17 de outubro de 2009

Orações às margens do Lago Ohrid


São Nicolau de Ohrid e Zhicha, o Novo Crisóstomo, (+1956) compôs belíssimas orações às margens do Lago Ohrid, onde hoje é a atual República da Macedônia. Entre elas, há algumas orações que fazem alusões e comparações com outras religiões. Em uma curiosa oração, de número XLVIII, Lao-Tsé, Krishna, Buda, Zoroastro e Isaías são chamados de "profetas", os quais antecederam e foram "destinados a teu Filho", isto é, ao Cristo. Há também as orações XIII e LXVIII, nas quais outras alusões são feitas com o Islã e o Hinduísmo.

A tradução e as notas se basearam na tradução do Arquimandrita Todor Mika e do Pe. Stevan Scott.

São Nicolau é comemorado no dia 5/18 de março. A foto acima é do Lago Ohrid.

* * *

Oração XIII

Tu não pedes muito de mim, meu Amor. Na verdade, as pessoas pedem mais.

Estou embalado em uma grossa camada de não-existência, que cobre os olhos da minha alma. Tu pedes apenas que minha alma se dispa de sua embalagem nebulosa e abra seus olhos a Ti, meu Poder e minha Verdade. As pessoas pedem que minha alma se embale mais e mais com embalagens mais e mais grossas e pesadas.

Ó, ajuda-me, ajuda-me! Ajuda minha alma a conquistar a liberdade e a luz, a conquistar a luz e asas aéreas, a conquistar asas aéreas e rodas de fogo ardente.

Histórias são longas, longas demais; a moral é curta -- uma palavra. Histórias derramam-se em mais histórias, assim como a superfície suave do meu lago derrama-se de cor em cor. Onde o derramar colorido da água sob o sol terminará, e onde o derramar de histórias em histórias terminará?

Histórias são longas, longas demais; a moral é uma palavra só. Tu és essa palavra, ó Verbo de Deus. Tu és a moral de todas as histórias.

O que as estrelas escrevem no céu, a relva sussurra na terra. O que a água gorgulha no mar, o fogo ruge sob o mar. O que um anjo diz com seus olhos, o imam brada de seu minarete. O que o passado disse e deixou, o presente está dizendo e deixando.

Há uma essência para todas as coisas; há uma moral para todas as histórias. As coisas são contos do céu. Tu és o sentido de todos os contos. As histórias têm Tua extensão e amplitude. Tu és a brevidade de todas as histórias. Tu és a pepita de ouro em um outeiro de pedra.

Quando digo Teu nome, disse tudo e mais do que tudo.

Ó meu Amor, tem piedade de mim!

Ó meu Poder e Verdade, tem piedade de mim!

Oração XLVIII

Todos os profetas, desde o princípio, têm clamado à minha alma, implorando-lhe para que se torne virgem e se prepare para receber o Filho divino em seu ventre imaculado;

Implorando-lhe para que se torne uma escada pela qual desça Deus ao mundo e pela qual suba o homem a Deus (1);

Implorando-lhe para drenar de si o mar vermelho das paixões sanguinárias, a fim de que o escravo homem possa alcançar a terra prometida, a terra da liberdade (2).

O mago da China adverte minha alma para que fique calma e tranquila, e aguarde o Tao para nela agir. Glória à memória de Lao-Tsé, o mestre e profeta de seu povo!

O mago da Índia ensina minha alma a não temer o sofrimento, pois mediante a sondagem árdua e inexorável em purificação e oração, ela se elevará ao Altíssimo, que a receberá e lhe manifestará Sua face e Seu poder. Glória à memória de Krishna, o mestre e profeta de seu povo!

O príncipe da Índia ensina minha alma a esvaziar-se completamente de toda semente e fruto do mundo, a abandonar todas as tortuosas seduções da matéria caduca e ilusória, para então -- em vacuidade, tranquilidade, pureza e glória -- aguardar o nirvana. Bendita seja a memória de Buda, o príncipe e mestre inexorável de seu povo!

O estrondeante mago da Pérsia diz à minha alma que não há nada no mundo exceto luz e trevas, e que a alma deve livrar-se das trevas como o dia se livra da noite. Pois os filhos da luz são concebidos da luz, e os filhos das trevas são concebidos das trevas. Glória à memória de Zoroastro, o grande profeta de seu povo!

O profeta de Israel clama à minha alma: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome -- o Deus-homem (3). Glória à memória de Isaías, o profeta clarividente da minha alma!

