Pe. George Metallinos
A. Problema ou pseudo-problema?
A antítese e conseqüente colisão entre fé e ciência é um problema para o pensamento ocidental (franco-latino) e um pseudo-problema para a tradição patrística ortodoxa oriental. Chegamos a tal conclusão a partir dos dados históricos destas duas regiões.
O suposto dilema entre fé e ciência surgiu na Europa Ocidental durante o século XVII, juntamente com o desenvolvimento das ciências positivas. À época, surgiram também as primeiras declarações ortodoxas sobre esta questão. É digno de nota que tais fatos aconteceram no Ocidente sem a presença da Ortodoxia. Nos últimos séculos, a diferenciação e alienação espirituais entre o Ocidente [racional] e o Oriente Ortodoxo têm sido cada vez maiores. Tal fato explica-se pela “desortodoxização” e “deseclesiasticação” do mundo europeu ocidental e pela “filosofização” e “legalização” da fé, cuja estrutura final acabou tornando-se uma religião. Assim, tal religião seria supostamente a refutação à Ortodoxia e, de acordo com o Pe. João Romanides, a doença do gênero humano. Portanto, a Ortodoxia continua historicamente a não participar na composição da atual civilização européia ocidental, que, além disso, também difere em tamanho da civilização do Oriente Ortodoxo.
Os momentos decisivos no curso da Europa Ocidental são: escolasticismo (século XIII), nominalismo (século XIV), humanismo/renascimento (século XV), Reforma (século XVI) e Iluminismo (século XVII). Esses eventos representaram uma série de revoluções e, ao mesmo tempo, brechas na estrutura da civilização européia ocidental.
O escolasticismo apóia-se na adoção da realia platônica. O mundo é concebido enquanto imagem da universalia transcendente (realismo, arquétipo). O instrumento de conhecimento seria a mente/intelecto. O conhecimento (inclusive o conhecimento de Deus) seria alcançado por meio da penetração da lógica na essência dos seres. Seria o fundamento da teologia metafísica, que pressupõe a analogia entis, a relação ontológica entre Deus e o mundo, a analogia entre o criado e o Incriado. O nominalismo afirma que a universalia não passa de nomes, e não seres como no realismo. É a batalha entre platonismo e aristotelismo no pensamento europeu. Porém, o nominalismo tornou-se, digamos, o DNA da civilização européia, cujos elementos essenciais são o dualismo filosófico e o individualismo social. A prosperidade tornar-se-á o objetivo básico do homem ocidental, fundando-se na teologia escolástica da Idade Média. O nominalismo (ou seja, o dualismo) é o fundamento do desenvolvimento científico do mundo ocidental, isto é, do desenvolvimento das ciências positivas.
O Oriente Ortodoxo passou por uma evolução espiritual diferente, sob o guiamento de seus líderes espirituais, os santos – e por aqueles que os seguiram, os verdadeiros fiéis – que permaneceram fiéis à tradição profética-apostólica-patrística. Essa tradição é oposta ao escolasticismo e seus desenvolvimentos espirituais históricos do mundo europeu. No Oriente, o hesicasmo, ou oração do coração, é a espinha dorsal da tradição patrística, sendo expressa pela participação ascética na Verdade enquanto comunhão com o Incriado. A fé na possibilidade de unir Deus e o mundo (o Incriado e o criado) na história foi preservada no Oriente Ortodoxo. No entanto, tal fé significa rejeição a qualquer forma de dualismo. A ciência, à medida que se desenvolveu em Bizâncio, desenvolveu-se dentro desta moldura.
A revolução científica na Europa Ocidental do século XVII contribuiu para a separação entre fé e ciência. Ela acarretou no seguinte princípio axiomático: A nova filosofia (positiva) somente aceita as verdades que são verificadas por meio do pensamento racional. É a autoridade absoluta do pensamento ocidental. As verdades desta nova filosofia são a existência de Deus, da alma, da virtude, da imortalidade e do julgamento. É claro que aceitá-las só seria possível com base em um iluminismo teísta, pois o ateísmo também é parte da estrutura do pensamento moderno. As doutrinas eclesiásticas rejeitadas pela razão são a natureza triuna de Deus, a Encarnação, a glorificação, a salvação etc. Essa religião natural e lógica, do ponto de vista ortodoxo, não apenas é diferente do ateísmo como é muito pior. O ateísmo é menos perigoso do que sua distorção!
B. Gnosiologia ortodoxa
Já dissemos que no Oriente a antítese entre fé e ciência é um pseudo-problema. Por quê? Porque a gnosiologia oriental é definida pelo objeto a ser conhecido, que é de dois tipos: Incriado e criado. Somente a Santíssima Trindade é Incriada. O universo (ou universos) no qual nossa existência se manifesta é criado. Fé é o conhecimento do Incriado, e ciência é o conhecimento do criado. Portanto, são dois tipos diferentes de conhecimento, cada qual com seus próprios métodos e ferramentas de investigação.
O fiel, movendo-se no território do supernatural, ou do conhecimento do Incriado, não é chamado a aprender algo metafisicamente, ou aceitar algo logicamente, mas experimentar Deus estando em comunhão com Ele. Isso é possível introduzindo-o a um tipo de vida ou método que o conduzirá ao conhecimento divino.
