16 de setembro de 2024

Trechos selecionados de G.K. Chesterton


Ninguém consegue imaginar como nada se transforma em alguma coisa. Ninguém é capaz de chegar sequer um milímetro mais perto de compreender isso explicando como alguma coisa pode se transformar em outra. É realmente bem mais lógico começar por dizer “No princípio, Deus criou o céu e a terra” se você só quer dizer que “No princípio, algum poder inconcebível deu início a um processo inimaginável”.

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De acordo com os verdadeiros registros disponíveis, a barbárie e a civilização não eram estágios sucessivos no progresso do mundo. Eram situações que existiam lado a lado, tal como ainda existem lado a lado. Existiam civilizações então como existem civilizações agora; existem selvagens agora como existiam selvagens então. Sugere-se que todos os homens passaram por um estado nômade; mas é certo que houve alguns que nunca saíram dele, e não parece improvável que tenha havido alguns que nunca chegaram a ele. É provável que, desde os tempos mais primitivo, o agricultor estático e o pastor andarilho fossem dois tipos distintos de homens; e o rearranjo cronológico deles não é mais que uma marca da mania de estágios progressivos que em grande medida falsificou a história. Sugere-se que houve um estágio comunista, no qual a propriedade privada era desconhecida em toda parte, toda uma humanidade vivendo na negação da propriedade, mas as evidências dessa negação são elas mesmas um tanto negativas.

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Toda essa questão mitológica concerne à parte poética dos homens. Hoje em dia parece que estranhamente se esqueceu que um mito é uma obra de imaginação e portanto uma obra de arte. [...] Contudo, por alguma razão que nunca vi ser explicada, é só a uma minoria de pessoas não poéticas que se permite escrever estudos críticos desses poemas populares. Não submetemos um soneto a um matemático ou uma canção a um garoto que gosta de cálculo; mas realmente toleramos a ideia igualmente fantástica de que o folclore possa ser tratado como uma ciência.

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A superstição surge em uma época racionalista porque ela se baseia em algo que, se não é idêntico ao racionalismo, não está desligado do ceticismo. Ela está pelo menos ligada bem de perto ao agnosticismo. Ela se baseia em algo que realmente é um sentimento muito humano e inteligível, tal como as invocações locais do numen no paganismo popular. Mas é um sentimento agnóstico, pois se baseia em duas percepções: primeira, a de que não conhecemos realmente as leis do universo; e, segunda, a de que elas podem ser muito diferentes de tudo o que chamamos razão. Esses homens percebem a verdade efetiva de que coisas enormes frequentemente dependem de coisas mínimas. Quando há a sugestão, seja vinda ou não de uma tradição, de que uma determinada coisa minúscula é a chave ou guia, algo de profundo e não totalmente insensível na natureza humana diz aos homens que isso não é coisa improvável. Essa impressão existe em ambas as formas de paganismo sob apreço. Mas, quando passamos à segunda forma deste, encontramo-la transformada e preenchida por um outro e mais terrível espírito.

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Tome-se por exemplo os astecas e os índios americanos dos antigos impérios do México e do Peru. Estes eram no mínimo tão complexos quanto o Egito ou a China e só menos vigorosos que a civilização central, que é a nossa. Mas aqueles que criticavam essa civilização central (que é sempre a sua própria civilização) tinham o hábito curioso de não apenas cumprir com sua obrigação legítima de condenar os crimes dela, mas de perderem o rumo idealizando suas vítimas. Eles sempre imaginam que antes do surgimento da Europa em parte alguma se via algo além do Éden. E Swinburnc, naquele vivaz refrão das nações cm Canções de Antes do Sol Nascer, usou uma expressão sobre a Espanha e suas conquistas sul-americanas que sempre me pareceu bem estranha. Ele disse algo sobre "seus pecados e seus filhos espalhados por terras desprovidas de pecado" e sobre como eles "tornaram amaldiçoado o nome do homem e três vezes amaldiçoado o nome de Deus". É bastante sensato que ele dissesse que os espanhóis eram pecaminosos, mas por que diabos ele diria que os sul-americanos eram desprovidos de pecado? Por que deveríamos supor aquele continente como sendo habitado exclusivamente por arcanjos ou santos perfeitos no céu? Isso seria algo forte a ser dito sobre a vizinhança a mais respeitável; mas, quando nos pomos a pensar sobre o que realmente sabemos acerca daquela sociedade, a observação mostra-se um tanto divertida. Nós sabemos que os sacerdotes imaculados desse povo imaculado cultuavam deuses imaculados, os quais aceitavam como néctar e ambrósia de seu paraíso ensolarado nada menos que incessante sacrifício humano acompanhado de tormentos terríveis. Também podemos observar na mitologia dessa civilização americana aquele elemento de inversão ou violência contra o instinto acerca do qual Dante escreveu; elemento o qual antes se espalhava por toda parte por meio da religião antinatural dos demônios. Isso é coisa notável não apenas do ponto de vista ético mas também do ponto de vista estético. Um ídolo sul-americano era feito para ser tão feio quanto possível, enquanto uma imagem grega era feita para ser tão bela quanto possível. Eles estavam em busca do segredo do poder indo, como a caminhar para trás, contra sua própria natureza e a natureza das coisas. Afinal sempre houve uma espécie de anelo de esculpir – seja em ouro ou granito ou na madeira vermelho-escura das florestas – um rosto diante do qual o próprio céu se quebraria como um espelho.

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A teoria materialista da história, segundo a qual toda a política e toda a ética são expressão da economia, é enfim uma falácia muito simples. Ela consiste apenas na confusão das condições necessárias à vida com as preocupações normais da vida, o que já e coisa bem diversa. É como dizer que, porque um homem só pode andar sobre duas pernas, ele então nunca sai para passear se não for para comprar sapatos e meias. [...] Mas há uma falácia mais profunda além desse fato óbvio; desse fato óbvio de que os homens não precisam viver tendo em vista só a comida tão só porque não podem viver sem comida. A verdade é que a coisa que se faz mais presente à mente do homem não são os elementos necessários à sua existência; mas é antes a existência em si mesma; o mundo que ele vê quando acorda a cada manhã e a natureza geral de sua posição nele. Existe algo que está mais próximo dele do que a subsistência, e é a vida.

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Por que os homens cultivam essa ideia esquisita de que aquilo que é sórdido deve sempre derrotar o que é magnânimo; de que existe alguma vaga conexão entre cérebro e brutalidade ou de que não importa que um homem seja estúpido desde que também seja mesquinho? Por que pensam vagamente que o cavalheirismo não passa de sentimento e que todo sentimento é fraqueza? Eles o fazem porque, como todos os homens, são inspirados em primeiro lugar pela religião. Para eles, como para todos os homens, o que vem em primeiro lugar é sua noção da natureza das coisas; a ideia que fazem do mundo onde vivem. E a fé deles é a de que a realidade definitiva é o medo e de que, portanto, o próprio coração do mundo é mau. Eles acreditam que a morte é mais forte que a vida e que, em decorrência, as coisas mortas devem ser mais fortes que as coisas vivas; independentemente de essas coisas mortas serem ouro, ferro, equipamentos, pedras, rios ou forças da natureza. Pode parecer fantasioso que homens que encontramos à mesa de chá ou em festas em jardins sejam secretamente adoradores de Baal ou Moloch. Mas essa espécie de mente comercial tem sua própria visão cósmica e essa era a visão de Cartago. Esta trazia o erro estúpido que foi a ruína de Cartago. O poder púnico sucumbiu porque nesse materialismo existe uma indiferença insana para com o verdadeiro pensamento. Ao descrer da alma, acaba por descrer da mente.

Fonte: G.K. Chesterton, O homem eterno, Ecclesiae Editora, Campinas, SP, Brasil, 2014.

14 de setembro de 2024

A íntima relação entre os logoi de São Máximo e a analogia entis de Tomás de Aquino


Trechos de um importante artigo sobre a relação entre a doutrina ortodoxa dos logoi das coisas criadas, exposta entre outros por São Máximo, o Confessor, e a doutrina da analogia entis, exposta por Tomás de Aquino e desenvolvida posteriormente por tomistas como Cardeal Caetano e outros. Ambas doutrinas foram exploradas neste blog. Em especial, este artigo é útil para pôr em dúvida a ideia original, mas altamente duvidosa, defendida pelo Pe. John Romanides de que não há absolutamente nenhuma semelhança entre criado e Incriado.

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Em um “Simpósio Máximo” em Belgrado em 2012, o Pe. Máximo Simonopetrites (também conhecido como Nicholas Constas) apresentou um artigo sobre a recepção do pensamento de São Máximo no Oriente e no Ocidente. O fio condutor deste artigo é o que o Pe. Máximo chama de "doutrina da assinatura dos logoi" do Confessor. É intrigante que tantos leitores de Máximo tenham feito pouco desta doutrina, notavelmente São João Damasceno, em outros aspectos profundamente caudatário do Confessor. Há exceções a esta história de negligência: o Pe. Máximo chama a atenção para o desenvolvimento da doutrina dos logoi por Isaque, o Sebastokrator, um contemporâneo um pouco mais jovem de Miguel Psellos e irmão mais velho do Imperador Alexios I Komnenos. São Gregório Palamás, no entanto, não é exceção; o Pe. Máximo especula que foi o uso que Barlaam fez da noção dos ‘princípios internos (λόγοι) da criação’, fundamentados na ‘mente divina, primordial e criativa’, cujas imagens eram encontradas na alma, que levaram Palamás a rejeitar a doutrina dos logoi. O Pe. Máximo segue comentando sobre a ‘rejeição aparentemente sumária’ dessa doutrina por Palamás, apontando como em tratamentos posteriores deste problema, ele parece ignorar Máximo em favor do pensamento estoico. O Pe. Máximo segue comentando:

É lamentável que o ataque escolástico-humanista ao hesicasmo tenha impedido Palamás de desenvolver a doutrina dos logoi de Máximo em uma analogia entis ortodoxa, segundo a qual Deus e suas criaturas não seriam colocados sob a mesma categoria geral de ser e que explicaria completamente suas diferenças irredutíveis.