Ó Senhor celestial, abra os ouvidos da minha alma para que ela não se torne surda aos conselhos do Teu mensageiro.

Não mates os profetas que te foram enviados (4), alma minha, pois suas sepulturas não contêm a eles, mas àqueles que os mataram.

Lava-te e purifica-te; torna-te tranquila em meio ao mar turbulento do mundo, e guarda em ti os conselhos dos profetas que lhe foram enviados. Entrega-te completamente ao Altíssimo e dize ao mundo: "Não tenho nada para ti".

Até mesmo os mais justos dos filhos dos homens que crêem em ti são meras sombras débeis as quais, como o justo José, andam em tua sombra. Pois mortalidade gera mortalidade, e não vida. Em verdade te digo: os maridos mundanos erram quando dizem que dão vida. Eles não dão vida, mas a matam. Eles empurram a vida para o mar vermelho e a afundam, não sem antes envolvê-la em trevas e transformando-a em ilusão diabólica. Não há vida, ó alma minha, a não ser aquela que vem do Espírito Santo. Não há realidade alguma no mundo, a não ser aquela que vem do céu.

Não mates os profetas que lhe foram enviados, alma minha, pois a morte é uma ilusão das sombras. Não mates, pois tu não podes matar ninguém a não ser a ti mesma.

Sê virgem, alma minha, pois a virgindade da alma é a única semi-realidade neste mundo de sombras. Uma semi-realidade, até que Deus nasça nela. Então a alma se tornará plena realidade.

Sê sábia, virgem minha, e recebe cordialmente os dons preciosos dos magos do Oriente destinados a teu Filho. Não te voltes ao Ocidente, onde se põe o sol, e não almejes falsos dons.


Notas:


(1) Cf. Gênesis 28:12: E eis uma escada posta na terra, cujo topo tocava nos céus; e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela, e João 1:51: Na verdade, na verdade vos digo que daqui em diante vereis o céu aberto, e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem.

(2) Cf. Êxodo 14.

(3) Cf. Isaías 7:14: Portanto o mesmo Senhor vos dará um sinal: Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamará o seu nome Emanuel.

(4) Cf. Mateus 23:37: Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados! quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste!


Oração LXVIII

O hindu amaldiçoa o karma. O muçulmano amaldiçoa o kismet. O cristão amaldiçoa o pecado.

Todos eles amaldiçoam suas maldições; em verdade, todas as formas de maldição são uma privação de liberdade.

Todos eles amaldiçoam suas maldições -- a única bendita maldição. Todos eles murmuram contra as cinzas, as quais os mantêm presos a elas e estão certas de vencer.

Em verdade, os jogadores não gostam daquele cuja vitória é certa em um jogo com pessoas mais ineptas.

O hindu não amaldiçoa a privação de liberdade, mas sua vassalagem àquilo que é pior que si próprio. Nem o muçulmano amaldiçoa a privação de liberdade, mas sua vassalagem àquilo que é pior do que si próprio. Nem o cristão amaldiçoa a privação de liberdade, mas sua vassalagem àquilo que é pior do que si próprio. Nenhum deles murmura contra seu mestre como se ele fosse seu mestre, mas como se fosse um mestre inferior a si próprios.

O mundo procura mestres. Ao experimentar os mestres, o mundo submete-se ao papel de servo e, alimentando-se de cinzas, tenta preservar sua dignidade com murmúrios.

Pensei comigo mesmo e perguntei-me: "Tu consegues lançar o karma para trás de ti -- essa montanha enorme, tão antiga quanto o mundo, tão pesada quanto o mundo -- tu consegues lançá-la para trás de ti?

"Pode uma gota d´água realmente encontrar seu caminho na luz? Pode o fogo no coração da montanha conduzir-se até o topo, onde o sol o aguarda?"

Ainda outra vez pensei comigo mesmo e perguntei-me: "Tu consegues criar um kismet para o kismet? Pode um condutor de camelos salvar-se a si próprio e a seu camelo de uma tempestade de areia e ainda chegar a tempo vindo de uma rota sem oásis?

"Pode um filho registrar no seu patrimônio um pai plenipotenciário?

"Pode o legislado tornar-se o legislador?"

Ainda outra vez pensei comigo mesmo e perguntei-me: "Tu podes escapar deste campo de pecados, onde uma simples semente gera cem colheitas?

"Pode alguém que tenha encontrado um campo melhor realmente conseguir abandonar um campo pior?

