24 de novembro de 2008

O sentido do Natal

No dia 23 de dezembro de 2001, o jornal grego Eleftherotypia publicou um curto e complexo artigo do Metropolita Hierotheos de Nafpaktos sobre o sentido do Natal [1]. A correria para comprar presentes e enfeitar as casas oculta uma situação trágica: o produto de uma visão de mundo religiosa.

Para muitos isso representa uma surpresa. Afinal, não é bom que as pessoas tenham uma visão de mundo religiosa? Não.

Religião, conforme explica o Metropolita Hierotheos e o Pe. João Romanides neste e em outros artigos, é uma maneira mágica de se relacionar com Deus, cuja origem está na disposição decaída humana em formular doutrinas metafísicas que expliquem o Incriado, isto é, Deus. A metafísica tem por característica essencial a tentativa de demonstrar, de maneira lógica e racional, como os elementos que compõem a Divindade se relacionam entre si e com o mundo. Por conseguinte, a metafísica frequentemente implica em uma correspondente visão cosmológica. O cosmo, isto é, o mundo criado, passa então a ter uma relação perfeitamente direta e lógica com o Incriado, e é a partir daí que surgem as diversas práticas religiosas. A religião, portanto, tenderá a reintegrar o homem ao mundo das idéias, diluindo-o novamente no Ser Supremo, por meio de ritos e práticas.

A vinda de Jesus Cristo acabou com a religião. Não apenas com as religiões em geral, mas com a religião enquanto tal. A Igreja Ortodoxa, fundada por Cristo no dia de Pentecostes, não é uma religião. Na verdade, rotular a Ortodoxia de "religião" seria não apenas errado mas ofensivo. Nossa tradição não é exterior, aparente, ritualística, mas interior, néptica, hesicasta. Não somos indivíduos buscando nos conformar da melhor maneira, cosmológica e metafisicamente falando, a Deus, mas somos uma comunidade -- uma Igreja -- buscando internamente a união com as energias divinas.

[Foto: Um dos encontros do Metropolita Hierotheos com o Ancião Sofrônio (Sakharov)].

* * *

A festa do Natal de Cristo não pode ficar confinada somente a circunstâncias meramente sentimentais, ou seja, a enfeites, a interpretações intelectuais e racionalistas, a esquemas moralistas. A festa tem um sentido muito mais profundo e existencial. Se permanecermos no nível meramente exterior, então estaremos infligindo fome e sede a nós mesmos, privando-nos do sentido da vida e da liberdade existencial.

A Encarnação de Cristo era considerada e celebrada pelos Padres da Igreja e pela comunidade eclesiástica em geral como sendo a abolição da religião e a sua transformação em uma Igreja. De fato, o memorável Pe. João Romanides dizia, de maneira categórica, que Cristo se fez homem para nos libertar da doença da religião.

A palavra “religião” é mencionada nas epopéias de Homero e usada por Heródoto para expressar a adoração e a honra que uma pessoa tinha de oferecer a Deus. Etimologicamente, a palavra religião [em grego, θρησκεία] é derivada de uma palavra antiga que implica em “ascender”, ou seja, a palavra religião implica na ascese do homem a Deus. Até mesmo a palavra homem [em grego, άνθρωπος] é etimologicamente derivada da expressão “olhar para o alto”, ou seja, também implica em ascese.

No entanto, à primeira vista, parece que uma ascese pressuporia a aceitação da essência da metafísica, de acordo com a qual a alma de uma pessoa decaiu do impessoal e imortal mundo das idéias e está enclausurada num corpo, tendo de se livrar desse corpo-signo-túmulo e retornar ao mundo das idéias. Até mesmo a palavra latina religio – da qual se deriva a palavra religião – significa, de acordo com os dicionários, a união-junção-unidade do homem com Deus; ela também denota o mesmo fato, ou seja, a essência e o conteúdo da metafísica. De fato, ela também pressupõe – a exemplo das religiões orientais – uma expressão impessoal, anônima, da humanidade, dado que o homem tende a desaparecer como uma gota d´água no oceano do Ser Supremo e, por conseguinte, a eliminar a persona.

Conforme ensinava o Pe. João Romanides, o termo “religião” implica na relação do Incriado com o criado e, por conseguinte, na relação das representações do Incriado com noções e palavras do pensamento humano, sendo que tais relações são, é claro, o fundamento da religião e da adoração de ídolos. Portanto, neste caso, a face de Deus se perde, assim como a face da pessoa; o homem cai gravemente doente, dado que sua imaginação e seus vícios são cultivados ainda mais e, mais do que isso, podemos dizer que os chamados vícios naturalmente irrepreensíveis (fome, sede etc.) tornam-se vícios repreensíveis; causas de anomalias sociais por causa de ambições ilimitadas, ânsias injustas por bens e depravações sem-fim.

É famosa aquela frase de Feuerbach – repetida por Marx – de que “a religião é o ópio do povo”. Esse ponto de vista é aceitável – conforme verificamos no Oriente e nas visões religionizadas do Cristianismo Ocidental –, pois a religião estupidifica povos, mortifica sociedades e leva-as a tamanha inatividade que acaba tornando-as material de exploração para a instituição de tiranias que desprovêem a humanidade de seu direito inalienável à liberdade.