Deixemos de lado por um momento o fato de doutrina da analogia entis, seja em Tomás de Aquino, Cardeal Caetano ou Erich Przywara, ter a intenção precisamente de evitar o perigo de incluir Deus e as criaturas sob a mesma categoria geral de ser. Ponderemos brevemente sobre a sugestão do Pe. Máximo de que a doutrina dos logoi poderia cumprir algo que a doutrina da analogia entis cumpriu no Ocidente. Para começar nossa reflexão, vamos relembrar a conclusão a que chegamos [em seções anteriores deste capítulo] ao pensar sobre a compreensão de Vladimir Lossky sobre a analogia em Dionísio; sugerimos que ele encontra um contraste entre uma maneira de pensar sobre analogia como nos permitindo entender o que queremos dizer quando predicamos qualidades, ou nomes, de Deus e outra maneira de pensar sobre analogia que se preocupa com nossa capacidade de fazer algo do que é revelado de Deus por esses nomes. O contraste me parece ser algo como a maneira como Antoine Lévy caracteriza a diferença entre a compreensão de Máximo e de Tomás de Aquino sobre a divisão incriado/criado, quando ele fala do ‘ktizocentrisme’ de Máximo e do ‘ktistocentrisme’ de Tomás de Aquino: criação-centrismo e criatura-centrismo. A perspectiva de Máximo é a do ato da criação: ele olha para a maneira como Deus está relacionado, por meio de suas energias/atividades, ou de outra forma por meio dos logoi, à sua criação; enquanto Tomás de Aquino olha para a maneira como o ser humano se esforça para entender a ordem criada e Deus precisamente da perspectiva de ser uma criatura. Lévy comenta: ‘A simetria inversa das perspectivas leva à diferença de conceituação, de linguagem; mas não leva a nenhuma divergência doutrinária, porque o processo causal é estritamente idêntico nas duas perspectivas.’

Talvez alguém pudesse sugerir que a doutrina dos logoi da criação e a doutrina da analogia entis são complementares de forma semelhante. Ambas estão preocupadas com a relação do Criador com sua criação; ambas preocupadas com o um e os muitos, e de fato com a reconciliação do um e dos muitos. Os muitos logoi são um no único Logos, que é o Logos feito carne em Cristo; então Máximo afirma por diversas vezes que ‘o único Logos é muitos logoi e os muitos logoi são Um’ (por exemplo, Amb. 7: 1081B). A doutrina da analogia entis tenta encontrar um meio termo entre incluir Deus e a criatura sob uma categoria geral de ser (o caminho da univocidade) e entender o ser de Deus e o nosso ser como completamente diferentes, sem nenhum ponto de comparação entre Deus e a criatura. Tanto a doutrina dos logoi quanto a doutrina da analogia entis, devidamente entendidas, buscam interpretar a divisão fundamental entre o incriado e o criado — uma divisão tão radical que Máximo a chama em um ponto de γνοια, ignorância (Amb. 41: 1305A) — não para comprometê-la de forma alguma. Mas as perspectivas dessas doutrinas são muito diferentes e levam a conceitos e linguagem que podem parecer incompatíveis (por trás da doutrina dos logoi da criação, embora não, eu acho, idêntica a ela, está a doutrina, sistematizada por Palamás, da essência e energias de Deus), mas, estritamente falando, não há divergência doutrinária. A doutrina dos logoi leva à prática da contemplação natural e, na tradição bizantina, isso faz parte da vida espiritual: assim como o asceticismo limpa as portas da percepção, assim também em nossa oração alcançamos a ver o significado e a coerência da ordem criada, como um passo em direção à contemplação de Deus. A doutrina da analogia entis se preocupa com as condições sob as quais o intelecto criado pode afirmar qualquer coisa inteligível sobre Deus. Parece que deve permanecer uma doutrina abstrata e filosófica, embora sempre tenha me parecido que os quatro princípios transcendentais de Bernard Lonergan: ‘Seja atento, seja inteligente, seja razoável, seja responsável’ emergem em um mundo de pensamento sustentado pela analogia entis, mas traçam um tipo de asceticismo do conhecimento que pode ser visto como uma dimensão da vida espiritual.

Começamos nossas reflexões, em sintonia com o assunto central deste simpósio, explorando como a analogia — precisamente a rejeição da analogia — pode indicar algum tipo de engajamento entre Karl Barth e a Ortodoxia. Nossa discussão rapidamente se tornou menos um diálogo entre dois elementos, mas mais um engajamento mais complexo entre três: Barth, a tradição católica ocidental e a Ortodoxia. Tenho a sensação de que desse engajamento triplo surgiu um engajamento bem diferente e mais tradicional entre o Ocidente católico e o Oriente ortodoxo. Onde está Karl Barth em tudo isso? Não tenho certeza de que quaisquer paralelos aparentes entre a atitude de Barth em relação à analogia e a negligência ortodoxa, ou mesmo a rejeição, da analogia levem a algum lugar muito significativo. Se, no entanto, pensar sobre a rejeição de Barth à analogia nos levou a alguma reflexão sobre o lugar que a analogia pode desempenhar na teologia ortodoxa, ou mesmo por que não o faz, então nosso pensamento, talvez, não tenha sido em vão.

Fonte: Andrew Louth, Selected Essays, Volume II: Studies in Theology, Oxford University Press, Oxford, Reino Unido, 2023.

11 de setembro de 2024

Energias divinas vs. Luz da glória


“Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus.” A Igreja Católica sempre sustentou que “veremos” a Deus. Há, no entanto, a controvérsia sobre o que significa “ver Deus”.

Primeiro, diga-se que, de um ponto de vista católico, Deus é incompreensível. Somos finitos e Ele é infinito. Nunca compreenderemos ou entenderemos Deus completamente. No entanto, as Escrituras afirmam que “veremos” a Deus. Santo Tomás de Aquino traçou uma linha nítida entre “ver a essência divina” e “compreender a essência divina” (STh I, q. 12, a. 1, 7). O primeiro (ver) não implica o último (compreender).

A distinção de Tomás entre ver e compreender tem sido contestada, particularmente por vozes no Oriente inspiradas por Gregório Palamás. Palamás declarou inequivocamente que os abençoados não veem e não verão a essência divina, porque a incompreensibilidade de Deus exclui "ver" a essência divina. Em vez disso, os palamitas propõem o conceito de "energias divinas", que são descritas como uma luz gloriosa - a mesma luz, eles dizem, que foi revelada na Transfiguração de Cristo. Para os palamitas, ver Deus deve se referir apenas a ver as "energias divinas", uma vez que a "essência divina" está fechada para nós como incompreensível.

Não seria honesto mencionar todas as citações patrísticas que se referem a theosis ou energeia como evidência para a posição palamita. É importante reconhecer que a posição palamita começou primeiro como uma defesa do hesicasmo e depois foi codificada na terminologia das energias divinas. O uso de energeia (νέργεια) nos Padres não significa necessariamente que os Padres empregaram o termo com as distinções totalmente carregadas que alguns palamitas inferem.

Eu concedo que há algumas passagens bem cabeludas nos Padres com relação à incompreensibilidade divina e “visão”. Tomás de Aquino está ciente delas. Aqui estão duas “passagens problemáticas” que Tomás identifica.

Para Crisóstomo (Hom. xiv. em Joan.) comentando sobre João 1:18, “Nenhum homem jamais viu a Deus”, diz: “Não somente os profetas, mas nem os anjos nem os arcanjos viram a Deus. Pois como pode uma criatura ver o que é incriado?”

Isso acaba sendo uma questão retórica, já que São João Crisóstomo continua dizendo que está falando de um modo de compreensão quanto à maneira como as Pessoas da Trindade se conhecem e se veem. Obviamente, agentes criados não compreendem ou veem dessa maneira porque somos criados e finitos, enquanto as Pessoas Divinas não o são.

Uma segunda passagem problemática:

Dionísio também diz (Div. Nom. i), falando de Deus: “Não há sentido, nem imagem, nem opinião, nem razão, nem conhecimento dEle.”

Tomás apela ao contexto desta declaração em Nomes Divinos. Antes da declaração acima, o Areopagita diz: “Ele é universalmente incompreensível para todos”, de modo que esta declaração não se refere aos beatos em particular. Como Tomás afirma, esta é uma referência à “visão da compreensão”, que é de fato impossível.

Os críticos de Tomás de Aquino assumem que ele acredita que o intelecto humano é capaz de compreender a essência divina. Isto é claramente falso, dadas as passagens acima. Em vez disso, Tomás afirma que os anjos e humanos beatos são feitos “deiformes” para que possam ver a essência divina (ver Summa Theologiae I, q. 12, a. 5). Tomás também se refere repetidamente a isso como a “luz da glória”, que é o meio pelo qual os beatos são elevados a esta visão beatífica.

Portanto, deve-se dizer que para ver a essência de Deus, é necessária alguma semelhança na faculdade visual, a saber, a luz da glória fortalecendo o intelecto para ver Deus, o que é dito no Salmo 35:10: “Na tua luz veremos a luz”. A essência de Deus, no entanto, não pode ser vista por nenhuma semelhança criada que represente a própria essência divina como ela realmente é.

Alguns disseram que Tomás de Aquino e Gregório Palamás podem ser reconciliados, mas não vejo como podemos reconciliar a convicção de Tomás de que "vemos a essência divina" com a convicção de Palamás de que não vemos a essência divina, apenas as energias. Certamente, ambos acreditam que "vemos Deus". Nesse sentido, eles podem ser reconciliados.

O Concílio de Vienne em 1311-2 decretou que os beatos "veem a essência divina".

O Concílio de Vienne condenou oito proposições - uma das quais destaca o peso magistral da ideia de que vemos Deus pela luz da glória: "Quinto, que qualquer natureza intelectual em si mesma é naturalmente abençoada, e que a alma não precisa da luz da glória para elevá-la a ver Deus e apreciá-lo alegremente."

A melhor fonte magistral, no entanto, é a constituição emitida pelo Papa Bento XII em 1336 Benedictus Deus, que esclarece tudo de uma vez por todas:

Desde a paixão e morte do Senhor Jesus Cristo, essas almas viram e veem a essência divina com uma visão intuitiva e até mesmo face a face, sem a mediação de nenhuma criatura por meio do objeto de visão; em vez disso, a essência divina imediatamente se manifesta a elas, de forma simples, clara e aberta, e nessa visão elas desfrutam da essência divina. Além disso, por essa visão e desfrute, as almas daqueles que já morreram são verdadeiramente abençoadas e têm vida eterna e descanso. Também as almas daqueles que morrerão no futuro verão a mesma essência divina e a desfrutarão antes do julgamento geral.

Gostaria de sugerir esta reconciliação entre Tomás de Aquino e Gregório Palamás:

A pluralidade de energias palamitas deveria ser mais apropriadamente chamada de “energias infinitas e inumeráveis”. Dessa forma, elas não são um “conjunto” finito de energias (por exemplo, 35 milhões de energias), mas sim uma infinitude. Dessa forma, elas são uma e infinitas, mas não uma e uma multidão.

Essa “luz da glória” da qual Tomás de Aquino fala é a luz do Tabor. É a energia divina que torna a alma humana “deiforme” ou “teoforme” para que a alma possa “ver”, mas nunca “compreender” a essência divina. (Isso não funciona exatamente porque Tomás a chama de “luz criada da glória” – veja abaixo.)

Quando dizemos “ver a essência divina”, pode ser apenas a luz da glória ou energia(s) divina(s) infinita(s). É como se disséssemos “Eu vi o sol hoje”, mas na realidade, não vimos a substância real do sol.