"Pode alguém que descobriu que seu companheiro de viagem é um malfeitor, virar as costas e se afastar dele?"

Mas o medo em mim retorque: "E se não houver outro campo? E se não houver outro companheiro de viagem?"

Mas o Eu mais corajoso em mim responde: "Quando eu falo de Brahma, não estou falando de outro campo? Quando eu falo de Allah, não estou falando de outro companheiro de viagem? Quando eu falo de Cristo, não estou falando de salvação?"

Ó Rei Celestial, aceita minha alma como Tua serva. Eis que minha única liberdade é servir alguém melhor do que eu mesmo.

19 de julho de 2009

São Sisoé, o Grande


Nascido no Egito, São Sisoé viveu primeiramente em Cetis e, após a morte de Santo Antônio, transferiu-se para a montanha do deserto na qual Santo Antônio vivera em asceticismo e que posteriormente recebeu seu nome. Ele adquiriu a humildade mediante intensos combates contra si próprio, tornando-se manso e inocente como um cordeiro. Por causa disso, Deus concedeu a Sisoé os inestimáveis dons da cura, do exorcismo de espíritos impuros e da ressurreição de mortos. Sisoé viveu no deserto por sessenta anos, tornando-se fonte viva de sabedoria para todos aqueles que vinham lhe pedir conselhos, sejam monges ou leigos. No leito de morte, o rosto de Sisoé brihou como o sol. Os monges que se encontravam em torno dele se maravilharam deste feito e, quando o santo entregou seu espírito, o recinto inteiro encheu-se de uma fragrância maravilhosa. Ele repousou em idade avançada, no ano de 429. São Sisoé ensinara a seus monges: "Quando vier a tentação, o homem deve entregar-se à vontade de Deus, reconhecendo que as tentações surgem por causa de seus pecados. Se algo bom terminar, o homem deve reconhecer que esse algo terminou pela providência de Deus". Um monge lhe perguntou: "Como agradar a Deus e ser salvo?" O santo respondeu: "Se tu desejas agradar a Deus, retira-te do mundo, aparta-te das coisas terrenas, deixa para trás a criação e junta-te ao Criador, une-te a Deus com orações e lágrimas e, assim, encontrarás repouso neste mundo e no próximo". Um monge perguntou a Sisoé: "Como adquirir a humildade?" O santo respondeu: "Quando o homem aprende a considerar todos os demais melhores que si próprio, então terá adquirido a humildade". Certa vez, Ammon queixou-se a Sisoé porque não conseguia memorizar as sábias palavras que lia, de maneira que não conseguia citá-las em suas conversas. O santo respondeu-lhe: "Isso não é necessário. O que é necessário é adquirir a pureza da mente e falar a partir dessa pureza, depositando tuas esperanças em Deus".

[The Prologue from Ochrid: Lives of the Saints and Homilies for Every Day in the Year -- Parte 3, Bishop Nicholas Velimirovich, Lazarica Press, Birmingham, Inglaterra, 1986]

As riquezas não sobrevivem; a glória não acompanha ninguém ao outro mundo; a beleza se modifica; a juventude passa e a velhice chega; a saúde se desvanece; a doença desponta; a sepultura desintegra tudo em nada.

Quando visitamos nossa morada perpétua, nosso túmulo, veremos com nossos próprios olhos toda a futilidade do homem, conforme disse São Sisoé quando viu o túmulo de Alexandre, o Grande, e gritou: "Ah, morte! O mundo inteiro não foi grande o bastante para ti, Alexandre. Como então tu estás contido agora em dois metros de terra?"

[...]

Um padre estava levando um irmão monge para julgamento, ou melhor, para acusá-lo. Dirigindo-se ao Pe. Sisoé, disse-lhe:

"Padre, quero prestar queixa contra meu irmão porque ele fez isso e isso de ruim contra mim".

"Desculpe-o. Perdoa-o".

"Não", respondeu ele, "se eu o perdoar, ele fará a mesma coisa contra mim novamente. Este homem precisa ser punido".

"Ora, tudo bem, meu filho. Então vamos rezar uma oração e partir".

Eles se ajoelharam e o Pe. Sisoé começou a rezar: "Pai nosso...e não perdoa as nossas dívidas assim como nós não perdoamos aos nossos devedores..."

"Não, padre, está errado", disse ele, "tu cometeste um erro".

"Já que tu queres levar teu irmão a julgamento, então é assim que rezaremos".

