27 de dezembro de 2010

A tranquilidade interior em um mundo barulhento


Às vezes parece que não há lugar no mundo onde não haja barulho. Nós até pagamos para que haja barulho. É comum vermos pessoas andando por lugares belos e serenos com fones de ouvido ligados em um iPod. Crianças fazem suas lições de casa também usando fones de ouvido. A música raramente é tranquila, mas quase sempre alta e barulhenta. Também é comum presenciarmos casas nas quais a TV serve de "música ambiente". Muitos dispositivos tecnológicos foram criados para fazer barulho e nos entreter. Para que esse barulho todo? Por que escolhemos viver com barulho? Será que há alguma relação com a intranquilidade que sentimos em nossas vidas?

O Ancião Paísio conhecia este problema.
A agitação exterior os deixa confortáveis por causa de sua própria intranquilidade interior. Há barulho por toda parte... Não há um só lugar intocado pelo barulho... Nem mesmo no Monte Athos. Certa vez alguns monges vieram à minha kalyvi [cabana monástica] e começaram a conversar bem alto. Eu disse a um deles: "Falem mais baixo; eles podem ouvi-los lá do outro lado". Ele continuou a falar alto. "Fale mais baixo", repeti. "Abençoe-me, Padre", ele respondeu. "Nós temos um gerador em nosso mosteiro e nos acostumamos a falar alto para ouvir-nos uns aos outros". Pode uma coisa dessas? Ao invés de rezar a Oração de Jesus e falar em voz baixa, eles gritam porque se acostumaram a ter um gerador...
Até mesmo os monges se queixam do barulho em suas vidas. Como poderemos encontrar paz se nos cercamos cada vez mais de barulhos infindáveis? O barulho é um estímulo físico que nos mantém concentrados neste mundo físico. No entanto, nosso objetivo é espiritual, é nos unirmos a Deus. A alma -- a parte invisível de nosso ser e que, portanto, não é física -- precisa ser capaz de reivindicar o controle para que possa receber o Espírito e nos guiar em nossas tarefas cotidianas. Os ruídos e barulhos tornam-se distrações que nos mantêm ancorados nas coisas e desejos deste mundo físico.

Vivemos em um mundo poluído por ruídos e barulhos. Não conseguimos evitá-los. Como, então, conseguiremos ganhar a tranquilidade interior necessária para a vida espiritual?

O Ancião Paísio recomendava o seguinte:
O que devemos fazer é tomar tudo aquilo que se apresenta em nosso caminho e extrair o melhor em prol do combate espiritual no qual estamos inseridos. Temos de nos esforçar para adquirirmos a tranquilidade interior e, neste sentido, até mesmo os barulhos podem ser úteis se forem compreendidos da maneira correta. O que realmente importa é lidar com o problema da maneira correta. Devemos a tudo enfrentar com bons pensamentos. Se você estiver em um ambiente barulhento, mas conseguir atingir a tranquilidade interior, terá alcançado algo de muito valor. Se não conseguir atingir a tranquilidade em meio aos distúrbios, então não conseguirá encontrar tranquilidade nem mesmo em um ambiente tranquilo. Quando a tranquilidade interior desperta no homem, tudo dentro dele será tranquilo, e ele não se deixará perturbar por nada. mas se ele precisar de tranquilidade exterior para encontrar a tranquilidade interior, então, quando estiver em um lugar desses, ainda assim ele precisará de uma vara para expulsar as cigarras de dia e os chacais à noite para que eles não o incomodem! Em outras palavras, ele expulsará aquilo que, na verdade, o diabo está ajuntando. A tarefa dele é criar dificuldades para obstruir nossos esforços, até que ele nos vire do avesso.
O desafio do crescimento espiritual é encontrar tranquilidade em meio aos distúrbios exteriores. Não devemos tentar acobertá-los com outros barulhos, como músicas de iPod ou com a TV. Temos de aprender a encontrar a tranquilidade interior no barulho exterior que nos rodeia, não importa qual seja. Aprendemos a fazer isso com a prática da Oração de Jesus. A oração contínua nos dará a tranquilidade interior que procuramos.

Fonte: With Pain and Love for Contemporary Life, p. 189-193, 201-202

20 de dezembro de 2010

Natal vazio


C. S. Lewis

Há três coisas que chamamos de "Natal". A primeira é a festa religiosa. Ela é importante e obrigatória para os cristãos, mas, já que não é do interesse de todos, não vou dizer mais nada sobre ela. A segunda (ela tem conexões histórias com a primeira, mas não precisamos falar disso aqui) é o feriado popular, uma ocasião para confraternização e hospitalidade. Se fosse da minha conta ter uma "opinião" sobre isso, eu diria que aprovo essa confraternização. Mas o que eu aprovo ainda mais é cada um cuidar da sua própria vida. Não vejo razão para ficar dando opiniões sobre como as pessoas deveriam gastar seu dinheiro e seu tempo com os amigos. É bem provável que elas queiram minha opinião tanto quanto eu quero a delas. Mas a terceira coisa a que se chama "Natal" é, infelizmente, da conta de todo mundo.

Refiro-me à chantagem comercial. A troca de presentes era apenas um pequeno ingrediente da antiga festividade inglesa. O sr. Pickwick levou um bacalhau a Dingley Dell [1]; o arrependido Scrooge [2] encomendou um peru para seu secretário; os amantes mandavam presentes de amor; as crianças ganhavam brinquedos e frutas. Mas a idéia de que não apenas todos os amigos mas também todos os conhecidos devam dar presentes uns aos outros, ou pelo menos enviar cartões, é já bem recente e tem sido forçada sobre nós pelos comerciantes. Nenhuma destas circunstâncias é, em si, uma razão para condená-la. Eu a condeno nos seguintes termos.

1. No cômputo geral, a coisa é bem mais dolorosa do que prazerosa. Basta passar a noite de Natal com uma família que tenta seguir a "tradição" (no sentido comercial do termo) para constatar que a coisa toda é um pesadelo. Bem antes do 25 de dezembro as pessoas já estão acabadas – fisicamente acabadas pelas semanas de luta diária em lojas lotadas, mentalmente acabadas pelo esforço de lembrar todas as pessoas a serem presenteadas e se os presentes se encaixam nos gostos de cada um. Elas não estão dispostas para a confraternização; muito menos (se quisessem) para participar de um ato religioso. Pela cara delas, parece que uma longa doença tomou conta da casa.

2. Quase tudo o que acontece é involuntário. A regra moderna diz que qualquer pessoa pode forçar você a dar-lhe um presente se ela antes jogar um presente no seu colo. É quase uma chantagem. Quem nunca ouviu o lamento desesperado e injurioso do sujeito que, achando que enfim a chateação toda terminou, de repente recebe um presente inesperado da sra. Fulana (que mal sabemos quem é) e se vê obrigado a voltar para as tenebrosas lojas para comprar-lhe um presente de volta?

3. Há coisas que são dadas de presente que nenhum mortal pensaria em comprar para si – tralhas inúteis e barulhentas que são tidas como "novidades" porque ninguém foi tolo o bastante em adquiri-las. Será que realmente não temos utilidade melhor para os talentos humanos do que gastá-los com essas futilidades?

4. A chateação. Afinal, em meio à algazarra, ainda temos nossas compras normais e necessárias, e nessa época o trabalho em fazê-las triplica.

Dizem que essa loucura toda é necessária porque faz bem para a economia. Pois esse é mais um sintoma da condição lunática em que vive nosso país – na verdade, o mundo todo –, no qual as pessoas se persuadem mutuamente a comprar coisas. Eu realmente não sei como acabar com isso. Mas será que é meu dever comprar e receber montanhas de porcarias todo Natal só para ajudar os lojistas? Se continuar desse jeito, daqui a pouco eu vou dar dinheiro a eles por nada e contabilizar como caridade. Por nada? Bem, melhor por nada do que por insanidade.

[1] Samuel Pickwick é o personagem principal de Pickwick Papers, romance de Charles Dickens no qual suas aventuras são narradas. Dingley Dell é o nome de uma fazenda, um dos cenários do romance. (N. do T.)

[2] Referência ao avarento milionário Ebenezer Scrooge, personagem da obra Um Conto de Natal, de Charles Dickens. (N. do T.)

Publicado originalmente em God in the Dock -- Essays on Theology and Ethics (Deus no Banco dos Réus – Ensaios sobre Teologia e Ética), 1957.

16 de dezembro de 2010

Santa Julia, Virgem e Mártir


Julia nasceu em Cartago [na atual Tunísia], de família nobre. Quando os persas tomaram Cartago, muitas pessoas foram escravizadas. Santa Julia foi capturada, escravizada e entregue a um mercador sírio, que era pagão. Percebendo que Julia era cristã, tentou convencê-la por diversas vezes a negar o Cristo e juntar-se ao paganismo, mas Julia jamais concordaria com suas propostas. Porém, como Julia era confiável e muito leal em seu serviço, o mercador resolveu deixá-la em paz e não mais falar-lhe sobre questões de fé.

Um dia, o mercador resolveu carregar seu barco com produtos e, tomando Julia consigo, navegou por terras distantes para fazer negócios. Quando chegaram na Córsega, havia ali uma grande festa pagã. O mercador juntou-se à festa e começou a fazer oferendas blasfemas. Julia permaneceu no barco, e chorava muito, pois muitos homens viviam em erros tolos e não conheciam a verdade.

De alguma maneira, os pagãos ficaram sabendo de Julia e a removeram do barco, apesar de seu mestre não ter concordado com isto. Eles começaram a torturá-la. Eles cortaram seus seios fora e atiraram-na em uma rocha. Depois, crucificaram-na em uma cruz na qual Santa Julia entregou sua alma a Deus.

A morte de Santa Julia foi revelada por um anjo aos monges de uma ilha próxima, chamada de Margarita ou Górgona. Os monges foram até o local e solenemente enterraram o corpo da mártir. Muitos milagres ocorreram na sepultura de Santa Julia ao longo dos séculos, sendo que ela apareceu em pessoa a algumas pessoas. Ela repousou no Senhor no século VI.

Muitos anos depois, os fiéis tiveram a idéia de construir uma nova igreja em outro local a fim de honrar Santa Julia, já que a velha igreja era muito pequena e encontrava-se deteriorada. Assim, eles arregimentaram todo o material necessário, como pedras, tijolos, areia e tudo o mais. Ocorreu que, naquela noite, na véspera do dia em que pretendiam assentar os primeiros tijolos, todo o material foi movido por uma mão invisível para a velha igreja. Confusos, os homens carregaram todo o material de volta para o local da nova igreja, mas a mesma coisa aconteceu outra vez: o material foi deslocado para o terreno da velha igreja. O vigia noturno viu uma jovem senhorita "toda incandescente", em gado branco, carregando o material para a velha igreja. Foi então que todos entenderam que Santa Julia não desejava que a igreja fosse construída em outro local. Assim, os fiéis demoliram a velha igreja e construíram uma nova igreja exatamente no mesmo lugar.

Fonte: São Nicolau Velimirovich, Os Prólogos de Ochrid, 29 de julho.

* * *


Durante a tomada de Cartago [na atual Tunísia], uma menina cristã de nome Julia foi escravizada e vendida a um mercador pagão, que levou-a consigo à Palestina. Embora estivesse cercada por idólatras, a menina manteve-se apegada aos padrões nos quais havia sido criada, preservando assim sua fé no Cristo. Ela cumpriu com afinco tudo o que lhe era exigido e manteve-se fiel a seu senhor, cumprindo a injunção do Apóstolo: Vós, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne... Servindo de boa vontade como ao Senhor, e não como aos homens (Efésios 6:5,7).

