14 de março de 2024

A guerra invisível


Vimos em inúmeras postagens neste blog que todo aperfeiçoamento espiritual requer um processo fundamental sem o qual o progresso que se obtenha neste campo não passará de ilusão ou coisa pior. Trata-se da purificação do coração. Jesus Cristo deixou claríssimo, ao contrário do que popularmente se acredita hoje em dia, que é do coração que saem os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Isso é assim porque os homens, por amor-próprio, cultivam sua imagem, sua grandeza, sua reputação, seu orgulho. Fazem deuses de si mesmos e assim se autoiludem ao construírem uma torre de Babel em seus corações. Essa torre, esse ídolo, é o ego. O ego ocupa o coração do homem e é ele quem produz todo tipo de impureza e maldade.

A purificação do coração é pré-requisito para o progresso espiritual. Sem ele todo pretenso aprimoramento será apenas e tão-somente mais um tijolo na torre do ego. Imerso em sua própria ilusão, o indivíduo assegura que está progredindo espiritualmente quando, na verdade, está progredindo na estrada da perdição.

É neste contexto que a obra do padre católico romano Lorenzo Scupoli foi traduzida e editada por São Nicodemos Hagiorita e posteriormente revisada por São Teófano, o Recluso. Ambos reconheceram o enorme valor e importância dessa obra para os cristãos contemporâneos.

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A purificação do coração apresenta três caminhos:

a. Caminho moral: a disciplina da vontade e do caráter para neutralizar as paixões ao mesmo tempo que enaltece as virtudes.

b. Caminho contemplativo: a disciplina do intelecto, pela qual o homem educa os sentidos, a memória e a imaginação ao mesmo tempo que se educa para perceber Deus em todas as coisas materiais e Sua ação na história. Um estágio mais avançado incluir livrar a mente das imagens sensíveis (visão e imaginação) a fim de atingir a gnosis e a sophia.

c. Caminho noético: a disciplina do noûs, pela qual o homem, mediante deprecações (súplicas), orações, intercessões, e ações de graças (1 Timóteo 2:1), comunica-se com Deus para obter o necessário para atingir a hesychia. Este estágio é o da oração pura, na qual a imaginação e o intelecto cessam de intrometer-se na comunhão com Deus.

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Eis os destaques dos 53 pontos da guerra invisível:

1. Somos chamados à perfeição, e a maior e mais perfeita aspiração dos homens é aproximar-se de Deus e viver em união com Ele. No entanto, há nos homens vontades e desejos que clamam por satisfação e que não obstante nada tem a ver com a vontade de Deus. É necessário, portanto, que os homens lutem incessantemente contra si mesmos e contra tudo aquilo que desencadeie e insufle suas vontades e desejos. O homem nunca será livre enquanto for escravo de suas paixões.

Há 4 disposições fundamentais para essa guerra:

a. Sempre desconfie de você em tudo.

b. Cultive em seu coração a confiança única e exclusiva em Deus.

c. Lute sem cessar.

d. Coloque-se constantemente em estado de oração.

2. Deus quer que tenhamos consciência e experiência de nossa insignificância. Deus é a fonte suprema de toda boa ação e bom pensamento. Há 4 atitudes a serem tomadas aqui:

a. Conscientize-se de sua insignificância. “O fundamento de toda virtude é a conscientização da fraqueza humana”. (São Máximo, o Confessor)

b. Peça ajuda a Deus em orações calorosas e humildes.

c. Acostume-se a ser cauteloso e temer seus inúmeros inimigos.

d. Se cair em alguma transgressão, rapidamente volte-se à conscientização de sua fraqueza. Deus permite nossas transgressões para que nos tornemos cônscios de nossa fraqueza. Note, no entanto, que nem sempre Deus usa este subterfúgio, mas apenas quando as atitudes a, b e c acima não são seguidas e/ou não surtem efeito. Deus também faz uso, nestes casos, de “má sorte”, doenças, tribulações perigos, necessidades.

3. Não devemos simplesmente desconfiar de nós mesmos e nos desesperar. Não, devemos desconfiar de nós mesmos e confiar em Deus. É Ele quem sabe o que é realmente bom para nós. A vitória (salvação) lhe será concedida.