Eu gostaria de citar dois exemplos característicos das expressões religiosas.

O primeiro exemplo é o da religião budista. Sabemos que, de acordo com o budismo, o que tormenta a humanidade é o problema da dor, que se origina do desejo de viver. Daí, o objetivo final dos “iluminados” é sufocar essa paixão pela vida. A mortificação do desejo de viver é alcançada por um método especial chamado Yoga, que possui diversas variações, tais como o Hatha Yoga (união com o Brahma por meio de exercícios físicos), Karma Yoga (união com o Brahma por meio de feitos e rituais), Mantra Yoga (união com o Brahma por meio de cânticos e sílabas mágicas), Bhakti Yoga (união com o Brahma por meio da adoração absoluta de uma divindade ou do próprio guru), Jnana Yoga (união com o Brahma por meio do conhecimento místico), Kundalini Yoga (união com o Brahma por meio de atividades demoníacas), Tantra Yoga (união com o Brahma por meio de atos sexuais licenciosos). Através destes métodos, o homem supostamente alcança o Nirvana absoluto, o qual é a extinção de sua existência e seu desembaraço do desejo de viver, e cujo propósito último é evitar o Samsara – a reciclagem da vida, isto é, a reencarnação. Assim, o Atman pessoal é unido ao Brahma geral, assim como uma gota que adentra o oceano.

É óbvio que numa vida religiosa dessas não há personalidade; o homem é uma mera unidade, assim como não há sociedade; nenhuma vida social é encorajada, uma vez que esta vida é considerada um início de sofrimento.

O segundo exemplo origina-se das teorias de Anselmo de Canterbury, o teólogo escolástico que fundou o sistema cristão que prevaleceu no Ocidente e que tinha em mente o sistema feudal de organização social. Ocorre que o senhor feudal detinha honra e valor absolutos que não podiam ser violados, pois toda violação e todo distúrbio do sistema feudal – tido como obra de Deus – implicava na punição do infrator. Por conseguinte, dado que Deus é a forma suprema de justiça, que Ele possui honra e que instituiu a ordem na criação, então o infrator ou deve satisfazer o senso de justiça de Deus ou deve ser punido. Assim, Anselmo interpretou o sacrifício de Cristo na Cruz não como uma expressão de amor pela humanidade, mas como a expiação da justiça por Deus Pai. Esse sistema, aliado ao destino absoluto, engendrou enormes problemas no mundo ocidental – problemas pessoais e sociais, conforme analisados por Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

Estes dois exemplos, um do Oriente e outro do Ocidente, indicam de onde Feuerbach formulou seu slogan “a religião é o ópio do povo”. Naturalmente, nós, ortodoxos, também cremos que se dermos à religião este tipo de definição, isto é, uma definição metafísica, então fatalmente ela se tornará o ópio do povo, pois destruirá toda vida pessoal, eliminará a liberdade pessoal, e desintegrará a vida social, transformando o homem de pessoa em unidade.

Porém, o Cristianismo surgiu na história da humanidade para acabar com a religião, e para instituir a Igreja. A palavra “Igreja” é um antigo termo grego que insinua uma comunidade, uma congregação populacional – uma municipalidade – que resolve seus próprios problemas. Naturalmente, com o termo “Igreja” não implicamos algo somente exterior; implica a comunhão pessoal da humanidade com Deus e seus concidadãos, conforme verificado nos profetas do Velho Testamento, nos apóstolos do Novo Testamento, nos Atos dos Apóstolos, onde todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum; e vendiam suas propriedades e bens, e repartiam com todos, segundo cada um havia de mister (Atos 2:44-45). Observamos esse fato nas comunas de monges, nos ensinamentos dos principais Padres da Igreja, e alcança até nosso tempo, conforme verificamos nas comunidades eclesiásticas narradas por Papadiamantis e nas memórias de Makriyannis. E sabemos muito bem, a partir de vários estudos, que tanto Papadiamantis quanto Makriyannis não eram pessoas religiosas, mas eclesiásticas, e não se inspiraram no puritanismo ocidental, mas na tradição hesicástico-néptica ortodoxa.

O maior problema dos cristãos ocidentais – e de muitos ortodoxos –, de acordo com Christos Yannaras, é a religionização do Cristianismo, transformando-o de Igreja em religião. Dessa maneira, eles cultivaram fundamentalismos, ódios, divisões, uma relação mágica com Deus, uma disposição competitiva entre si, uma visão autocentrada da vida, uma percepção utilitária e egoísta da sociedade, uma interpretação imaginária de tudo, uma abordagem sentimental da vida e, de maneira geral, a percepção de que os outros consistem – e são – uma ameaça à nossa existência.

Assim sendo, dadas estas circunstâncias, as belas árvores de Natal, as melodias sentimentais, as análises moralistas: tudo isso oculta criminosamente uma nudez existencial, transformando o homem num ser trágico.