Embora Julia fosse mansa e obediente, não havia como persuadi-la a fazer algo contra os mandamentos do Cristo. Por diversas vezes o mercador tentou convencê-la a abandonar a fé cristã e viver à maneira dos pagãos. Mas Julia preferia morrer a ter de negar o Cristo. O mercador enraiveceu-se e tentou matá-la; porém, percebendo o quanto ela era fiel e obediente, finalmente deixou-a em paz. Ele espantava-se com sua mansidão, sua paciência, sua natureza laboriosa. Ao tornar-se adulta, o mercador confiou-lhe importantes questões comerciais. Após os longos e duros dias de trabalho, Julia ficava feliz por ocupar-se de orações e leituras espirituais.

Julia ainda estava na faixa dos 20 anos de idade quando seu senhor a fez acompanhá-lo em uma jornada de negócios. No meio do caminho, seu barco fez uma parada na ilha mediterrânea de Córsega. Lá ainda haviam muito idólatras. Perto da orla, ao avistar um grupo de pessoas que estavam oferecendo sacrifícios a deuses pagãos, o mercador desejou juntar-se a eles. Ele saiu do barco, juntamente com todos os que estavam a bordo -- todos, menos Julia. Ela ficou para trás, no barco, lamentando-se profundamente das almas perdidas dos pagãos.

Durante a ausência do mercador, alguns habitantes da ilha entraram no barco. Ao avistarem Julia e descobrirem que era cristã, correram para avisar o líder, o qual disse ao mercador: "Por que nem todos os seus servos vieram honrar os deuses?"

"Todos estão aqui", disse o mercador.

"Então por que me disseram que há em seu barco uma mulher que se recusa a curvar-se perante os deuses?"

"Minha serva Julia?", perguntou o mercador. "Não há como convencê-la a afastar-se das ilusões da religião cristã. Eu mesmo tentei de várias formas; tentei com doçura, tentei com ameaças, e a teria matado há muito tempo não fosse o fato de ela ser tão fiel a mim, tão laboriosa".

"Ela tem de curvar-se aos deuses", disse o líder pagão. "Se tu quiseres, comprarei ela de ti e a forçarei a honrar nossos deuses".

"Pois eu lhe digo que ela preferiria morrer a abandonar sua fé, além de que me recuso a vendê-la. Todas os seus bens nem mesmo começariam a compensar os serviços dela".

Furioso, o líder pagão decidiu que traria a criada cristã a todo custo e a forçaria a oferecer sacrifícios aos deuses. Ele embriagou o mercador e, enquanto ele dormia, mandou buscar Julia,

"Faça um sacrifício aos deuses", ordenou-lhe, "e eu comprarei tua liberdade de teu senhor".

"Minha liberdade reside no trabalho a Cristo e em servir-Lhe de consciência limpa", respondeu a mulher. "Não posso juntar-me à tua fraude".

O líder ordenou que lhe batessem. Ela aguentou tudo calada, dizendo em seguida: "Por minha causa Cristo sofreu murros e cusparadas. Estou pronta para sofrer por Ele".

Julia foi sujeita a todo sorte de torturas; arrancaram-lhe os cabelos, bateram-na severamente e sem dó, mas ela permaneceu impávida.

"Confesso Aquele que por minha causa foi esmurrado, coroado com espinhos e crucificado na Cruz. Eu sou Sua serva e estou pronta para compartilhar de Seus sofrimentos", disse a jovem com coragem.

Após longas e cruéis torturas, Julia foi crucificada em uma cruz.

Ao acordar, o mercador descobriu o que tinha acontecido e entristeceu-se profundamente; mas nada mais podia ser feito, pois o último sopro de vida já havia sido dado por sua serva. Quando sua santa alma partiu para o Senhor, várias pessoas que ali estavam viram uma pomba branca como a neve sair de sua boca; outros viram anjos que circundavam a virgem e mártir. Aterrorizados, eles saírem correndo, deixando o corpo pendurado na cruz. Naquela mesma noite, tudo o que havia acontecido foi revelado em sonhos a alguns monges de uma olha vizinha. Eles foram encarregados de buscar o corpo e dar-lhe um enterro digno. Foi o que fizeram. Mais tarde, uma igreja foi construída exatamente no local onde a santa mártir havia sofrido. Daquele dia em diante, muitos cristãos têm honrado a memória de Santa Julia, a qual o próprio Senhor a tem glorificado com milagres.

Fonte: Vidas de Santos, compilado por A. N. Bakhmetova, Moscou, 1872.

* * *

Tropário (tom 4)

Tua cordeira Julia, ó Jesus, em prantos clama a Ti em alta voz: "Meu Noivo, aspiro por Ti e em torturas busco a Ti. Sou crucificada e sepultada contigo em meu Batismo, e por Ti sofro até que eu reine contigo. Morro por Ti para que viva em Ti". Recebe aquela que como um sacrifício sem mácula foi violentada por Tua causa. Pelas suas intercessões, pois Tu és misericordioso, salva nossas almas.

29 de novembro de 2010

Princípios metafísicos e princípios lógicos


Antes de tudo, é preciso entendermo-nos a respeito do que seja ciência e do que seja sabedoria.

Ciência é a observação dos fenômenos à luz de princípios. Sabedoria é o conhecimento dos princípios. Às vezes a ciência não estuda os fenômenos à luz direta dos princípios (ou pelo menos dos princípios mais universais) e sim à luz de princípios relativos deles deduzidos, e dos quais se deduzem por sua vez regras para a atividade científica. As regras constituem o método, e é por isso que se diz correntemente que a ciência não é pura observação, mas sim observação "metódica".

"Princípios" em sentido estrito são somente aqueles que não têm antecedentes, e sim apenas consequentes, isto é, aqueles que estão "antes" de tudo o mais (não sendo a palavra "antes" entendida necessária e exclusivamente em sentido cronológico, mas em sentido lógico e ontológico). Assim, a rigor, somente são "princípios" aqueles de ordem estritamente universal, sem limitação de espécie alguma, isto é, os princípios metafísicos, dos quais todos os outros -- os princípios lógicos, por exemplo -- não são mais do que deduções ou aplicações a domínios mais limitados. Estes últimos podem denominar-se "princípios segundos", e as regras da maioria das ciências são deduzidas de princípios segundos, e não diretamente dos universais. [1]

Os princípios caracterizam-se por três marcas: sua necessidade (ou absolutidade), sua antecedência (ou primordialidade) e sua universalidade (seja universalidade em sentido extenso, como no caso dos princípios metafísicos, seja universalidade dentro de um campo determinado, como é o caso dos princípios lógicos).

Podemos classificar os princípios, segundo sua universalidade, em:

Princípios metafísicos e ontológicos;
Princípios lógicos;
Princípios cosmológicos;
Princípios (e regras) das ciências particulares.

Evidentemente, não pode haver contradição entre nenhum desses princípios. É fácil também compreender que os princípios cosmológicos só são  "princípios" em relação a seus consequentes (os conhecimentos cosmológicos deles deduzidos), e não em relação a seus antecedentes (os princípios lógicos, ontológicos e metafísicos de que derivam).

A descoberta dos princípios segundos pode ser feita através da dedução lógica, mas os princípios metafísicos e ontológicos não têm antecedentes, e são, a rigor, chamados por isso de "primeiros princípios".

Não podendo ser descobertos por dedução -- nem, a fortiori, por observação, já que a observação científica requer o concurso dos princípios --, os primeiros princípios são conhecidos por um método próprio, que é o método da sabedoria ou gnose.

Para compreender em que consista este método é preciso ter em mente que a definição mesma de ciência -- observação dos fenômenos à luz de um princípio -- estabelece constituir a ciência uma unificação da multiplicidade. A aplicação dos princípios permite reduzir à unidade de uma lei, ou invariante, toda a extensão de múltiplos fenômenos estudados.

Do mesmo modo, o conhecimento dos primeiros princípios é uma unificação, mas, como acima deles não há outras instâncias a que possamos remeter-nos, a sabedoria é então definida como redução à Unidade primeira (ou, sob outro aspecto, derradeira), acima e para trás da qual nada existe.

Ora, nisto os primeiros princípios diferem de todos os princípios segundos, porque estes podem ser princípios tão somente gnoseológicos, isto é, princípios do conhecer enquanto tal, mas os primeiros princípios não podem admitir nenhuma dualidade, e devem ser, portanto, simultaneamente princípios do conhecer e princípios do ser. A rigor, conhecer e ser nunca podem estar completamente separados, mas, quando se trata de princípios segundos e derivados, podemos conceber tal separação, por abstração e ad hoc, por economia de pensamento, e, no caso dos primeiros princípios, ela seria totalmente contraditória, pois deixaria subsistir uma última franja de dualidade, cuja exclusão é precisamente o que faz com que eles sejam princípios primeiros, e não segundos.

A diferença, portanto, entre ciência e sabedoria, é que a ciência requer apenas um método de conhecer, enquanto que a sabedoria requer um método de ser. Como todos os conhecimentos têm sua validade derivada, em última instância, da conexão entre o conhecer e o ser, todas as ciências, em última instância, derivam da sabedoria.

Por isso, escreve Platão, "o conhecimento de todas as ciências, sem o conhecimento da melhor delas (que é a sabedoria), não somente é inútil como é prejudicial" (Alcibíades II, 144b).

Por outro lado, a não-dualidade do conhecer e do ser requer que se entenda o próprio conhecer como um modo de ser. "Ser homem é conhecer", escreve Frithjof Schuon [2]. E Aristóteles, tomando a palavra "inteligência" como o instrumento da sabedoria, escreve: "A inteligência é mais verdadeira do que a ciência".

Para o sábio ou gnóstico, conhecer é ser, e vice-versa. Isto tem duas consequências: uma prática, outra teórica. A primeira, que ele não pode, na sua própria pessoa cognoscente, admitir hiato e muito menos contradição entre aquilo que ele conhece e aquilo que ele é. Este é o fundamento de toda moral, que pode então ser definida como coesão entre o que se conhece e o que se é (e, por extensão, o que se faz, o que se pensa, o que se sente, etc.). Ou, com diz Platão: "Verdade conhecida é verdade obedecida". A segunda consequência, de ordem teórica, é que todas as modalidades de ser passam a ser entendidas como modalidades do conhecer; por exemplo, as formas existenciais dos entes -- a forma dos planetas, dos anjos, das flores e bichos, entendendo-se forma, evidentemente, em sentido amplo e estrutural, não restrito e visual -- são também suas modalidades de conhecer. De conhecer o quê? A Unidade mesma da qual derivam. Há, por exemplo, modalidades externas e internas de conhecer -- a flor não tem interioridade autoconsciente, e por isso seu conhecimento da Unidade, ou de Deus, consiste e reside na sua forma corporal (e na função correspondente). O homem tem interioridade autoconsciente, e por isso seu conhecimento de Deus não está tanto na sua forma sensível, mas na sua consciência de Deus, e nas consequências existenciais que ele tira dessa consciência.

Tais asserções já constituem por sua vez os princípios de toda cosmologia tradicional.