O principal problema é que parece que Tomás exclui “luz da glória” de ser Deus de fato. Ele a chama de criada. Mas eu desafiaria Tomás de Aquino sobre isso. Como algo “criado” pode tornar alguém “deiforme”? Uma luz criada não pode tornar uma alma deiforme. Isso é, na verdade, pelagianismo. Somente Deus (não uma criatura) poderia tornar uma alma humana “deiforme”.

O verdadeiro ponto de debate aqui então (e se Tomás de Aquino é conciliável) é se a luz da glória é criada ou não criada. Se não criada, parece se encaixar. No entanto, Tomás de Aquino diz “luz da glória criada” em STh I, q. 12, a. 7:

Ora, nenhum intelecto criado pode conhecer Deus infinitamente. Pois o intelecto criado conhece a essência divina mais ou menos perfeitamente na proporção em que recebe uma luz maior ou menor de glória. Uma vez que, portanto, a luz criada da glória (lumen gloriae creatum) recebida em qualquer intelecto criado não pode ser infinita, é claramente impossível para qualquer intelecto criado conhecer Deus em um grau infinito. Portanto, é impossível que ele compreenda Deus.

Se pudéssemos riscar a palavra latina creatum e substituí-la por non creatum, Tomás seria um palamita perfeito.

Fonte: Taylor Marshall, Can Aquinas and Palamas be Reconciled?, site pessoal.

10 de setembro de 2024

A práxis da psicologia


Um amplo estudo da obra-prima do psicólogo argentino Martín Echavarría. Aqui, pela complexidade da obra e pela abundância de termos novos e muito específicos, me vi obrigado a transcrever diversos trechos. Trata-se, até onde pude constatar, da maior obra sobre psicologia tomista publicada até hoje.

NOÇÕES PRELIMINARES

O psicólogo argentino Martín Echavarría lida brevemente no trecho abaixo sobre o divórcio da psicologia moderna com a ética, empurrando-a ao cumprimento de deveres legais, e não morais. Tal divórcio leva ao que Echavarría chama de “atitude nietzscheana”: a moral é repressiva e o mal é um elemento necessário com o qual devemos aprender a conviver, e não a eliminar.

Aos ouvidos modernos soa de modo estranho, se não negativo, ou, ao menos, fora de lugar e até perigoso, conectar a psicologia com a ética. Pareceria um moralismo ultramontano, superado pelas "conquistas" da psicanálise. Esse preconceito, além de provir de determinada inclinação afetiva habitual, da "estrutura da personalidade", corno se diria hoje, parece ter origem também na distorção que, atualmente, e já há vários séculos, reina sobre o caráter da ética ou da moral. Certa linha da modernidade, que tem sua culminação em Kant, conduziu a ética a uma formalização e juridicização excessiva, separando-a das tendências naturais, e, sobretudo, do apetite da felicidade e do deleite. Por um lado, estaria o que o homem se impõe como dever, desligado de sua natureza e de seu aperfeiçoamento; do outro, o natural, identificado com urna sensualidade egoísta. Viver de acordo com a ética consistiria em fazer violência contra a própria natureza, impondo-lhe uma regra de vida extrínseca que, longe de promover o desenvolvimento da pessoa, afoga suas tendências individuais. Não é estranho, por isso, que, diante desta ética, quase identificada com o direito, se tenha contraposto, ao final, a moderna psicologia, principalmente a psicanálise, que analisaria a enfermidade na qual a ética (ocidental) teria encerrado o indivíduo, ajudando-o a superá-la, ou, na medida do possível, a vivê-la de um modo menos opressivo, relativizando seu valor universal.”

[...]

Em síntese: chegamos assim a uma postura totalmente antitética à que descrevemos inicialmente como tradicional (clássica e cristã). Em primeiro lugar, porque a moral é vista como repressiva da subjetividade, em vez de como protetora de seu desenvolvimento e plenitude. Para a concepção tradicional, o santo é também o virtuoso por excelência. e, portanto, exemplo de plenitude humana. Embora a mensagem essencial da ética aristotélica esteja presente na genuína moral católica, a grande alternativa não é tanto entre Aristóteles (e a tradição moral aristotélica) e Nietzsche, mas entre a proposta radicalmente imanentista de Nietzsche e o Evangelho. Qualquer solução intermediária choca-se com a veemência da mensagem nietzscheana.

Em segundo lugar, porque se pretende superar a moral, não no sentido sobrenatural, como nos grandes autores cristãos, que iam muito além da ética, mesmo da correta ética de Aristóteles, assumindo-a no mais profundo dinamismo da graça e da vida mística; mas sim através de uma superação dialética na qual se assume o mal como necessário. Assim, a psicologia transforma-se em "genealogia da moral". A psicologia do desmascaramento não era alheia aos grandes psicólogos cristãos (veja-se, por exemplo, o magnífico e fino tratamento que São João da Cruz empreende dos defeitos dos principiantes e dos avançados em sua Noite Escura, como exemplo claro neste sentido). Mas esta se orientava ao objetivo positivo do desenvolvimento espiritual da pessoa. Em Nietzsche, como logo em Freud e Jung, ao contrário, o desmascaramento ordena-se à desilusão: é preciso perder totalmente a esperança em um sentido para esta vida alheio ao próprio viver, com seus aspectos positivos e negativos, prazerosos ou não. A morte é parte da vida. O mal é parte do bem.

[...]

De sua parte, a psicoterapia cognitiva surge de uma tentativa de alguns psicoterapeutas norte-americanos de superar a psicanálise como única opção. Muitos deles vinham de praticar a psicanálise, o mesmo que alguns representantes da psicologia humanista. Os representantes mais importantes da psicoterapia humanista são Albert Ellis (fundador da Terapia Racional-Emotiva-Comportamental)," Aaron Beck (fundador de uma escola que se chama justamente psicoterapia cognitiva) e George Kelly (fundador da psicoterapia dos constructos pessoais). Muitas de suas ideias fundamentais, no entanto, encontram-se desenvolvidas anos antes, em importantes autores europeus, e, embora por sua maior racionalidade e clareza em relação à psicanálise e outras correntes sejam em muitos pontos aceitáveis, sua atitude nem sempre se aparta daquela que chamamos a "atitude nietzscheana". Do ponto de vista dos conteúdos, se lhes poderia criticar certa tendência socrática (identificação do mal com o erro) e inclusive estoica, como se a terapia devesse centrar-se na eliminação de emoções como a tristeza, o temor e a ira, por serem perturbadoras. Como quer que seja, eles mesmos costumam colocar-se num plano explicitamente filosófico, como se vê por suas influências explícitas das filosofias estoica e existencialista.

A ESTRUTURA DA PERSONALIDADE

A finalidade da vida (felicidade)

Todo o conjunto da vida, todo o conjunto dos comportamentos humanos, tem por princípio o fim. Em outras palavras, para compreender a conduta humana é necessário compreender o tema do fim de cada ação, mas, em última instância, compreender o fim último da própria vida (modernamente chamado de sentido da vida), que não pode ser senão um só.

Aristóteles dividia a vida humana de acordo com o fim a que se prestava. São três tipos:

  • Vida voluptuosa. “A maioria dos homens mostra decididamente ter alma de escravos, ao escolher uma vida de animais”.
  • Vida política. “Os espíritos seletos, em contrapartida, e os homens de ação identificam a felicidade com a honra. [...] A honra, no entanto, parece ser um bem muito superficial para ser o que buscamos, pois, manifestamente, está mais em quem dá do que naquele que a recebe”.
  • Vida contemplativa.

Todo o caráter está estruturado em ordem ao que se quer como fim último. Em outras palavras, mesmo que isoladamente se note algum esforço e deliberação por parte de um indivíduo, precisamente por ir contra a espontaneidade da vida psíquica se pode perceber qual o fim último da vida desse indivíduo. Por isso as ações repentinas são uma ocasião especial para conhecer o verdadeiro caráter de uma pessoa. O tipo de caráter, ou, como diria Alfred Adler, o estilo de vida, define-se pela finalidade. O indivíduo, em seu afã de perfeição, escolhe os valores que conformarão a finalidade de sua vida (força corporal, força espiritual, imortalidade, virtude, piedade, riqueza, sentimento social, autocracia etc.).

De qualquer forma, o apetite por felicidade é inato no homem. Mas em quê consiste esta felicidade não é algo manifesto, e cada um busca como fim último, muitas vezes, coisas diversas, de acordo com sua disposição afetiva.

Isso não significa, no entanto, que a felicidade se encontre em qualquer desses fins, com se a pessoa humana tivesse o poder de decidir o que acalma e faz repousar seu desejo de perfeição. [...] A postura do Aquinate, em contrapartida, sustenta que há um verdadeiro fim último, que não depende das escolhas humanas e que preenche o apetite natural de felicidade. [...] Para ele, é necessário um procedimento de esclarecimento intelectual, impossível sem a retidão do apetite. Esse esclarecimento pode não dar-se por negligência ou por outras causas, e, assim, a pessoa pode buscar como fim último algo que não o é. Mas isto não quer dizer que alguém “escolha” outros fins, mas que escolhe não estabelecer os meios para algo que conhece como necessário ao desenvolvimento de sua natureza, que é conhecer claramente o fim, e, assim, se propõe como fim aquilo em direção ao qual seu temperamento ou seu vício o inclina. Uma vez conhecido o fim, a pessoa não pode não conhecê-lo como tal, a não ser que seu juízo se corrompa pelo erro, mas pode não considerar atualmente o que sabe habitualmente. [...] Somente em sentido muito impróprio falar-se-ia então em escolher o fim. Como quer que seja, se a pessoa o escolhe, coloca-o à altura dos meios, e ao homem como centro absoluto capaz de decidir o bem e o mal. É o “egocentrismo”.

Partes da alma

Sentidos interiores em geral:

Ao passarmos ao tema dos sentidos interiores, aproximamo-nos um pouco mais das problemáticas que interessam à práxis da psicologia. Em realidade, a maior parte dos fenômenos de que trata a psicologia de hoje pertence a essa esfera - a qual chamam, por vezes, “psique”, e Santo Tomás “anima” -, pois, aos seus expoentes, parece ser difícil superar este nível e chegar às potências espirituais, que eles não distinguem, e frequentemente confundem com os sentidos internos e a afetividade sensível. Os sentidos interiores contam-se entre as potências ligadas a órgãos corpóreos, e têm por objeto determinações particulares das coisas corporais, isto é, por elas não se alcança o conhecimento do universal. Santo Tomás distingue, com Averróis, quatro sentidos internos: o sentido comum, a imaginação, ou fantasia, a estimativa, ou cogitativa, e a memória. Esta divisão se faz de acordo com a diferença de objetos de cada potência, que é o modo adequado de distingui-las. Por esquecer este critério e deixar-se levar somente por critérios fisiológicos, a psicologia contemporânea perdeu de vista a distinção entre essas potências, das quais reconhece somente a memória.

A estimativa (cogitativa):

No homem, a estimativa não opera de maneira puramente instintiva, mas com certa “razão particular”, de modo que o útil e o nocivo se distinguem por certa comparação (collatio). É através da razão particular, ou “cogitativa”, que a razão universal influi sobre as paixões.