4. O critério que distingue o homem autoconfiante do homem que confia em Deus é que aquele, quando cai, se lamenta profundamente e prepara planos para superar a queda e, no futuro, ser bem-sucedido, enquanto este, quando cai, se lamenta moderadamente e conscientiza-se da sua falta de confiança em Deus.

5. O homem que se lamenta profundamente é aquele que se orgulha profundamente, que tem uma opinião muito elevada de si mesmo.

6. Na guerra invisível somos todos perdedores, sem exceção. Os únicos que vencem são aqueles que lutam confiando em Deus. Toda vitória é dEle, não sua.

7. A mente tem de se livrar da ignorância da seguinte forma: (a) Implorar em oração para que o Espírito derrame Sua luz divina em nossos corações, (b) procurar sabedoria nos escritos dos homens santos e entender que a vitória não vem das vitorias no mundo, mas das vitorias espirituais. Na calúnia e na difamação está a verdadeira glória, no perdoar os inimigos e fazer-lhes o bem está a verdadeira magnanimidade, no desprezo pelo mundo está a verdadeira força e poder, na obediência voluntaria está a verdadeira coragem e força de espírito, na superação de suas más tendências está o verdadeiro louvor.

8. Não julgue as coisas de maneira imediata, apenas pelas aparências. É necessário certo desapego, certa distância, para em seguida julgar as coisas e situações com a mente.

9. O cultivo da mente implica em não se contentar com a ignorância, mas, por outro lado, também em não a afogar com conhecimento excessivo, ou seja, com meras curiosidades. O orgulho da vontade é visível à mente, que pode esforçar-se em corrigi-lo. Mas o orgulho da mente será visto de que forma? Quem poderá curá-lo? Eis que a mente tem certa proeminência em relação à vontade, e eis que o orgulho da mente é pior que o orgulho da vontade.

10. E como fazer a vontade de Deus e não a sua? (a) Somente com um coração puro é possível discernir quando estamos fazendo a vontade de Deus ou quando, sub-repticiamente, estamos fazendo nossa própria vontade, (b) se você é incapaz, ou sente-se inseguro, de perceber se Deus está movendo as coisas externamente, mas sobretudo internamente, mantenha pelo menos a disposição de tentar perceber Sua vontade e confie nos mais experientes, (c) o homem que faz a vontade de Deus nunca “prefere” uma coisa em relação a outra porque preferir é obviamente introduzir sua vontade na atividade, (d) o homem deve antes buscar agradar a Deus do que escapar do inferno ou ganhar o céu (é melhor dar um pouco de dinheiro a um mendigo para agradar a Deus do que doar uma fortuna para ganhar o céu).

11. Deus mantém os homens vivos a cada momento, a cada instante, todo o tempo. Ele os criou do nada. Honrar Sua grandeza e majestade é uma conclusão óbvia a que todos deveríamos chegar.

12. Há duas vontades no homem: a vontade inteligente superior e a vontade sensorial inferior. O livre arbítrio fundamentalmente inclina-se para uma ou outra, e um dos objetivos supremos da guerra invisível é precisamente não se inclinar pelos ditames da vontade inferior carnal, impetuosa e “apaixonada”. Uma vez que o livre arbítrio se enrede nos ditames da vontade carnal, aí permanecerá como um cabresto mantém um burro de carga sob controle. Para livrar-se dessa vontade inferior dos desejos, a ajuda da graça de Deus é imprescindível. O cristão, que é chamado não apenas para aprimorar-se, mas para aperfeiçoar-se, deve forçar-se a negar esses desejos de maneira total. Isso significa não apenas abandonar os desejos mais enraizados e escravizantes, mas os menores também. O cristão tem de aprender a amar a guerra invisível.

13. Passo a passo para superar os desejos (as paixões da vontade inferior): (a) assim que notar seu surgimento, force-se imediatamente em não as atender, (b) crie um sentimento de raiva contra eles, (c) peça ajuda e força a Cristo, (d) se possível, faça o contrário do que sugere a paixão, (e) cultive uma resolução interior que torne impossível inclinar-se a tais tendências impetuosas como, por exemplo, considerar-se genuinamente digno de todo insulto e assim acolhê-los com alegria.