Uma terceira consequência é que, inversamente, os modos de conhecer são modos de ser, e que, portanto, entre vários seres -- humanos, por exemplos -- que "conheçam" a Unidade segundo várias gradações de integração, absolutidade e relatividade -- podemos discernir várias modalidade ou planos de existência nos quais eles se situam; e como, segundo o adágio escolástico, "para agir, é preciso ser", compreendemos que a essas várias modalidade ou planos existenciais, que correspondem às hierarquias espirituais ou iniciáticas, fazem eco outras tantas modalidades de ação e de presença, que podem estreitar ou alargar as possibilidades de atuação humana desde o estritamente corporal, aparentando-o às pedras e aos vegetais, até o universal que transcende aos próprios anjos. "Senhor, que é o homem, para que te lembres dele, ou o filho do homem, para que o visites? No entanto, fizeste-o pouco menor que os anjos, e o cobriste de nobreza e glória" (Salmo 114).

[1] Isto não deveria fazer maior diferença, mas o fato é que na prática os cientistas se esquecem de que sua ciência deriva de princípios segundos e, portanto, depende de uma metafísica e de uma sabedoria.

[2] De l´Unité Transcendante des Réligions, Chap. IX.

Fonte: Olavo de Carvalho, Astrologia e Religião, Nova Stella, São Paulo, 1986, p. 23-27.

22 de novembro de 2010

Ler demais faz mal para a vida espiritual


Quando estamos no início da vida espiritual, acontece com frequência que nos dediquemos demais aos estudos. Algumas pessoas tentam ler o máximo possível de livros. Cuidado, pois você pode estar cometendo um grave erro. O crescimento espiritual acontece quando adquirimos um conhecimento profundo de nós mesmos. Muitas vezes, ler e estudar acaba apenas postergando o trabalho que realmente deveríamos estar fazendo, que é conhecer as causas de nossas ações.

O Ancião Paísio recomenda o seguinte:

A pessoa que estiver no começo de sua vida espiritual não deve estudar demais. Na verdade, ela deve se vigiar e observar seus pensamentos.
Esta prática exige tempo para introspecção e uma mente que não esteja muito ocupada. É por isso que é tão importante começar uma vida regular de orações, que inclua a prática da Oração de Jesus. É verdade que devemos conhecer os detalhes de nossa fé e as doutrinas da Escritura. No entanto, no fim das contas, precisamos conhecer nossas fraquezas, preconceitos e hábitos, de maneira que possamos buscar conscientemente a ajuda necessária para mudarmos nossos comportamentos e adquirirmos as virtudes que Jesus nos ensinou.

19 de novembro de 2010

Considerações do Ancião Epifânio sobre psiquiatria


O Ancião Epifânio Theodoropoulos responde as perguntas de um fiel ortodoxo sobre psiquiatria.

* * *

Dizem que alguns psiquiatras consideram a abstinência durante a juventude como sendo uma das causas das doenças psiquiátricas. É verdade?

Não, eles estão errados, e a explicação é muito simplpes. Todas as pessoas que vão a um psiquiatra estão doentes. Ninguém que esteja são vai ao médico, assim, sem motivo. Portanto, pelo fato de alguns pacientes não terem relações, eles chegam à conclusão, baseando-se em teorias freudianas, que a causa dos distúrbios neuropsíquicos é a continência. Conheço dúzias de jovens que não têm relações e estão muito bem de saúde psíquica.

O que o senhor acha da psicanálise?

A psicanálise começou com Freud, que dizia que os distúrbios da alma são fruto da repressão dos impulsos sexuais, do instinto genético do homem. Segundo a psicanálise, se fizermos as perguntas certas em um ambiente de hipnose, ajudaríamos o paciente a extrair de seu subconsciente as antigas experiências traumáticas da alma, descobrindo, assim, a causa dessa culpa, a qual, segundo os psicanalistas, claro, está relacionada com a frustração dos impulsos sexuais.

Porém, nossa época -- uma época infeliz e totalmente licenciosa -- provou inúmeras vezes que Freud estava errado, pois, se sua teoria fosse verdadeira, as doenças psiquiátricas teriam diminuído em muito, já que diminui-se a repressão aos instintos sexuais e aumentou-se a liberdade e a satisfação sexual. Mas o que se verificou é justamente o contrário: segundo informações recentes, o número de doenças psiquiátricas só tem aumentado nos últimos anos!

Quer dizer que o senhor jamis recomendaria que alguém se tratasse com psicanalistas?

É uma perda de tempo e de dinheiro, meu filho! A medicina clássica só implementa teorias que demonstram resultados terapêuticos, sem contradições; ela não faria uso da psicanálise como método terapêutico porque até hoje a psicanálise não foi capaz de fornecer dados que comprovem seu valor terapêutico.

Os cristãos podem tomar remédios psiquiátricos? Muitas pessoas dizem que a ansiedade, a depressão, a melancolia -- os distúrbios psiquiátricos em geral -- só podem ser curados com a vida espiritual, isto é, com oração, frequentando a igreja, confissão, santa comunhão etc.

Quando necessário, os cristãos também devem tomá-los.

Mas o que esses remédios podem fazer pela alma humana?

Para começar, os chamados tranquilizantes ou remédios psiquiátricos -- todas essas substâncias materiais -- jamais darão à alma humana a verdadeira calma que ela quer e precisa. Eles jamais darão consolo e esperança à alma de uma mãe cuja filho morreu, nem de livrar a consciência de um homem da culpa dos pecados que cometeu. Este dons vêm somente "do Alto, do Pai das luzes". E somente os sacerdotes (os padres, sobretudo os pais espirituais) da Igreja são capazes de curar estas coisas.

Então por que o senhor acha que os remédios psiquiátricos possam ser necessários?

Escute, meu filho, a ansiedade e a depressão nem sempre são causadas somente pelos fatores que mencionei agora, ou por falência financeira ou por repressão de personalidade ou por perda de auto-estima etc. Há também os fatores que se originam no sistema nervoso humano (no cérebro); em outras palavras, originam-se dos distúrbios das funções superiores do cérebro, tais como as emoções, o pensamento, a vontade etc. Estes tipos de ansiedades, depressões etc. podem ser aliviados ou até mesmo curados com remédios psiquiátricos, os quais agem nas funções cerebrais para trazer-lhes de volta ao seu ritmo normal.

Muitos cristãos concentram-se na parte imaterial do homem, isto é, na alma, atribuindo somente a ela as manifestações de ansiedade, melancolia etc. Eles acabam rejeitando os remédios, pensando que o material é incapaz de afetar o imaterial. Eles se esquecem, porém, que o homem também tem um corpo. O cérebro, que é por onde o alma se expressa, é um instrumento do corpo, um instrumento também material, e que também pode ter seus distúrbios tratados materialmente.

O que o senhor quer dizer com "a alma se expressa através do cérebro"?

Uma analogia que podemos usar para descrever a relação da alma com o cérebro é a do violino com o violinista. Assim como o melhor dos músicos não conseguirá extrair boa música de um violino quebrado ou desafinado, o comportamento humano não será perfeito (ver 2 Tim 3:17) se o cérebro apresentar algum distúrbio. A alma não conseguirá se expressar corretamente. É justamente este distúrbio do cérebro que alguns remédios ajudam a corrigir, ajudando a alma a se expressar corretamente.

Deixe-me perguntar outra coisa para o senhor. A vida sacramental intensa ou as orações fervorosas podem curar estes distúrbios do cérebro?

É claro que sim. Deus pode fazer um milagre nesses casos. Mas a pergunta que você me fez no começo foi outra. Você me perguntou se podemos usar os remédios psiquiátricos. E a resposta é, sem dúvida, que sim!

No entanto, eu lhe pergunto: por que você não fez a mesma pergunta quanto à asma, por exemplo, ou ao eczema ou dor de cabeça ou glaucoma ou úlcera intestinal etc.? Perceba que ansiedade, melancolia etc. não se originam apenas de distúrbios da alma, mas também podem se originar de distúrbios do cérebro ou de uma combinação das duas coisas. No final das contas, o apoio psicológico também é necessário -- ou seja, a ajuda desinteressada para solucionar problemas, com discernimento, de maneira que os pacientes não sintam repulsa pela manifestação de nosso amor, pelo exame de um psiquiatra culto e piedoso, para que eles também os iluminem quanto à natureza dos distúrbios, quanto à invocação de ajuda divina, quanto à frequência aos sacramentos da Igreja etc. --, além da terapia com remédios.

Muitos cristãos acham que as doenças psiquiátricas são de fundo demoníaco e por isso eles rejeitam o uso de remédios psiquiátricos. O que o senhor acha disso?

Somente uma pequena porcentagem dos "doentes psiquiátricos" está realmente possuída. A maioria dos pacientes, porém, não está possuída, nem as manifestações de suas doenças psiquiátricas são fruto de influência demoníaca.

Em quais situações podemos dizer que há possessão de fato?

A Igreja diagnostica a possessão a partir da posição que o fiel assume perante os santos sacramentos (comunhão, confissão etc.) ou perante o Evangelho, a Santa Cruz, as santas relíquias, os santos ícones -- perante as coisas santas em geral.

O Pe. X me disse que em São Gerássimo de Kefallonia eles costumavam colocar a Sagrada Escritura ou um ícone sobre as costas de uma pessoa possuída, ou seja, sem que ela pudesse ver, de maneira que se excluíssem quaisquer possibilidades de sugestão. Então, a pessoa começava a tremer, o que não acontecia quando se lhe colocavam outros objetos ou outros livros.

Há casos de psicose entre os santos?

Sem dúvida. De cabeça, lembro-me do caso de Santa Olímpia, a Diaconisa. Após o exílio de São João Crisóstomo, que era seu pai espiritual, ela passou por profunda depressão. São João a consolava com suas cartas, lembrando-lhe das recompensas divinas que aguardavam aqueles que eram perseguidos em nome do Senhor.

Os epiléticos tem um demônio neles?

Nem todos. Em muitos casos, o cérebro é que está doente, e o resultado disso são as crises epiléticas, surdez etc. São manifestações semelhantes às manifestações das pessoas possuídas, conforme vemos nos Evangelhos.

Por que o Senhor operou tantos milagres com os possuídos?

Para que a superioridade dos poderes do Senhor sobre os demônios se manifestasse e para que as pessoas acreditassem nEle. Estes milagres pareciam muitos porque é provável que Deus tenha permitido que o diabo incomodasse mais as pessoas daquela época. Mas também é possível que o número de pessoas possuídas tenha sido o mesmo em todas as épocas.

18 de novembro de 2010

Não se intrometa na vida dos outros


Era uma vez um pai, que estava andando em seu jumento, enquanto seu filho o acompanhava a pé. Alguém viu esta cena e disse ao pai:

"O senhor não sente pena de seu filho? Você está aí, todo folgado, enquanto o pobrezinho está andando. Deixe ele subir no jumento!"

O pai, então, deixou o filho subir no animal.

Outro pessoa os viu e disse:

"O senhor não tem pena desse pobre animal? O senhor vai matá-lo desse jeito. Desça do coitado do jumento!"

O pai desceu.

Uma terceira pessoa os viu e disse:

"O senhor não tem nem um pingo de vergonha? É assim que o senhor educa seu filho? Ele está montado no jumento enquanto o senhor, que é idoso, está andando a pé? Ensine-o a ter respeito pelo senhor. Faça-o descer do jumento!"

Ambos, pai e filho, estavam agora andando a pé.

Uma quarta pessoa se aproximou e disse:

"O senhor por acaso é idiota? Por que o senhor tem um jumento afinal? Por que um de vocês dois não sobe no jumento?!"