A memória, em especial a reminiscência (anamnesis):

A memória humana não é, no entanto, somente uma memória espontânea, como a dos animais, que desperta diante da presença de algo significativo do ponto de vista biológico, como coisa nociva ou conveniente. A memória humana é capaz de uma operação que a memória animal não possui, e isto em razão da influência do intelecto sobre a parte sensitiva; é o que Aristóteles chamou "anamnesis” (reminiscência): “No que diz respeito à memorativa, o homem não somente possui memória, como os demais animais, na recordação repentina das coisas passadas; possui também reminiscência, como se buscasse de maneira silogística a memória das coisas passadas, de acordo com as intenções individuais”. A reminiscência é um “movimento” (motus) em direção a um ato de memória. Busca-se, como que raciocinando, mas a partir de singulares, uma recordação a partir de outros, cuja conexão é contingente.

Santo Tomás chama reminiscência em sentido próprio a recordação voluntária. Mas reconhece que, segundo esses critérios, às vezes se recorda involuntariamente, porque os sentidos internos, apesar de estarem, no homem, ordenados à operação do intelecto, possuem certo grau de autonomia; pois ocorre que duas coisas se encontrem conectadas na memória, e, sem que se queira, passa-se de uma à outra. Esta recorrência involuntária de recordações se pode dar com maior frequência em determinados tipos de temperamento, e isso Santo Tomás atribui à compleição corporal. Assim, os de temperamento melancólico são muitas vezes atormentados por recordações, apesar do esforço para cessar de tê-las.

O funcionamento do intelecto humano:

Em particular, o intelecto humano tem como objeto próprio a essência das coisas materiais, pois, como ensina a experiência, todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos. O intelecto encontra seu objeto nas imagens (phantasmata) que os sentidos humanos lhe apresentam, e deve referir-se a das cada vez que quer entender (conversio ad phantasmata). Por isso, quando os fantasmas se apresentam de modo confuso, a intelecção se vê dificultada ou impedida. Não podemos aqui explicar todo o processo intelectivo através do qual se abstrai a species intelligibilis da imagem, por obra do intelecto agente, pois é algo que escapa ao interesse específico do presente estudo. Digamos somente que o intelecto agente é a luz natural da mente, e é o princípio ativo de toda a vida do espírito, primeiramente do entender. Uma vez fecundado pela espécie inteligível, o intelecto possível fica apto a produzir seu ato de entender, no qual pronuncia interiormente a coisa conhecida, vale dizer, expressando a palavra mental (verbum mentis ou verbum cordis). Deste modo se entende, com Aristóteles e Santo Agostinho, a operação intelectual como vida, e vida plena, que floresce na palavra mental. Por outro lado, é o contrário da tese vitalista, de grande aceitação entre psicólogos, segundo a qual o desenvolvimento intelectual depende do afogamento no "vital", identificado com o pulsional. Assim, por exemplo, Freud, que considera a racionalidade e a cultura construídas sobre a repressão das pulsões.

Pela necessidade que o intelecto humano tem dos fantasmas apresentados pelos sentidos internos [sentido comum, imaginação, cogitativa e memória], e por receberem estes a influência do intelecto, que lhes está unido, sua ação se vê elevada acima da capacidade dos sentidos dos animais, que se transformam em instrumento do conhecimento intelectual. Em particular, a cogitativa, que apresenta o indivíduo cuja natureza comum o intelecto conhece, permitindo-lhe alcançar o singular e, por conseguinte, poder atuar sobre ele.

Isto permite ao homem chegar ao conhecimento dos indivíduos e, sobretudo, das pessoas, para além de sua utilidade. O animal está como que encerrado na ordem de suas necessidades vitais, e não percebe as coisas prescindindo de seu significado biológico imediato. O homem, em contrapartida, graças ao seu intelecto, é capaz de transcender o âmbito do imediato, e de contemplar a realidade em sua essência. Com isto, abre-se o caminho para as relações autenticamente humanas, e para a busca de um bem que supera a ordem do útil ou prazeroso, e põe-se de manifesto o destino transcendente da pessoa humana. Isto é fundamental para a formação de um caráter são. A ignorância acerca do aspecto mais profundo da pessoa humana, que caracteriza as escolas que desconhecem a verdadeira natureza do intelecto, reduzindo-o a animalidade, terá, depois, consequências práticas negativas. Mas, por outro lado, é verdade que muitas vezes os homens não se elevam a esse nível, e vivem principalmente segundo o âmbito sensitivo.

Por receber a notícia das coisas de modo fragmentado, a partir da sensibilidade, o intelecto humano não possui de modo instantâneo um conhecimento completo da verdade. Primeiramente, conhecemos pelo intelecto princípios sumamente universais. Por isso, nosso intelecto deve executar um processo às vezes penoso até chegar à verdade: um processo de esclarecimento, do mais confuso ao menos confuso, passando de uma notícia a outra, de uma ratio, ou aspecto inteligível, a outro. É por isto que o intelecto humano é também chamado "razão" (ratio). O intelecto humano possui duas operações: uma pela qual capta simplesmente os aspectos inteligíveis das coisas (intelecção); outra, pela qual os une e separa para conhecer de maneira mais completa a realidade (composição e divisão); da combinação de composições e divisões, surge um terceiro tipo de operação, o raciocínio propriamente dito — que, à diferença dos "raciocínios" da cogitativa e da memória, se move na ordem das conexões necessárias. Pelo raciocínio, a partir das realidades evidentes, podemos chegar às ocultas; a partir dos efeitos, conhecer as causas, e vice-versa. Parte-se de verdades entendidas para chegar a verdades desconhecidas. É um movimento que só encontra repouso na posse completa da verdade. A mente humana busca um repouso que não é aniquilação ou descarga de tensão, mas ato e plenitude. Esse “descanso da mente” (quies mentis) consiste na contemplação da verdade.

O experimentum como o produto mais importante e superior da parte sensível da alma, indispensável para o exercício da prudência:

De outra parte, Santo Tomás considera a cogitativa como uma potência própria do homem, e, na maior parte das passagens de sua obra em que trata do tema, atribui aos animais brutos somente a estimativa. No entanto, parece admitir que, em alguns deles, dá-se uma "participação", conquanto pequena, nesta faculdade. Em particular, o faz ao tratar o tema do "experimentum", que é superior à simples memória. Diz Tomás: ‘Mas, acima da memória, nos homens, está próximo o experimentum, do qual alguns animais não participam senão pouco. Pois o experimentum se forma pela comparação de muitos singulares recebidos na memória. Este tipo de combinação é própria do homem, e pertence à força cogitativa, que é chamada razão particular, e que compara as intenções individuais, como a razão universal o faz com as intenções universais. E como a partir de muitas sensações e recordações os animais procedem a buscar ou evitar algo, por isso é que parecem participar em algo do experimento, ainda que pouco’.

Os animais superiores são capazes de uma certa elaboração experimental, que os faz assimilarem-se ao homem e serem capazes de aprender. Mas a cogitativa, em sentido estrito, ou seja, a que elabora a experiência, é própria somente do homem.

A memória, como vemos, permite a conservação desta experiência ou experimentum (empeiría, em Aristóteles), que se realiza pela comparação de muitos conhecimentos e recordações singulares, com o auxílio da razão particular. Por este motivo, o Doctor Humanitatis, nisto seguindo a Cícero, considera a memória como parte “integral” da prudência, que aperfeiçoa o intelecto. Isto é assim porque, para agir prudentemente, é necessário ter em conta não somente a verdade em universal, apresentada pela razão, e o conhecimento do singular, presente pela cogitativa, mas também a experiência (experimentum), que se forma graças a memória. Assim, a memória desempenha papel fundamental na compreensão das situações humanas e no desenvolvimento da própria personalidade.

O experimentum é o produto mais elevado das faculdades do nível sensitivo, e, sob a direção da razão universal, desempenha papel fundamental na vida prática e no conhecimento científico natural. Parece corresponder, conquanto em outro marco teórico, ao que a psicologia contemporânea chama vivência (Erlebnis), e, mais especialmente, ao “complexo psíquico”. Como entre os objetos da memória alguém encontra a si mesmo, há um experimentum de si mesmo que possui papel importante na vivência da própria identidade, ainda que não seja o fator decisivo.

A vontade:

O objeto dos apetites da ordem sensitiva corresponde ao bem deleitável, no caso do apetite concupiscível, e ao bem árduo, no caso do apetite irascível. No entanto, no caso do apetite intelectivo, ou seja, da vontade, trata-se do bem comum, que contém em si todos os bens particulares. Isso faz com que, pela vontade, o homem transcenda às necessidades vitais imediatas e se dirija ao que é absolutamente bom.

A vontade necessariamente quer a felicidade (felicitas), ou seja, não há livre escolha aqui. Há livre escolha, isso sim, nos meios para alcançar a felicidade.

Quanto aos movimentos dos apetites, eis uma tabela-resumo:

 

O caráter

O caráter é o conjunto ordenado dos hábitos operativos práticos (afetivos, cognitivos e comportamentais). É um “modo de ser” ou, como dissemos acima, um “estilo de vida”. Tais hábitos são “operativos” porque aperfeiçoam em termos de ação e paixão. Não fazem parte do caráter, portanto, os hábitos “entitativos”, ou seja, aqueles hábitos que dispõem o corpo e a alma para que recebam da forma o ser, isto é, para que estejam em ordem à posse do ser (p.ex., saúde, beleza, força, na ordem natural, e graça, na ordem sobrenatural). Os animais, a propósito, apresentam apenas hábitos entitativos. Eles não têm a liberdade para cultivar hábitos operativos, embora, evidentemente, possam ser amestrados por um agente externo a isso.

Observe que há potências que não precisam ser completadas porque são potências ativas, como, por exemplo, as da ordem vegetativa e o intelecto agente. As virtudes dessas potências são completas em si mesmas, ou seja, suas virtudes são as próprias potências. Observe ainda que há potências que são passivas, como, por exemplo, os sentidos externos. Elas tampouco são sujeito de virtude. Não há o que “completar” nelas.

Restam as potências que são ao mesmo tempo ativas e passivas e que, essas sim, são passiveis de serem completadas. São elas intelecto possível, vontade, apetites sensitivos e sentidos internos. Por isso se diz que as virtudes são hábitos, ou seja, são como que perfeições “tidas”, que ordenam essas potências às suas operações. Hábitos, portanto, são disposições dificilmente móveis.

As virtudes, que formam a base do caráter, são de dois tipos:

  • Virtudes intelectuais. São as que aperfeiçoam o intelecto possível: arte, prudência, inteligência, ciência e sabedoria.
  • Virtudes morais. São as que aperfeiçoam a vontade e os apetites sensitivos: justiça (vontade), fortaleza (apetite irascível) e temperança (apetite concupiscível).

