As Escrituras não se dão ao menor trabalho de expor a
doutrina da Impassibilidade Divina. Pelo contrário, somos constantemente
levados a despertar a ira ou a piedade divina. Até mesmo “enlutado” deixamos
Deus. Sim, eu sei que essa linguagem é analógica. Mas quando dissemos essas
coisas não devemos achar que, no fundo, deveríamos jogar fora as analogias e
manter apenas a verdade pura e literal. O máximo que conseguiremos é substituir
as expressões analógicas por algumas abstrações teológicas. E o valor das
abstrações é quase sempre negativo. Elas evitam que façamos extrapolações
vulgares e tiremos conclusões absurdas das expressões analógicas. Por si só, a
abstração “impassível” não nos leva a lugar nenhum. Na verdade, ela pode
sugerir algo muito mais enganoso do que a mais ingênua das expressões de um
Jeová emotivo e irado do Velho Testamento poderia sugerir. Ou sugere algo
inerte, ou algo do tipo “Ato Puro” no sentido de que não se importa ou não toma
ciência dos eventos do universo que criou.
Sugiro aqui duas regras exegéticas: (1) nunca interprete as
expressões literalmente; (2) quando o propósito das expressões – o que elas
comunicam a nossos medos, esperanças, vontades e afeições – estiver em conflito
com as abstrações teológicas, confie sempre nas expressões, nunca nas
abstrações. O pensamento abstrato nada mais é do que um tecido de analogias:
uma contínua modelagem de realidades espirituais em termos legais, químicos ou
mecânicos. Ora, seriam essas abstrações mais adequadas do que as expressões sensuais,
orgânicas e pessoais das Escrituras – luz e trevas, rio e poço, semente e
colheita, mestre e escravo, galinha e pintinhos, pai e filho? As pegadas do
divino são mais visíveis nesse solo rico do que em rochas ou entulhos. É por isso que a chamada
“desmistificação” do Cristianismo é, na verdade, uma “remistificação” do
Cristianismo – só que substituindo uma mitologia rica por outra mais pobre. As
abstrações teológicas parecem menos ingênuas e antropomórficas do que as expressões
das Escrituras. Na verdade, a única diferença é que nas abstrações o
antropomorfismo está mais bem escondido e é de tipo muito mais danoso.
Fonte: C. S. Lewis, Letters to Malcolm, Harcourt, Inc., 1963, Orlando, EUA.