Frustrado, o pai não se aguentou e explodiu:

"Quando vocês vão me deixar fazer o que eu quero?!"

17 de novembro de 2010

A filosofia esotérica


Os autores da Igreja se apropriaram da palavra "filosofia", que já estava em uso desde os primeiros séculos, para denotar nada mais nada menos do que o próprio Cristianismo. Para explicar e justificar essa apropriação, eles faziam uma distinção entre dois tipos de filosofia: (1) "filosofia exterior (exoteriké, éxo, thýrathen)" e (2) "filosofia interior (esoteriké, éso)". A filosofia interior também era chamada de "verdadeira filosofia", "filosofia celestial", "filosofia espiritual", "filosofia divina", "filosofia segundo o Cristo", "filosofia sagrada", "filosofia do Alto" e "sabedoria do Alto".

O primeiro tipo de filosofia ("filosofia exterior") corresponde à filosofia grega e à filosofia pagã dos primeiros séculos cristãos. O segundo tipo de filosofia ("filosofia interior") é idêntica à religião cristã. Este termo é usado para denotar a doutrina cristã ortodoxa em sua totalidade; a doutrina cristã viva; algumas práticas interiores, sobretudo a atenção interior e o silêncio interior; e a vida monástica.

A distinção entre "filosofia exterior" e "filosofia interior" pode ser encontrada já nos textos patrísticos gregos do século II. Esta distinção continua em uso na Grécia contemporânea.

A "filosofia exterior", por sua vez, é dividida em duas categorias: autêntica e falsa. Por exemplo, esta distinção aparece nas obras de Clemente de Alexandria, nos séculos II e III, nas obras do teólogo Meletios Pigas, no século XVI, e nas obras de São Nectário, no século XX. A filosofia exterior autêntica, a qual é inspirada pelo amor à verdade, teria como seus grandes expoentes os filósofos Sócrates, Platão e Aristóteles. Embora suas filosofias contenham erros, elas também contêm inúmeras e importantes verdades, e constituem o que Clemente de Alexandria chamou de "treino preparatório para aqueles que desejam atingir a fé mediante a demonstração", "alpondras para a filosofia segundo o Cristo". [1] A filosofia exterior falsa, por outro lado, teria como seus grandes expoentes os pensadores orgulhosos e superficiais: sofistas, materialistas, ateístas, escravos do prazer. É precisamente a pseudo-filosofia, segundo Clemente, a qual São Paulo Apóstolo se refere em Colossenses 2:8: Tende cuidado, para que ninguém vos faça presa sua, por meio de filosofias e vãs sutilezas, segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo. [2]

Pigas e Nectário, ambos admiradores de Clemente de Alexandria, também fazem uso dessa distinção. Pigas se refere a Sócrates e Aristóteles como sábios, aprovando sua filosofia, enquanto retratam Epicuro e seus seguidores como sendo animais irracionais, pois reduzem o homem a um animal, negando-lhe uma alma imortal. [3] Nectário cita Sócrates, Platão e Aristóteles como sendo verdadeiros filósofos, e os antigos materialistas, ateístas, hedonistas e sofistas como sendo falsos filósofos. Ele diz ainda:

Observem Sócrates, Platão, Aristóteles e Plutarco, e os demais trabalhadores da nobre filosofia. Que século se esquecerá deles? Quem não admirará a época em que viveram como sendo uma época de glória e grandeza? Mas observem também a companhia dos epicureanos. Que tipo de homens eram Diágoras, Aristipo, Hégias e assemelhados, os trabalhadores da antiga desgraça? Quais foram seus feitos? A história tem escrito páginas negras a seu respeito.[4]

A maneira correta para os cristãos fazerem uso da "filosofia exterior" foi dada nos primeiros séculos por Clemente de Alexandria em seus Stromateis, Basílio o Grande em seu Discurso aos Jovens e João Damasceno em sua Fonte de Conhecimento. Eles recomendam um uso eclético da filosofia exterior, selecionando dos livros pagãos aquilo que convém a um cristão e que fosse aliado da verdade, desprezando o restante. Tal ecletismo foi praticado continuamente no Oriente helênico, durante os tempos bizantinos, e durante o período pós-bizantino. Nunca tal filosofia foi condenada, como o fez Tertuliano, no Ocidente, que rejeitara a "filosofia exterior" em sua totalidade.

A distinção entre "filosofia exterior" e "filosofia interior" foi especialmente enfatizada nas épocas em que os secularistas se esforçaram em ignorá-la, promovendo a "filosofia exterior" de maneira unilateral e intransigente. Isso aconteceu na Grécia, durante os séculos XVIII e XIX, quando as idéias materialistas e ateístas começaram a se introduzir na Grécia a partir da Europa Ocidental. Athanasios Parios (1721/1722-1813), um dos maiores educadores da Grécia, reagiu com vigor. Ele escreveu e publicou em 1802 um livro chamado Réplica (Antiphónesis) [5], na qual enfatizou a distinção entre "filosofia exterior" ou "filosofia humana" e "filosofia interior" ou "filosofia divina". Ele identificou a primeira como sendo a antiga filosofia grega e a filosofia européia, e a segunda como sendo o ensinamento cristão, conforme contido na Sagrada Escritura, especialmente no Novo Testamento, nas obras dos Santos Padres do Oriente e nas resoluções e cânones dos Concílios Ecumênicos. Parios enfatiza, em sua Réplica, a superioridade da filosofia divina sobre a filosofia humana, do ensinamento cristão sobre os sistemas seculares de conhecimento. Ele afirma que, na Europa, a hierarquia natural, na qual a filosofia natural ocupa um lugar acima da filosofia exterior, foi desvirtuada, pois a filosofia exterior ocuparia um lugar acima da filosofia espiritual, interior.

[1] Stromateis, Livro I, Capítulo V, Livro VI, Capítulo VIII.

[2] Ibid., Livro I, Capítulo XI.

[3] Meletios Pigas, Chrysopegé ("Fonte de Ouro"), ed. G. Valetas, Atenas, 1958, p. 173, 225, 226, 265, 307, 311, 315, 322, 336, 345, 355, 385.

[4] Do meu livro Modern Greek Philosophers on the Human Soul, p. 85. Ver também São Nectário, Perí Alethoús kai Pseudoús Morphóseos ("Da Verdadeira e da Pseudo-Educação"), Atenas, 1894, p. 8-21.

[5] Antiphónesis, Trieste, 1802; 2a. ed., Hermoupolis, Syros, 1866.

Fonte: Constantine Cavarnos, Ph.D., The Hellenic-Christian Philosophical Tradition, Institute for Byzantine and Modern Greek Studies, 1989, Belmont, MA, EUA, p. 109-112.

12 de novembro de 2010

A cosmovisão medieval


Como será viver em outro mundo? Não me refiro a outro planeta, mas a outro mundo. Se por “mundo” entendemos não apenas a totalidade do universo físico, mas também todas as criaturas imateriais que existem, então concluiríamos que é impossível viver em outro mundo. Não há outro mundo além deste e, se há, então também faz parte do mundo. Porém, viver em outro mundo pode significar viver em uma época na qual a maneira como o mundo é organizado – sua estrutura e a hierarquia entre os seres – seja vista de maneira radicalmente diferente.

Em The Discarded Image, C. S. Lewis explica como era a visão-de-mundo dos homens medievais, sobretudo dos grandes expoentes da literatura medieval. Eles acreditavam na terra plana? Em faunos e ogros? Na astrologia? Sem este conhecimento prévio, sem este “mapa” em mãos, a leitura dos autores medievais e dos primeiros renascentistas torna-se uma tarefa quase misteriosa, para não dizer inútil.

Neste artigo, omiti quase que por completo as inúmeras referências e citações usadas por Lewis, já que meu objetivo é apenas apresentar a estrutura da cosmovisão. Fica claro, portanto, que o leitor desejoso de estudar algum aspecto específico desta cosmovisão deve ter em mãos a obra original de Lewis.

A maneira como as crenças dos homens medievais se formaram não é igual à maneira como as crenças dos homens selvagens (ou “bárbaros” ou “incivilizados”) se formaram. Em linhas gerais, as crenças selvagens são fruto de respostas ao ambiente imediato; são, portanto, produto da imaginação. As crenças medievais, por outro lado, são fruto de longos períodos de estabilidade, nos quais o “ambiente” é feito de livros. Sim, isso mesmo: o medieval era um homem livresco, cujas crenças engendraram-se a partir de raciocínios éticos, filosóficos e científicos sobre livros antigos que se encontravam à sua disposição. Ao contrário do que a cultura popular ensina, os medievais não eram pessoas sonhadoras, que gostavam de pensar em assuntos bizarros e inúteis, mas um verdadeiro organizador, um construtor de sistemas. Tudo era codificado e organizado, desde o sexo até a guerra, a teologia, a ciência e a história. Todas estas questões, juntas, formam o que Lewis passa a chamar de Modelo do Universo, ou simplesmente Modelo. É este Modelo que o estudioso medievalista deve aprender para começar a compreender a mentalidade medieval.

Antes de apreciarmos os detalhes desse Modelo, cabe uma observação importante. Em primeiro lugar, modelos, sejam os modelos científicos modernos, seja o Modelo medieval, não são afirmações absolutamente factuais sobre a realidade. São esquemas provisórios que ajudam a explicar a realidade, ou seja, são esquemas que não devem ser defendidos como sendo os únicos universos de discurso (ver Dialectic) possíveis. Os Modelos, em si, não são a realidade bruta e factual. Daí decorre um fenômeno interessante: quanto mais ignorante for uma pessoa, tanto mais ela se apegará ao Modelo vigente. É por isso que as pessoas ignorantes levam tão a sério o homem das cavernas ou a teoria dos átomos, mas, ao mesmo tempo, não pensam duas vezes em duvidar da vida de Júlio César ou Shakespeare. O Modelo moderno lhes diz que o homem evoluiu desde um passado remoto, há milhões de anos, que os produtos químicos são organizados da maneira que a teoria atômica lhes diz, que os antigos cronistas inventavam estórias emplumadas para enganar o povo idiota. Não é ruim que seja assim, pois é natural que as pessoas simples e fáceis se apeguem a esquemas que por princípio são simples e fáceis. No entanto, quanto mais subirmos na escala do conhecimento e da inteligência, tanto mais o Modelo será questionado. Os homens de ponta, os homens verdadeiramente inteligentes, sabem que os Modelos são frágeis e, ademais, são estes os homens que constroem e aperfeiçoam os Modelos. É natural que não os levem a sério, ou pelo menos não o levem tão a sério. A propósito, isso ajuda a explicar por que os cientificistas não são realmente cientistas (ver Wolfgang Smith).

Mutatis mutandis, o raciocínio acima também vale para o Modelo medieval. As pessoas simples daquela época também levavam o Modelo a sério; no entanto, não devemos nos esquecer que poetas e literatos também são, neste sentido, pessoas simples. É por isso que, na medida que tomamos contato com as obras de filosofia e teologia medievais, o Modelo será cada vez menos usado e cada vez mais questionado. Os poetas, mais ligados aos sentimentos e às emoções, naturalmente se inclinam ao Modelo e buscam nele sua força e satisfação. Os teólogos e místicos praticamente o ignoravam – naturalmente não cooptavam com os elementos pagãos que contribuíam para sua composição –, mas compreendiam que as pessoas o adotassem.