Observe que as virtudes morais não são naturais, ou seja, elas têm de ser adquiridas. Mas há, sim, hábitos naturais, que são como que um conjunto de inclinações afetivas que formam o que chamamos modernamente de “temperamento”. Esses hábitos estão enraizadas na compleição corporal e podem ser modificadas pela formação das virtudes morais. Aliás, o caráter resulta precisamente disso: em modificar a afetividade (aka temperamento) para torná-lo humano e inseri-lo no dinamismo espiritual do homem. Essas disposições do temperamento (e também do costume vigente, uma vez adquiridas por repetição e não por eleição) podem ser contrárias não somente à razão, mas à inclinação natural do apetite “animal”. Essas tendências não somente se afastam da normalidade “humana”, mas da normalidade das tendências animais.

O eu

Segundo Rudolf Aller, o homem “tem” um caráter, mas “é” uma pessoa. Em outras palavras, o caráter é o modo de ser da pessoa, enquanto a pessoa é a substancialidade em si. O eu (ego) equivale a pessoa. O eu (ou pessoa) não é uma “parte” ou “potência” do ser, mas a totalidade, ou como diriam os tomistas, o suppositum ou hypóstasis. Não há, portanto, “o eu”, mas simplesmente “eu”.

No entanto, às vezes Tomás de Aquino faz uso da palavra ego para designar não a pessoa em si, mas a potência principal do homem, a saber, o intelecto. De qualquer forma, esse uso contrasta com o uso que a psicologia contemporânea faz da palavra “eu”. De maneira geral, para os psicólogos modernos o eu nada mais é do que um conjunto de imagens com forte valência afetiva e vital, o que equivaleria, na estrutura da personalidade tomista, ao experimentum (produto da cogitativa com a memória, ou seja, a um produto dos sentidos internos, da parte sensitiva da alma. É lamentável que um conjunto de recordações seja considerado o eu real.

A autoconsciência e a memória intelectual

Trata-se do conhecimento subjetivo e particular que cada um possui da própria mente. A mente não precisa de uma species intelligibilis para perceber-se, pois conta com uma autopresença estrutural, característica dos espíritos.

Observa-se aqui algo bastante curioso: a memória que temos de nós mesmos, chamada memoria sui. Esta memória faz parte da chamada memória intelectual, que é distinta da memória sensível, ou seja, não tem diretamente a ver com o experimentum e o eu social, mas é uma “memória das espécies” que, apesar de ser intelectual, necessita um retorno aos phantasmata para recordá-las. Assim, o senso de identidade pessoal, além do intelecto (que possui memoria sui apenas acidentalmente temporal), precisa da memória sensível.

Mas Santo Tomás atribui à memória intelectual não somente a capacidade de retenção habitual das espécies, mas de suas ações, que são particulares, e, portanto, situadas no tempo.

Mente, a luz natural à imagem de Deus

Pode-se falar da mente como imagem de Deus num sentido natural, enquanto a luz natural do intelecto, pelo qual discernimos o verdadeiro, o bom e o mau, inclinando-nos em direção ao nosso fim, é participação da luz divina. A luz natural da razão é um selo da luz do rosto divino na parte superior da alma humana, centro energético natural da personalidade. O intelecto humano é intelecto na medida em que participa do Intelecto.

Desse modo, assim como a pars sensitiva naturalmente se ordena à pars intelectiva, ou mens, esta última é regulada por alo que está acima dela mesma, que é a própria luz divina, seu arquétipo original. A personalidade humana, por isso, não se desenvolve de maneira harmônica somente quando a sensibilidade está impregnada de racionalidade, mas também quando, por sua vez, a razão e a vontade elevam o olhar para as razões eternas, e se deixam iluminar e conduzir por elas. Ademais, se o intelecto e a vontade são o fim ao qual se ordenam as potências sensitivas, é verdade também que elas mesmas, por sua vez, estão chamadas em última instância a superar-se a si mesmas, com a ajuda da graça, em direção a um objeto que infinitamente as transcende, seu Criador.

Além dessa imagem natural de Deus no homem, de acordo com um conhecimento e amor naturais de Deus, está a imagem sobrenatural de Deus como imago Trinitaris, que é a imagem em sentido pleno, segundo a qual a mente conhece e ama a Deus de um modo mais alto.

Neste sentido, a imagem de Deus se encontra em três estados na mente do homem. De um modo, na medida em que possui mente, todo homem é imagem de Deus, pois, pela estrutura mesma de seu espírito, pode passar ao conhecimento e ao amor de Deus. De um modo mais perfeito, alguns homens são imagem de Deus pela graça, que faz conhecer e amar a Deus, mas de maneira imperfeita (conquanto de um modo superior ao mero conhecimento natural), porque, neste mundo, o conhecimento de Deus é principalmente negativo, e dEle sabemos mais o que não é do que o que efetivamente é. A imagem de Deus alcançará em nós sua plenitude quando o virmos e amarmos na glória, pois "sabemos que, quando se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como é" (João 3, 2).

Assim, a imagem da Trindade na alma consiste na memoria, intelligentia et voluntas Dei, vale dizer, não já enquanto recordamos, inteligimos e amamos as coisas criadas, incluindo nosso próprio eu, mas enquanto, transcendendo a tudo, também à nossa própria mens, recordamos, conhecemos e amamos a Deus; vale dizer, da posse habitual na mens da notitia e amor de Deus pela graça, na memoria, se passa à sua intelecção e ao seu amor atuais. Em nosso eu transformado pela graça, podemos contemplar um reflexo da Trindade, sempre que não nos detemos em nós mesmos, mas nos dirigimos, a partir da semelhança, ao exemplar.

A vida plena

A felicidade, dissemos acima, é o fim último do homem.

Ela consiste na operação da melhor potência com relação ao melhor objeto. Sendo a inteligência nosso eu mais verdadeiro, todo o desenvolvimento da personalidade deve estar centrado no desabrochar dessa dimensão, que, além de tudo, é a mais deleitável. A atividade própria do intelecto é a contemplação da verdade. Por isso, toda doutrina que mine a ordenação do intelecto à verdade elimina, no fundo, a possibilidade de uma plenitude propriamente humana, ficando o homem reduzido à sua dimensão animal, e seu comportamento explicado, em última instância, pela busca do útil ou do prazeroso para os sentidos, ou transformado num absurdo que termina na morte.

A verdadeira felicidade consiste na contemplação que, por sua vez, consiste na sabedoria. O homem a encontra sobretudo na solidão interior, afastando sua atenção e afeto das outras coisas, ingressando em sua própria mente e repousando na verdade (“saber beatífico”).

NORMALIDADE E VIRTUDE

Normalidade tem a ver com norma, então qual é a norma que define o desenvolvimento humano a seu fim último? O homem normal é o homem bom, e o homem bom é o homem virtuoso, ou seja, o homem que apresenta uma unidade de caráter na qual as virtudes morais apresentam-se integradas. E esta unidade de caráter, como qualquer unidade, é uma unidade harmonicamente hierárquica: a prudência é a virtude arquitetônica em relação às virtudes apetitivas (temperança, fortaleza, justiça).

Mas o que é uma virtude? Virtude é uma espécie de “força” que complementa uma potência. O homem virtuoso é, portanto, aquele que aperfeiçoou as potências humanas. Como o homem é um animal racional, é natural ao homem que seu aperfeiçoamento consista em viver segundo a razão. Vejamos a clássica definição de virtude de Aristóteles:

A virtude é, portanto, o hábito eletivo que consiste numa posição intermédia para nós, determinada pela razão e tal como a determinaria o homem prudente.

Em outras palavras, a virtude consiste num ponto médio entre os extremos de vício. O homem virtuoso, ou seja, o homem normal, é aquele que possui seu centro na razão. Mas note que a normalidade se refere ao todo do homem, e não às suas partes isoladamente. Por exemplo, é normal gozar com o belo ou sentir repugnância pelo disforme. Mas isso é normal segundo a natureza humana. Não é disso que estamos falando aqui, ou seja, não estamos nos referindo à normalidade da natureza humana, mas à normalidade da personalidade humana.

Prudência

A prudência é a virtude especialíssima que aperfeiçoa o intelecto para ordenar as paixões e as condutas. Ela é tão importante que psicólogos consagrados como Rudolf Allers e Alfred Adler entendem que a falta da prudência é fator central do caráter neurótico. É à prudência que coloquialmente chamamos de “sabedoria de vida”, ou seja, é a virtude que busca alcançar o fim e que tem por objetos os meios adequados para alcançar esse fim. No entanto, para alcançar esse fim, a prudência depende da retidão da apetitividade.

Em outras palavras, a prudência, por ser intelectual, é a virtude de captar a proporção entre o fim e os meios e, por isso, discernir entre o que está de acordo com o fim e o que não está. É próprio da virtude estruturar a afetividade, dando-lhe ordem. O intelecto precisa de outras virtudes antes de exercer a prudência, a saber, a sindérese (hábito dos primeiros princípios práticos) e a ciência prática. A posse dessas duas virtudes que adquirimos a percepção intelectual do bem humano, que deriva da luz da razão. Essa luz da razão encontra-se impressa no ápice de nossa mente, e é a partir dela que se forma nosso caráter.

Há que se diferenciar a prudência da astúcia. A astúcia é uma falsa prudência porque o astuto, embora tenha a habilidade para encontrar os meios para determinados fins particulares, se dirige a falsos fins. O prudente tem conhecimento prático, mas não um conhecimento técnico ou artístico apenas. O ato prudente implica a ordem da afetividade.

Alfred Adler mostrou com acerto como é próprio do caráter neurótico a elaboração de uma arte de vida caracterizada pelo esquematismo, que o protege do choque de seu fim fictício contra a realidade, bem como da insegurança e da angústia. Segundo Adler, o grande defeito da psicanálise de Freud é seu esquematismo, que oferece ao neurótico um subterfúgio ideal para escapar da realidade e justificar sua postura irreal diante da vida com uma filosofia da impossibilidade radical da mudança. Também outras escolas, como o behaviorismo e o cognitivismo, parecem antes visar à aquisição de uma arte de vida que buscar a prudência.

[...] Não se trata de formar uma máquina, nem um organismo vivente qualquer, mas uma pessoa. Se para desenvolver um artefato ou adestrar um cão basta a técnica, por complexa que possa ser, não é assim na formação de uma personalidade humana. Esta supõe uma plasticidade única que lhe garante o realismo.

Ainda a prudência: experimentum e inclinação afetiva

Se por um lado o fantasma é o ponto de partida da abstração matemática, o experimentum é o ponto de partida para o comportamento humano. O experimentum se forma a partir de muitas experiências, ou seja, a partir das comparações que a cogitativa faz das intenções individuais e que são retidas na memória. Mas não devemos esquecer que o intelecto também intervém na formação do experimentum, mesmo que acidentalmente, pelo fato de ser atemporal. Em outras palavras, o intelecto “preceitua” o experimentum e, se o faz retamente, forma o experimentum da prudência.