14. A luta contra as paixões será obviamente reforçada pela oposição do inimigo, que vai tentar te convencer de que a luta é inglória e que a rendição é inevitável. Mas isso é absolutamente falso: “Deus concedeu a nosso arbítrio um poder tão grande que mesmo que todas as faculdades humanas, o mundo inteiro e todos os demônios se unam contra a vontade, não a subjugarão”. Isso significa que não há desculpa, por mais “plausível” que seja, que justifique inclinar-se a nenhum impulso de nenhuma paixão. No entanto, entenda que você é apenas um homem, ou seja, você isoladamente é incapaz de vencer essas batalhas. É necessário reunir em ti a convicção de sua impotência humana para, a partir daí, pedir em oração a ajuda de Deus. Persevere, e a ajuda virá.

15. Para uma guerra rápida e vitoriosa, você deve centrar-se em todas as suas paixões, mas especialmente no amor-próprio, caracterizado pela autoindulgência e pela autopiedade. No entanto, não esqueça que o inimigo está nas mãos de Deus, ou seja, a vitória será retrasada pelo simples motivo de que Deus quer que você lute com todas as suas forças até o fim. Tenha isso claro: não há homem que esteja livre dessa guerra, “seja em vida, seja na morte”.

16. Ao acordar de manhã reze a Oração de Jesus por alguns momentos e ponha-se imediatamente em guarda, sabendo que à sua esquerda está seu inimigo e à sua direita está seu Comandante, o próprio Cristo, e Sua mãe, a Santíssima Virgem, e seus santos e anjos. O inimigo imediatamente ventilará em sua alma impulsos para a autoindulgência e lhe “garantirá” que ceder será melhor e menos custoso. Neste instante invoque a ajuda do Alto e, mesmo que lhe cause dor [combater o ego], insista na labuta espiritual. A vitória, isto é, a coroa que receberá nesta e na próxima vida, virá mediante incessantes batalhas. Retome o que ensinamos no passo 13.

17. Ataque primeiro aquilo que mais lhe perturba, ou seja, o maior obstáculo a seu progresso espiritual. A única exceção é quando algo repentinamente surge no transcurso do dia. Neste caso, ataque estes eventos insurgentes primeiro.

18. Alguns passos para prevenir os ataques súbitos: (a) toda manhã antecipe mentalmente as ocasiões favoráveis e desfavoráveis aos impulsos e irritações, (b) se o impulso surge, procure “descer” imediatamente a seu coração e isole o impulso, (c) se não lograr êxito, não expresse o impulso ou irritação nem por palavras, olhares ou gestos, (d) eleve-se a Deus e procure substituir o mal impulso por um bom impulso, (e) e o mais importante: elimine as causas dos impulsos.

“No trato com as pessoas, você será auxiliado lembrando-se de que elas também são criaturas de Deus, moldadas, assim como você, à imagem e semelhança de Deus e pelas mãos todo-poderosas do Deus vivo; que elas estão redimidas e regeneradas pelo precioso sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo; que elas também são seus irmãos e membros da mesma humanidade, as quais é errado odiá-las nem mesmo em pensamento. [...] Lembre-se especialmente de que, mesmo que supostamente elas sejam dignas de desprezo e hostilidade, se conceder-lhes suas amizade e amor, você estará assemelhando-se a Deus, que ama todas as Suas criaturas e não despreza a nenhuma delas”.

19. Quanto às paixões sexuais: (a) Evite contato com o sexo oposto para combater paixões luxuriosas, (b) preste atenção à ociosidade e à preguiça, observando de perto seus pensamentos, (c) nunca desobedeça a seus mestres e pais espirituais, (d) nunca julgue seu irmão quando cair, mas tome seu exemplo com humildade, (e) não se imagine superior e imune aos ataques do inimigo.

20. A negligência se forma quando formamos o hábito de só fazermos o que gostamos. Fazer o que se gosta leva, em última instância, à paralisia, à inação, à preguiça. Você tem de entender que fazer uma única vontade de Deus, uma simples genuflexão a Seu favor, vale infinitamente mais do que todos os tesouros da terra. Combata a negligência tendo a ciência de que o que quer que faça você enfrentará não muitos, mas apenas um e o mesmo inimigo, e que ele, por mais forte que você que seja, será derrotado porque você confia na ajuda de Deus, que é infinitamente superior a seu inimigo.