Em segundo lugar, o Modelo medieval é um conjunto de concórdias ou linhas de intersecção entre filósofos, poetas e cientistas, em um longo espaço de tempo. Conforme dissemos acima, os medievais eram pessoas livrescas, ou seja, levavam muito a sério as doutrinas de filósofos e poetas pagãos. Assim, torna-se imprescindível que vislumbremos quais autores influenciaram os poetas medievais.

Lewis divide essa tarefa em dois períodos: o período clássico, anterior à Idade Média, e o período seminal, na aurora da Idade Média. Vejamos muito brevemente os exemplos que o autor utilizou.

Influências do período clássico

A República, de Cícero, foi escrita em 50 a.C., e contém alguns elementos que foram mais tarde aproveitados pelos autores medievais. (1) A tentativa de conferir verossimilhança a um sonho fictício atribuindo-lhe causas psicológicas é um aspecto aproveitado por Chaucer [Sir Geoffrey Chaucer (1340-1400), poeta inglês medieval]; (2) a esfera celeste mais alta, chamada de stellatum, foi mais tarde citada por Dante [Dante Alighieri (1265-1321), poeta italiano medieval] e Chaucer; (3) a previsão da futura carreira política do neto é um elemento aproveitado por Dante; (4) a idéia de que os homens são propriedade dos deuses e que, enquanto propriedade, não devem dispor de si próprios foi utilizada posteriormente por Spenser [Edmund Spenser (1552-1599), poeta inglês]; (5) a insignificância da Terra em relação ao restante do cosmos é uma perspectiva também comum aos medievais e, claro, ao pensamento moderno; (6) Cícero, bem como seus sucessores, faz da Lua o limite entre as coisas eternas e as coisas perecíveis, além de ensinar, um tanto vagamente, é verdade, que os planetas influenciam a sorte dos homens na Terra.

Marco Aneu Lucano foi um poeta romano que viveu de 34 d.C. a 65 d.C. Seus livros também contêm elementos que influenciaram os poetas medievais. (1) Dante aproveita uma prosaica história contada por Lucano em seu segundo livro: Márcia casou-se primeiramente com Cato e, sob suas ordens, posteriormente com Hortênsio; após a morte de Hortênsio, Márcia retorna a Cato, exigindo, com sucesso, seu re-casamento. Dante a transforma em uma alegoria: Márcia é la nobile anima; enquanto virgem, é l´adolescenza; enquanto esposa de Cato, é la gioventude; os filhos de Márcia com Cato são as virtudes próprias dessa idade; o casamento com Hortênsio é a senettude; os filhos de Márcia com Hortênsio são as virtudes próprias da idade; a morte de Hortênsio e a viuvez de Márcia são a transição para um período de idade muito avançada (senio); o retorno de Márcia a Cato é a alma nobre que retorna a Deus; Cato é o próprio Deus; (2) Lucano, em seu nono livro, conta a história da ascese da alma de Pompeu, desde a pira funerária até os céus; Pompeu passa pelo ar, pela fronteira entre o ar e o éter, ou seja, entre a ‘Natureza’ e o ‘Céu’ de Aristóteles, que é a órbita da Lua, e, de lá do alto, observa as zombarias feitas em seu próprio cadáver, em um funeral deveras bagunçado. Pompeu acha graça e ri. Boccaccio [Giovanni Boccaccio (1313-1375), escritor e poeta italiano medieval] aproveita esta história em seu Teseide, usando-a no espírito de Arcita. Chaucer faz algo semelhante em Knight´s Tale, usando-a no espírito de Troilus.

Públio Papínio Estácio (Statius) foi um poeta romano e viveu de 45 d.C. a 96 d.C. Um dos aspectos mais notáveis de sua obra é a citação breve mais interessante da Natura. Para ele, a Natura é a princeps (primeira) e creatrix (criadora) de todas as coisas, inclusive da própria paixão (Pietas) que se revolta contra ela; a Natura também é a dux (guia) daqueles que fazem guerra santa contra as coisas monstruosas e ‘inaturais’. Claudiano (Claudius Claudianus) (370-404) vai além, e ensina que a Natura é o demiurgo que reduz o caos primordial ao cosmos; ela também nomeia os deuses que servirão a Júpiter. No entanto, cabe lembrar que, para os medievais, a Natura não era tudo: seu lugar é abaixo da Lua e cumpre ordens de Deus enquanto vice-gerente desta região. É por isso que os medievais, tornando-a limitada e subordinada, puderam fazer uso mais livre e intenso da Natura em suas poesias.

Apuleio (Lucius Apuleius) (125-180), poeta romano, escreveu De Deo Socratis (Do deus de Sócrates), no qual cita implicitamente dois trechos de Platão: Apologia (31c-d) e Simpósio (202e-203e). Nestes trechos, conta-se que os demônios são criaturas intermediárias entre deuses e homens, e somente com eles os homens são capazes de se comunicar com os deuses. Apuleio ensina, por sua vez, que os demônios ou “espíritos intermediários” habitam uma região entre a Terra e o éter, ou seja, o ar, que se estende até a Lua. Afinal, a ratio determina que deve haver uma espécie genuinamente aérea, assim como os deuses são etéreos e os homens terrestres. Os demônios têm corpos de consistência mais delicada do que as nuvens, os quais não são visíveis aos homens. Apuleio afirma que os demônios são animais, mas não bestas: assim como há animais racionais terrestres (os homens), os demônios são animais racionais aéreos.

Apuleio introduz dois princípios que Lewis considera como capitais para a compreensão da cosmovisão medieval. (1) O Princípio da Tríade, que afirma que duas coisas não podem se unir sem o auxílio de uma terceira coisa. Este princípio encontra-se também em Platão (Timeu 31b-d). Entre Deus e os homens deve haver uma ponte, uma “terceira coisa”. Similarmente, entre a razão e os apetites, entre a alma e o corpo, entre os reis e os súditos etc. (2) O Princípio da Plenitude, que afirma que o universo deve ser plenamente explorado e habitado. Se há uma região entre o éter e a Terra – o ar –, então essa região deve necessariamente ser habitada. Nada existe superfluamente.

Influências do período seminal

O período seminal é situado por Lewis entre 205, ano em que nasceu Plotino, e 533, ano em que o autor acredita ser a primeira vez em que surge São Dionísio. Seus autores são pagãos, influenciados pelo neoplatonismo, mas influenciaram em muitos aspectos a mentalidade medieval.

A obra de Calcídio (Chalcidius), filósofo neoplatônico do século IV, resume-se a uma tradução incompleta do Timeu, de Platão, acompanhada de comentários. Sua obra é importante porque foi ela a principal responsável por traçar o perfil de Platão a ser conhecido pelos medievais. (1) Em Timeu 42b, Platão ensina que a alma dos homens perversos seria reencarnada como mulheres e, caso não se curasse, em bestas. Mas Calcídio acredita que, com isso, Platão quis dizer que quanto mais os homens se entregarem às paixões, tanto mais se parecerão com animais. (2) Em Timeu 40d-41a, Platão explica a criação dos deuses – não os deuses mitológicos, mas os deuses em que ele realmente acreditava, as estrelas animadas. No que tange o panteão de deuses, Platão os rebaixa ao grau de demônios para, em seguida, se recusar a versar sobre eles, dizendo ironicamente que seus antepassados, por serem seus descendentes, deveriam saber melhor do que ele sobre esses deuses. Calcídio leva a explicação platônica ao pé da letra, dizendo que, na verdade, Platão não quis explicar a origem desses deuses por ser um filósofo. (3) Calcídio escreve sete capítulos sobre os sonhos, inspirando-se em Timeu 45e. (4) Calcídio introduz algumas noções astrológicas: a Terra é infinitesimalmente pequena em relação ao universo como um todo; o movimento dos planetas é a fonte dos efeitos que se verificam na Terra, embora ele deixe claro que se trata de um epifenômeno, pois o verdadeiro motivo é os astros seguirem o curso apropriado à sua beatitude (o universo, portanto, é geocêntrico, mas não antropocêntrico); a Terra está no centro apenas para fornecer um centro em torno do qual os astros revolvem, ou seja, por conveniência estética, mas não antropocêntrica. (5) Inspirando-se em Timeu 47b, Calcídio afirma que o propósito da visão não é auxiliar a sobrevivência humana, mas motivar o homem a buscar a Deus ao contemplar o céu e as estrelas; similarmente, o propósito da audição é ouvir música – não a música vulgar, mas a música divina, que nunca abandona o entendimento e a razão –, pois a alma diz respeito a ritmos e melodias e, estando ligada ao corpo, tal relação acaba por se desvanecer. (6) Calcídio reforça os Princípios da Tríade e da Plenitude, a exemplo de Apuleio (por exemplo, a voz de Deus não pode ter vindo diretamente de Deus; a política é uma tríade de soberanos, executivos e súditos; os poderes estrelares comandam, os seres angélicos executam, os seres terrestres obedecem; a parte racional do homem situa-se no capitolium (a casta dos filósofos), a parte ‘vigorosa’ situa-se no peito (a casta dos guerreiros), a parte apetitiva situa-se no abdômen (a casta das pessoas comuns).

Macróbio (Ambrosius Theodosius Macrobius), filósofo neoplatônico do século V, escreveu, entre outras obras, um comentário ao Somnium Scipionis, de Cícero, o qual citamos acima. (1) O historiador Hecateu visita o Egito e descobre que os egípcios possuem muitas gerações mais de antepassados do que os gregos e, mesmo assim, não se encontra entre eles nenhum semideus. Isso leva Macróbio a concluir que o universo sempre existiu. (2) Macróbio afirma que a coisa mais pura e límpida (liquidissimum) eleva-se ao lugar mais alto e é chamada de éter; aquilo que é menos puro e possui algum grau de peso é o ar; o que é mais pesado e representa resistência ao tato (corpulentum), mas ainda conserva alguma fluidez, se junta em forma de água; o restante, o que vem do ‘tumulto da matéria’, o ‘irreclamável’ (vastum), reduz-se a terra. (3) Macróbio identifica cinco tipos de sonhos, sendo que três primeiros são verídicos e dois últimos não têm ‘divinização’ em si: (a) somnium, nos quais as verdades são reveladas de forma alegórica (a psicologia moderna classifica a maioria dos sonhos desta forma); (b) visio, previsão literal e direta do futuro; (c) oraculum, alguma pessoa venerável, talvez até um dos pais, declara o futuro ou dá conselhos; (d) insomnium, mera repetição de preocupações correntes; (e) visum, quando a pessoa não está ainda dormindo e crê que está acordada, ela pode ver formas que se atiram contra a pessoa ou brigam com ela; são os típicos pesadelos. (4) Macróbio descreve a criação da Mens e da Anima (os conceitos neoplatônicos do Noûs e da Alma do Mundo) de maneira repugnante à teologia cristã, pois são descritas como menores e distintas de Deus. (5) Macróbio formulou um sistema ético baseado no quaternion clássico de virtudes: prudência, temperança, fortaleza e justiça. Há quatro níveis em que estas virtudes devem ser avaliadas: político, purgatorial, das almas já purificadas, do Mens (ou Noûs). (6) Macróbio acreditava que a alma poderia retornar ao céu, pois teria vindo de lá; que o corpo é o túmulo da alma; que a alma é o homem; que todas as estrelas são maiores do que a Terra; que as estrelas não produzem eventos terrestres, embora sua posição relativa permita que possamos predizê-los.

