23 de setembro de 2024

Um pouco de psiquiatria medieval


AS “TRÊS ALMAS”

Em termos de apetites, há três tipos: o apetite natural, cujo bem é a coisa enquanto coisa (a pedra que cai); o apetite sensível, cujo bem é a coisa enquanto conveniente e deleitável (a comida para o animal); e o apetite intelectual, cujo bem é absoluto (o bom em sua forma absoluta). A patogênese no homem se dá precisamente quando estas “camadas”, ao invés de se integrarem, se desintegram.

Tomás de Aquino, seguindo esta tripla divisão, não procede exatamente à divisão alma/corpo, embora, obviamente, admita a existência do corpo, mas prefere dividir a própria alma humana em três almas. Vimos isso em Robert Brennan, mas vale a pena revisar os conceitos aqui.

(1) Alma vegetativa (anima vegetativa), a qual pertencem a nutrição (nutritivum, dedicado ao eu), o crescimento (augmentativum, também dedicado ao eu) e a reprodução (generativum, dedicado ao próximo). É o “vital”, o “orgânico”, um tipo de entidade primitiva destinada a ser parte integral do psiquismo humano.

(2) Alma sensível (anima sensitiva), a qual pertencem aspectos cognitivo (os sentidos, ou seja, os externos e internos) e motriz (o apetite sensível, ou seja, as tendências instintivo-afetivas). Para Tomás, o sentido externo mais importante é o tato (como explica Martín Echavarría, trata-se do “sentido mais forte de todos” porque “é ele quem tem mais força para arrastar a razão e a vontade”). Ainda segundo Tomás, dentre os homens, quem têm melhor tato têm melhor intelecto, como se o tato servisse de indicador para as potências anímicas mais altas.

Vejamos os sentidos internos:

  • Senso comum (sensus communis). Curiosamente, o sentido comum não tem por objetivo precípuo a simples “soma” dos elementos dos sentidos exteriores, mas (a) apreender todas as sensações comuns que não são apreendidas pelos sentidos externos individualmente, e (b) apreender várias sensações individuais que não são apreendidas pelos sentidos externos individualmente.
  • Imaginação (imaginatio ou phantasia). Não corresponde ao que atualmente chamamos de imaginação, mas tem a função de (a) reter, (b) reproduzir e (c) construir. Observe que, ao contrário do que atualmente se crê, a imaginação tem função memorativa.
  • Cogitativa (vis cogitativa). É o aspecto cognitivo do instinto, ou seja, é o aspecto que apreende intenções que não são recebidas pelos sentidos.
  • Memória. A função da memória, curiosamente, não é “armazenar o passado”. Isso é papel da imaginação. A única função da memória é atribuir conteúdo vivencial de duração àquilo que a imaginação recorda, dando uma espécie de “lugar temporal” ao recordado pela imaginação.

Os sentidos, na alma sensível, vem em primeiro plano. Em seguida vem o motus, a parte ativa e “motriz” da alma sensível, ou seja, os apetites sensíveis, que em termos gerais “respondem” aos sentidos, como se fossem uma “vontade inferior”. Já vimos ao longo das postagens sobre psicologia tomista as duas grandes tendências, quais sejam, a concupiscibilis e irascibilis. Bata dizer aqui que a concupiscível tem propensão ao gozo, enquanto a irascível tem propensão à luta. No entanto, sigamos o que diz Tomás na ST 1-2, 25, 3, c e tracemos um esquema explicativo geral:

O esquema apresenta a ordem de todas as paixões. Observe, portanto, que todas as paixões de maneira geral são originadas do amor. Observe também que o irascível, que está no “centro” do esquema, serve, de certo modo, ao concupiscível, que está nas pontas. Por isso todas as paixões do irascível têm seu princípio e fim no concupiscível. Por exemplo, a ira começa como certa tristeza e termina no gozo (“deleite”). As forças das pontas, as concupiscíveis, conduzem tanto à tranquilidade (gozo/deleite) quanto ao movimento (desejo/fuga), mas as forças do irascível sempre tendem ao movimento. Por isso, o concupiscível é geneticamente primitivo. O irascível, por outro lado, é geneticamente superior porque aceita o desprazer agora para um prazer futuro.

(3) Alma inteligível (anima intelectiva), a qual, vale recordar aqui, não é uma parte “separada” das outras duas almas, mas, muito pelo contrário, as outras duas almas estão contidas, como que “dentro”, da alma intelectual. Isso significa que, nos homens, os sentidos, que são o aspecto cognitivo da alma sensível, fornecem o material para o aspecto cognitivo da alma inteligível, isto é, para o intelecto (ou “razão”). O aspecto apetitivo (“motriz”, motus) da alma sensível é dominado pelo aspecto apetitiva da alma inteligível, isto é, pela vontade.

