações no intelecto: a inteligência e a vontade. Inteligência significa “ler dentro”, ou seja, ler para além das aparências, dos acidentes. É uma força capaz de abstrair elementos invisíveis aos sentidos externos e internos e extrair das coisas suas substâncias, suas causas, seus fins remotos. Ela possui três elementos ou etapas: conceito, juízo e inferência.

A vontade é semelhante à apetência sensorial, mas aqui trata-se de uma apetência intelectual, ou seja, ela é movida não pelos sentidos internos apenas, mas também pelo que a inteligência lhe apresenta.

A vida intelectual é composta de 6 elementos. A tabela abaixo resume a operação do intelecto. Observe que a inteligência é chamada por Brennan de “pensamento”. São, para ele, palavras sinônimas.

Conceito. Trata-se de um conteúdo individual consciente que representa a essência de um objeto. O que o intelecto faz para extrair o conceito é agudizar uma qualidade superficial ou uma progressão do particular para o universal. Este processo de conceituação é também chamado de abstração. Na teoria tomista este processo é duplo: (1) o intelecto ativo despoja os aspectos materiais do conteúdo dos sentidos internos e revela assim a natureza desnuda que jaz em seu interior, depositado tal revelação em uma species impressa para que (2) o intelecto passivo possa propriamente concluir o trabalho da ideação ao expressar a natureza abstraída à consciência na forma de uma species expressa, ou seja, um conceito.

Importante notar que o tal “conteúdo dos sentidos internos” é provavelmente o que Tomás de Aquino quis dizer com o fantasma, ou seja, a síntese do produto perceptivo. O fantasma, no entanto, é um conceito um tanto críptico na teoria de Tomás de Aquino.

Juízo. Para abordarmos um objeto ou situação qualquer o intelecto tem de se empenhar em abstrair seus diversos aspectos. E mais: a impressão inicial produzida por um objeto é frequentemente imperfeita, o que exige esforços ainda mais intensos e prolongados do intelecto. Por sucessivos refinamentos, o intelecto começa a formar juízos. O juízo é, portanto, uma expressão consciente das relações que existem entre certos objetos. É um contínuo processo de composição e divisão mental.

Mas para que o intelecto se comprometa com o juízo é necessário um processo de consentimento, ou seja, de adesão ao juízo. Há fatores externos que podem impedir, ou compelir, o intelecto ao consentimento. E é fácil entender o porquê: ao formar o juízo, sua própria contemplação pela consciência provoca a reação da apetência sensorial, que pode, por exemplo, rejeitar esse juízo. Ou, pelo contrário, uma apreciação lógica (ou uma preferência, ou um sentimento de satisfação etc.) pode fazer o intelecto aderir ao juízo.

Inferência. Trata-se de um processo puramente intelectual de caráter, digamos, “investigativo”. Agora a percepção sensorial não desempenha mais nenhum papel. O que a inferência faz diferentemente do juízo é construir novos conteúdos mentais. Mas ela não faz isso mediante silogismos lógicos, como muitos poderiam supor. Claro, se a pessoa souber, e puder, lançar mão desse tipo de recurso, ótimo. Mas o fato é que a inferência é posta em marcha pelo intelecto de maneira automática, natural, inconsciente. Não se trata de algo calculado, mas sim espontâneo.

Vontade. Também chamada volição, trata-se da apetência intelectual. Sua manifestação característica é a motivação para uma posterior persistência de ação.

A motivação surge somente depois que o valor de um objeto ou situação – ou seja, sua vantagem ou desvantagem – for conscientemente apreciado pelo sujeito. No entanto, ocorre que mesmo que já não apreciemos um determinado valor, os sentimentos prazerosos associados a ele continuam a operar por muito tempo depois e, por isso, muitos concluam que os valores não têm papel intelectual, mas são meros sentimentos de simpatia ou antipatia. No entanto, frequentemente ocorre que o sujeito vacila em apreciar o valor de maneira positiva ou negativa, e, portanto, a necessária motivação para a ação não surge. Assim, o intelecto precisa continuar a atuar e mediante comparações, eliminações, novos enfoques etc. para que aprecie o valor com clareza. Só a partir daí a motivação necessária para inclinar-se ou afastar-se do objeto poderá concretizar-se. É claro, e veremos logo abaixo, que a força do hábito também pode desempenhar um papel central neste desenrolar.