21. Evite direcionar seus sentidos externos a esmo, em busca de prazer e satisfação de seus gostos. Uma técnica para não se deixar contaminar pelos sentidos é treinar seu olhar a estar convicto de que, por trás de tudo o que se vê, ouve, cheira, sente etc. está o próprio Deus, que dá ao que quer que seja sua beleza, bondade, verdade, perfeição. É o conteúdo interior das coisas que deve impressioná-lo, não seu aspecto aparente. Lembre-se, você é uma criatura inteligente, não um animal. Encontre nas criaturas seu Criador.

22. Aproveite para ascender a Cristo e Sua história na terra quando ouvir, ver ou sentir coisas que O evoquem. Por exemplo, rochas, mar, pedras, espinhos, martelos, o amor entre Suas criaturas, sol, água, vinho, vestes, murmúrios, dor, aflição, luto etc. etc.

23. Similarmente, a beleza das coisas, o sol, os céus, o cantar dos pássaros, a beleza das pessoas: tudo aponta para o Criador e, mais ainda, tudo isso é palha ante a beleza e o esplendor do Reino de Deus. Evidentemente, estes métodos não precisam ser usados sempre, mas quando necessário. A ideia é que você saiba reunir sua mente e seu coração no Senhor.

24. A virilidade da alma é enfraquecida ao entregar-se a paixões, belezas, texturas, sons prazerosos etc. Guarde seus sentidos para fortalecer sua alma.

25. Acima de tudo, guarde sua língua. O que move a língua é o coração. Os sentimentos que buscam expressar-se em palavras são em sua maioria egóicos porque expressam a lisonja de nosso amor-próprio e nos apresentam, imaginamos, sob a melhor luz. Na maioria dos casos, a loquacidade é sinônimo de conversa vazia. Da conversa vazia vêm as críticas, as calúnias, as fofocas, as sementes da discórdia, a vaidade, o falar com superioridade, o autoelogio disfarçado etc. O silêncio é um dos maiores aliados na guerra invisível. O hábito do silêncio se adquire praticando.

26. Sobre a imaginação. Os objetos sensíveis e os sentidos externos são com carimbos, e a imaginação a marca do carimbo. Mas dado que a imaginação é uma força desprovida de razão e age de maneira puramente mecânica, obedecendo as leis de associação de imagens, enquanto a vida espiritual é a imagem da pura liberdade, concluímos que a atividade da imaginação é incompatível com a vida espiritual. A imaginação é um poder da alma que, por sua própria natureza, é incapaz de adentrar no âmbito da união com Deus. Os Santos Padres ensinam que a imaginação é como uma ponte da qual os demônios se aproveitam para atingir a alma, mesclando-se a ela. Filósofos e pensadores a usam para especular sobre as coisas do Alto, as quais são inacessíveis à imaginação e à fantasia, mas sem antes purificar sua mente das paixões e imagens ilusórias do mundo sensível. O resultado é que ensinam mentiras e não encontram a verdade. Esforce-se em limpar a imaginação de impressões externas mediante a oração e o recolhimento. Quando estiver cansado, desfrute da liberdade em reflexões divinas e contemplações, mas somente aquelas contidas das Escrituras e naquilo que as criaturas de Deus inspirarem; elas são imateriais e, portanto, afins à mente.

27. O cristão deve evitar que os percalços da vida agitem o coração: medos, sofrimentos, tristezas e alegrias repentinas, doenças, ferimentos, mortes de parentes, guerras, incêndios, memórias de pecados e transgressões passadas etc. A ideia é entender que, no que quer que lhe acometa ao cristão, ele tem de inserir esse acontecimento em sua vida espiritual e confiar na Providência. Se algo de bom e positivo lhe acontece, eis uma oportunidade para arrepender-se. Se algo de mal e negativo, eis uma oportunidade para cogitar se são meus pecados que estão me conduzindo a tal situação ou, ainda, Deus está me provando. Não importa o que aconteça ao coração, o homem tem a virtude e a capacidade de suportar o sofrimento e reestabelecer a paz em si mesmo contanto que se submeta a Deus.