Foi então que o monge percebeu seu erro, arrependeu-se e não mais denunciou seu irmão.

[Counsels from the Holy Mountain, Elder Ephraim, Saint Anthony's Greek Orthodox Monastery, Florence, Arizona, Estados Unidos, 2000]

22 de maio de 2009

O noûs segundo o Apóstolo Paulo


Há alguns meses, encontrei uma aparente discordância entre a explicação do Pe. John Romanides e a do Pe. Damascene Christiansen sobre o sentido que o Apóstolo Paulo atribuiu à palavra noûs.

Segundo o Pe. John Romanides:
É importante notar que há uma diferença terminológica entre o Apóstolo Paulo e os Padres [da Igreja]. O que São Paulo chama de noûs é o que os Padres chamam de dianoia. Quando o Apóstolo Paulo afirma Orarei com o espírito (I Coríntios 14:15), ele quer dizer o mesmo que os Padres quando dizem Orarei com o noûs. E quando ele afirma Orarei com o noûs, ele quer dizer Orarei com o intelecto (dianoia).
No entanto, segundo o Pe. Damascene Christiansen:
Do ponto de vista teológico, é importante ressaltar que a “renovação da mente” [Romanos 12:2] da qual fala São Paulo é, na verdade, a “renovação do noûs”. No original grego, a palavra mente é noûs. Na teologia ortodoxa, noûs é a faculdade ou poder mais elevado da alma humana. É a faculdade que conhece a Deus diretamente; é o centro de nossa personalidade, a qual tem experiência com a Pessoa de Deus em comunhão de amor. São Gregório Palamás e outros Santos Padres afirmam que é o noûs que melhor define qual a “imagem de Deus” em nós.
Portanto, segundo o Pe. John Romanides, para o Apóstolo Paulo, o noûs seria o intelecto, isto é, a faculdade racional do homem, enquanto que, segundo o Pe. Damascene Christiansen, o noûs seria para o Apóstolo Paulo o coração ou mente, isto é, a faculdade mais elevada da alma humana, que conhece a Deus diretamente.

Intrigado com essa aparente incoerência, pedi ao Pe. Damascene que me explicasse essa confusão, e ele teve a gentileza de me ensinar que, na verdade, não há confusão alguma. Compartilho com os leitores deste blog a explicação do sábio hieromonge.
Creio que o argumento do Pe. John Romanides é válido, especialmente no que se refere ao versículo que ele citou (I Coríntios 14:15). Por outro lado, não creio que São Paulo esteja se referindo somente ao intelecto (dianoia) em Romanos 12:2. Isso fica mais claro quando comparamos este versículo com Efésios, capítulo 4: "Que, quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe pelas concupiscências do engano; e vos renoveis no espírito da vossa mente (to pneumati tou noos umon)" (Efésios 4:22-23). No primeiro versículo, São Paulo fala da renovação da mente, e neste versículo ele fala da renovação do espírito da mente. Creio que podemos dizer com segurança que ele está falando, nos dois casos, do mesmo tipo de renovação. Ao dizer "espírito da vossa mente", no último versículo, São Paulo está expressando seu pensamento de maneira mais ampla, de acordo com a terminologia que comumente emprega em suas epístolas.

5 de maio de 2009

Capitalismo e a metafísica ocidental


Na parte VI do livro Γέννημα και θρέμμα Ρωμηοί (Nascido e criado como romano), o Metropolita Hierotheos (Vlachos) de Nafpaktos, da Igreja Ortodoxa Grega, faz uma interessante digressão sobre o capitalismo e sua relação com a metafísica. O capítulo está disponível em inglês e se chama Capitalism as the offspring of Western Metaphysics (O capitalismo enquanto descendência da metafísica ocidental), mas infelizmente não há uma tradução portuguesa. O autor faz uso extensivo da obra de Max Weber, mas sem lastrear-se nela integralmente. Vou fornecer aqui um breve resumo.

* * *

1) O Ocidente adota a metafísica.
Ao contrário do que o título poderia sugerir, o Metropolita Hierotheos não se refere a uma "metafísica ocidental", mas ao fato do Ocidente adotar uma metafísica, isto é, de ter introduzido uma disciplina filosófica chamada metafísica em seu seio.

2) A metafísica sugere a predestinação.
Como a metafísica pretende ser uma explicação racional para a estrutura da realidade e do Incriado, a soteriologia também precisa acompanhar esse "racionalismo metafísico".