Diz-se corretamente que se o Cristianismo surgisse pela primeira vez em nossa época, ele assumiria a forma de uma instituição terapêutica, um hospital cujo objetivo seria reinstalar e restaurar a função psicossomática do homem. É por isso que São João Crisóstomo chama a Igreja de hospital espiritual. O conhecimento supernatural-teológico é entendido na Ortodoxia como um pathos (experiência de vida), uma participação e comunhão com o transcendente, e não uma verdade pessoal e inalcançável do Incriado muito menos um mero exercício de conhecimento. Assim, a fé cristã não é a adoção abstrata e contemplativa de verdades metafísicas, mas a experiência de contemplar o Verdadeiro Ser: a experiência da Trindade Supersubstancial (Superessencial).
A autoridade na Ortodoxia funda-se, portanto, na experiência. A experiência de participar no Incriado, de ver o Incriado (conforme os termos “theosis” e “glorificação” deixam claro) não se baseia em textos ou nas Escrituras. A tradição da Igreja não se preserva em textos, mas em pessoas. Os textos ajudam, mas não são eles os portadores da Santa Tradição. A tradição é preservada pelos santos. Os seres humanos é que são os portadores do Evangelho. Colocar os textos acima da experiência com o Incriado (um indício da “religionização” da fé) acaba levando à sua ideologização e, em verdade, à sua idolatria. Tal fenômeno leva à autoridade absoluta do texto (fundamentalismo) e às suas conhecidas conseqüências.
O conhecimento do Incriado pressupõe, na Ortodoxia, a rejeição de qualquer tipo de analogia (seja entis ou fide) entre criado e Incriado. São João Damasceno explica: “É impossível encontrar, na criação, um ícone que revele o tipo de existência da Santíssima Trindade. Pois como seria possível ao criado, que é complexo e mutável e descritível, e tem forma e é perecível, revelar a Essência Divina Superessencial, que é livre de todas estas categorias?” (P.G. 94,821/21).
Assim, fica claro por que a educação escolar, e a filosófica em particular, de acordo com a tradição patrística, não são pressupostos para o conhecimento de Deus (theognosia). Além do grande acadêmico São Basílio, o Grande, (+379), também honramos Santo Antônio (+350), que, pelos padrões mundanos, não era sábio. Ambos eram professores da fé. Ambos testemunharam o conhecimento de Deus, sendo que Santo Antônio não tinha educação formal enquanto São Basílio era extremamente educado, tido como mais inteligente que Aristóteles. Santo Agostinho (+430) difere da tradição patrística neste ponto (algo que os ocidentais dificilmente admitiriam, se soubessem disso), pois ele ignora a gnosiologia bíblica e patrística sendo, em essência, um neoplatonista! Com seu axioma credo ut intelligam (creio para entender), Santo Agostinho introduziu o princípio segundo o qual o homem é levado a uma concepção lógica da Revelação por meio da fé. Esse princípio dá prioridade ao intelecto (à mente), considerada assim como sendo o instrumento ou ferramenta para o conhecimento do natural e do sobrenatural. Após Santo Agostinho, o próximo passo nesta evolução (com a intervenção de Tomás de Aquino (+1274)) será dado por Descartes (+1650), com seu axioma cogito ergo sum (penso, logo existo), no qual o intelecto (a mente) é considerado a principal base da existência.
C. Os dois tipos de conhecimento
A tradição ortodoxa acaba com a colisão teórica no campo da gnosiologia, distinguindo dois tipos de conhecimento e sabedoria:
1. conhecimento divino, ou aquele que vem “de cima”, superior;
2. conhecimento secular (thyrathen), ou inferior.
O primeiro tipo de conhecimento é supernatural, enquanto o segundo é natural, correspondendo assim à distinção entre Incriado e criado, entre Deus e criação. Estes dois tipos de aprendizado requerem dois métodos de aprendizado. O método do conhecimento divino é a comunhão do homem com o Incriado por meio do coração. Tal comunhão se dá pela presença da energia Incriada de Deus no coração do homem. O método do conhecimento secular é a ciência, levado a cabo pelo exercício do poder intelectual e lógico do homem. A Ortodoxia estabelece uma clara hierarquia entre estes dois tipos de conhecimento e seus métodos.
O método da gnosiologia supernatural, na tradição ortodoxa, chama-se hesicasmo, e é identificada com a vigilância e a purificação (nepsis e katharsis) do coração. A Ortodoxia, patristicamente falando, é inconcebível fora da prática hesicasta. O hesicasmo, em essência, é a prática ascético-terapêutica de limpar o coração das paixões e reacender a faculdade noética dentro do coração. Note-se, porém, que o método hesicasta, enquanto prática terapêutica, também é científico e prático. Portanto, a teologia, sob condições adequadas, pertence às ciências práticas. Foi no começo do século XII, no Ocidente, que a teologia foi classificada como ciência teórica, por causa da transmutação da teologia em metafísica. Assim, os orientais que condenam nossa teologia apenas demonstram o quanto estão ocidentalizados, pois, em essência, condenam e rejeitam uma caricatura desfigurada que julgam ser teologia. Mas o que é a função noética? Nas Sagradas Escrituras já é possível encontrar a distinção entre espírito do homem (seu nous) e o intelecto (o logos ou mente). Na literatura patrística, o espírito do homem é chamado de nous, para distingui-lo do Espírito Santo. O espírito, o nous, é o olho da alma.
A faculdade noética é chamada de função do nous dentro do coração, e é a função espiritual do coração. A função paralela é o coração enquanto órgão que bombeia o sangue em todo o corpo. Tal faculdade noética é um sistema mnemônico que existe juntamente com as células cerebrais. Ambos são cognoscíveis e detectáveis pela ciência humana, porém esta mesma ciência é incapaz de conceber o nous. Quando o homem atinge a iluminação pelo Espírito Santo e se torna o templo de Deus, o amor próprio transmuta-se em amor incondicional, tornando possível ao homem construir relações sociais reais apoiadas nesta reciprocidade incondicional (isto é, na disposição em sacrificar-se pelo próximo), ao invés de relações sociais apoiadas no auto-interesse em reivindicar direitos individuais, a exemplo do espírito da sociedade européia ocidental.