Porém, como o intelecto logra preceituar retamente? Há um aspecto afetivo que intervém em sua ação na formação do experimentum. Ocorre que na memória, há não somente o experimentum das coisas exteriores, mas há também um experimentum de si mesmo. Em outras palavras, existe um conjunto orgânico de imagens e intenções que cada um foi formando de si mesmo, que se inicia na infância.

Eis porque a reeducação é o objetivo número 1 da psicoterapia tomista. Este experimentum de si mesmo é produto da ordem de imagens e intenções organizadas pela cogitativa, que é o princípio da reminiscência. A pessoa que apresenta um desvio de caráter tem de dissolver a rede de representações que ela fez de si mesma e da realidade. A dificuldade em fazer essa reeducação está em alterar as disposições afetivas, ou seja, os hábitos éticos. Os transtornos só podem ser corrigidos quando reeducamos a afetividade mediante as virtudes. E a virtude da prudência, central nessa transformação, depende do juízo reto sobre os particulares, ou seja, depende da ação da inteligência.

Esta nova afetividade, conquistada por meio das virtudes, indica que a pessoa tem conaturalidade afetiva com o bem. Ela não apenas sabe abstratamente o que deve fazer, mas tem uma espécie de “simpatia” pelas boas obras. Se a vontade e os afetos não mudarem, a escravidão às experiências negativas continuará. Para mudar o modo de experimentar é necessário mudar o querer. Com a mudança do modo de experimentar virá concomitantemente uma nova memoria sui (memória espiritual residente no intelecto) e uma autêntica fidelidade ao ser.

Temperança

A temperança é a mais inferior das grandes virtudes. Ela modifica diretamente as paixões concupiscíveis. A importância da temperança reside na ideia de que a pessoa que deseja moderadamente esperará com moderação e se entristecerá moderadamente na ausência das coisas desejadas.

A temperança evita a dispersão do apetite sensitivo na multiplicidade de objetos que o podem atrair, permitindo ao espírito o retorno sobre si mesmo, a memoria sui, requisito fundamental para uma vida humana plena. [A] temperança é a virtude pela qual colocamos ordem no eu.

O temperado pode ser confundido com uma pessoa “pouca afetiva”. Mas essa impressão frequentemente apoia-se em elementos aparentes pois, pelo contrário, o temperado é mais afetivo quando há de sê-lo e como há de sê-lo. Trata-se de uma afetividade luminosa porque é espiritual, ou seja, é regulada pela vontade de acordo com a reta razão. O temperado é temperado não apenas de acordo com as necessidades da vida animal, mas também e sobretudo de acordo com as circunstâncias sociais e culturais concretas. O temperado, portanto, só parecerá um “rústico exagerado” àqueles que, pelo contrário, ainda não possuem este hábito. O temperado é belo porque seus movimentos são humanos, isto é, racionais e “divinos”, esclarecidos pela luz espiritual.

A temperança tem a ver principalmente com a temperança do sentido do tato (e com o paladar, que é uma espécie de tato). O deleite do tato é o mais forte de todos e é ele quem tem mais força para arrastar a razão e a vontade. A abstinência é a temperança no uso da comida. A sobriedade é a temperança no uso da bebida, em especial daquelas que podem arrastar a razão. A castidade é a principal forma de temperança, que se refere aos atos venéreos, ou seja, aos prazeres sexuais. A castidade dá força à mente porque concentra as energias nas operações espirituais. Como vimos no início deste estudo, a veemência de uma das potências leva à remissão das demais. O pudor é a temperança nos atos que se relacionam à castidade, como beijos, carícias etc.

Vale lembrar que temperança não é continência. O temperado tem sua afetividade devidamente pacificada. O continente, não: ele tem apenas a reta intenção da vontade, mas sua afetividade ainda não se alinhou à vontade, pois ainda tende ao prazer. A continência é, digamos, um meio-caminho para a virtude da temperança.

Há outras virtudes que, embora não estejam diretamente associadas às paixões concupiscíveis, guardam certa relação com ela por também serem de caráter “refreante”. É o caso da mansidão, que se refere à moderação da ira, que provém de certa doçura afetiva pela qual a pessoa tem aversão a entristecer o próximo e, por isso, necessária para que o homem seja “dono de si”, liberando o intelecto para respeitar e contemplar a verdade. É também o caso da modéstia, que se refere à moderação em todas as demais coisas, e se divide em quatro: (1) humildade (movimento em direção a alguma excelência, que não se confunde com a pusilanimidade e uma autocensura obsessiva e masoquista – não tem nada a ver com um apego ao que é baixo, mas, pelo contrário, ao caráter “criatural” do ser humano, ao fato de que não nos encontramos no “abismo da realidade”, mas que Deus é seu centro e cume), (2) estudiosidade (desejo do conhecimento, em oposição à curiosidade), (3) movimentos e ações corporais decentes e honestos, tanto a sério quanto por jogo, (4) aparência exterior (vestuário etc.).

Por fim, cabe também lembrar que as virtudes humanizam todas as dimensões da personalidade e, por isso, a brincadeira, a diversão, o bom humor fazem parte da vida e são ingredientes do caráter virtuoso.

Fortaleza

Embora seja uma virtude do apetite irascível, a fortaleza tem menos a ver com agressividade, ou seja, com a destruição do mal contraposto ao bem perseguido, e mais com resistência e sustentação no bem até às últimas consequências. Consiste, portanto, em resistir às frustrações para conservar a tendência ao bem, mesmo que sob risco de morte. Em especial, a resistência às frustrações menores do cotidiano chamamos paciência. O impaciente é, portanto, uma pessoa tímida, que sucumbe à menor dificuldade.

Aqui Echavarría introduz o interessante conceito de magnanimidade. Os magnânimos são as pessoas que se julgam dignas de grandes coisas e são de fato dignas de grandes coisas. Por outro lado, os discretos são os que se julgam dignos de pequenas coisas e são de fato dignas de pequenas coisas. No entanto, o que se julga digno de grandes coisas e são de fato dignas de pequenas coisas são os presunçosos (ou “vaidosos”, ou “afetados”).

Uma das virtudes componentes da magnanimidade é a confiança, ou seja, o hábito daquele que confia em suas próprias capacidades, daquele que “espera em si mesmo, embora abaixo de Deus”. É claro que ter confiança em si mesmo não significa independência total: em primeiro lugar, obviamente há que se depender de Deus, nosso “amigo mais poderoso”, e em segundo lugar há que se confiar nos outros homens, sem os quais é impossível viver.

A outra virtude componente da magnanimidade é a segurança, que é certa tranquilidade perfeita no ânimo em relação ao temor. Não se trata de carecer de todo temor, mas carecer do temor que é contrário à reta razão. Diz Aristóteles:

É também uma necessidade para ele ser aberto em seus ódios e em suas amizades, porque esconder seus sentimentos é próprio daquele que tem medo. O magnânimo se preocupa mais com a verdade do que com a opinião, e com falar e agir em plena luz. E pelo fato de desprezar tudo, fala com franqueza e veracidade, salvo no que diz com ironia, pois é irônico em seu trato com o vulgo. [...] O movimento do magnânimo, segundo se crê, deve ser lento; sua voz, grave; seu falar, repousado. Com efeito, não tem pressa aquele que por poucas coisas se afana, nem é veemente o que não considera coisa alguma coo grande. A voz aguda e a velocidade denotam o contrário.

E comenta Tomás:

Os movimentos do corpo se diversificam de acordo com os diferentes conhecimentos e afetos. E, por isso, sucede que à magnanimidade se sigam determinados acidentes sobre os movimentos corporais. Pois a velocidade do movimento provém de que um homem busca realizar com pressa muitas coisas. Mas o magnânimo tende somente às coisas grandes, que são poucas, mas que requerem grande atenção; por isso, tem movimentos lentos. De modo semelhante, a voz aguda e a velocidade correspondem sobretudo aos que querem discutir a respeito de tudo, coisa que não corresponde aos magnânimos, que não se intrometem senão nas coisas grandes. E assim como as preditas disposições dos movimentos corporais convêm aos magnânimos quanto ao modo de suas afeições, por isso também se encontram tais condições de maneira natural nos que estão naturalmente dispostos à magnanimidade.

Justiça

O caráter humano tem uma faceta social. Até agora, as virtudes que revisamos são individuais. É necessário que o homem adquira uma virtude que o ordene ao bem comum; eis a justiça. Afirma Jose Pieper: “O homem é, para Tomás, não somente um todo e uma pessoa, mas também parte de um todo. Disto se segue que essa necessidade de vinculação a uma comunidade, em homens moralmente bons, não somente deve chegar ao reconhecimento, mas também ao ato”.

Não se fala somente de justiça particular entre indivíduos, mas da justiça legal, que ordena os atos ao próprio bem comum. A justiça legal é o guia fundamental na estruturação natural do caráter, e deve vir acompanhada da virtude da equidade, que confere certa plasticidade à justiça, pois é o hábito de atribuir justiça não com base na lei positiva, nem nos costumes, mas na própria natureza humana.

Amor

Embora não seja propriamente uma virtude, cabe aqui versarmos sobre o amor. Ele é um elemento fundamental na formação da personalidade.

“Amor” é um termo analógico e, portanto, pede clareza. Há em geral três amores: (1) o amor natural, que é a tendência natural de uma coisa a seu fim, (2) a paixão do amor, que é o primeiro movimento do apetite concupiscível (vimos isso acima), e (3) o amor espiritual, que é um ato da vontade. No contexto do amor espiritual, temos (3a) o amor de concupiscência, que se ordena ao amor pessoal (de si ou de outro) e que é útil e prazeroso e (3b) o amor de benevolência, que quer um bem para o outro, seja por beneficência (beneficiar a alguém) ou por concórdia (beneficência mútua em questões práticas, como numa “amizade política”).

No entanto, o amor mais forte é o amor de amizade. Aqui não há de outra: a verdadeira amizade pressupõe a plenitude da virtude e, ao mesmo tempo, uma relação de amor com outra pessoa também virtuosa. É na amizade que culmina o desenvolvimento de uma personalidade plena. O amor 3b (benevolência) é um pré-requisito, claro, mas não basta: é necessário que seja recíproco. Se um dos dois ama concupiscentemente, então não há verdadeira amizade. Ademais, a amizade implica o amor de si pois somente assim podemos ver no outro um “eu mesmo” também. Se não amamos a nós mesmos, ou seja, se somos incapazes de ver em nós um eu e amar o fim desse eu, seremos igualmente incapazes de ver um “eu mesmo” no outro. O amor será, na melhor das hipóteses, um amor de benevolência sem união afetiva. A imagem que possuímos de si influi no modo de amar os outros porque sempre amamos o outro sobre a base do amor a nós mesmos.