Lewis acredita que São Dionísio, o Areopagita, foi o “Pseudo-Dionísio”, o qual escreveu seus famosos livros em algum ano anterior a 533. Sua principal contribuição ao Modelo foi a hierarquia angélica. A primeira hierarquia contém três espécies de anjos: serafins, querubins e tronos. A segunda hierarquia é composta de dominações, potestades e virtudes (não no sentido moral, mas no sentido eficiente, que produz um efeito, como nas ‘virtudes’ de um anel mágico ou planta medicinal). Essas duas hierarquias voltam-se para Deus. A terceira e mais inferior hierarquia ocupa-se dos homens, sendo composta de principados, arcanjos e anjos. Assim como Platão e Apuleio, Pseudo-Dionísio também defende o Princípio da Tríade, ou seja, que entre Deus e os homens há uma hierarquia intermediária, assim como entre as faculdades humanas governante e obediente deve haver uma intermediária.

Boécio (480-524) é o homem mais influente da Idade Média. Até uns duzentos anos atrás, era conhecido e lido por todas as pessoas cultas. Aprender a amá-lo é se naturalizar medieval. A consolação que Boécio busca na filosofia (De Consolatione Philosophiae) é limitada: ao mesmo tempo em que louva a Philosophia por suas provas "inatas e domésticas", a dispensa nas questões cujas "razões vêm de fora" (por exemplo, nas questões que tange o inferno e o purgatório). (1) É da natureza de sua atividade que os filósofos devam antecipar a calúnia; afinal, o propósito maior (maxime propositum) dos filósofos é desagradar a ralé, e não ser admirado. (2) Boécio não compreende por que Deus governa a Natureza com tanta regularidade e os assuntos humanos com tanta irregularidade. Este tema será posteriormente aproveitado por Alanus, Jean de Meung e Milton. (3) O Livro III contém sua famosa apologia à Fortuna. Boécio se recusa a aceitar a idéia de que pessoas más serão necessariamente punidas com castigos e pessoas boas serão necessariamente prósperas e ricas. Esse tipo de perspectiva, comum a pagãos vulgares e cristãos vulgares, é típico de “homens cruéis”. Os bens exteriores nunca são perdidos porque, na verdade, eles nunca foram nossos. A beleza dos campos e das pedras preciosas é delas, não nossa; a beleza das roupas é delas (ou da habilidade do tecelão), mas não nossa. Mesmo a fama não é nossa, porque a fama em um lugar pode ser a infâmia em outro. A nobreza também não é nossa, mas de nossos antepassados. A adversidade tem o mérito de nos mostrar quem são os nossos amigos verdadeiros e quem são os amigos simulados. (4) Todos os homens buscam a Felicidade, mas a maioria o faz por caminhos errados, como o homem bêbado que sabe que tem uma casa, mas não sabe como chegar lá. No entanto, mesmo os caminhos errados, como a riqueza e a glória, mostram que os homens portam alguma semelhança com a verdade, pois o verdadeiro bem é glorioso como a fama e auto-suficiente como a riqueza. (5) O Livro IV contém uma digressão sobre a justiça no contexto da Fortuna. A Philosophia apresenta duas visões: (a) tudo é justiça, pois o homem bom é sempre recompensado e homem iníquo é sempre punido, isto é, o poder maligno e as operações malignas são a própria punição da vontade maligna; (b) a Providência, espelhada na multiplicidade do tempo e do espaço, torna-se Destino. Como em uma roda, quanto mais próximo do centro, menos propensos ao Destino estaremos; toda sorte, vista do centro, é boa e medicinal. Assim, Boécio conclui que acima da ratio existe a intelligentia, e a ratio só é capaz de conceber o futuro como algo determinado. É necessário, portanto, elevar-se ao nível inteligencial para apreendermos o conhecimento que não envolve determinismo. A eternidade não é a mesma coisa que perpetuidade, o que significa que o tempo e apenas uma imagem, quase uma paródia, da plenitude da eternidade. Por isso, Deus sempre vê, jamais prevê.

Os Céus

Every kindly thing that is
Hath a kindly stede ther he
May best in hit conserved be;
Unto which place every thing
Through his kindly enclyning
Moveth for to come to
(Chaucer, Hous of Fame, II, 730 sq.)

a) O mundo

A ciência moderna explica os fenômenos naturais com base em leis e a obediência dos corpos a essas leis. A ciência medieval, por outro lado, faz uso dos conceitos fundamentais de simpatia, antipatia e aspiração. Em outras palavras, todas as coisas possuem seu lugar certo, a região que melhor lhes convém, um instinto residente. No entanto, os medievais não pensavam que as coisas e objetos eram sensíveis e que agiam propositadamente, a não ser no caso das estrelas, já que consideravam-nas seres orgânicos. Neste contexto, é curioso observar que o linguajar moderno é mais ingênuo e antropomórfico do que o linguajar medieval. Afinal, a idéia de que a matéria possui inclinações é mais “animal”, enquanto a idéia de que a matéria obedece a leis e regras é mais “humana”. Ambas as linguagens não devem ser tomadas literalmente, mas o ponto de vista medieval apela muito melhor à imaginação e às emoções, pois projeta sentimentos e desejos à matéria, enquanto o ponto de vista moderno projeta sistemas jurídicos e códigos de trânsito. No caso medieval, sugere-se uma continuidade entre os eventos físicos e nossas aspirações espirituais.

As propriedades simpáticas e antipáticas são os famosos quatro contrários: quente, frio, úmido e seco. Eles se combinam para formarem os quatro elementos: fogo (quente + seco), ar (quente + úmido), água (frio + úmido) e terra (frio + seco). Há ainda o quinto elemento ou quintessência, que é o éter. Porém, o éter só pode ser encontrado acima da Lua e, portanto, nós mortais não temos acesso a ele.

No mundo sublunar – o mundo da Natureza –, os quatro elementos se situam em seus lugares apropriados. A terra é o mais pesado e aglomera-se no centro; sobre ela está a água e, mais acima ainda, o ar. Por fim, o fogo, o mais leve dos elementos, procura sempre subir para o limite da circunferência da Natureza, formando uma esfera imediatamente abaixo da órbita da Lua.

No centro do universo situa-se a Terra, que é esférica. Ela é circundada por um conjunto de globos ocos e transparentes, um acima do outro, um maior do que o outro (do centro para fora). Estes globos são chamados de ‘esferas’, ‘céus’ ou, mais raramente, de ‘elementos’. Em cada uma das sete primeiras esferas há um corpo luminoso. A partir da Terra, a ordem é a seguinte: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Depois da esfera de Saturna há o Stellatum, ao qual pertencem todas as estrelas que ainda hoje chamamos de ‘estrelas fixas’, pois a posição relativa entre elas é invariável. Depois do Stellatum temos uma esfera chamada de Primeiro Móvel ou Primum Mobile. Como esta esfera não porta nenhum corpo luminoso, ela não dá nenhuma evidência aos sentidos humanos.

E depois do Primum Mobile? Para além dos céus há o Céu propriamente (caelum ipsum), que é “cheio de Deus”, como disse Bernardo (Bernardus Silvestris, poeta do século XII) em sua cosmografia. Lá não há espacialidade, nem temporalidade, mas “luz pura, luz intelectual, amor pleno” (Dante, Paradiso, XXX, 38).

As dimensões do universo medieval não são tão bem definidas quanto sua estrutura. Há claros indícios de que seria bem menor do que o universo moderno, mas, em termos imaginativos, a diferença entre mil e dez milhões de quilômetros é desprezível. Ambos podem ser concebidos (ou seja, podemos somar e subtrair seus números), mas ambos não podem ser imaginados. Uma característica importante, no entanto, é que o universo medieval é finito e esférico. Assim, quando o medieval olhava para o céu noturno ele contemplava um grande edifício, uma espécie de catedral; o homem moderno contempla o céu como um mar infinito, que se perde na névoa, ou mesmo como uma floresta desprovida de trilhas, totalmente isolada. O “espaço sideral” do homem moderno inspira terror, perplexidade; o espaço medieval apresenta ao observador algo sobre o qual a mente pode se assentar e se satisfazer em sua harmonia. O universo moderno é romântico, o universo medieval é clássico.

A arte medieval é orientada à ênfase que se quer dar ao objeto, ou seja, à sua importância, e não propriamente às suas dimensões físicas. A arte moderna, por outro lado, é mais uma ‘ilusão’, pois é orientada aos sentidos, isto é, tenta reproduzir como seria a perspectiva visual o mais ‘perfeitamente’ possível.

b) O movimento do mundo

O movimento do mundo vem de Deus. Ele causa o movimento do Primum Mobile no sentido oriente-ocidente, cuja rotação é concluída em 24 horas. A rotação do Primum Mobile causa a rotação do Stellatum, que por sua vez causa a rotação de Saturno, e assim por diante, até a Lua. Essas esferas inferiores rotacionam-se no sentido ocidente-oriente, mas como se contrapõem à ‘corrente’ do Primum Mobile, acabam rotacionando também no sentido oriente-ocidente, mas mais lentamente.

Além do movimento físico, as esferas também transmitem à Terra as chamadas ‘influências’. Muitas pessoas dizem que Igreja desaprovava essa idéia, mas a verdade é que os teólogos aceitavam a teoria de que os planetas influenciam os eventos e a psicologia e, mais ainda, as plantas e minerais. Na verdade, a Igreja não aceitava que (a) a astrologia fizesse uso lucrativo e político das previsões, (b) a astrologia se tornasse alvo de adoração planetária e (c) a astrologia chegasse a ponto de impor uma visão determinista, ou seja, de negar o livre arbítrio. A razão e a vontade se deixam influenciar, mas não de maneira necessária, pela matéria. Os astros influenciam o poder imaginativo do homem, mas tal influência situa-se no campo da propensão, e não da necessidade. A propensão pode ser resistida; daí a idéia de que os homens sábios se sobrepõem aos astros. No entanto, como a maioria dos homens não é sábia, a astrologia é capaz de fazer predições, a exemplo das predições atuariais.

Eis uma breve descrição das características dos sete planetas. Vale lembrar que, devido aos diferentes graus de dificuldade e aplicabilidade, as características planetárias devem ser compreendidas intuitivamente, e não conceitualmente.

· Saturno. Na Terra, sua influência produz o chumbo. No homem, o estado melancólico. Na história, eventos desastrosos. É chamado de Infortuna Major, por ser o mais terrível dos planetas.

· Júpiter. Produz o estanho. Chamado de “o Rei”, produz no homem um estado um tanto difícil de descrever, o qual poderíamos aproximadamente chamar de “jovial”: um temperamento alegre, festivo, mas equilibrado, tranqüilo, magnânimo. Dante situa em Júpiter os príncipes justos. É chamado de Fortuna Major, por ser o melhor dos planetas.

· Marte. Produz o ferro. No homem, produz um temperamento robusto, rígido, resistente, firme. No entanto, por causar a guerra, é chamado de Infortuna Minor. Em Dante, é o céu dos mártires.

· Sol. Produz o ouro, o mais nobre dos metais. O Sol é também o olho e a mente de todo o universo. Ele torna os homens sábios e liberais (no sentido medieval). Causa eventos auspiciosos. Dante faz do Sol o céu dos teólogos e filósofos.

· Vênus. Produz o cobre. No homem, a beleza e amorosidade. Na história, também eventos auspiciosos. Por este motivo, é chamado de Fortuna Minor. Em Dante, é o céu dos penitentes que, em vida, amaram ilegalmente.