Assim, ficam claras algumas importantes conseqüências: (1) o Cristianismo autêntico transcende a religião e o conceito de que a Igreja é uma mera instituição de regras e deveres e (2) a Ortodoxia não deve ser concebida como uma adoção de princípios ou verdades, impostos desde cima. Tal seria uma versão não-ortodoxa das doutrinas (princípios absolutos, verdades impostas). Conceitos e significados, na Ortodoxia, são examinados por meio das devidas verificações empíricas. O estilo dialético-intelectual de pensamento teológico e dogmático é estranho à autêntica tradição ortodoxa.
O cientista e professor do conhecimento do Incriado, na tradição ortodoxa, é o Geron/Staretz (Ancião ou Pai Espiritual), o guia ou “professor do deserto”. O registro de ambos os tipos de conhecimento pressupõe o conhecimento empírico do fenômeno.
No campo da ciência, somente o especialista entende a pesquisa de outros cientistas da mesma área. A adoção de conclusões ou descobertas de uma determinada ciência por não-especialistas (isto é, por aqueles que são incapazes de examinar experimentalmente a pesquisa dos especialistas) baseia-se na confiança na credibilidade dos especialistas. De outra maneira, não haveria progresso científico.
Vale o mesmo para a ciência da fé. O conhecimento empírico de santos, profetas, apóstolos e padres de todas as eras é absorvido com base na mesma confiança. A tradição patrística e os concílios da Igreja sustentam-se nestas experiências. Não há Concílio Ecumênico sem a presença de glorificados/deificados (theoumenoi), sem aqueles que vêem o divino (eis o problema dos atuais concílios!). A doutrina ortodoxa é resultado deste relacionamento.
Portanto, a fé ortodoxa é tão dogmática quanto a ciência. Aqueles que acusam a fé de ser enviesada não deveriam se esquecer das palavras de Marc Bloch, de que toda pesquisa científica é enviesada desde o início, pois, de outra forma, pesquisar seria algo impossível. O mesmo vale para a fé. A Ortodoxia distingue os dois tipos de conhecimento e seus métodos e ferramentas, evitando, assim, qualquer confusão ou conflito entre eles. Confusão e conflito são engendrados somente quando as condições e a essência do Cristianismo são perdidas. Porém, no meio ortodoxo, há algumas analogias ilógicas, como a possibilidade de alguém destacar-se nas ciências mas, ao mesmo tempo, ser uma criança espiritual, e, vice-versa, alguém ser majestoso em conhecimento divino e analfabeto em sabedoria humana, como o supra-citado Santo Antônio, o Grande. Nada impede, porém, a possibilidade de alguém possuir ambos os conhecimentos, como é o caso dos Santos Padres da Igreja.
D. Dialética Deus-homem
Assim sendo, o fiel ortodoxo encontra-se diante de uma dialética Deus-homem. Usando a terminologia cristológica, cada tipo de conhecimento deve permanecer e mover-se dentro de seus limites. Ultrapassar tais limites implica em confundir suas funções e, por fim, em conflito. Os Santos Padres defenderam o uso correto da ciência e da educação. São Gregório, o Teólogo, afirmou: “A educação não deve ser desonrada”. O mesmo Padre, em sua segunda Oration, estabeleceu os limites dos dois tipos de conhecimento. São Gregório diz que o antigo sábio (Platão, em Timeu) afirmou: “É difícil conhecer Deus e impossível expressá-Lo [verbalmente]”. Porém, o também grego mas cristão São Gregório conclui que é impossível expressar (descrever) Deus com palavras, quanto mais impossível é entendê-Lo! Ou seja, Platão já havia estabelecido os limites da razão humana, e é importante notar que não há racionalismo na antiga filosofia grega. São Gregório, por sua vez, também demonstra a impossibilidade de superar tais limites, bem como é impossível conceber o Incriado por meio do conhecimento do criado.
A distinção e a simultânea hierarquia dos dois tipos de conhecimento foram descritos por São Basílio, o Grande, quando afirmou que a fé deveria prevalecer em relação às palavras sobre Deus e às provas racionais. Tal fé origina-se na ação e na energia do Espírito Santo. Para São Basílio, fé é a iluminação do Espírito Santo no coração (P.G. 30,104B-105B). O santo também fornece um exemplo clássico do uso ortodoxo do conhecimento científico em seu Hexameron (P.G. 29, 3-208). Ele repudia as teorias cosmológicas dos filósofos sobre a eternidade e a auto-existência do mundo, procedendo a uma síntese dos fatos bíblicos e científicos, por meio da qual supera a ciência. Além disso, rejeitando os ensinamentos materialistas e heréticos, São Basílio fornece a interpretação teológica (mas não metafísica) da natureza da criação. Sua tese central é de que é impossível um dogma ser logicamente sustentado somente pela ciência. Os dogmas pertencem a outra esfera, estando acima da razão e da ciência, embora dentro dos limites de outro tipo de conhecimento. O uso de dogmas em conhecimentos mundanos leva à transformação da ciência em metafísica, enquanto o uso da razão no domínio da fé prova sua fraqueza e relatividade. Portanto, não há crença que não seja examinada na gnosiologia ortodoxa, mas cada campo é examinado de acordo com seus próprios critérios: a ciência com suas pressuposições e o conhecimento divino com suas pressuposições.