28. Se acontecer de você cometer alguma falta pequena, como falar algo grosseiro, perder a calma, um desejo ardente se acender, um pensamento inadequado se formar etc., não se condene ou se julgue. Tal condenação ou julgamento vem, ao contrário do que inicialmente poderíamos supor, de nosso orgulho, de nosso ego. Todos os pecados já foram rasgados na cruz de Jesus Cristo. Estão já perdoados. Portanto, para que desça a graça é necessário fundir o sentimento de culpa com o sentimento de perdão em um só sentimento, aliado à firme decisão de não mais voltar a incorrer nesse pecado. O inimigo vai tentar convencê-lo de que esse exercício de arrependimento pode esperar só mais um pouquinho e, de pouquinho em pouquinho, a visão do pecado torna-se cada vez mais turva até que, com o tempo, o pecado faça parte de seus hábitos e se normalize.

29. O inimigo não tem uma única tática para combater o homem. Ele adota diferentes táticas a depender da situação de cada ser humano.

30. Uma tática muito comum do inimigo é manter o homem em pecado ao dissuadi-lo dos pensamentos que poderiam trazer-lhe à consciência sua vida perniciosa e, agindo assim, lhe aprofunda mais no pecado. No lugar dos pensamentos saudáveis, o inimigo implanta pensamentos insanos. Quanto mais cego, mais insana se tornará a pessoa e, assim, mais perdida.

31. No entanto, àqueles que de alguma forma atingiram a consciência de sua vida insana o inimigo insufla pensamentos de procrastinação (“depois”, “mais tarde” etc.). Lembre-se: o que está nas suas mãos é o hoje, o agora, o neste momento. O amanhã pertence a Deus. Tome a firme decisão de mudar agora, de emendar-se agora. O amanhã poderá distrai-lo mais e a resolução e visão que agora tem poderá perder-se. De novo, a hora é agora. Somente a prática vai fortalecer a visão que tem e a decisão que deve tomar. Adiá-la necessariamente irá enfraquecê-la. Isso vale também para quem leva uma vida decente: a oportunidade de fazer o bem não deve ser deixada escapar.

32. Outra tática do inimigo é “limpar o terreno”, ou seja, é sugerir ao cristão que tem avançado na vida espiritual que ele não precisa de conselhos de fora, de conhecimentos daqueles mais experientes como santos, staretzi (anciãos), homens sábios etc. A ajuda externa seria desnecessária. O novato se entrega a seus próprios conhecimentos e tentativas pessoais.

33. O inimigo também adota a tática de enviar pedras de tropeço e ciladas para que o cristão tropece.

34. Mais uma tática do inimigo é lisonjeá-lo, é sugerir que você está no caminho certo, que você atingiu um grande patamar espiritual etc. Por mais que seja verdade, ou seja, por mais que você tenha realmente crescido espiritualmente, orgulhar-se disso jogará por terra todo seu progresso. A chave para evitar essa sugestão diabólica é fortalecer a convicção de que você é nada. Suas disposições, sua existência, as leis que regem seu corpo, sua alma, sua essência, as pessoas que cuidaram de você, as pessoas cuja união possibilitaram sua existência, enfim, tudo o que há de bom em você tem sua raiz em Deus, no Logos, no Criador. Medite bem e conclua que orgulhar-se de suas conquistas é um ato profundamente falso, profundamente egoísta.

35. Algumas armas a serem usados pelos cristãos na guerra invisível: (a) atacar a paixão que mais lhe prejudica, a que mais lhe causa derrotas, (b) nunca parar, ou seja, nunca abandonar a guerra contra a paixão quando atingir algumas vitorias; a guerra nesta vida termina no fim desta vida, (c) seja sábio e sensato ao atribuir práticas espirituais como jejuns, orações, trabalhos físicos etc.; faça algo que seja desafiador, mas, ao mesmo tempo, que não lhe castigue amargamente, (d) ataque a paixão no momento exato em que surge; o momento da batalha é agora, esqueça o passado e o futuro, a batalha é agora, (e) transforme-se em um inimigo do conforto, do prazer, da autoindulgência, (f) comece sua batalha fazendo uma confissão geral; trata-se não apenas de algo conveniente, mas necessário.