Depois de ter se decidido por uma linha de ação, a vontade se exerce para conseguir seus objetivos, o que no seio da psicologia tomista se chama tendência determinante. Trata-se de um impulso persistente da vontade – poderíamos até mesmo chamar de um “surto” – para conseguir seus objetivos. Um exemplo um tanto surpreendente deste fenômeno da volição se verifica na hipnose: a tendência determinante se prolonga durante a vida consciente a fim de garantir o cumprimento do objetivo. Casos semelhantes observamos entre os poliglotas, que passam a falar outro idioma sem estarem conscientes de suas regras gramaticais, ou entre os músicos, que tocam seus instrumentos inconscientes dos detalhes da técnica que empregam.

Atenção. Trata-se de uma direção da consciência a algum objeto ou situação. Não basta um mero “dar-se conta”, mas uma verdadeira mudança de um estado de receptividade para um estado de reconhecimento ativo. Aqui cabe fazer uma interessante distinção entre dois tipos de atenção: (1) atenção sensorial involuntária, que é um mero dar-se conta causado pela força atrativa do objeto e (2) atenção intelectual voluntária, que é um ato da vontade propriamente, a qual procura limitar os sentidos e o intelecto a certas características particulares e apartá-las do pano de fundo da experiência. A atenção possui as seguintes características: (a) alcance (ou “amplitude”), que é o limite que acabamos de mencionar, (b) intensidade (ou “força”), pois a atenção intelectual vem também acompanhada de atividades especiais da percepção, (c) disposições temporais (“tempo”), ou seja, a atenção não é um processo perfeitamente contínuo, mas apresenta flutuações e vacilos.

Associação. Trata-se da tendência natural em agrupar em constelações os conteúdos dos pensamentos e imagens. Mas, para além de uma tendência natural e espontânea, a associação pode ser controlada pela vontade mediante a criação antecipada de esquemas que funcionem como meta, dentro dos quais o material adequado será selecionado e/ou eliminado.

Ação. A ação humana é diferente da ação animal. A ação animal é isolada, enquanto a ação humana penetra em todos os recônditos da mente e, por esforço volitivo, criar atitudes e disposições persistentes que influem em todos os movimentos exteriores. Evidentemente a ação volitiva também se deixa influenciar pelo ambiente exterior, mas seu exercício contínuo de alguma forma atenua pouco a pouco essa influência exterior a ponto de tornar-se a ação em algo “natural” ou “animal” ou “automático”. De modo muito genérico, podem-se dividir as ações em três grandes classes: (a) reações de defesa (evitar situações desagradáveis), (b) reações substitutivas (quando não é possível evitá-la, mas ao menos contorná-la ou compensar seu impacto), (c) solução de conflitos (repressão dos desejos e instintos sensoriais em favor de um ideal de vida intelectualmente superior).

Hábito. Nas palavras de Brennan, o hábito é “uma disposição que se desenvolve mediante o exercício experimental da inteligência e da vontade em virtude da qual estamos preparados a atuar de uma maneira natural, eficiente e metódica. Isso significa, naturalmente, que o hábito é um aspecto de nossa vida mental superior, dado que supõe a existência e o exercício de discernimento e controle”. A criação de um hábito permite a aquisição gradual de certa prontidão, facilidade e satisfatoriedade de resposta.

A ideia por trás da criação de hábitos é que o homem é aperfeiçoável, melhorável e, mais importante, que a mente humana é indeterminada. O homem pode eleger uma meta e concentrar seus esforços mentais e volitivos na direção de cumpri-la. As características principais dos hábitos são: (a) uniformidade (tendência a produzir as mesmas ações), (b) facilidade, (c) propensão, (d) independência da atenção.