A expressão mais trágica da alienação cristã é a postura eclesiástica ocidental em relação a Galileu. O caso ultrapassou os limites jurisdicionais, mas o mais sério da história é a confusão entre os limites do conhecimento. Sabemos que o conhecimento que vem “de cima” e o caminho para atingi-lo perderam-se no Ocidente, cuja conseqüência é o uso do intelecto (mente) enquanto instrumento não apenas de sabedoria humana, mas de sabedoria divina também. O uso do intelecto no campo da ciência leva inevitavelmente à rejeição do supernatural enquanto algo incompreensível, e seu uso no campo da fé pode levar à rejeição da ciência quando considerada em conflito com a fé. Essa mesma mentalidade e essa mesma perda de critério se manifestou na rejeição do sistema de Copérnico no Oriente (1774-1821). Em troca, a ciência vingou-se da condenação de Galileu pela Igreja Romana na pessoa de Darwin e sua teoria da evolução.
E. Transplante do problema ocidental ao Oriente Ortodoxo
O Iluminismo europeu consistiu em uma batalha entre o empiricismo físico e a metafísica de Aristóteles. Os iluministas são filósofos e racionalistas. Os iluministas gregos, com Adamantios Korais como seu patriarca, eram metafísicos em sua teologia, e foram eles que transportaram o conflito entre empiricistas e metafísicos à Grécia. Porém, os monges ortodoxos do Monte Athos, os Kollyvades e demais padres hesicastas permaneceram empiricistas em seu método teológico. A introdução da metafísica na teologis popular e acadêmica é obra, principalmente, de Korais. É por isso que Korais tornou-se uma autoridade entre os teólogos acadêmicos, assim como nos movimentos moralistas populares. Isso quer dizer que a purificação do coração deixou de ser considerada um pressuposto da teologia, sendo substituída pela educação escolástica. O mesmo problema surgiu na Rússia durante o reinado de Pedro, o Grande (séculos XVII e XVIII). Dessa maneira, os padres passaram a ser considerados filósofos (sobretudo neoplatonistas, como Santo Agostinho) e agentes sociais. Esse padrão tornou-se o protótipo dos pietistas na Grécia. Dessa maneira, o hesicasmo foi rejeitado como sendo obscurantismo. As chamadas idéias progressistas de Korais derivam do fato de que ele é um defensor do uso calvinista da metafísica, e não do uso católico romano, e suas obras teológicas são ricas deste pietismo calvinista (moralismo).
Porém, para os Santos Padres, a Ortodoxia é anti-metafísica, pois está continuamente buscando a certeza empírica por meio do método hesicasta. Eis por que o hesicasmo dos Kollyvades é empírico e científico. A razão, de acordo com São Nicodemos, o Hagiorita, é empírica. Isso fica claro quando os hesicastas do século XVIII aceitaram o progresso científico do Ocidente. Os Kollyvades reconheceram os pontos de vista científicos como, por exemplo, São Nicodemos, o Hagiorita, em sua obra Symbouletikon, na qual ele aceita as últimas teorias de seu tempo a respeito do funcionamento do coração. Santo Atanásio Parios não combateu a ciência em si, mas seu uso pelos iluministas ocidentalizados da nação grega. Os Padres consideravam a ciência como sendo obra de Deus e uma dádiva para o melhoramento da vida. Mas o uso da ciência na batalha metafísica contra a fé, conforme praticado no Ocidente e transferido ao Oriente, foi algo explicitamente rejeitado pelos teólogos tradicionais dos séculos XVIII e XIX. O erro foi cometido pelos iluministas gregos que, desinformados quanto à visão patrística sobre o conhecimento, embora fossem eles mesmos padres e monges, transferiram o conflito europeu entre metafísicos e empiricistas à Grécia, versando sobre religião irracional. Enquanto que os Padres da Ortodoxia, diferenciando dois tipos de conhecimento, diferenciaram também o racional do super-racional.
O conflito entre fé e ciência, sem contar a confusão entre os conhecimentos, causou a idolatria destes dois tipos de conhecimento. Assim, uma apologética fraca e mórbida engendrou-se no Cristianismo (por exemplo, um professor grego de Apologética produziu uma prova matemática da existência de Deus!). Porém, na Ortodoxia, este dualismo não é auto-evidente. Nada exclui a co-existência entre fé e ciência quando a fé não for uma metafísica imaginária e a ciência não mascarar seu caráter positivo com o uso da metafísica. O entendimento mútuo entre ciência e fé é auxiliado pela atual linguagem científica.
O princípio da indeterminação (segundo o qual não há causalidade) é um tipo de apofatismo na ciência. O retorno aos Padres, portanto, ajuda a superar o conflito. A aceitação dos limites dos dois tipos de conhecimento (Incriado e criado) e o uso do órgão ou ferramenta apropriada a cada um, é o elemento da Ortodoxia e dos Padres que posiciona a sabedoria mundana abaixo do conhecimento divino.
A confusão entre os dois tipos de conhecimento no pensamento ocidental tem promovido interpretações cada vez piores. Uma Igreja que persista na teologia metafísica será sempre obrigada a pedir perdão a Galileu. Por outro lado, uma ciência que ignore seus limites se deteriorará em metafísica, e acabará tratando da existência de Deus (que não é sua responsabilidade) ou rejeitará Deus completamente.