· Mercúrio. Produz o mercúrio. No homem, produz um estado difícil de descrever; Lewis tenta algo como “diligência vivaz” ou “avidez versada”. Dante aloca na esfera de Mercúrio os homens beneficentes.

· Lua. Produz a prata. A Lua é a fronteira entre o éter e o ar, entre o "céu" e a "natureza", entre o reino dos deuses (ou anjos) e o reino dos demônios, entre o âmbito da necessidade e o âmbito da contingência, entre o incorruptível e o corruptível. No homem, produz um estado errante, que tanto pode se referir, em termos físicos, a pessoas viajantes, quanto, em termos psíquicos, a pessoas "errantes" de humor. Não à toa, as pessoas que apresentam insanidade periódica são chamadas de "lunáticas". Dante manda para a esfera lunar as pessoas que abandonaram a vida monástica por alguma razão boa ou perdoável.

De acordo com o princípio da transmissão, ou mediação, as influências não nos afetam diretamente, mas através da modificação do ar. É por isso que, quando um médico sentia-se incapaz de diagnosticar com precisão o que estaria causando a condição de um paciente, ele atribuía a causa a “alguma influência que está no ar”.

Para os medievais, os astros não se movem em um oceano negro e vazio, como em geral pensam os modernos. O sistema astrológico medieval é, em certo sentido, mais heliocêntrico do que o moderno. O Sol ilumina o universo inteiro. Nenhuma outra estrela tem luz própria, pois são iluminadas pelo Sol (mais ou menos como a "Lua moderna"). Cada milímetro cúbico do universo é iluminado pelo Sol. O que acontece durante o que chamamos de ‘noite’ nada mais é do que a sombra cônica projetada pela Terra. Segundo Dante (Paradiso, IX, 118), esta sombra se estende até Vênus. De noite, quando olhamos para o céu, não estamos olhando a escuridão, mas estamos olhando através da escuridão.

Por fim, cabe lembrar que, assim como o universo não é escuro, ele também não é silencioso. Cada planeta produz certos sons e harmonias.

c) Os habitantes do mundo

Deus causa o movimento do Primum Mobile, conforme vimos acima. Mas Ele não faz isso como um guerreiro que causa o movimento da espada ou como o vento que causa o movimento de um barco. Se fosse assim, explicaríamos um movimento pelo outro ad infinitum e concluiríamos que o universo é um sistema fechado, cujo movimento causa e é causado por outros movimentos dentro de si mesmo. Na realidade, Deus causa o movimento do Primum Mobile de uma maneira diferente: o Primum Mobile é movido por seu amor a Deus; ao se mover, ele comunica movimento ao restante do universo.

Os medievais explicam, ademais, que o movimento dos planetas é de rotação porque, incapazes de imitar a perfeita imobilidade de Deus, movimentam-se da maneira mais semelhante e perfeita possível, a saber, o movimento perfeitamente regular e ágil das circunferências. Isso significa que as esferas, ou pelo menos algo residente nelas, são seres intelectuais, que são movidos pelo ‘amor intelectual’ de Deus. Estas criaturas são chamadas de Inteligências. Na Antiguidade, dizia-se que as Inteligências estavam ‘nas’ esferas. Mais tarde, os escolásticos introduziram a idéia de que as almas das esferas não estão para as esferas assim como a alma humana está para o corpo humano. Em outras palavras, a alma das esferas e a alma dos homens são de tipo diferente, cuja relação não se dá por enteléquia, como no caso humano. Note, porém, que as Inteligências são uma pequena parte da população angélica que habita a região entre a Lua e o Primum Mobile.

Dissemos acima que há planetas “ruins”. Como isso é possível, se acima da Lua não há corruptibilidade? Isso se explica pelo fato dos temperamentos de cada planeta serem ruins em relação aos homens. Em outras palavras, a pessoa que nasce sob Saturno poderá ser uma pessoa estúpida e descontente ou um grande contemplativo. Sob Marte, um Átila ou um mártir. E assim por diante. A culpa não é da influência, mas da natureza terrestre que a recebe. Em nosso mundo caído e corruptível, os homens, a Terra e o ar podem responder de maneira desastrosa às influências que, em si, são sempre boas. O mau paciente torna “mau” o bom agente.

O ar, que está na região sublunar, é habitado por demônios. Na Antiguidade, os demônios podiam ser bons ou maus. Na Idade Média, porém, todos os demônios são maus. De fato, Tomás de Aquino chama os demônios de “diabos”. Não por acaso, o mau tempo era freqüentemente associado com atividades de bruxaria.

Quando os homens modernos olham para o céu, sobretudo à noite, tem a sensação de que estão olhando para fora. O Modelo medieval dava aos medievais precisamente a sensação oposta, ou seja, de que estavam olhando para dentro. A Terra situa-se "do lado de fora dos muros da cidade" e, portanto, olhar para o céu significa olhar para dentro da cidade. Quando o Sol se levanta de manhã, os homens são ofuscados por sua luz e não conseguem enxergar os seres supralunares. De noite, o véu ofuscante do Sol é retirado, e podemos vislumbrar um pouco das pompas e alegrias que ocorrem na parte de dentro dos muros da cidade. Os seres que habitam aquelas esferas exercem suas faculdades de maneira desimpedida, como alguém que se deleita ao beber, mas sem nunca matar sua sede. A cada momento, as Hierarquias e Inteligências aperfeiçoam-se na medida que suas naturezas lhes permitem, mas jamais atingem a perfeição que pertence somente a Ele.

Os Longevos

Os longaevi são criaturas marginais e fugidias. O habitat deles é ambíguo entre o ar e a Terra. Eles são os pans, faunos, sátiros, silvanos, ninfas, elfos etc. Lewis tomou emprestado o nome longaevi de Martinus Capella, pois vivem muito mais do que os homens, embora não sejam imortais. Eles são inocentes, de "conversação irrepreensível", e seus corpos apresentam pureza elemental.

A partir do século XVI e XVII, os longevos começaram a ganhar ares de seres malignos, que deveriam ser evitados. Acredita-se que esse fenômeno ocorreu porque se inaugurou, por esta época, uma temporada de caça às bruxas, a qual acabou caçando os longevos por extensão. No entanto, mesmo hoje em dia, Lewis acredita que as pessoas não sintam repulsa quando imaginam encontrar um tritão ou uma ninfa, o que ocorre quando imaginam bruxas ou “espíritos”.

Os elfos são menores do que os homens, embora a literatura não especifique exatamente o quão menores seriam. Lembre-se que a imaginação visual dos medievais não se ocupava das dimensões físicas. Na literatura medieval, os homens não fogem dos elfos, mas os elfos fogem dos homens assim que percebem que estão sendo observados. Observar os elfos era um prazer, pois eles são seres alegres e satisfeitos, já que não sofrem os pesares da laboriosa vida humana.

As donzelas ou fadas são encontradas na floresta. No entanto, o encontro nunca é acidental. São elas que procuram os homens, e suas intenções são quase sempre amorosas. Em geral, seu tamanho é semelhante ao dos seres humanos.

Há ainda longevos de grande esplendor, luxo e riqueza material, chamados por Lewis de High Fairies. No entanto, luxo e esplendor material, no mundo moderno, são características associadas ao dinheiro e quase sempre à feiúra. Quando um medieval observava o luxo das cortes reais e feudais e imaginava que deveria ser ainda maior entre os longevos (e maior ainda no Céu), ele não associava esse luxo ao dinheiro (muito menos à feiúra). A arquitetura, as armas, as coroas, as vestimentas, os cavalos e a música eram quase sempre belíssimos e de bom gosto. O luxo e a riqueza eram itens associados à santidade, à autoridade, ao valor, à nobreza, ou, na pior das hipóteses, ao poder. O luxo e a riqueza estão associados à graciosidade e à cortesia, algo totalmente fora de cogitação no contexto da modernidade. O esplendor era algo a ser admirado, sem denegrir o admirador. Os High Fairies são vivazes, energéticos, voluntariosos e passionais: eles não são “espíritos”, pois, como explicou William Blake, “o Espírito e a Visão não são, como supõe a filosofia moderna, uma nuvem de vapor ou um nada; eles são organizados e minuciosamente articulados em um nível superior ao que a natureza mortal e perecível é capaz de produzir”.

Lewis reuniu quatro hipóteses que explicariam o que são os longevos: (a) eles seriam uma terceira espécie racional, distinta de homens e anjos; (b) eles seriam anjos “rebaixados de posto”; (c) eles seriam mortos, ou um tipo especial de mortos; (d) eles seriam anjos caídos, ou seja, diabos.

A Terra e seus habitantes

a) A Terra

Dante ensinava que a Terra, assim como os demais planetas, também tem a sua Inteligência, a qual ele chamava de Fortuna. O papel da Fortuna é servir de guia das maravilhas mundanas, transferindo de tempos em tempos essas benesses ilusórias de uma nação para outra, sem que a sabedoria humana saiba como.

Em termos físicos, todos os autores da Alta Idade Média ensinavam que a Terra é um globo. Todos reconheciam a existência da gravitação. Além disso, os mapas medievais não são bons documentos do conhecimento geográfico da época (por exemplo, o mappemoude de Hereford, século XIII). Isso porque os cartógrafos não eram as pessoas que detinham os melhores conhecimentos geográficos, que era altamente difuso. O homem medieval era um viajante nato: reis, exércitos, prelados, diplomatas, mercadores e filósofos viajavam constantemente, e o conhecimento geográfico raramente era registrado em mapas, pois era cristalizado na forma de conhecimento tácito na memória dos capitães dos navios e caravanas. A cartografia medieval tinha uma função menos geográfica e mais artística, sendo, portanto, de caráter meramente romântico. Não tinha função prática.

Recentemente, surgiu no meio acadêmico a idéia de que os medievais tinham conhecimento da existência de ilhas no Oceano Atlântico e até mesmo do continente americano. Estes registros estariam ligados à lenda de São Brandão. Lewis acredita que, mesmo sendo verdade, tal hipótese não chegou a influenciar marcadamente a mente medieval. A única coisa que atraía os medievais no Ocidente era a perspectiva de encontrar o Catái (norte da China). Se soubessem que havia um enorme continente no meio do caminho, provavelmente desistiriam de navegar nessa direção.

b) As bestas

Assim como os mapas-múndi não são bons documentos da geografia medieval, os bestiários também não são bons documentos da zoologia medieval. A maioria das descrições ali contidas são histórias fantasiosas, escritas por pessoas que nunca viram aqueles animais.

Os medievais não foram os primeiros a acreditar nas fantasias bestiárias. Desde a Antiguidade, histórias imaginosas sobre as animais já circulavam entre os poetas e a população. Cavalos que pressentem a morte de seus mestres, unicórnios domados por virgens, baleias diabólicas, hidras fabulosas etc.; em geral, os autores medievais não faziam distinção de autoridade entre os auctores antigos, tomando tudo o que escreviam com o mesmo grau de veracidade.

No entanto, as pessoas que faziam circular os bestiários não estavam muito preocupadas com a precisão factual das descrições ali contidas. O que importava era a moralitas, isto é, o sentido moral era mais real e vivo do que a o sentido empírico.

c) A alma humana

O homem é um animal racional. Em outras palavras, ele é um ser combinado, sendo racional como os anjos e animal como as bestas.