36. Quanto à prática das virtudes, concentre-se em adquirir uma e, com o tempo, outra, e assim por diante; não procure adquirir todas, ou mesmo algumas, de uma vez, mas lembre-se que, uma vez conquistada uma, a seguinte será mais fácil.

37. Atingir uma virtude significa que ao executá-la emprega-se o mesmo esforço e a mesma prontidão que empregava quando você não a executava. Em outras palavras, é como se a virtude passasse a fazer parte de sua natureza, de sua essência. Portanto, de manhã procure prever os momentos em que enfrentará dificuldades ao executá-la e, à noite, relembre os momentos em que foi incapaz de executá-la. Prepara-se antes e revise depois, eis uma estratégia inteligente. E não se esqueça, evidentemente, de pedir ajuda do Alto, sem a qual nada será conquistado: Deus se regozija quando alcançamos uma virtude e, ao mesmo tempo, quando o fazemos pelo simples objetivo de agradá-Lo.

38. O trajeto para a conquista das virtudes apresenta um aspecto diretamente proporcional ao trajeto que percorremos fisicamente. Quanto mais caminhamos, mais nos cansamos. No caminho das virtudes, no entanto, quanto mais avançamos, mais fortes nos tornamos. Isso acontece porque estar forte no mundo espiritual significa ao mesmo tempo estar fraco no mundo sensível. Ademais, a ajuda do Alto deposita-se na parte superior da alma, enquanto a parte inferior, carnal, não recebe nenhuma ajuda.

39. Por isso, uma vez mais, reforçamos a importância de escapar dos prazeres carnais e da luxúria em geral.

40. (a) Quando uma ocasião favorável se apresentar, sempre pratique a virtude. Mesmo em situações menores, praticá-la lhe dará forças quando as situações mais importantes se apresentarem. Não zombe das oportunidades que Deus lhe dá em resposta às suas próprias orações. (b) Lembre-se que, apesar de Deus não desejar seu pecado e das demais pessoas, mesmo eles são permitidos por Ele para nossa admoestação e humildade; aceitemos esse cálice como vindo das próprias mãos de Deus.

41. e 42. (a) O sinal de que estamos praticando a virtude é que a exercemos mesmo em momentos de esfriamento e obscurecimento da alma. (b) Quanto mais fracos forem os impulsos carnais, mais isso quer dizer que progredimos nas virtudes. (c) Quanto mais fácil for o arranque para a prática de uma virtude, tanto mais isso significa que fizemos um bom progresso. (d) Se a mente ascende facilmente a bons pensamentos com pouco ou nenhum esforço, eis outro sinal de progresso espiritual. (e) Idem para a oração, que cumpre-se sem perambular em pensamentos e conjecturas. (f) Quando lágrimas fluírem naturalmente durante um pensamento ou memória, isso também denota progresso espiritual. (g) Quando pensamentos elevados descem ao coração e ali permanecem por tempo prolongado, eis outro sinal de progresso.

43. Querer-se livrar de uma aflição é dar-lhe mais importância do que realmente tem. As aflições têm de ser suportadas com paciência, com confiança em Deus, com humildade. Elas durarão o tempo que tiverem de durar. Querer livrar-se delas é uma questão de orgulho, de petulância.

44. Quando fazemos algum progresso, o inimigo o tentará fazendo-lhe acreditar que está próximo da perfeição e, assim, que você deveria exercer ainda mais esforço físico e mental para atingi-la. Isso acabará lhe atirando no abismo. As mortificações são em geral uma tentação e uma perdição para os homens. Busque fazer aquilo que é proporcional às suas condições morais. Não imite os santos externamente, mas os imite nas disposições da alma e do espírito.