3) A predestinação implica em adquirir autoconfiança na salvação.
Segundo a teoria da predestinação, inventada por Santo Agostinho e posteriormente desenvolvida por Calvino e seus seguidores, Deus seleciona algumas pessoas para serem salvas, enquanto as outras estão fadadas à danação. Não há nada que possam fazer para mudar a predestinação divina, seja praticando virtudes ou vícios. Como eleitos e condenados não se distinguem externamente, a única coisa que a religião pode fazer é ajudar as pessoas a superar essa opressão pscicológica, essa solidão dramática individualista (uma vez que nem a Igreja, nem os mistérios, nem os sacerdotes, nem ninguém pode ajudá-las); em suma, a religião tem de ajudar o fiel a adquirir autoconfiança na sua salvação.

4) Adquirir a autoconfiança na salvação engendra o moralismo profissional.
Para expulsar as dúvidas e tentações que o diabo tenta imprimir nas pessoas a fim de extrair-lhes a autoconfiança, o cristão deve dedicar-se sobretudo à sua atividade profissional, de maneira diligente e perseverante.

5) O moralismo profissional implica na racionalização da vida social.
O moralismo profissional engendrou fraternidades protestantes que, para além de sua atividade missionária, eram verdadeiras empresas, sistematizando todas as atividades profissionais e sociais.

6) Por fim, a racionalização da vida social e a solidão individualista são os componentes fundamentais do asceticismo protestante, isto é, do capitalismo.

22 de fevereiro de 2009

O dom de falar em línguas

O livro In Peace Let Us Pray to the Lord: An Orthodox Interpretation of the Gifts of the Spirit, do Pe. Alexis Trader, esclarece a questão da "oração em línguas", de acordo com os Santos Padres da Igreja.

O Pe. Alexis nasceu em 1965, nos Estados Unidos, e foi criado em uma família metodista fervorosa. Anos mais tarde, converteu-se à Igreja, estudou teologia ortodoxa e mudou-se em 1995 para a Grécia, a fim de estudar grego moderno em Tessalônica. Lá, tomando contato constante com os monges do Monte Athos, tomou a decisão de tornar-se monge. Hoje, ele mora no Mosteiro de Karakallou, no próprio Monte Athos.

A obra do Pe. Alexis é toda dedicada ao leitor evangélico pentecostal (ou "carismático") que, desconfiado das demonstrações bizarras da presença do "Espírito Santo" em seu meio, busca um esclarecimento mais ponderado a respeito dos dons do Espírito.

No entanto, a obra também é dedicada aos ortodoxos, pois, como veremos, há uma enorme incompreensão a respeito do que vem a ser os dons do Espírito, em especial o dom das "línguas".

O autor faz uso intenso das obras dos Santos Padres contidas na Philokalia, do Pe. John Romanides, de alguns autores e teólogos ortodoxos gregos (cujas obras só existem em idioma grego) e do Pe. Seraphim Rose. A parte que me interessa aqui é a primeira, dedicada a explicar o que vem a ser o dom de línguas. A segunda parte, voltada sobretudo aos evangélicos, procura esclarecer o que é uma experiência espiritual autêntica, como as experiências falsas são produzidas, como o movimento evangélico deixa-se enganar pelo desejo ardente de "ter experiências espirituais" etc. Esta parte, para quem leu as obras do Pe. Seraphim Rose, não será novidade.

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Em primeiro lugar, o Pe. Alexis esclarece que qualquer leitura da Bíblia tem de ser feita supondo-se que o leitor esteja em vias de deificação. Isso se explica da seguinte forma: se, para lermos uma obra de Matemática, é necessário ser minimamente experiente nessa ciência, por que para a leitura da Bíblia não se exige uma experiência equivalente? Se a experiência dos autores dos diversos livros da Bíblia era a visão divina (theosis) a partir do esforço ascético espiritual, por que não é exigido do leitor a mesma experiência? Por conseguinte, conclui-se que este é o primeiro grande erro cometido pelos "teólogos" e "especialistas" em Bíblia: eles não estão capacitados minimamente na mesma ciência que os profetas e santos autores da Bíblia estavam capacitados.