A alma racional não é o único tipo de alma no homem. Há também a alma sensitiva e a alma vegetativa. As potências da alma vegetativa são a nutrição, o crescimento e a propagação. A alma sensitiva contém estas potências, além da sensação. A alma racional contém todas as potências vegetativas e sensitivas, além da razão. Todas estas almas são imateriais. Isso significa que a alma não é uma parte ou um elemento que possa ser fisicamente dissecado.

A doutrina da pré-existência da alma humana foi explicitamente rejeitada na era escolástica. No entanto, na Baixa Idade Média e no período seminal vigorava a idéia de que a alma humana vivia no ar antes de se encarnar na Terra. Na Renascença, a renovação do corpus platônico e do platonismo em geral restaurou a doutrina da pré-existência da alma.

d) A alma racional

A alma racional possui duas faculdades: o intellectus e a ratio. O intellectus é o que de mais próximo os homens têm em relação à intelligentia angélica. De fato, o intellectus é chamado de obumbrata intelligentia (inteligência obnubilada ou sombra de inteligência). Tomás de Aquino explica que “inteligir (intelligere) é a apreensão simples (indivisível, incombinada) de uma verdade inteligível, enquanto raciocinar (ratiocinari) é a progressão para uma verdade inteligível, a partir de um ponto previamente entendido (intellecto). A diferença entre inteligir e raciocinar é semelhante à diferença entre repouso e movimento ou entre possessão e aquisição” (Iª, LXXIX, art. 8). Em outras palavras, desfrutamos do intellectus quando “simplesmente vemos” uma verdade auto-evidente; exercemos a ratio quando provamos passo-a-passo uma verdade que não é auto-evidente. A vida cognitiva em que todas as verdades sejam “simplesmente vistas” seria a vida cognitiva de um intelligentia, de um anjo. No entanto, a vida cognitiva em que todas as verdades tenham de ser trabalhados pela ratio é uma vida cognitiva impossível, já que nenhuma verdade pode ser alcançada sem que haja uma verdade auto-evidente prévia de onde partir. A vida mental humana é constituída pelo esforço de conectar os flashes freqüentes, mas momentâneos, da intelligentia. Cabe lembrar, contudo, que a distinção entre intellectus e ratio é típica dos filósofos. A linguagem poética não fazia essa distinção. Mais tarde, sobretudo a partir do século XVIII, a palavra razão foi reduzida à mera atividade de deduzir uma proposição de outra.

Ademais, na Idade Média, reconhecer uma obrigação moral significava perceber uma verdade; em outras palavras, o julgamento moral não era algo associado a pessoas sensíveis, mas a seres intelectuais. Platão preservou a idéia socrática de que a moralidade está associada ao conhecimento: os homens maus eram maus porque não conheciam o bem. Aristóteles incrementou esta perspectiva com a noção de criação e habituação, mas também considerava a conduta moral uma questão de “razão reta” (orthos logos). Os estóicos acreditavam em uma Lei Natural, a qual todos os homens racionais, em virtude sua racionalidade, eram movidos a seguir. São Paulo, em Romanos 2:15, fala da “lei escrita em seus corações”. A palavra “corações” jamais tinha a conotação emotiva que hoje se lhe atribuem. Em latim, por exemplo, o homem cordatus não era um homem sensível, mas um homem de bom senso, o que chamaríamos hoje de “pessoa razoável”.

e) A alma sensitiva e a alma vegetativa

A alma sensitiva possui dez sentidos, divididos em cinco sentidos interiores e cinco sentidos exteriores. Os sentidos exteriores são: visão, audição, olfato, paladar e tato. Os sentidos interiores são: memória, estimativa, imaginação, fantasia e sentido comum. 

Não é necessário versarmos sobre a memória.

A estimativa é aproximadamente o que chamamos hoje de “instinto”. A estimativa ensina a vaca a identificar seu bezerro em um rebanho, por exemplo. A estimativa detecta as intentiones das coisas.

A fantasia é superior à imaginação. O papel da imaginação é de simplesmente reter o que foi percebido pelos sentidos, enquanto o papel da fantasia é manipular o conteúdo da imaginação mediante diferenciação e integração, separação e união. Aqui cabem duas observações: (a) a imaginação medieval é diferente da imaginação moderna, que é mais parecida com a fantasia medieval; (b) as “pessoas vulgares”, segundo Alberto Magno, confundem fantasia com pensamento, pois, quando dizem que estão pensando, na verdade, estão apenas brincando com imagens mentais.

O sentido comum não deve ser confundido com o “bom-senso” da língua portuguesa (racionalidade elementar) nem com o common sense da língua inglesa (opinião comum). Alberto Magno explica que o sentido comum apresenta duas funções: (a) julgar a operação de um sentido, de maneira que, quando vemos, sabemos que estamos vendo; (b) reunir os dados provenientes dos sentidos exteriores, de maneira que saibamos que a laranja é doce ou que esta laranja é mais doce do que aquela. Em suma, o sentido comum transforma a mera sensação em uma consciência coerente, ou seja, consciência da pessoa enquanto sujeito em um mundo de objetos.

A alma vegetativa não requer maiores explicações. Ela é responsável pelos processos inconscientes do organismo, como crescimento, secreção, nutrição e reprodução. Evidentemente, a alimentação e o ato sexual são ações conscientes, mas os processos involuntários despertados por estes atos pertencem à alma vegetativa.

f) Os espíritos

A atuação da alma no corpo pede, pelo Princípio da Tríade, um intermediário. Este tertium quid eram chamados de espíritos. Os espíritos apresentam uma característica dúbia: não são sutis o bastante para serem alma, nem materiais o bastante para serem matéria.

Os espíritos exalam do sangue, e fervem no fígado, surgindo daí uma "fumaça" pura. Esta fumaça é chamada de espírito natural. Ela é ainda mais purificada, tornando-se o espírito vital, operando os "pulsos da vida" nas artérias. Parte do espírito vital sobe para o cérebro, tornando-se ainda mais sutil e transformando-se no espírito animal. Parte deste espírito animal é distribuído pelos "limbos dos sentimentos" (os órgãos dos sentidos); parte permanece nas "covas" do cérebro, servindo de veículo para os sentidos interiores; ainda outra parte desce da parte traseira do crânio para a medula espinhal, sendo responsável pelos movimentos voluntários. O espírito animal é o órgão imediato da alma racional, e somente através desse órgão que a alma racional age quando se encarna. Os espíritos natural, vital e animal são às vezes chamados, respectivamente, de espíritos vital, animal e intelectual, mas mantêm exatamente as mesmas funções.

Os medievais nem sempre culpavam a alma racional pela insanidade, uma vez que o distúrbio poderia estar nos espíritos, deixando o corpo material fora de controle.

Se os espíritos estão situados em locais específicos do corpo, também é razoável supor que as funções da alma situem-se em locais específicos. A fantasia estaria na parte da frente da cabeça, a razão no meio e a memória na parte de trás.

g) O corpo

O leitor deve se lembrar dos quatro contrários e dos quatro elementos. No corpo humano, no entanto, os contrários produzem quatro humores: sangue (quente + úmido), cólera (quente + seco), fleuma (frio + úmido) e melancolia (frio + seco).

A proporção na qual estes humores encontram-se misturados formam seu complexio ou temperamentum. Embora as misturas nunca sejam iguais nas pessoas, é possível dizer que há sempre um humor que predomina em seu temperamento.

· O sangue é o humor predominante no temperamento sanguíneo. É o melhor dos quatro temperamentos, pois o sangue é "amigo da natureza". O homem sanguíneo é roliço, divertido e esperançoso. Um manuscrito do século XV ilustra o temperamento sanguíneo com um homem e uma mulher esplendidamente vestidos, tocando instrumentos de cordas em um campo florido.

· A cólera é o humor predominante no temperamento colérico. O homem colérico é alto e magro. Como o sanguíneo, o homem colérico fica bravo com facilidade, mas com a diferença que o colérico é vingativo. O manuscrito citado ilustra o temperamento colérico com um homem segurando uma mulher pelos cabelos e batendo-na com uma clava.

· A melancolia é o humor predominante no temperamento melancólico. Magro, dorme mal. Apega-se às suas opiniões e apresenta uma raiva prolongada e corrosiva. É o homem que hoje chamaríamos de neurótico, mas não o "melancólico" contemporâneo, que é triste, reflexivo, introvertido.

· A fleuma é o humor predominante no temperamento fleumático. É o pior dos quatro temperamentos. Gordo, branquelo, dorme excessivamente, sonha com coisas aquáticas ou peixes, lerdo, aprende com muita dificuldade, covarde.

Vale lembrar que determinados períodos do dia são preponderantes para temperamentos específicos: da meia-noite às 6h (sangue), das 6h ao meio-dia (cólera), do meio-dia às 18h (melancolia) e das 18h à meia-noite (fleuma).

h) A história

A historiografia medieval possui três funções primordiais: entreter a imaginação, gratificar a curiosidade e pagar a dívida que temos para com nossos antepassados. Em linhas gerais, a distinção moderna entre história e ficção não pode ser aplicada com precisão aos livros medievais nem ao espírito com que eram lidos. Os contemporâneos de Chaucer não acreditavam nos contos de Tróia ou Tebas da mesma maneira que acreditamos nas Guerras Napoleônicas, mas também não desacreditavam nelas como desacreditamos um romance.

O objetivo precípuo do leitor medieval não era aprender fatos, mas aprender a estória. Assim como em outros aspectos, a história medieval possui um objetivo mais elevado e importante do que contar fatos. A construção do caráter, a ênfase nas virtudes, na dignidade, na honra, tudo isso vale muito mais do que acumular fatos. Raramente o historiador medieval se ocupava de dados econômicos e sociais. As crônicas eram individuais, pessoais, concentravam-se no valor ou na vilania dos personagens, nos dizeres memoráveis, na boa ou má sorte.

Todavia, quem defende a história moderna não deve esquecer que ela também é seletiva, pois depende das inclinações imaginativas do historiador. Quem pensa que a história moderna é isenta, pura e perfeitamente objetiva engana-se terrivelmente.

Por fim, cabe lembrar que a linha de desenvolvimento da historiografia medieval é inversa à historiografia moderna: as eras passadas eram melhores do que a contemporânea, não havia “progresso”, a humanidade caminhava para períodos cada vez piores.

i) As artes liberais

As sete artes liberais atingiram um status de quase imutabilidade.

Eis o famoso mnemônico das artes liberais:

Gram loquitur, Dia verba docet, Rhet verba colorat, Mus canit, Ar numerat, Geo ponderat, Ast colit astra

A gramática é a arte da fala. Em outras palavras, ensinar gramática era ensinar latim.

A dialética "ensina palavras", ou seja, uma vez que a gramática ensinou a falar, a dialética ensinará a argumentar, a provar e a refutar.

A retórica era uma ferramenta indispensável nos tempos medievais, pois a oratória era uma necessidade para qualquer atividade pública ou atividade privada que envolvesse litígios. Geoffrey de Vinsauf escreveu a Nova Poetria (aprox. 1200), na qual ensinava a arte da amplificatio, ou seja, de como "amplificar" sua obra, como dizer muito quando se tem pouco a dizer. Esta arte consistia de três tipos de morae (prolongamentos): (a) Expolitio. Dizer a mesma coisa de maneiras diferentes. (b) Circumlocutio. Esticar uma obra chamando as coisas por outros nomes. (c) Diversia. Digressão. (d) Apostropha. (e) Descriptio. (f) Ornatus. Trocar as palavras de lugar na frase, pois o latim é uma língua que permite este tipo de recurso quase ao infinito.