Vale lembrar que um dos amores de amizade fundamental é a amizade com os pais e a amizade entre os pais. Os pais, idealmente falando, querem a seus filhos como uma parte de si mesmos. A família é uma espécie de “útero espiritual” porque o eu da criança, mesmo que entitativamente seja diverso do eu dos pais, é uma continuidade deles. No início de sua vida, o papel da mãe é fundamental. Conforme cresce, o pai ganha primazia. Explica Josef Pieper:

O amor materno, não é necessário “conquistá-lo”, e tampouco há nada que faça com que se perca. O pai sim, põe condições. [...] O desejo de que o amado não somente se sinta bem, mas que realmente se saia bem em tudo. Foi dito, com razão, que o amor de uma pessoa madura deveria possuir ambas as coisas: o elemento materno e o paterno, algo que fosse ao mesmo tempo incondicionado e exigente.

E diz Tomás

[A] mulher sozinha não basta, mas se exige sobretudo a ação do homem, no qual a razão é mais perfeita para educar e a virtude mais potente para castigar.

E diz Echavarría:

Uma das funções principais dos pais é a comunicação vital de suas experiências [experimentum] ao filho, para a formação de sua prudência, comunicação que implica não apenas, nem principalmente, uma instrução teórica, mas sobretudo a comunicação de uma atitude diante dos fatos determinados e diante dos fins, e que vá formando, a um só tempo, a prudência e as virtudes da criança, ambas profundamente compenetradas. [...] É necessária a intervenção masculina, com seus dotes próprios de racionalidade e firmeza. [...] A ausência ou deficiência da mãe pode gerar uma personalidade rústica ou insensível, a ausência, insuficiência ou negatividade da ação paterna tende à produção de caracteres inseguros e torna difícil a aquisição da prudência. [...] De fato, costuma-se reconhecer no psicólogo o papel de individuar e suprir as falhas da educação paterna, não somente em crianças, mas sobretudo em adultos. Esta ajuda continuará a ser pouco útil, se não for, às vezes, nociva, enquanto não se reconhecer que o que fundamentalmente se há de educar (ou reeducar), desde o ponto de vista humano, é a prudência e as virtudes, com tudo o que isto acarreta.

Mas há uma forma de amor que transcende à mera amizade: o amor a si mesmo. Ele se funda na memória substancial “pela qual nossa alma está sempre habitualmente presente a si mesma, conhecendo-se e amando-se virtualmente”. É desta autopresença que procede o apetite de felicidade. Diz Pieper: “Esta exigência de uma plenitude existencial é a forma de amor primária, que tudo fundamenta e torna possível, e, ao mesmo tempo, a que nos é mais familiar e querida. Quem for capaz de entender isto com verdadeira iluminação estará também capacitado para compreender um pouco melhor que esse amor com que nos amamos a nós mesmos é a medida de todo amor”. Note que é essa como que unidade profunda do nosso ser que procede a “amizade” que temos em relação a nós mesmos, que na verdade é superior à amizade precisamente porque é a matriz da amizade. Mas o amor de si pode falhar porque (1) a pessoa se ama de acordo com aquilo que não é o principal – ou seja, não busca o bem para o que é principal para seu eu profundo, isto é, a mens (parte intelectiva) ou (2) busca a felicidade onde ela não pode estar – ou seja, não é capaz de recolher-se interiormente, isto é, incapaz de morar no próprio coração.

Vale a pena citar Santo Tomás neste aspecto:

O virtuoso quer muito conviver consigo mesmo, ou seja, voltando ao seu coração, e meditando consigo mesmo. E isto ele o faz com deleite. Primeiro, em relação à memória do pretérito, porque a memória dos bens que fez é para ele deleitável. Segundo, pela esperança do futuro, pois tem a esperança de agir bem no futuro, o que lhe é deleitável. Terceiro, em relação ao conhecimento do presente, pois abunda, de acordo com a mente, em “teoremas”, vale dizer, em considerações verdadeiras e úteis.

[...]

Os homens beatos, vale dizer, os homens abundantes, não necessitam de amigos úteis, porque os beatos são suficientes a si mesmos. O contrário sucede com os “maus”, que não podem conviver com a própria realidade interior deformada, pelo que se veem impelidos a distraírem-se na exterioridade e a multiplicar as relações interpessoais, não para fundar amizades profundas, mas para que lhe causem deleite ou lhe proporcionem alguma utilidade.

É claro que o homem, sendo apenas uma parte do universo (ele participa do ser, afinal), tem inclinação natural a amar a fonte do ser mais que a si mesmo: Deus. Este é o homem mais feliz: o que ama a si mesmo em relação à mente e quer para si a sabedoria e, ao mesmo tempo, ama a Deus mais que a si mesmo.

A suprema felicidade: a dimensão sobrenatural da personalidade

Possuir as virtudes éticas é um requisito para a felicidade, mas em si não bastam. A felicidade especulativa (ou “contemplativa”) é divina porque consiste no desabrochar daquilo que em nós é mais semelhante a Deus. Mas ela só é possível com a graça.

Ao homem é impossível efetuar todo o bem que sua natureza é capaz (o “bem da virtude adquirida”). Sem a graça, nos limitamos a uma dimensão essencialmente técnica, ou seja, àquilo que o Angélico chamava de “construir casas e plantar vinhas”. Se por um lado a graça é necessário, as virtudes também são. Portanto, pregar as virtudes não é “moralismo”.

A graça, dissemos acima quando nos referimos aos hábitos, é um hábito entitativo. O ser da graça funda nossa personalidade sobrenatural, faz de nós novos “eus”, ao incorporar-nos a Cristo.

Da graça emanam novas faculdades: a primeira de todas é a caridade, e as outras virtudes teologais (tem a Deus como objeto); depois vêm as virtudes morais infusas (que se referem aos meios).

As virtudes morais infusas são diversas das adquiridas, embora levem o mesmo nome: prudência, justiça, fortaleza e temperança. É possível que alguém receba estas virtudes sem, em contrapartida, possuir as virtudes éticas adquiridas, que exigem a repetições de atos, a experiência e o tempo.

Segundo Santo Tomás, que parte dos ensinamentos de Plotino, as virtudes morais existem segundo diversas formas: em Deus estão as virtudes exemplares, em nós, temos as virtudes políticas (são as morais adquiridas), as purgativas (as infusas de modo imperfeito) e as dos purificados (pertencem propriamente à glória, conquanto alguns poucos muito perfeitos as alcancem nesta vida). As virtudes purificativas ou purgativas, infundidas por Deus, sanam a alma de modo mais radical e profundo que qualquer esforço humano. Parecem corresponder ao que São João da Cruz chama “noite escura” (do sentido e do espírito).

A é como uma luz acrescentada à luz natural, pela qual nos tornamos capazes de assentir à Verdade primeira. Por isso ela é fé, porque se crê em algo que não se vê, já que transcende as capacidades da mente humana. Pelo fato de o centro da fé ser obscuro (cremos em algo que ainda não possuímos), a esperança aperfeiçoa a vontade para tender a Deus como bem árduo. Além da graça, é necessária na ordem sobrenatural a caridade, que nos ordena ao fim último sobrenatural, pondo ordem também em nossa vida natural, restabelecendo a verdadeira hierarquia do ordo amoris. A caridade é o centro da personalidade cristã, pois nos ordena ao fim último e absoluto, ou seja, à visão e fruição de Deus.

É claro que o amor ao inimigo é uma realização heroica da caridade, que não se compreende – e é vista até mesmo como aberrante – a partir de uma mentalidade meramente humana e “carnal”. Sem a abertura à fé e à graça, a plenitude teologal do homem nos é absolutamente inalcançável e irreconhecível, e se confunde o heroico e sobre-humano com o patológico e o antinatural.

AS ENFERMIDADES DA ALMA

Se a mente é a imagem de Deus nos homens, deformá-la e impedir seu desabrochar é deformar e impedir o desabrochar da imagem de Deus em nós.

As enfermidades do corpo

Quanto às enfermidades do corpo, Tomás de Aquino assinala que são três as possíveis causas: (1) física (que compõe a maioria das enfermidades corporais), (2) psíquica (que são os transtornos caracteriais, ou seja, as paixões veementes, em especial a tristeza) e (3) preternatural (que são as “substâncias separadas”, ou seja, neste caso, os demônios). As substâncias separadas têm poder somente sobre o corpo, ou seja, não afetam diretamente a alma, muito menos o espírito.

Por suposto, o influxo demoníaco, conquanto opere através do corpo, tem como meta principal a perturbação da personalidade, apartando-a de Deus. Por isso, nem sempre produz a enfermidade e orgânica, mas segue diferentes caminhos, de acordo com a pessoa e com os meios que tem sua disposição. Ele nem sempre quer adoecer. Em algumas ocasiões, prefere adoecer, em outras, tentar, em outras, obcecar, etc. Às vezes, como no caso de alguns santos que têm perfeitamente sob seu domínio as próprias paixões, só pode tentar exteriormente. Foi, segundo Santo Tomás, o caso de Adão e de Cristo. Outras pessoas são tentadas interiormente, através de seus sentidos internos (imaginação, cogitativa, memória) e de sua afetividade. Algumas vezes, a tentação assume características de uma obsessão. Em algumas pessoas muito sensualizadas e de afetividade instável, pode produzir toda uma série de influxos, como sonhos, alucinações ou sugestões. A alguns possui com violência. Outros, como aqueles que fizeram um pacto, são como seus instrumentos conscientes. Ademais, todos os que estão separados de Cristo estão submetidos de algum modo ao poder do demónio. Todas essas são coisas reais, que tanto Santo Tomás como todos os grandes autores da Tradição cristã interpretaram à luz da fé como sinais do poder do “príncipe deste mundo”, mesmo que não tenham ficado obcecados por isso, confiando na superioridade de Deus sobre a perversão de suas criaturas, e sem reduzir sempre toda enfermidade corporal ou mental a m influxo imediato do demônio.

As enfermidades da alma

Trata-se propriamente dos transtornos de caráter ou personalidade (ou ainda de “conduta”). Comum a todos os transtornos é a presença de vícios. Essas enfermidades dividem-se em dois grandes grupos:

(1) Enfermidades da alma (aegritude animae): são as incontinências, ou seja, perversidades que não saem dos limites da vida humana. Aqui há um desacordo ou divisão entre espírito e sensualidade. Podem ser divididos em: (a) debilidade (infirmitas), (b) malícia, isto é, o intemperante que persegue os excessos de propósito, pois os tem como fim; ele não se arrepende dos prazeres que buscou, mas, pelo contrário, assenta continuamente e, por isso, acentua a voluntariedade do ato, encontrando-se incapaz de curar de seu vício; não está apenas “enfermo”, mas “morto”, e a mudança só poderá vir mediante muitíssimo esforço.