Se os intelectuais contemporâneos investigassem o sentido do Natal de Cristo, concluiriam que, com Sua Natividade, Cristo aboliu a doença da religião e transformou-a em uma Igreja viva – com todos os sentidos autênticos que aí se consolidam. Tal é a carência do homem contemporâneo, que sofre da trindade trágica de Victor Frankl, a saber: sofrimento, culpa e morte, na medida em que percebe sua vida como sendo uma experiência pré-morte, uma morte existencial e eterna, e não apenas busca a experiência do prazer, mas, quiçá, através do prazer, busca a sobrevivência da existência.

Nota:

[1] O título original, em português, seria "A doença da religião". No entanto, a título de objetividade, decidi alterá-lo para "O sentido do Natal". Ademais, já há um ensaio do Pe. João Romanides cujo título é semelhante.

21 de novembro de 2008

Santo Agostinho e a Igreja Ortodoxa

Em 1978, o Pe. Serafim Rose, de abençoada memória, publicou em duas edições da revista The Orthodox Word um estudo sobre o Bispo Agostinho de Hipona (+430) e a maneira como os cristãos ortodoxos deveriam encará-lo e venerá-lo.

[Foto: Detalhe do ícone em mosaico bizantino de Santo Agostinho, em um dos absides da Catedral de Cefalù, Itália, século XII. Ele é comemorado nos dias 15/28 de junho e 28 de agosto/10 de setembro, data de seu repouso.]

Ocorre que Agostinho escreveu e defendeu algumas doutrinas que são consideradas errôneas do ponto de vista cristão ortodoxo. Não há teólogos ortodoxos consagrados que neguem este fato. Desde contemporâneos de Agostinho, como São João Cassiano e São Vicente de Lérins, até os mais recentes, como o Arcebispo Filareto de Chernigov e o próprio Pe. Serafim Rose, todos reconhecem que Agostinho, no mínimo, exagerou ou expressou-se mal em alguns pontos cruciais de sua vasta obra.

No entanto, motivada pela renovação patrística que se iniciou na segunda metade do século XX, uma postura outrora estranha à devoção ortodoxa despontou na mente daqueles que, por zelo excessivo pela doutrina da Igreja ou amor próprio exacerbado, tomaram para si a tarefa de resgatar e restaurar a filosofia e o ensinamento dos Santos Padres da Igreja Ortodoxa. Este zelo excessivo engendrou uma prática de caça às bruxas cujas vítimas contam-se, além dos conhecidos hereges e apóstatas da Igreja, alguns santos e veneráveis hierarcas ortodoxos que, a despeito de seus erros, triunfaram por seu amor a Cristo e pelo arrependimento sincero e verdadeiro que demonstraram.

O mais famoso destes perseguidos cristãos ortodoxos é, sem sombra de dúvida, Santo Agostinho. E foi para defendê-lo de semelhantes ataques que o Pe. Serafim Rose reuniu seus estudos em um livro, expandindo-o com notas e introduções, e publicando-o com o nome de The Place of Blessed Augustine in the Orthodox Church [O Lugar do Abençoado Agostinho na Igreja Ortodoxa]. Nele, o Pe. Serafim explica por que Agostinho pode e deve ser considerado um modelo de santidade para nós, mesmo que não possa ser considerado uma grande autoridade em questões espirituais e teológicas. A visão ortodoxa sobre o Abençoado Agostinho, tanto dos Santos Padres do Oriente quanto do Ocidente, não pende para nenhum dos extremos, isto é, os ortodoxos reconhecem sua inquestionável grandeza assim como suas inquestionáveis falhas.

Os erros de Santo Agostinho

Não restam dúvidas de que a controvérsia mais famosa em torno de Agostinho é a questão da graça e do livre arbítrio. O excesso de lógica por parte de Agostinho (o que o Pe. Serafim chamava de over-logicalness), um traço característico da mentalidade e da cultura latina a qual pertencia, levou-o a distorcer a doutrina da graça. Conhecemos bem os pontos de discórdia entre o Abençoado Agostinho e São João Cassiano, que expôs, pela primeira vez em latim, a autêntica doutrina oriental da vida monástica e espiritual. Mas o que não conhecemos tão bem são os pontos de concórdia entre eles. Influenciados pela contenda em si, não somos informados que Cassiano e Agostinho discordavam como dois Padres da Igreja, ou seja, nenhum deles julgava o outro um herege. Ambos procuravam ensinar a doutrina ortodoxa da graça e do livre arbítrio contra a heresia de Pelágio. No entanto, no calor da contenda contra o pelagianismo, Agostinho cometeu seu erro fundamental, que foi o de superestimar o papel da graça e subestimar o papel do livre arbítrio. Embora Agostinho jamais tivesse negado o livre arbítrio (ele censurava quem o fizesse), seu tratado Da repreensão e graça apresenta uma exposição exagerada em favor da graça, praticamente neutralizando o livre arbítrio [1]. A posição de São João Cassiano, apresentada em suas Conferências, é muito mais ponderada, equilibrada, quando afirma que a graça coopera com o homem que se esforça na vida cristã [2]. Esta doutrina mais tarde ganharia o nome de sinergia, isto é, a cooperação da graça divina com a liberdade humana. Para a mentalidade monástica de São João Cassiano, não há qualquer contradição entre graça e liberdade, pois tal contradição só surgiria quando a lógica humana trabalhasse de maneira abstrata e divorciada da vida.

