13 de janeiro de 2014

Analogias bíblicas vs. abstrações teológicas


As Escrituras não se dão ao menor trabalho de expor a doutrina da Impassibilidade Divina. Pelo contrário, somos constantemente levados a despertar a ira ou a piedade divina. Até mesmo “enlutado” deixamos Deus. Sim, eu sei que essa linguagem é analógica. Mas quando dissemos essas coisas não devemos achar que, no fundo, deveríamos jogar fora as analogias e manter apenas a verdade pura e literal. O máximo que conseguiremos é substituir as expressões analógicas por algumas abstrações teológicas. E o valor das abstrações é quase sempre negativo. Elas evitam que façamos extrapolações vulgares e tiremos conclusões absurdas das expressões analógicas. Por si só, a abstração “impassível” não nos leva a lugar nenhum. Na verdade, ela pode sugerir algo muito mais enganoso do que a mais ingênua das expressões de um Jeová emotivo e irado do Velho Testamento poderia sugerir. Ou sugere algo inerte, ou algo do tipo “Ato Puro” no sentido de que não se importa ou não toma ciência dos eventos do universo que criou. 

Sugiro aqui duas regras exegéticas: (1) nunca interprete as expressões literalmente; (2) quando o propósito das expressões – o que elas comunicam a nossos medos, esperanças, vontades e afeições – estiver em conflito com as abstrações teológicas, confie sempre nas expressões, nunca nas abstrações. O pensamento abstrato nada mais é do que um tecido de analogias: uma contínua modelagem de realidades espirituais em termos legais, químicos ou mecânicos. Ora, seriam essas abstrações mais adequadas do que as expressões sensuais, orgânicas e pessoais das Escrituras – luz e trevas, rio e poço, semente e colheita, mestre e escravo, galinha e pintinhos, pai e filho? As pegadas do divino são mais visíveis nesse solo rico do que em rochas ou entulhos. É por isso que a chamada “desmistificação” do Cristianismo é, na verdade, uma “remistificação” do Cristianismo – só que substituindo uma mitologia rica por outra mais pobre. As abstrações teológicas parecem menos ingênuas e antropomórficas do que as expressões das Escrituras. Na verdade, a única diferença é que nas abstrações o antropomorfismo está mais bem escondido e é de tipo muito mais danoso.

Fonte: C. S. Lewis, Letters to Malcolm, Harcourt, Inc., 1963, Orlando, EUA.