Em segundo lugar, o Pe. Alexis ensina como lidar com as aparentes divergências entre os Santos Padres a respeito de um determinado assunto. Por exemplo, quanto à natureza das "línguas", os Padres divergem em suas opiniões. Ocorre que, apesar de todos os Padres possuírem grande entendimento sobre as Sagradas Escrituras, o público para o qual dirigiam suas obras e homilias nem sempre era igualmente receptivo e capacitado, o que os forçava a adaptar um discurso adequado. Muitos Padres eram obrigados a adotar um discurso mais superficial, mais "fácil", simplório, já que o público mal se encontrava em vias de purificação do coração. Exemplos desse tipo de adaptação são, segundo o Pe. Alexis, São João Crisóstomo, São João Damasceno e, em menor grau, São Nicomedos da Santa Montanha. Assim sendo, para obtermos um esclarecimento mais preciso e profundo, é necessário que voltemo-nos aos Padres cujas obras eram dedicadas às pessoas já iluminadas ou em vias de iluminação. Estas obras encontram-se sobretudo na coletânea que hoje conhecemos pelo nome de Philokalia. São Pedro Damasceno, por exemplo, adverte a seus leitores que não fiquem chocados ou escandalizados caso encontrem divergências nas interpretações dos Santos Padres, mas exorta-os a perceberem que um tipo de interpretação é dado àqueles cujo noûs funciona adequadamente, enquanto outro tipo de interpretação é dado àqueles cujo noûs não funciona apropriadamente.

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As línguas são explicitamente mencionadas em dois livros da Bíblia: nos Atos dos Apóstolos e em I Coríntios.

ATOS 2:1-17

E, cumprindo-se o dia de Pentecostes, estavam todos concordemente no mesmo lugar; e de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem. E em Jerusalém estavam habitando judeus, homens religiosos, de todas as nações que estão debaixo do céu. E, quando aquele som ocorreu, ajuntou-se uma multidão, e estava confusa, porque cada um os ouvia falar na sua própria língua. E todos pasmavam e se maravilhavam, dizendo uns aos outros: Pois quê! não são galileus todos esses homens que estão falando? Como, pois, os ouvimos, cada um, na nossa própria língua em que somos nascidos? Partos e medos, elamitas e os que habitam na Mesopotâmia, Judéia, Capadócia, Ponto e Ásia, e Frígia e Panfília, Egito e partes da Líbia, junto a Cirene, e forasteiros romanos, tanto judeus como prosélitos, cretenses e árabes, todos nós temos ouvido em nossas próprias línguas falar das grandezas de Deus. E todos se maravilhavam e estavam suspensos, dizendo uns para os outros: Que quer isto dizer? E outros, zombando, diziam: Estão cheios de mosto. Pedro, porém, pondo-se em pé com os onze, levantou a sua voz, e disse-lhes: Homens judeus, e todos os que habitais em Jerusalém, seja-vos isto notório, e escutai as minhas palavras. Estes homens não estão embriagados, como vós pensais, sendo a terceira hora do dia. Mas isto é o que foi dito pelo profeta Joel: E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos terão sonhos. (Atos 2:1-17).

Há, neste trecho, três manifestações da graça que, para o leitor desatento, poderão passar despercebidas ou confundidas. São elas:

1) "E todos [isto é, os Apóstolos]...começaram a falar noutras línguas". Este trecho refere-se às palavras das súplicas comuns que não eram simplesmente palavras expressas mentalmente ou racionalmente, mas palavras faladas no coração pelo Espírito Santo.

2) "...conforme o Espírito Santo lhes concedia [isto é, aos Apóstolos] que falassem". Este trecho refere-se ao dom da profecia, ou seja, à capacidade de esclarecer as Escrituras, assim como Cristo esclareceu as Escrituras aos Apóstolos na estrada de Emaús.