Fonte: http://www.megarevma.net/Metallinos.htm
A. Problema ou pseudo-problema?
A antítese e conseqüente colisão entre fé e ciência é um problema para o pensamento ocidental (franco-latino) e um pseudo-problema para a tradição patrística ortodoxa oriental. Chegamos a tal conclusão a partir dos dados históricos destas duas regiões.
O suposto dilema entre fé e ciência surgiu na Europa Ocidental durante o século XVII, juntamente com o desenvolvimento das ciências positivas. À época, surgiram também as primeiras declarações ortodoxas sobre esta questão. É digno de nota que tais fatos aconteceram no Ocidente sem a presença da Ortodoxia. Nos últimos séculos, a diferenciação e alienação espirituais entre o Ocidente [racional] e o Oriente Ortodoxo têm sido cada vez maiores. Tal fato explica-se pela “desortodoxização” e “deseclesiasticação” do mundo europeu ocidental e pela “filosofização” e “legalização” da fé, cuja estrutura final acabou tornando-se uma religião. Assim, tal religião seria supostamente a refutação à Ortodoxia e, de acordo com o Pe. João Romanides, a doença do gênero humano. Portanto, a Ortodoxia continua historicamente a não participar na composição da atual civilização européia ocidental, que, além disso, também difere em tamanho da civilização do Oriente Ortodoxo.
Os momentos decisivos no curso da Europa Ocidental são: escolasticismo (século XIII), nominalismo (século XIV), humanismo/renascimento (século XV), Reforma (século XVI) e Iluminismo (século XVII). Esses eventos representaram uma série de revoluções e, ao mesmo tempo, brechas na estrutura da civilização européia ocidental.
O escolasticismo apóia-se na adoção da realia platônica. O mundo é concebido enquanto imagem da universalia transcendente (realismo, arquétipo). O instrumento de conhecimento seria a mente/intelecto. O conhecimento (inclusive o conhecimento de Deus) seria alcançado por meio da penetração da lógica na essência dos seres. Seria o fundamento da teologia metafísica, que pressupõe a analogia entis, a relação ontológica entre Deus e o mundo, a analogia entre o criado e o Incriado. O nominalismo afirma que a universalia não passa de nomes, e não seres como no realismo. É a batalha entre platonismo e aristotelismo no pensamento europeu. Porém, o nominalismo tornou-se, digamos, o DNA da civilização européia, cujos elementos essenciais são o dualismo filosófico e o individualismo social. A prosperidade tornar-se-á o objetivo básico do homem ocidental, fundando-se na teologia escolástica da Idade Média. O nominalismo (ou seja, o dualismo) é o fundamento do desenvolvimento científico do mundo ocidental, isto é, do desenvolvimento das ciências positivas.
O Oriente Ortodoxo passou por uma evolução espiritual diferente, sob o guiamento de seus líderes espirituais, os santos – e por aqueles que os seguiram, os verdadeiros fiéis – que permaneceram fiéis à tradição profética-apostólica-patrística. Essa tradição é oposta ao escolasticismo e seus desenvolvimentos espirituais históricos do mundo europeu. No Oriente, o hesicasmo, ou oração do coração, é a espinha dorsal da tradição patrística, sendo expressa pela participação ascética na Verdade enquanto comunhão com o Incriado. A fé na possibilidade de unir Deus e o mundo (o Incriado e o criado) na história foi preservada no Oriente Ortodoxo. No entanto, tal fé significa rejeição a qualquer forma de dualismo. A ciência, à medida que se desenvolveu em Bizâncio, desenvolveu-se dentro desta moldura.
A revolução científica na Europa Ocidental do século XVII contribuiu para a separação entre fé e ciência. Ela acarretou no seguinte princípio axiomático: A nova filosofia (positiva) somente aceita as verdades que são verificadas por meio do pensamento racional. É a autoridade absoluta do pensamento ocidental. As verdades desta nova filosofia são a existência de Deus, da alma, da virtude, da imortalidade e do julgamento. É claro que aceitá-las só seria possível com base em um iluminismo teísta, pois o ateísmo também é parte da estrutura do pensamento moderno. As doutrinas eclesiásticas rejeitadas pela razão são a natureza triuna de Deus, a Encarnação, a glorificação, a salvação etc. Essa religião natural e lógica, do ponto de vista ortodoxo, não apenas é diferente do ateísmo como é muito pior. O ateísmo é menos perigoso do que sua distorção!
B. Gnosiologia ortodoxa
Já dissemos que no Oriente a antítese entre fé e ciência é um pseudo-problema. Por quê? Porque a gnosiologia oriental é definida pelo objeto a ser conhecido, que é de dois tipos: Incriado e criado. Somente a Santíssima Trindade é Incriada. O universo (ou universos) no qual nossa existência se manifesta é criado. Fé é o conhecimento do Incriado, e ciência é o conhecimento do criado. Portanto, são dois tipos diferentes de conhecimento, cada qual com seus próprios métodos e ferramentas de investigação.
O fiel, movendo-se no território do supernatural, ou do conhecimento do Incriado, não é chamado a aprender algo metafisicamente, ou aceitar algo logicamente, mas experimentar Deus estando em comunhão com Ele. Isso é possível introduzindo-o a um tipo de vida ou método que o conduzirá ao conhecimento divino.