No entanto, vimos acima que o bem da vontade é o bem absoluto; em outras palavras, é o fim último ao qual os fins parciais alinham-se, ou, ao menos, deveriam se alinhar. Mas quem apresenta à vontade este fim último, este bem absoluto? É o intelecto. Por isso diz Tomás de Aquino, de maneira um tanto lírica: “O intelecto intelige o querer da vontade e a vontade quer o inteligir do intelecto”.

Se o objeto da vontade é o bem absoluto, qual o objeto do intelecto? É a razão mesma do bem absoluto. Diz Tomás: “A vontade pode tender até quanto a razão pode apreender como bom”.

PSICOGÊNESE E PSICOPATOLOGIA

A psique humana nunca se enferma. Sim, isso mesmo: é impossível que a alma humana se enferme. É verdade que já vimos isso anteriormente: como a alma não se corrompe, ou seja, jamais é destruída (é imortal), ela não adoece à maneira das doenças corporais. Mas há uma maneira que a alma humana pode corromper-se: quando ela se corrompe substancialmente. E quando a alma se corrompe substancialmente? Quando ela erra o alvo, ou seja, quando erra o fim a que se destina, ou seja, quando peca. Eis a origem dos transtornos humanos: o pecado. Mais precisamente, o pecado original, pois foi ele que vulnerou (“feriu”) a natureza (“essência”) humana. A natureza humana decaída encontra-se, neste mundo, ferida e enfrenta enormes dificuldades para aperfeiçoar-se e alcançar o fim a que se destina. O intelecto (ratio) está ferido pela ignorantia, a vontade (voluntas) está ferida pela malitia, o irascível (irascibilis) está ferido pela infirmitas, o concupiscível (concupiscibilis) está ferido pela concupiscentia. São feridas naturais, ou seja, essenciais, ou seja, físicas (do ponto de vista aristotélico de “filosofia natural”, não da física-matemática atual, que é meramente quantitativa). Mesmo anjos e demônios, ensina Tomás, podem atuar apenas sobre o material (corporal) da alma, nunca sobre o imaterial (espiritual) da alma. Por isso as “enfermidades da alma” são, na verdade, debilidades dos órgãos que correspondem à alma. Há que se tomar cuidado aqui, pois Krapf pode confundir o estudante desavisado que, ignorante da distinção antiga e medieval entre “enfermidade” e “transtorno” e entre “físico” e “material”, pode ser levado a crer pela dinâmica do texto que os transtornos mentais também têm sua origem na compleição corporal. 

E mais: a loucura pode provocar paixões tão fortes que a razão se encontra impedida de exercer sua função. O mesmo vale para o sono e a embriaguez, que podem produzir uma transmutação corporal, atando o uso da razão.

Seja pela compleição corporal, seja pelo acúmulo de vícios, eis o que diz Tomás de Aquino àqueles que lhes falta a inteligência:

Quando a inteligência não domina, os homens agem conforme a imaginação, como os animais. É certo que a esses homens não falta o intelecto, como falta aos animais, mas sim que eles têm um intelecto velado. Essa contingência é tripla. Às vezes vem da ira de uma paixão, da cólera, ou do temor ou de algo do tipo. Outras vezes ela vem de uma enfermidade, como ocorre entre os frenéticos e furiosos. Às vezes vem do sonho, como ocorre aos que dormem. Portanto, quando o intelecto não prevalece sobre a imaginação, o homem segue a imaginação como se ela fosse verdade. (C. De Anima 3, 6). [Lembre-se que “imaginação” aqui não é exatamente o que entendemos atualmente como imaginação]

Aqui e ali Tomás já falava de insani, de amentes, de phrenetici, de furiosi, de lethargici, de arreptitii, de mente capti, termos estes que carecem de um significado claro no campo da psicopatologia. Outros são mais bem detalhados, como a melancolia (mais ligado à depressão) e a mania (mais ligado à ira). Também menciona ele psicoses orgânicas, como algumas demências da idade avançada, os transtornos da memória e a epilepsia.

Por fim, cabe mencionar alguns transtornos que são pouquíssimo levados em conta atualmente, mas que, para Tomás, pela própria natureza humana, são fundamentais: os defeitos da inteligência. Trata-se da stultitia, que, por vezes, é psicogênica (por isso um transtorno), e pode, portanto, ser um pecado. À parte questões somatogênicas, ser tolo é um pecado. Veja-se por outro lado que o Angélico admite, na prática, o princípio da responsabilidade limitada: há casos específicos em que a stultitia se refere à alienação e, portanto, não há pecado.

Fonte: Henrique Eduardo Krapf, Santo Tomás e a psicopatologia, Editora CDB, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2023.