Ligada ao erro da graça divina está a idéia da predestinação. No entanto, cabe lembrar que Agostinho jamais ensinou a doutrina calvinista da predestinação, como muitas pessoas pensam. O que Agostinho fez foi ensinar a doutrina ortodoxa da predestinação, mas de maneira exagerada. A doutrina ortodoxa encontra-se neste trecho bíblico: Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho...e aos que predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes também justificou; e aos que justificou a estes também glorificou (Romanos 8:29-30). O erro de Agostinho foi aplicar sua over-logicalness a fim de superar as dificuldades do mistério da predestinação. Afinal, se somos predestinados, precisamos nos esforçar para alcançar a salvação? Se não somos predestinados, podemos desistir de nos esforçar, já que não ajudaria em nada mesmo? São João Crisóstomo explica este trecho: “O Apóstolo refere-se ao conhecimento anterior a fim de que nem tudo seja explicado pelo chamado... Pois se apenas o chamado fosse suficiente, então por que nem todos foram salvos? Portanto, ele afirma que a salvação dos chamados não se cumpre somente pelo chamado em si, mas também pelo conhecimento anterior, sendo que o chamado não é compulsório nem forçoso. Por conseguinte, todos foram chamados, mas nem todos obedeceram” (Homilia XV sobre Romanos). No entanto, uma das exegeses mais graves do Abençoado Agostinho foi em relação a I Timóteo 2:4 (Deus quer que todos se salvem, e venham ao conhecimento da verdade). Agostinho ensinava que Deus não quer literalmente que todos se salvem, pois se Ele predestina somente alguns para serem salvos, então Ele não poderia querer que todos se salvem. Portanto, Agostinho explicitamente defendeu a idéia de que Deus não quer que todos se salvem, o que é, sem dúvida, uma distorção grave da doutrina ortodoxa. No entanto, o Pe. Serafim Rose é claro ao afirmar que não foram propriamente as doutrinas erradas do Abençoado Agostinho que engendraram os posteriores predestinacionismos extremistas do Ocidente, mas a mentalidade super-lógica que sempre grassou entre os povos ocidentais. Tivesse Agostinho ensinado suas doutrinas no Oriente, provavelmente os predestinacionismos extremistas não teriam se desenvolvido, mas Agostinho continuaria sendo visto da maneira como sempre foi, ou seja, como um venerável Padre da Igreja que, em função de seus erros, situa-se abaixo dos grandes Padres do Oriente e Ocidente.

Santo Agostinho ao longo dos anos

Na Gália do século V, a doutrina do Abençoado Agostinho continuou a produzir controvérsias, mas apenas moderadamente. Por exemplo, Próspero de Aquitânia, o principal discípulo de Agostinho, admitiu, alguns anos após a morte de seu mestre, que Agostinho de fato havia se pronunciado muito rudemente (durius) quando defendera a idéia de que Deus não desejava que todos se salvassem (Respostas aos Capitula Gallorum, VIII). Em sua obra póstuma O Chamado de Todas as Nações (De vacatione omnium gentium), Próspero revela que a doutrina de Agostinho abrandou-se consideravelmente antes mesmo de sua morte. Nesta obra, Próspero esclarece que a graça não compele o homem, mas age em harmonia com o livre arbítrio humano.

[Foto: O mais antigo ícone de Santo Agostinho, do século VI, na Biblioteca da Igreja de São João Laterano, Roma.]

No século VI, a controvérsia agostiniana havia cessado, e a imagem de Agostinho permaneceu a mesma de sempre: a de um Padre da Igreja. Uma das maneiras mais claras de apurarmos esse dado é quando, no 5º Concílio Ecumênico, seu preâmbulo lista Agostinho como Santo Padre ao lado de santos como Atanásio, Basílio, Gregório, Cirilo, Proclo e Leão. O Papa de Roma, Vigilius, embora estivesse presente em Constantinopla, recusou-se a participar do Concílio. Meses mais tarde, aceitando a autoridade do Concílio, retratou-se de seu erro citando como exemplo as próprias retratações de Agostinho em relação a suas obras. É evidente, portanto, que no século VI Agostinho era reconhecido como Padre da Igreja.