A criação de hábitos é fundamental para o desenvolvimento da vida mental. Sem hábitos não há progresso intelectual possível.

Caráter. São os aspectos particulares de um indivíduo que o diferenciam dos demais indivíduos. Em outras palavras, o caráter é o “princípio de ação inteligentemente regida”. Os três fatores que compõem o caráter são: (1) ação (movimentos corporais, expressão facial, gestos, linguagem etc., ou seja, tudo aquilo que responsavelmente o indivíduo faz para interagir com o cosmos e com os homens), (2) reconhecimento de valores (valor é isoladamente o fator mais importante do caráter porque o valor é a verdadeira soma e substância dos motivos e é a razão por trás de toda a conduta humana) e (3) hábito (como dissemos acima, o cultivo do intelecto e da vontade, ou a falta desse cultivo, é um traço característico do caráter).

O produto típico do caráter é o ideal. A primeira fase é constituída pela emulação, ou seja, pela aprovação interior à pessoa que se erige como ideal. A segunda fase é constituída pela imitação. Em seguida a compensação, ou seja, as permutas que o homem cogita fazer em prol de seu ideal e, claro, se o ideal for impossível de cumprir deverá ser substituído por algo mais viável e prático. Por fim, o ideal se torna um motivo para agir. Aqui é notória a semelhança entre “ideal” e o conceito de “sentido” popularizado por Viktor Frankl.

Eu (“ego”). É a consciência de si mesmo, a consciência de eu. É o elemento de nossa existência que não é pensamento, nem percepção, nem imagem, nem sentimento, nem sensação. O eu é o mantenedor de todas as nossas ações. Quem nega a existência do eu nega sua própria existência.

Há três tipos ou manifestações do eu: (1) eu social (expressa as relações com o mundo, como quando dizemos “eu moro em Serra do Salitre”, por exemplo), (2) eu pessoal (designa a estrutura interna da mente e seus atributos, como quando dizemos “eu sou uma pessoa solitária”, por exemplo) e (3) eu puro (é o sujeito de toda e qualquer experiência mental, a raiz de nossas ações, como quando dizemos “eu sinto, eu vejo, eu conheço etc.”, por exemplo). O eu puro é evidentemente o eu do qual se fundam os outros dois eus. No entanto, transtornos de personalidade podem substituir os eu social e o eu pessoal, causando enormes dificuldades ao indivíduo. Cabe lembrar, por fim, que Tomás de Aquino não se refere ao eu humano dessa forma, mas o chama de persona.

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Eis um esquema no qual Brennan resume as faculdades (ou “potencialidade”, ou “capacidades”, ou “potências”) humanas.

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É notória a ausência do noûs e do coração na psicologia tomista. Para que o ser humano possa conhecer o que quer que seja acerca de Deus e do mundo transcendente, necessariamente terá de fazê-lo mediante os sentidos sensoriais e sua dominância pelo intelecto e pela vontade. Em última instância, a ideia de que Deus comunica-se diretamente com o homem sem a intermediação da criação é inconcebível no entender tomista. Do ponto de vista cristão ortodoxo, é no coração que Deus se comunica diretamente com os homens com a condição de que esteja purificado. E, uma vez que o noûs não mais esteja disperso, e imerso, nas paixões e interesses do ego, mas regresse ao coração purificado, ou seja, ao centro da afetividade humana, poderá ser iluminado pelas energias (logoi) divinas.

É claro que Deus também se comunica indiretamente por meio da criação. Mas os santos e mestres ortodoxos deixam claro que tal mediação é débil, distante, intricada e, finalmente, castrada e falível.

A psicologia tomista, portanto, é certamente interessante e verdadeira, mas imperdoavelmente limitada. Suponho que se Tomás tivesse pleno acesso às obras dos grandes santos orientais talvez sua psicologia fosse ainda mais interessante, iluminadora e verdadeira. Quem sabe alguém tome esta hercúlea tarefa para si e complete a obra tomista com os ensinamentos inerrantes dos Santos Padres.

Fonte: Robert Brennan, Psicología general, Ediciones Morata, Madrid, Espanha, 1953.