3) "...cada um os ouvia falar na sua própria língua". Este trecho refere-se ao fato das palavras dos Apóstolos terem sido compreendidas por aqueles cuja língua materna não era o hebraico. Aqui, a explicação de São Gregório de Nissa é mais convincente e coerente do que a explicação de São Gregório, o Teólogo. Segundo São Gregório de Nissa, os Apóstolos falaram em hebraico, enquanto os ouvintes entenderam em suas próprias línguas -- neste caso, o Espírito teria "traduzido" as palavras de São Pedro nos corações de cada ouvinte para suas próprias línguas. Mas, segundo São Gregório, o Teólogo, os Apóstolos teriam falado eles mesmos em diversas línguas estrangeiras, e os ouvintes apenas seguiram ouvindo o que lhes era dito -- porém, segundo o Pe. Alexis, São Gregório, o Teólogo, teria preferido esta versão para "incrementar" o milagre, fazendo-o operar do lado dos Apóstolos, e não dos ímpios judeus (o que atesta o que falamos acima, isto é, que os Santos Padres eventualmente tinham de adaptar as explicações teológicas a fim de buscar o efeito correto nos ouvintes). No entanto, o próprio São Gregório, o Teólogo, confessa que há uma interpretação alternativa, que é, justamente, a oferecida por São Gregório de Nissa. Se levarmos em conta questões práticas, a interpretação de São Gregório de Nissa é a que faz sentido. Não há porque supormos que os Apóstolos falaram simultaneamente em línguas diferentes, pois esse tipo de comportamento desordenado não é característico de homens modestos e equilibrados como os Apóstolos. De acordo com o Ancião Porfírio (+1991), a interpretação de São Gregório de Nissa é a correta, dado que o próprio Ancião Porfírio passou por uma experiência idêntica no Monte Athos: ele falava em grego, enquanto uma mulher o entendia em francês (sendo que a mulher não sabia absolutamente nada do idioma grego). Ainda segundo o Pe. Porfírio, os Santos Padres estavam cientes do milagre da compreensibilidade, mas o mistério era tão fabuloso que preferiam até mesmo evitar comentar sobre ele.

Em suma: as "línguas" do Pentecostes não têm nada a ver com os vários idiomas compreendidos no local, mas às palavras ouvidas pelos Apóstolos expressas pelo Espírito em seus corações. Os vários idiomas compreendidos são outro milagre, uma outra instância do que ali se passou.


I CORÍNTIOS 14:1-33

Segui o amor, e procurai com zelo os dons espirituais, mas principalmente o de profetizar. Porque o que fala em língua desconhecida não fala aos homens, senão a Deus; porque ninguém o entende, e em espírito fala mistérios. Mas o que profetiza fala aos homens, para edificação, exortação e consolação. O que fala em língua desconhecida edifica-se a si mesmo, mas o que profetiza edifica a igreja. E eu quero que todos vós faleis em línguas, mas muito mais que profetizeis; porque o que profetiza é maior do que o que fala em línguas, a não ser que também interprete para que a igreja receba edificação. E agora, irmãos, se eu for ter convosco falando em línguas, que vos aproveitaria, se não vos falasse ou por meio da revelação, ou da ciência, ou da profecia, ou da doutrina? Da mesma sorte, se as coisas inanimadas, que fazem som, seja flauta, seja cítara, não formarem sons distintos, como se conhecerá o que se toca com a flauta ou com a cítara? Porque, se a trombeta der sonido incerto, quem se preparará para a batalha? Assim também vós, se com a língua não pronunciardes palavras bem inteligíveis, como se entenderá o que se diz? porque estareis como que falando ao ar. Há, por exemplo, tanta espécie de vozes no mundo, e nenhuma delas é sem significação. Mas, se eu ignorar o sentido da voz, serei bárbaro para aquele a quem falo, e o que fala será bárbaro para mim. Assim também vós, como desejais dons espirituais, procurai abundar neles, para edificação da igreja. Por isso, o que fala em língua desconhecida, ore para que a possa interpretar. Porque, se eu orar em língua desconhecida, o meu espírito ora bem, mas o meu entendimento fica sem fruto. Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com o entendimento; cantarei com o espírito, mas também cantarei com o entendimento. De outra maneira, se tu bendisseres com o espírito, como dirá o que ocupa o lugar de indouto, o Amém, sobre a tua ação de graças, visto que não sabe o que dizes? Porque realmente tu dás bem as graças, mas o outro não é edificado. Dou graças ao meu Deus, porque falo mais línguas do que vós todos. Todavia eu antes quero falar na igreja cinco palavras na minha própria inteligência, para que possa também instruir os outros, do que dez mil palavras em língua desconhecida. Irmãos, não sejais meninos no entendimento, mas sede meninos na malícia, e adultos no entendimento. Está escrito na lei: Por gente de outras línguas, e por outros lábios, falarei a este povo; e ainda assim me não ouvirão, diz o Senhor. De sorte que as línguas são um sinal, não para os fiéis, mas para os infiéis; e a profecia não é sinal para os infiéis, mas para os fiéis. Se, pois, toda a igreja se congregar num lugar, e todos falarem em línguas, e entrarem indoutos ou infiéis, não dirão porventura que estais loucos? Mas, se todos profetizarem, e algum indouto ou infiel entrar, de todos é convencido, de todos é julgado. Portanto, os segredos do seu coração ficarão manifestos, e assim, lançando-se sobre o seu rosto, adorará a Deus, publicando que Deus está verdadeiramente entre vós. Que fareis, pois, irmãos? Quando vos ajuntais, cada um de vós tem salmo, tem doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação. Faça-se tudo para edificação. E, se alguém falar em língua desconhecida, faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua vez, e haja intérprete. Mas, se não houver intérprete, esteja calado na igreja, e fale consigo mesmo, e com Deus. E falem dois ou três profetas, e os outros julguem. Mas, se a outro, que estiver assentado, for revelada alguma coisa, cale-se o primeiro. Porque todos podereis profetizar, uns depois dos outros; para que todos aprendam, e todos sejam consolados. E os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas. Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz, como em todas as igrejas dos santos. (I Coríntios 14:1-33).