No entanto, foi somente no século IX que o Abençoado Agostinho tornou-se controverso no Oriente, em função da contenda sobre o Filioque (a doutrina segundo a qual o Espírito Santo procede do Pai “e do Filho”, e não somente do Pai, conforme sempre ensinado no Oriente). Pela primeira vez, um Padre da Igreja grego (São Fócio, o Grande) examinou minuciosamente uma parte da teologia de Agostinho. Anteriormente, somente Padres ocidentais, embora sempre no espírito ortodoxo, haviam feito isso, e sempre em latim. Em sua Carta ao Patriarca de Aquiléia, que era um dos principais apologistas do Filioque no reino de Carlos Magno, São Fócio responde algumas objeções, das quais a principal seria de que “os grandes Ambrósio, Agostinho, Jerônimo e outros escreveram que o Espírito Santo procede também do Filho”. São Fócio respondeu: “Se dez ou mesmo vinte Padres disseram isso, 600 e muitos mais não disseram. Quem ofende aos Padres? Não seriam aqueles que, reunindo toda a piedade destes poucos Padres em umas poucas palavras, os colocam contra os concílios? Ou seriam aqueles que, em sua defesa, escolhem os demais Padres?” São Fócio continua: “Não ensinaram eles em condições complicadas, o que acarretou muitos Padres a, em parte, expressarem-se imprecisamente, em parte adaptarem-se às circunstâncias vigentes, contra ataques de inimigos, e às vezes por ignorância, a qual também estavam sujeitos?... Se alguns falaram com imprecisão, ou por alguma razão desconhecida desviaram-se do caminho certo, nós os admitimos na lista dos Padres como se não o tivessem dito, por causa de sua retidão de vida e virtude ímpar e fé, embora falhos nos demais aspectos. Nós, no entanto, não seguimos seus ensinamentos naquilo em que se desviaram da verdade... Nós não adotamos as doutrinas em cujas áreas sabemos que erraram, mas mesmo assim os abraçamos enquanto homens. Portanto, no caso daqueles que ensinaram que o Espírito procede do Filho, não admitimos que se oponham à palavra do Senhor, mas também não os lançamos fora da categoria de Padres”. O Pe. Serafim explica que se Agostinho tivesse conhecido a doutrina da Santíssima Trindade, ele não teria ensinado que o Espírito procede “do Filho”; Agostinho abordou a questão de um ponto de vista “psicológico”, inadequado à abordagem oriental nas questões sobre o conhecimento de Deus. No entanto, está claro que, mesmo num grau inferior e mesmo sob escrutínio oriental, Agostinho ainda assim era considerado santo e Padre da Igreja.

A questão da santidade de Agostinho

Nos primeiros séculos da Cristandade, a palavra “abençoado” era usada de maneira mais ou menos intercambiável com a palavra “santo”. Como não havia canonização formal naqueles tempos, a aclamação baseava-se em veneração popular. Por exemplo: São Martinho de Tours, um inquestionável santo e taumaturgo do século IV, era chamado por São Gregório de Tours de “abençoado” ou “beato” (beatus) e, às vezes, “santo” (sanctus); São Fausto de Lérins, no século V, referia-se a Agostinho como “beatíssimo” (beatissimus), enquanto São Gregório, o Grande, no século VI, referia-se a ele como “abençoado” ou “beato” (beatus), ou ainda “santo” (sanctus); São Fócio, no século IX, o chamava de “santo” (agios). No entanto, nos tempos de São Marcos de Éfeso, no século XV, a palavra “abençoado” começou a ser empregada para designar os Padres de menor autoridade; assim, São Marcos dizia “Abençoado Agostinho”, “Abençoado Gregório de Nyssa”, “Divino Ambrósio”, “Gregório, o Teólogo, grande entre os santos”, embora ele mesmo não tenha sido muito consistente nos critérios. Até hoje, na Rússia, a palavra blazhenny é usada para os Padres em torno dos quais houve alguma controvérsia, como Agostinho e Jerônimo, no Ocidente, e Teodoreto de Ciro, no Oriente, bem como para loucos-por-Cristo canonizados e não-canonizados e pessoas santas recentemente falecidas mas que ainda não foram canonizadas. Na Grécia, a situação é mais ou menos a mesma, embora lá seja mais comum a expressão “Santo Agostinho”. O teólogo grego Eustratius Argenti, bem como São Tikhon de Zadonsk, na Rússia, fizeram uso das obras de Santo Agostinho como se ele fosse um Padre da Igreja, embora tivessem reservado muito mais espaço para os Padres orientais. São João (Maximovitch) de Shanghai e San Francisco, ao ser designado bispo da diocese russa na França, encomendou a redação de um ofício de louvor a Agostinho.

Em suma, embora Agostinho não seja formalmente canonizado pela Igreja Ortodoxa e tenha cometido alguns deslizes e erros graves em determinados pontos de sua vasta obra, todos os ortodoxos podem e devem encará-lo como um Padre da Igreja que, embora de grau inferior a outros consagrados Padres, é um modelo de retidão, fé e virtude. Ninguém, portanto, pode ser censurado por chamar Agostinho de “Santo Agostinho”.

* * *

No dia 12 de outubro de 1975, o Pe. Serafim Rose enviou uma carta ao Pe. Igor Kapral, atual Metropolita Hilarion de Nova York e primaz da Igreja Ortodoxa Russa no Exterior, pedindo-lhe alguns conselhos sobre como lidar com os “super-ortodoxos” que insistiam em condenar Agostinho por completo. Nela, o Pe. Serafim resume sua posição a respeito do Abençoado Agostinho.