45. O amor-próprio engendra o vício do julgamento alheio. O problema é que o julgamento alheio não apenas se funda no orgulho, mas o alimenta, que retroativamente alimenta o julgamento alheio. O inimigo se aproveita desse fenômeno e abre nossos olhos. Sim, ele abre nossos olhos, mas não àquilo que fazemos e dizemos, mas àquilo que os outros fazem e dizem. Prestamos especial atenção aos gestos, palavras, posturas e ações alheias com o objetivo de encontrar defeitos e, assim, julgar e condenar o próximo. Para superar esse vício, (1) repila o pensamento de julgamento imediatamente, lembrando-se das boas qualidades do próximo, (2) lembre-se de seus próprio defeitos e falhas (“cura-te a ti mesmo” (Lucas 4:23), “tira primeiro a trave do teu olho” (Mateus 7:5)), (3) lembre-se que quando julgamos severamente alguém isso significa que uma pequena raiz da mesma maldade existe no seu coração, e que é essa mesma raiz no coração que permite que você faça suposições sobre os outros e os condene.

46. O que é necessário para que a oração surta seu pleno poder? (1) Manter sempre vivo a intenção de servir a Deus em tudo o que fizer. (2) Manter viva a fé de que Deus quer conceder-lhe tudo o que é necessário para servi-Lo corretamente. (3) Manter viva a intenção de fazer a vontade de Deus, e não reduzir a vontade de Deus à sua vontade. Nossa vontade está sempre contaminada em maior ou menor grau com o amor-próprio, o que a torna suspeita. Se genuinamente não souber qual é a vontade de Deus, peça para Ele lhe esclareça. E não se esqueça que as virtudes são agradáveis a Deus, mas elas devem ser exercidas com o intuito de agradá-Lo e servi-Lo, e não motivos espúrios quaisquer. (4) A oração por virtudes tem de ser feita concomitantemente com esforços genuínos de sua parte para exercê-las, sob pena de tentar a Deus. Rezar de maneira negligente, ou pedir a um santo que lhe ajude sem que você mesmo “se ajude”, é hipocrisia. (5) Combinar na oração os 4 elementos básicos ensinados por São Basílio, o Grande: (a) glorifique a Deus, (b) dê graças a Ele pelas bênçãos e misericórdias que lhe concede, (c) confesse suas faltas e transgressões, (d) peça-Lhe o que necessita, especialmente do que necessita para sua salvação. (6) Mantenha viva a confiança da generosidade imensurável de Deus, mas também em Jesus Cristo. E não se esqueça de pedir ajuda à Mãe de Deus, aos anjos, santos, pastores, mestres, ao anjo da guarda, ao seu santo padroeiro etc. (7) Rezar com incansável entusiasmo e diligência, ou seja, não esperar que o que pede venha em curto prazo. Mantenha viva em seu coração a fé em Sua ajuda. Mesmo que não receba o que pediu, não procure entender o porquê, mas entenda que poderá receber algo diferente do que pediu ou, mesmo que não receba absolutamente nada, lembre-se de sua própria indignidade.

47. Quanto à oração mental, ou oração interior, trata-se da oração feita com a mante (noûs) em silêncio no coração. É como reunir, ou efetivamente “recordar”, a oração no coração. A ideia é que o coração sinta (“se afete”) por aquilo que é rezado. Há ainda a oração perfeita, que é a oração rezada pelo Espírito Santo no coração do fiel cristão.

48. Rezar com o livro de orações é não apenas útil, mas necessário. No entanto, é comum que a mente divague enquanto rezemos. A oração torna-se algo mecânico, frio. A ideia é combinar mente e coração em uma e mesma direção. Para isso: (1) Reflita ao longo do dia sobre a oração, mas não no momento da própria oração. Relembre sua importância, seu objetivo, seu mérito, seu propósito. Dessa forma, no momento de rezar, será mais fácil que a mente se concentre na oração e o coração responda afetivamente a ela. (2) Decore a oração para que a mente mais facilmente possa se concentrar-se nela, e não se lembrar dela. (3) Não se entregue à leitura das orações sem antes se preparar para ela. A mente tem de estar calma, livre de preocupações, aflições, perigos etc. (4) Lembre-se que orar significa colocar-se diante de Deus. (5) Leia as orações com atenção, com a mente no coração. Se a mente divagar, volte a leitura ao ponto onde a mente começou a divagar. (6) Se durante a oração surgir de repente algum tema que lhe chame a atenção e sobre o qual necessita orar, pare a leitura de orações e reze sobre o tema que lhe surgiu até que se encontre satisfeito. (7) Quando tenha terminado suas orações, não pense que a mente pode livremente divagar no resto do dia e esquecer-se do Alto. Lembre-se que a mente sempre tem de preservar um “estado de oração” e não se esqueça que Deus está sempre presente em todos os lugares. (8) A oração tem de ser feita completa e sem interrupções, diariamente. Se um dia você reza bem e no outro não, e essa oscilação se torna um hábito, nunca a oração se estabelecerá e seus frutos não serão colhidos.