1) "Falar em línguas" não é uma questão de línguas estrangeiras muito menos de balbuciar coisas sem sentido, mas trata-se da oração incessante no coração pelo Espírito. É uma interpretação dada por Orígenes (185-255), a qual os Padres Capadócios não rejeitaram. Infelizmente, nos tempos de São João Crisóstomo (+407), começou a circular a opinião de que o "dom das línguas" era a capacidade (dom) dos Apóstolos em falar nos idiomas das pessoas a quem proclamavam o Evangelho. Em seus comentários sobre essa epístola de São Paulo, São João Crisóstomo identifica as variedades de línguas com o dom apostólico da compreensibilidade no Pentecostes, mas confessa que "todo este trecho é extremamente obscuro". No entanto, São Nikitas Stithatos, sem alegar qualquer obscuridade, identifica as variedades de línguas com a oração incessante e silenciosa no coração pelo Espírito.

2) Ademais, as traduções modernas da Bíblia são péssimas, e só ajudam a piorar a situação. O trecho que colei acima é da Bíblia "Almeida Corrigida e Fiel" (ACF), uma espécie de "King James Version" portuguesa. O autor identifica uma série de erros de tradução na KJV que, não sem surpresa, são repetidos na ACF. Isso ocorre porque os tradutores, assumindo que as "línguas" são idiomas, interpretaram e traduziram a Bíblia de acordo com essa crença.

=> Versículo 2: "Porque o que fala em língua desconhecida não fala aos homens, senão a Deus; porque ninguém o entende". A tradução correta é: "Porque o que fala com uma língua não fala aos homens, senão a Deus; porque ninguém o ouve".

=> Versículo 10: "Há, por exemplo, tanta espécie de vozes no mundo, e nenhuma delas é sem significação". A tradução correta é: "Há, por exemplo, tanta espécie de vozes no mundo, e nenhuma delas é muda". (O original grego é a phonon, isto é, sem voz).

=> Versículo 8: "Porque, se a trombeta der sonido incerto, quem se preparará para a batalha?". A tradução correta é: "Porque, se a trombeta não manifestar seu som, quem se preparará para a batalha?".

=> Versículo 11: "Mas, se eu ignorar o sentido da voz, serei bárbaro para aquele a quem falo, e o que fala será bárbaro para mim". A tradução correta é: "Mas, se eu ignorar a intensidade da voz, serei bárbaro para aquele a quem falo, e o que fala seerá bárbaro para mim". (O original grego é dynamin, isto é, intensidade, volume, força, poder).

3) Outros trechos das epístolas do Novo Testamento que se referem à oração incessante no coração:

=> Orai sem cessar. (I Tessalonicenses 5:17).

=> Falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais; cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração. (Efésios 5:19).

=> E, porque sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai. (Gálatas 4:6).

=> E da mesma maneira também o Espírito ajuda as nossas fraquezas; porque não sabemos o que havemos de pedir como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis. E aquele que examina os corações sabe qual é a intenção do Espírito; e é ele que segundo Deus intercede pelos santos. (Romanos 8:26-27).

4) Por fim, vale lembrar que as exortações de São Paulo aos coríntios são até hoje seguidas em algumas comunidades monásticas do Monte Athos. Após os ofícios, se não há peregrinos no local, os monges rezam silenciosamente com seus cordões de oração. Mas, se há forasteiros presentes, mesmo que seja somente uma pessoa, os monges seguem a exortação de São Paulo e lêem os livros dos ofícios, assim como nas demais igrejas e mosteiros, para que os peregrinos (os "indoutos") possam dizer o seu "Amém" e serem edificados e instruídos.