29 de setembro/12 de outubro de 1975
São Ciríaco

Caro Padre Igor,

... Agora, algo que, enfim, não é um pedido, mas uma expressão de nossa profunda preocupação com a atual missão ortodoxa. O Pe. N, em sua última edição de Witness, fez mais um ataque totalmente infundado contra o Abençoado Agostinho. Todos nós sabemos das doutrinas errôneas do Abençoado Agostinho sobre a graça – mas por que essa tentativa “fundamentalista” de destruir totalmente a imagem de alguém a quem jamais, na tradição ortodoxa, foi negado um lugar entre os Padres da Igreja? O Pe. Teodoritos, que sem dúvida expressa a opinião de outros zelotes da Grécia e da Santa Montanha, escreve-nos que sem dúvida aceitam Agostinho como santo, porque São Nicodemos da Santa Montanha aceita. Nosso Vladika João [São João de Shanghai e San Francisco] tinha um ofício composto a ele e tinha grande devoção por ele. São Nicodemos o introduziu em nosso calendário oriental (assim como o Vladika João fez com São Patrício), e nossos Padres russos do século XIX seguiram seu exemplo. O 5º Concílio Ecumênico classifica-o como autoridade teológica no mesmo nível de São Basílio, Gregório e João Crisóstomo, sem distinções. Os contemporâneos de Agostinho que dele discordavam (São Vicente de Lérins, São João Cassiano) corrigiram seus ensinamentos sem mencionar seu nome, por respeito, e muito menos o chamaram de “herege”. Outros contemporâneos seus, inclusive grandes Padres, se dirigiam a ele com enorme respeito. A tradição ortodoxa universal o aceita, sem a menor sombra de dúvida, como um Santo Padre, embora com falhas em suas doutrinas – mais ou menos como São Gregório de Nyssa, no Oriente. Por que, então, essa estranha campanha “protestante” para declarar o Abençoado Agostinho um herege, e condenar qualquer um que discorde dessa posição? Isto muito nos perturba, não tanto por causa do Abençoado Agostinho (afinal, ele era um Padre de menor peso do que os demais), mas por causa do doentio espírito “partidário” que ameaça toda a missão ortodoxa de língua inglesa. O Pe. N diz mais ou menos assim: se vocês não concordarem exatamente com o que diz o Pe. P, então vocês não são ortodoxos! Se você recomenda um catecismo do século XIX (como Vladika João sempre fazia com os convertidos), então você é um latino; se você ler Unseen Warfare [Batalha Invisível], então você está sob influência latina; se você se recusar a acreditar na evolução (!), então você está sob influência ocidental!!!

Compartilhamos nossas preocupações com o senhor porque realmente estamos sendo desmotivados por esta postura doentia, de zelo não com entendimento [Romanos 10:2]. Nós e outros tentamos nos comunicar gentilmente com o Pe. N e o Pe. P sobre estas coisas, mas a impressão é que nenhuma comunicação é possível; eles estão “certos” em todos os assuntos, eles se acham “especialistas”, e nenhuma outra opinião é possível....

Por favor, perdoe-nos por lhe incomodar com tudo isso. Nós gostaríamos muito de saber o que pensa a respeito disso tudo. Haveria alguma maneira de persuadi-los a serem menos temerários? Parece que há uma pessoa entre os “russos” que eles demonstram algum respeito – todos estariam sob “influência ocidental”. (Isso é schmemanismo!) Como fazê-los ver, antes que seja tarde demais, que todos nós devemos ser humildes e que todos nós não devemos pensar grande coisa de nossa própria “teologia”, que estamos todos nós quiçá sob “influências ocidentais” dos mais variados tipos (isso está muito claro no caso do próprio Pe. N), mas que isso não nos exclui da Ortodoxia, na medida em que estamos nos esforçando para entender a verdade.

Pedimos suas orações por nós.

Com amor em Cristo,
Serafim, monge

* * *

Notas:

[1] “Vós vos atreveríeis a dizer que quando Cristo rezou para que a fé de Pedro não falhasse, ela mesmo assim teria falhado caso Pedro assim o quisesse? Como se Pedro pudesse querer outra coisa além daquilo que Cristo quis que ele quisesse” (capítulo 17).

[2] “Ele disse: E a sua graça para comigo não foi vã, antes trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de Deus, que está comigo (I Coríntios 15:10). Quando ele diz trabalhei, ele demonstra o esforço de sua própria vontade; quando ele diz todavia não eu, mas a graça de Deus, ele aponta o valor da proteção divina; quando ele diz comigo, ele afirma que a graça coopera com ele quando não se encontra indolente e desleixado, mas trabalhando e se esforçando” (XIII, 13).

17 de novembro de 2008

Teologia "de brincadeira"

Neste artigo, o Metropolita Hierotheos de Nafpaktos versa sobre os falsos teólogos que, à exemplo das pessoas que se divertem dando conselhos sobre métodos práticos de suicídio, se divertem aconselhando seus ouvintes e leitores a cometerem suicídio espiritual. O autor lembra ainda que muitos desses teólogos fazem parte da Igreja Ortodoxa.