49. A vida de oração deve começar pela memorização das orações do livro de orações. Quando se enxertarem, então aprenderemos a rezar de maneira pessoal, ou seja, o coração aprenderá a rezar adequadamente. Não tente rezar por sua própria conta sem que o coração sinta um impulso e uma necessidade reais. Por regra geral, as orações espontâneas são egoístas, orgulhosas, petulantes.

50. Escolha uma oração curta para ser rezada ao longo do dia e habituar sua mente e seu coração a rezá-la. Recitar uma oração curta é o ideal, mas de qualquer forma o objetivo aqui é manter a atenção viva na lembrança de Deus.

51. A Oração de Jesus deve ser rezada não apenas com palavras, mas com a mente e o coração. Seu conteúdo tem de ser sentido, repercutido, no coração. Com o tempo e muita prática, as palavras desaparecem e apenas o movimento da mente (noûs) e do coração permanecem. (1) Reserve em sua regra de oração um tempo para a Oração de Jesus. (2) Aumente a quantidade de orações na medida em que desfrutar dela. (3) Não a recite de maneira atabalhoada, mas com atenção, lembrando sempre que o coração tem de repercutir seu conteúdo. (4) Insira a oração nos intervalos de seu dia, sempre que possível. (5) Acrescente uma reverência a cada recitação. Essa prática fortalece o poder da oração e seus frutos. (6) Leia a Philokalia, especialmente São Simeão, o Novo Teólogo, São Gregório do Sinai, São Nicéforo, São Calixto e Santo Ignácio. (7) Ao rezá-la concentre-se na parte no coração físico, ou seja, na porção logo acima do mamilo esquerdo. Se uma sensação dolorida surgir, mova a atenção para a parte superior do peito. (8) Tenha um pai espiritual experiente. Não aceite as insinuações do inimigo de que você alcançou a oração mental. (9) Não estabeleça uma meta temporal para alcançar esta oração. Isso levará muito, muito tempo. Não tente controlar o progresso, ele não está sob seu alcance.

52. Mais orientações para rezar. (1) Coma, durma e descanse com moderação. Não se entregue a comidas e bebidas de acordo com os impulsos e desejos imediatos. Não dê trégua à carne. (2) Reduza o contato com o mundo exterior o mais que possível. Quando a oração se estabelecer, você saberá o que pode ser acrescentado em termos de contato exterior. (3) Leia livros espirituais e adequados à sua condição. Vá a igreja quando puder porque simplesmente estar ali já sugere um clima de oração. (4) O progresso na vida espiritual exige progresso na vida cristã. Purifique-se mediante a confissão regular. (5) Não omita nenhum tipo de oração, sejam as orações do livro de orações, sejam as orações livres, sejam os breves apelos a Deus, seja a Oração de Jesus.

53. A oração é uma arma invencível na guerra invisível apenas quando tiver se estabelecido incessantemente no coração. Neste ponto, o coração torna-se impenetrável pelo inimigo. No entanto, até que isso aconteça, a oração mesmo assim não apenas é valiosa, como é a arma mais importante na guerra invisível. Assim que uma imagem se formar na alma, seja de alguém que lhe fez mal, ou de alguma mulher bonita, ou de bens, roupas, o que seja, resista recorrendo à oração e, em geral, à Oração de Jesus.

Fonte: Lorenzo Scupoli, editado por São Nicodemos, o Hagiorita, e revisado por São Teófano, o Recluso, Unseen Warfare, St. Vladimir’s Seminary Press, Crestwood, NY, EUA, 1997.