Diz-se corretamente que se o Cristianismo surgisse pela primeira vez em nossa época, ele assumiria a forma de uma instituição terapêutica, um hospital cujo objetivo seria reinstalar e restaurar a função psicossomática do homem. É por isso que São João Crisóstomo chama a Igreja de hospital espiritual. O conhecimento supernatural-teológico é entendido na Ortodoxia como um pathos (experiência de vida), uma participação e comunhão com o transcendente, e não uma verdade pessoal e inalcançável do Incriado muito menos um mero exercício de conhecimento. Assim, a fé cristã não é a adoção abstrata e contemplativa de verdades metafísicas, mas a experiência de contemplar o Verdadeiro Ser: a experiência da Trindade Supersubstancial (Superessencial).
A autoridade na Ortodoxia funda-se, portanto, na experiência. A experiência de participar no Incriado, de ver o Incriado (conforme os termos “theosis” e “glorificação” deixam claro) não se baseia em textos ou nas Escrituras. A tradição da Igreja não se preserva em textos, mas em pessoas. Os textos ajudam, mas não são eles os portadores da Santa Tradição. A tradição é preservada pelos santos. Os seres humanos é que são os portadores do Evangelho. Colocar os textos acima da experiência com o Incriado (um indício da “religionização” da fé) acaba levando à sua ideologização e, em verdade, à sua idolatria. Tal fenômeno leva à autoridade absoluta do texto (fundamentalismo) e às suas conhecidas conseqüências.
O conhecimento do Incriado pressupõe, na Ortodoxia, a rejeição de qualquer tipo de analogia (seja entis ou fide) entre criado e Incriado. São João Damasceno explica: “É impossível encontrar, na criação, um ícone que revele o tipo de existência da Santíssima Trindade. Pois como seria possível ao criado, que é complexo e mutável e descritível, e tem forma e é perecível, revelar a Essência Divina Superessencial, que é livre de todas estas categorias?” (P.G. 94,821/21).
Assim, fica claro por que a educação escolar, e a filosófica em particular, de acordo com a tradição patrística, não são pressupostos para o conhecimento de Deus (theognosia). Além do grande acadêmico São Basílio, o Grande, (+379), também honramos Santo Antônio (+350), que, pelos padrões mundanos, não era sábio. Ambos eram professores da fé. Ambos testemunharam o conhecimento de Deus, sendo que Santo Antônio não tinha educação formal enquanto São Basílio era extremamente educado, tido como mais inteligente que Aristóteles. Santo Agostinho (+430) difere da tradição patrística neste ponto (algo que os ocidentais dificilmente admitiriam, se soubessem disso), pois ele ignora a gnosiologia bíblica e patrística sendo, em essência, um neoplatonista! Com seu axioma credo ut intelligam (creio para entender), Santo Agostinho introduziu o princípio segundo o qual o homem é levado a uma concepção lógica da Revelação por meio da fé. Esse princípio dá prioridade ao intelecto (à mente), considerada assim como sendo o instrumento ou ferramenta para o conhecimento do natural e do sobrenatural. Após Santo Agostinho, o próximo passo nesta evolução (com a intervenção de Tomás de Aquino (+1274)) será dado por Descartes (+1650), com seu axioma cogito ergo sum (penso, logo existo), no qual o intelecto (a mente) é considerado a principal base da existência.
C. Os dois tipos de conhecimento
A tradição ortodoxa acaba com a colisão teórica no campo da gnosiologia, distinguindo dois tipos de conhecimento e sabedoria:
1. conhecimento divino, ou aquele que vem “de cima”, superior;
2. conhecimento secular (thyrathen), ou inferior.
O primeiro tipo de conhecimento é supernatural, enquanto o segundo é natural, correspondendo assim à distinção entre Incriado e criado, entre Deus e criação. Estes dois tipos de aprendizado requerem dois métodos de aprendizado. O método do conhecimento divino é a comunhão do homem com o Incriado por meio do coração. Tal comunhão se dá pela presença da energia Incriada de Deus no coração do homem. O método do conhecimento secular é a ciência, levado a cabo pelo exercício do poder intelectual e lógico do homem. A Ortodoxia estabelece uma clara hierarquia entre estes dois tipos de conhecimento e seus métodos.
O método da gnosiologia supernatural, na tradição ortodoxa, chama-se hesicasmo, e é identificada com a vigilância e a purificação (nepsis e katharsis) do coração. A Ortodoxia, patristicamente falando, é inconcebível fora da prática hesicasta. O hesicasmo, em essência, é a prática ascético-terapêutica de limpar o coração das paixões e reacender a faculdade noética dentro do coração. Note-se, porém, que o método hesicasta, enquanto prática terapêutica, também é científico e prático. Portanto, a teologia, sob condições adequadas, pertence às ciências práticas. Foi no começo do século XII, no Ocidente, que a teologia foi classificada como ciência teórica, por causa da transmutação da teologia em metafísica. Assim, os orientais que condenam nossa teologia apenas demonstram o quanto estão ocidentalizados, pois, em essência, condenam e rejeitam uma caricatura desfigurada que julgam ser teologia. Mas o que é a função noética? Nas Sagradas Escrituras já é possível encontrar a distinção entre espírito do homem (seu nous) e o intelecto (o logos ou mente). Na literatura patrística, o espírito do homem é chamado de nous, para distingui-lo do Espírito Santo. O espírito, o nous, é o olho da alma.
A faculdade noética é chamada de função do nous dentro do coração, e é a função espiritual do coração. A função paralela é o coração enquanto órgão que bombeia o sangue em todo o corpo. Tal faculdade noética é um sistema mnemônico que existe juntamente com as células cerebrais. Ambos são cognoscíveis e detectáveis pela ciência humana, porém esta mesma ciência é incapaz de conceber o nous. Quando o homem atinge a iluminação pelo Espírito Santo e se torna o templo de Deus, o amor próprio transmuta-se em amor incondicional, tornando possível ao homem construir relações sociais reais apoiadas nesta reciprocidade incondicional (isto é, na disposição em sacrificar-se pelo próximo), ao invés de relações sociais apoiadas no auto-interesse em reivindicar direitos individuais, a exemplo do espírito da sociedade européia ocidental.