Ícone: Apóstolo São João, o Teólogo.

* * *

A época em que vivemos – essa época de informação e informática – produz certos eventos que despertam em nós surpresas e emoções. Observamos eventos trágicos, situações depressivas, atos desumanos, e chegamos ao ponto de dizer: “Mas vejam só o que o homem anda fazendo, ele que é a mais bela criação de Deus!”

Recentemente, os jornais publicaram uma notícia que nos entristeceu terrivelmente – não foi apenas o suicídio de um jovem, mas o meio pelo qual ele escolheu se suicidar.

“A opinião pública está chocada e tenta entender os detalhes que levaram ao fim trágico de um jovem de 18 anos em Ambelokipi, na periferia de Atenas. Ele obteve a informação de como se suicidar por meio de e-mails trocados na internet. Quando os funcionários da Secretaria de Segurança de Atenas informaram à pessoa que lhe fornecera os dados sobre o efeito letal de um determinado pesticida sobre o fim trágico do jovem rapaz, ela entrou em colapso psicológico, alegando que havia dado as instruções ‘só de brincadeira!’ ” (jornal Eleftheros Typos, edição de 21 de janeiro de 2008).

Este evento macabro expressa a frivolidade e a desumanidade das pessoas que, em nome da brincadeira ou mesmo do crime em si, fornecem informações que podem levar uma pessoa – sobretudo um jovem – ao fim, à aniquilação, à morte física e eterna, pois o suicídio é a coisa mais trágica que pode acontecer na vida de uma pessoa.

Porém, ao ler este artigo, ocorreu-me que também há por aí pessoas que, igualmente frívolas e desumanas, fornecem conselhos teológicos “só de brincadeira” e tornam-se, assim, a causa da morte espiritual de muitas pessoas e de muitos jovens. Não estou aqui me limitando à categoria das pessoas auto-entituladas “espirituais”, que escrevem, ensinam e aconselham jovens de forma imprudente; estou incluindo na categoria de “teólogos” as pessoas que estão dentro da Igreja, embora elas também preguem uma teologia “de brincadeira”.

A teologia da Igreja é uma palavra de conselho e que pertence à vida em si; ela é revelatória e terapêutica e, por isso, salvífica. Ela não é um conselho orientado a justificar ou disfarçar as paixões e fraquezas humanas. A palavra teológica versa sobre as paixões e sua terapia, e essencialmente indica o caminho para a união da pessoa com Deus. Observamos esse fato em todos os principais Padres da Igreja, sobretudo nos Padres da Philokalia, embora a maioria dos Padres da Igreja seja em essência “philokalianos”.

Por conseguinte, onde quer que haja “teólogos” em nossa época que falem e escrevam contemplativamente, psicologicamente ou façam uso de sua imaginação, ou seja, que expressem apenas uma teologia das paixões, então tal teólogo será apenas e tão-somente um teólogo “só de brincadeira”, o qual guiará o povo ao suicídio espiritual. E o que é pior: quando o perigo de suas atitudes lhes é apresentado, eles não sentem remorsos nem entram em colapso psicológico; ao invés disso, eles continuam a se regozijar e justificar “teologicamente” sua teologia “de brincadeira”, a qual leva ao suicídio espiritual.

E tal suicídio existencial constitui um crime eterno.

7 de novembro de 2008

Os graus de ateísmo

Este artigo do Metropolita Hierotheos de Nafpaktos foi publicado no livro "Quality of Life", editado pelo Mosteiro da Natividade da Mãe de Deus. A tradução foi feita a partir de uma tradução inglesa que, por sua vez, baseou-se no original grego.

O autor divide o ateísmo em três estágios ou graus, cujas características principais são: (1) anti-teísmo, (2) desespero e indiferença e (3) ocultismo. A ilustração acima pode ser ampliada clicando-se nela, e representa um "deserto escaldante", no qual o ateu ocultista perambula sem encontrar alívio para seus conflitos torturantes.

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Todo evento e toda condição espiritual possui seus estágios. O homem desenvolve-se gradualmente, em estágios, e experimenta certas situações em estágios. Da mesma maneira, conseguimos identificar graus no pecado, assim como na virtude. Por conseguinte, podemos dizer que o ateísmo também possui determinados estágios.

Quando versamos sobre ateísmo, temos de ser um pouco cautelosos, pois uma pessoa que julgamos ser atéia pode, em verdade, não ser. Ela pode viver de maneira muito diferente da que nós, ortodoxos, vivemos, mas isso não deve necessariamente ser rotulado de “ateísmo”. Há o ateísmo teórico e o ateísmo prático; na verdade, podemos dizer que há até mesmo um “ateísmo religioso”. Esta categoria pertence às pessoas que vivem no âmbito da Igreja, mas muito superficialmente, sem nunca alcançar uma consciência pessoal da graça divina – um “conhecimento” pessoal de Deus. Os fariseus, no tempo de Cristo, observavam esse tipo bizarro de ateísmo. Eles defendiam e ensinavam a Lei, embora ignorassem o Legislador; de fato, eles não apenas ignoraram como crucificaram o Legislador. Eis porque é tão difícil traçar uma linha divisória entre fé e falta de fé: é possível parecer ser fiel e, mesmo assim, terminar em completo ateísmo e agnosticismo. Por outro lado, é possível parecer ser ateu e, mesmo assim, terminar encontrando a fé perfeita.

Apesar das dificuldades inerentes ao assunto, eu gostaria de apresentar os graus de ateísmo, conforme descritos por Clemente. Ele basicamente distingue três graus de ateísmo:

“O primeiro grau é o anti-teísmo, a revolta contra Deus em nome da liberdade e da justiça. O anti-teísmo nasce da decomposição do Cristianismo, quando este cai em silêncio mortal e transforma-se em ideologia, na esperança de que o totalitarismo possa substituir o poder perdido pelo todo”. Quando a religião vigente transforma-se em ideologia, o povo se desaponta e, influenciado por outras teorias mundanas, ataca abertamente a religião recém-morta e fossilizada. As reações são violentas; eles ridicularizam tudo o que tem a ver com religião e o fazem em nome da justiça e da liberdade. Em outras palavras, eles são revolucionários e opositores por natureza.

O segundo grau segue-se ao primeiro. Após exaurirem-se em zombarias e ataques, eles chegam a uma nova condição: “O ateísmo revolucionário e militante é enfraquecido por sua própria vitória, enquanto as massas resvalam para a indiferença...ou para o escapismo, para a ‘recreação’ provida pela ‘sociedade de espetáculos’. Os mais exigentes voltam-se contra algo finito e abrem mão de todo otimismo, desenvolvendo assim diversas filosofias ilógicas e nauseabundas”. Por conseguinte, nota-se que a indiferença e o desespero são os traços característicos deste segundo grau de ateísmo. De experiência religiosa ela passa a ser uma experiência sociológica. Exausto de tantas batalhas, o homem entra em um desespero do qual absolutamente nada poderá curá-lo. Ao invés de transformar esse desespero em um desespero voltado a Deus (em outras palavras, ao invés de arrepender-se), o homem transforma esse desespero em um desespero voltado ao mundo. Ele sente-se desiludido com tudo, e busca maneiras de aliviar seu sofrimento, mas sem sucesso.

Quando se encontra plenamente desiludido, o homem entra em um terceiro estágio de ateísmo: “Em seguida, surge um terceiro tipo de ateísmo; um ateísmo que poderíamos chamar de ‘oculto’. Busca-se por antídotos, pelo ‘deserto escaldante’ da ciência e da técnica, aspira-se por dar-lhes um ar ‘esotérico’, mas sempre dentro dos limites de uma ou de outra; em outras palavras, persevera-se na negação do Deus pessoal que se fez homem. Eles descobrem, uma vez mais, os bizarros e apócrifos potenciais do homem, e os velhos simbolismos do universo”. Durante este terceiro estágio, eles buscam “espiritualidade” nas religiões orientais, na filosofia, mas também na ilusão da justiça social de pseudo-messianismos. Podemos dizer que o homem contemporâneo está possuído por esse misticismo, por esse fenômeno mórbido.

Do que dissemos até agora, podemos extrair algumas conclusões:

A primeira é que, infelizmente, tudo aquilo que se tornou obsoleto no Ocidente está agora sendo revivido na Grécia. Estamos vivenciando situações que os ocidentais vivenciaram há 50 anos. Infelizmente, é o que está acontecendo em todos os campos. O Ocidente nos influencia, mas infelizmente é o Ocidente obsoleto que nos influencia; somos influenciados pelas coisas que o Ocidente já ultrapassou. Somos receptores de modos de vida vencidos, daí observarmos em muitos campos o fenômeno do anti-teísmo – o primeiro estágio de ateísmo – o qual já foi ultrapassado pelo Ocidente, onde já começaram a abandonar o segundo estágio e estão em busca do terceiro, isto é, estão em busca da redenção e do livramento de seus problemas internos e torturantes. Estamos sempre atrasados.

A segunda é que a tradição ortodoxa contém uma espiritualidade saudável, uma espiritualidade equilibrada e viva, que podemos vivenciar e, assim, escaparmos do trote do ocultismo mórbido. Somos capazes de adquirir o “conhecimento” pessoal de Deus. Nosso Deus não é abstrato – um Deus de filósofos e contempladores – mas um Deus real; o Deus de nossos Padres. Por que deveríamos nos entregar a um misticismo impessoal, oriental, ou a feitiçarias e assemelhados, quando nossa tradição é capaz de nos dar ensinamento e vida plena, de nos conduzir à experiência do Deus pessoal?

A Igreja Ortodoxa possui uma profundidade insondável, a qual não conseguimos discernir a olho nu; podemos até considerar a Igreja como uma instituição estabelecida, mas, para além dos aspectos superficiais, há uma realidade viva. A realidade existe, encarnada, em toda persona. A busca por esta verdade – e a busca por viver esta verdade – pode ser desviada do seu curso normal e acabar em ateísmo que, por sua vez, sugará nossa vida e toda nossa existência.