Assim, ficam claras algumas importantes conseqüências: (1) o Cristianismo autêntico transcende a religião e o conceito de que a Igreja é uma mera instituição de regras e deveres e (2) a Ortodoxia não deve ser concebida como uma adoção de princípios ou verdades, impostos desde cima. Tal seria uma versão não-ortodoxa das doutrinas (princípios absolutos, verdades impostas). Conceitos e significados, na Ortodoxia, são examinados por meio das devidas verificações empíricas. O estilo dialético-intelectual de pensamento teológico e dogmático é estranho à autêntica tradição ortodoxa.
O cientista e professor do conhecimento do Incriado, na tradição ortodoxa, é o Geron/Staretz (Ancião ou Pai Espiritual), o guia ou “professor do deserto”. O registro de ambos os tipos de conhecimento pressupõe o conhecimento empírico do fenômeno.
No campo da ciência, somente o especialista entende a pesquisa de outros cientistas da mesma área. A adoção de conclusões ou descobertas de uma determinada ciência por não-especialistas (isto é, por aqueles que são incapazes de examinar experimentalmente a pesquisa dos especialistas) baseia-se na confiança na credibilidade dos especialistas. De outra maneira, não haveria progresso científico.
Vale o mesmo para a ciência da fé. O conhecimento empírico de santos, profetas, apóstolos e padres de todas as eras é absorvido com base na mesma confiança. A tradição patrística e os concílios da Igreja sustentam-se nestas experiências. Não há Concílio Ecumênico sem a presença de glorificados/deificados (theoumenoi), sem aqueles que vêem o divino (eis o problema dos atuais concílios!). A doutrina ortodoxa é resultado deste relacionamento.
Portanto, a fé ortodoxa é tão dogmática quanto a ciência. Aqueles que acusam a fé de ser enviesada não deveriam se esquecer das palavras de Marc Bloch, de que toda pesquisa científica é enviesada desde o início, pois, de outra forma, pesquisar seria algo impossível. O mesmo vale para a fé. A Ortodoxia distingue os dois tipos de conhecimento e seus métodos e ferramentas, evitando, assim, qualquer confusão ou conflito entre eles. Confusão e conflito são engendrados somente quando as condições e a essência do Cristianismo são perdidas. Porém, no meio ortodoxo, há algumas analogias ilógicas, como a possibilidade de alguém destacar-se nas ciências mas, ao mesmo tempo, ser uma criança espiritual, e, vice-versa, alguém ser majestoso em conhecimento divino e analfabeto em sabedoria humana, como o supra-citado Santo Antônio, o Grande. Nada impede, porém, a possibilidade de alguém possuir ambos os conhecimentos, como é o caso dos Santos Padres da Igreja.
D. Dialética Deus-homem
Assim sendo, o fiel ortodoxo encontra-se diante de uma dialética Deus-homem. Usando a terminologia cristológica, cada tipo de conhecimento deve permanecer e mover-se dentro de seus limites. Ultrapassar tais limites implica em confundir suas funções e, por fim, em conflito. Os Santos Padres defenderam o uso correto da ciência e da educação. São Gregório, o Teólogo, afirmou: “A educação não deve ser desonrada”. O mesmo Padre, em sua segunda Oration, estabeleceu os limites dos dois tipos de conhecimento. São Gregório diz que o antigo sábio (Platão, em Timeu) afirmou: “É difícil conhecer Deus e impossível expressá-Lo [verbalmente]”. Porém, o também grego mas cristão São Gregório conclui que é impossível expressar (descrever) Deus com palavras, quanto mais impossível é entendê-Lo! Ou seja, Platão já havia estabelecido os limites da razão humana, e é importante notar que não há racionalismo na antiga filosofia grega. São Gregório, por sua vez, também demonstra a impossibilidade de superar tais limites, bem como é impossível conceber o Incriado por meio do conhecimento do criado.
A distinção e a simultânea hierarquia dos dois tipos de conhecimento foram descritos por São Basílio, o Grande, quando afirmou que a fé deveria prevalecer em relação às palavras sobre Deus e às provas racionais. Tal fé origina-se na ação e na energia do Espírito Santo. Para São Basílio, fé é a iluminação do Espírito Santo no coração (P.G. 30,104B-105B). O santo também fornece um exemplo clássico do uso ortodoxo do conhecimento científico em seu Hexameron (P.G. 29, 3-208). Ele repudia as teorias cosmológicas dos filósofos sobre a eternidade e a auto-existência do mundo, procedendo a uma síntese dos fatos bíblicos e científicos, por meio da qual supera a ciência. Além disso, rejeitando os ensinamentos materialistas e heréticos, São Basílio fornece a interpretação teológica (mas não metafísica) da natureza da criação. Sua tese central é de que é impossível um dogma ser logicamente sustentado somente pela ciência. Os dogmas pertencem a outra esfera, estando acima da razão e da ciência, embora dentro dos limites de outro tipo de conhecimento. O uso de dogmas em conhecimentos mundanos leva à transformação da ciência em metafísica, enquanto o uso da razão no domínio da fé prova sua fraqueza e relatividade. Portanto, não há crença que não seja examinada na gnosiologia ortodoxa, mas cada campo é examinado de acordo com seus próprios critérios: a ciência com suas pressuposições e o conhecimento divino com suas pressuposições.
A expressão mais trágica da alienação cristã é a postura eclesiástica ocidental em relação a Galileu. O caso ultrapassou os limites jurisdicionais, mas o mais sério da história é a confusão entre os limites do conhecimento. Sabemos que o conhecimento que vem “de cima” e o caminho para atingi-lo perderam-se no Ocidente, cuja conseqüência é o uso do intelecto (mente) enquanto instrumento não apenas de sabedoria humana, mas de sabedoria divina também. O uso do intelecto no campo da ciência leva inevitavelmente à rejeição do supernatural enquanto algo incompreensível, e seu uso no campo da fé pode levar à rejeição da ciência quando considerada em conflito com a fé. Essa mesma mentalidade e essa mesma perda de critério se manifestou na rejeição do sistema de Copérnico no Oriente (1774-1821). Em troca, a ciência vingou-se da condenação de Galileu pela Igreja Romana na pessoa de Darwin e sua teoria da evolução.
E. Transplante do problema ocidental ao Oriente Ortodoxo
O Iluminismo europeu consistiu em uma batalha entre o empiricismo físico e a metafísica de Aristóteles. Os iluministas são filósofos e racionalistas. Os iluministas gregos, com Adamantios Korais como seu patriarca, eram metafísicos em sua teologia, e foram eles que transportaram o conflito entre empiricistas e metafísicos à Grécia. Porém, os monges ortodoxos do Monte Athos, os Kollyvades e demais padres hesicastas permaneceram empiricistas em seu método teológico. A introdução da metafísica na teologis popular e acadêmica é obra, principalmente, de Korais. É por isso que Korais tornou-se uma autoridade entre os teólogos acadêmicos, assim como nos movimentos moralistas populares. Isso quer dizer que a purificação do coração deixou de ser considerada um pressuposto da teologia, sendo substituída pela educação escolástica. O mesmo problema surgiu na Rússia durante o reinado de Pedro, o Grande (séculos XVII e XVIII). Dessa maneira, os padres passaram a ser considerados filósofos (sobretudo neoplatonistas, como Santo Agostinho) e agentes sociais. Esse padrão tornou-se o protótipo dos pietistas na Grécia. Dessa maneira, o hesicasmo foi rejeitado como sendo obscurantismo. As chamadas idéias progressistas de Korais derivam do fato de que ele é um defensor do uso calvinista da metafísica, e não do uso católico romano, e suas obras teológicas são ricas deste pietismo calvinista (moralismo).
Porém, para os Santos Padres, a Ortodoxia é anti-metafísica, pois está continuamente buscando a certeza empírica por meio do método hesicasta. Eis por que o hesicasmo dos Kollyvades é empírico e científico. A razão, de acordo com São Nicodemos, o Hagiorita, é empírica. Isso fica claro quando os hesicastas do século XVIII aceitaram o progresso científico do Ocidente. Os Kollyvades reconheceram os pontos de vista científicos como, por exemplo, São Nicodemos, o Hagiorita, em sua obra Symbouletikon, na qual ele aceita as últimas teorias de seu tempo a respeito do funcionamento do coração. Santo Atanásio Parios não combateu a ciência em si, mas seu uso pelos iluministas ocidentalizados da nação grega. Os Padres consideravam a ciência como sendo obra de Deus e uma dádiva para o melhoramento da vida. Mas o uso da ciência na batalha metafísica contra a fé, conforme praticado no Ocidente e transferido ao Oriente, foi algo explicitamente rejeitado pelos teólogos tradicionais dos séculos XVIII e XIX. O erro foi cometido pelos iluministas gregos que, desinformados quanto à visão patrística sobre o conhecimento, embora fossem eles mesmos padres e monges, transferiram o conflito europeu entre metafísicos e empiricistas à Grécia, versando sobre religião irracional. Enquanto que os Padres da Ortodoxia, diferenciando dois tipos de conhecimento, diferenciaram também o racional do super-racional.
O conflito entre fé e ciência, sem contar a confusão entre os conhecimentos, causou a idolatria destes dois tipos de conhecimento. Assim, uma apologética fraca e mórbida engendrou-se no Cristianismo (por exemplo, um professor grego de Apologética produziu uma prova matemática da existência de Deus!). Porém, na Ortodoxia, este dualismo não é auto-evidente. Nada exclui a co-existência entre fé e ciência quando a fé não for uma metafísica imaginária e a ciência não mascarar seu caráter positivo com o uso da metafísica. O entendimento mútuo entre ciência e fé é auxiliado pela atual linguagem científica.
O princípio da indeterminação (segundo o qual não há causalidade) é um tipo de apofatismo na ciência. O retorno aos Padres, portanto, ajuda a superar o conflito. A aceitação dos limites dos dois tipos de conhecimento (Incriado e criado) e o uso do órgão ou ferramenta apropriada a cada um, é o elemento da Ortodoxia e dos Padres que posiciona a sabedoria mundana abaixo do conhecimento divino.
A confusão entre os dois tipos de conhecimento no pensamento ocidental tem promovido interpretações cada vez piores. Uma Igreja que persista na teologia metafísica será sempre obrigada a pedir perdão a Galileu. Por outro lado, uma ciência que ignore seus limites se deteriorará em metafísica, e acabará tratando da existência de Deus (que não é sua responsabilidade) ou rejeitará Deus completamente.
Fonte: http://www.megarevma.net/Metallinos.htm