Nele [no intemperante] é o princípio da ação que se encontra corrompido, vale dizer, o juízo sobre o fim último, e, por conseguinte, não experimenta essa contradição entre o que faz e o que deveria fazer. Embora, uma vez que a sindérese é inextinguível, o conhecimento da lei, que ele reprimiu, às vezes se lhe apresenta à consciência, o que faz com que o fundo de sua personalidade seja sumamente dialético. [...] No incontinente, a rebelião é da sensualidade contra a razão. Neste outro [no intemperante], em contrapartida, a razão foi deformada para que não se contraponha à sensualidade. Adler fala numa “cristalização” ou “substancialização” do caráter [quando o caráter sofre um tipo e santificação que lhe confere um valor inalterável, eterno]. Estes constituem os autênticos transtornos da “personalidade”, porque, por dependerem da eleição, afetam a pessoa em seu núcleo mais íntimo, em sua mens. [...] O pecado tem uma série de males adjuntos que não são queridos por si mesmos, mas apenas acidentalmente, enquanto se quer algo, julgado como bom [fim fictício], ao que se sabe que, necessariamente, vão unidos males – o primeiro deles, a separação de Deus e do bem da razão, mas, depois, qualquer outro mal. [...] Esses aspectos concomitantes do caráter vicioso podem ser a fonte do mal-estar que leva alguém a consultar o psicólogo ou o psiquiatra.

(2) Enfermidades psíquicas (aegritudo animalis): são as bestialidades, ou seja, inclinações e desequilíbrios dos afetos que saem dos limites da vida humana, tornando o homem semelhante a uma besta. Pode originar-se de uma má-constituição/enfermidade corpórea, ou por costumes antinaturais adquiridos, talvez, na infância ou adolescência, e que afetam o desenvolvimento do caráter. Aqui não há somente uma enfermidade da alma, mas vícios contra naturam, ou seja, contrários não somente à razão (diferença específica), mas também à animalidade (gênero).

A questão do pecado

Pecado, define Echavarría, é um modo de comportar-se contrário à estrutura essencial do ser humano, ou seja, contra o que no homem é principal, contra a razão, que é a luz intelectual que nos ilumina desde o mais profundo.

No entanto, “pecado” é o que a teologia moral clássica chama “pecado mortal”. É quando a estrutura da alma se desorganiza, é quando a vida tende a reorganizar-se tomando como fim último alguma outra coisa – de acordo com a inclinação de seu afeto desordenado. O pecado venial apenas predispõe a pessoa a uma perda, enquanto o pecado mortal a priva efetivamente. De maneira geral, o acúmulo de pecados veniais engendrará um pecado mortal.

Quanto à aegritudo animalis (enfermidade psíquica) é uma desordem no nível psico-sensível. Mas, como a parte sensitiva pode ser racional por participação (razão particular, como vimos acima), esse tipo de enfermidade pode, sim, ter conexão com o pecado. Ora, embora esse costume depravado (prava consuetudo) pode ter sido originalmente não querido, se se aceitam as inclinações patológicas e antinaturais, passa-se ao pecado e ao vício em sentido estrito, conquanto mereça ser chamado não vício “humano”, mas “patológico”.

Quanto à aegritudo animae (enfermidade da alma), se for em matéria grave, é pecado mortal porque é consentida. Se não for grave, será pecado venial. O caráter vicioso é, evidentemente, estado de pecado. Toda a personalidade se reestruturou a um novo fim parcial (fim fictício).

A dinâmica da personalidade viciosa

A raiz do caráter vicioso é o egocentrismo (ou “narcisismo”, ou “filáucia”, ou “egoísmo”), que é o amor desordenado de si. Quando se deseja um bem temporal desordenadamente é o princípio do amor desordenado a si. Querer um bem real é amar-se ordenadamente; por conseguinte, querer um bem temporal é amar-se desordenadamente. Aqui Santo Tomás identifica três fundamentos do egoísmo:

  1. Concupiscência natural (“concupiscência da carne”): ligadas ao corpo, como alimento, bebida, sexo.
  2. Concupiscência psíquica (“concupiscência dos olhos”): ligadas à imaginação, como riquezas, elegância.
  3. Irascibilidade psíquica (“soberba da vida”): ligadas à cogitativa, como busca pela excelência, glória, honras, poder. É esta forma de egoísmo que estrutura o caráter vicioso.

De qualquer forma, nota-se nos três fundamentos um ódio ao que a pessoa tem de mais original: a mens. Os egoístas são incapazes de amar os outros, é verdade, mas o que não se nota tão facilmente é que são incapazes de amar a si mesmos. Como diz Tomás:

[Os egoístas] se amam de acordo com o que julgam ser, e se odeiam de acordo com o que verdadeiramente são, ao querer o que é contrário à razão. E, de ambos os modos, aquele que ama o mal odeia não somente sua alma, mas também a si mesmo.

Há um ódio ao verdadeiro eu. Com o tempo, tal ódio chega a ser consciente, pois não é possível ficar mito tempo no estado de autoengano.

Faz parte da dinâmica da personalidade viciosa a intolerância à solidão, pois a solidão provoca nos egoístas verdadeira desolação.

Pois os maus não podem conviver consigo mesmo, voltando ao seu coração, mas buscam conviver com outros, falando e cooperando com eles por palavras e atos exteriores. Porque, pensando em solidão sobre si mesmos, recordam as muitas coisas graves e más que cometeram no passado, e preveem que farão coisas semelhantes no futuro, o que lhes resulta doloroso. Mas quando estão com outros homens, distraindo-se com as coisas exteriores, se esquecem de seus males. E assim, como não têm nada em si mesmos que seja digno de ser amado, não têm nenhum sentimento amistoso para consigo mesmos.

Há na personalidade viciosa uma desfiguração no modo de perceber a própria realidade, cuja causa primeira é a desordem afetiva, da qual se seguem desordens no conhecimento, como na avaliação do fim último e na razão prática, e por fim desordens comportamentais e afetivas. Uma vez instauradas as paixões e hábitos viciosos, produz-se uma distorção nos atos da imaginação, da cogitativa e da memória, sobretudo na elaboração do experimentum, arrastando consigo o juízo da razão e o querer da vontade. A memória consolida-se pela meditação, que se pode transformar numa espécie de autossugestão, auto-hipnose. A luz espiritual da verdade é reprimida. A premissa universal que inibe o ato particular ao que se está aficionado é “reprimida”, e em seu lugar, o apetite “sugere” uma nova premissa que permite concluir de acordo com sua inclinação, liberando a ação nesse sentido. O homem vicioso não vê o que é moralmente bom como bom para ele em concreto. Segundo Tomás de Aquino, ele padece de “cegueira mental”.

Em lugar da prudência, forma-se nessas pessoas uma “prudência da carne”, isto é, uma habilidade cognitiva para encontrar os meios para satisfazer o vício dominante, como que uma técnica da vida neurótica. Neste ponto não somente se dá uma distorção do particular, mas a distorção passa inclusive à ciência universal, pois o experimentum é tipicamente caprichoso e egocêntrico e, ademais, essa pessoa buscará unificar sua personalidade de alguma forma. A pessoa constrói para si uma “filosofia de vida”, composta não só de uma ética, mas de uma metafísica e teologia pessoais. A violência que se fez à capacidade de conhecer foi tão longe que engendrou uma loucura.

Echavarría lembra que os vícios tendem a aumentar automaticamente. Citando São Gregório Magno, “o pecado que não é imediatamente apagado pelo arrependimento conduz a outro por seu próprio peso”. É verdade que não há entre os vícios uma conexão tão estreita quanto entre as virtudes, pois o amor de Deus é congregativo, enquanto o afeto humano é separado, particularizado, dispersado.

Soberba. É o princípio de todos os vícios. A soberba é o apetite desordenado da própria excelência. A soberba pode residir na vontade, quando a excelência que se busca é espiritual, ou no apetite irascível, quanto se busca uma excelência imaginada. Segundo Tomás, “Pois aquele que quer abundar em riquezas, ou em ciência, ou em honras, ou em qualquer outra coisa, busca através de todas elas algum tipo de excelência”. A soberba surge a partir do acúmulo de pecados mais leves os quais, uma vez estabelecida a soberba, se agravam. Enquanto na humildade o homem aceita o lugar que lhe compete na hierarquia da realidade, na soberba o homem se põe como medida da realidade. É da natureza da soberba ocultar-se, e ocultar-se até mesmo nas virtudes, pois é o último vício a ser vencido. O soberbo mais ama “sobressair” que a própria perfeição – o sentimento de personalidade –; ele especialmente quer parecer viril e audaz. Há nele um alto grau de artificialidade: o fim é fictício, o modo de se comportar o é, com também a excelência que crê possuir. Há uma tendência a depreciar os outros. É verdade que o sentimento de insegurança e inferioridade, próprio da soberba, é comum a todo homem, pois a comparação entre o estado atual de inferioridade e um estado fictício de superioridade já pressupõe a ação sub-reptícia e latente da soberba. Nota-se também que há um especial fingimento na conduta exterior, especialmente afirmando a própria virilidade. Vejamos o que diz Rudolf Allers:

Do ponto de vista genético, a neurose surge da exageração ocorrida na divergência ­– que existe em toda vida humana – entre vontade de poder e possibilidade de poder. Em outras palavras: é um resultado imediato da situação puramente humana, tal como está constituída na natureza decaída. Pode igualmente dizer-se que, orientada ao mórbido e ao pervertido, é consequência da rebelião da criatura contra sua finitude e sua impotência naturais.

Vanglória, presunção e ambição. Se a soberba é o apetite desordenado da excelência, a vanglória é o apetite desordenado da manifestação da excelência, mesmo que a pessoa realmente a possua. Enquanto a soberba se opõe à humildade, a vanglória se opõe à magnanimidade. Eis os filhos da vanglória: desobediência, jactância, hipocrisia, contenda, pertinácia, discórdia e presunção de originalidade. A vaidade é a característica principal do caráter histérico. Há dois vícios que também se opõe à magnanimidade, de maneira semelhante à vanglória: a presunção (pretender empreender ações e projetos que superam a capacidade da pessoa) e a ambição (apetecer desordenadamente as honras).

Pusilanimidade. É a irascibilidade débil, ou seja, é ter ânimo pequeno para fazer coisas que são proporcionadas à capacidade da pessoa. É o que modernamente se poderia chamar de “complexo de inferioridade”. São duas suas causas: cognitiva (desconhecimento de si) e afetiva (temor do fracasso). A pusilanimidade procede da soberba porque esse “temor de falhar” se funda sobre o apetite desordenado de excelência. Ora, quando a pessoa se sente débil para afirmar sua personalidade de modo direto, emprega caminhos indiretos e oblíquos, e pode, inclusive, contentar-se com considerar-se interiormente superior. A crise chegaria “no momento em que a insuficiência e inferioridade temidas estivessem correndo o risco de manifestar-se, pondo em perigo e ferindo o amor-próprio”.

Tristeza viciosa. Embora sob certo aspecto seja algo necessário e mesmo virtuoso, a tristeza é das paixões humanas a que mais se aproxima da patologia. A tristeza, diz Tomás, “comporta certa fadiga ou enfermidade da força apetitiva”. A tristeza, quando intensa, (1) paralisa o aprendizado, (2) oprime a alma, como que pesando contrariamente ao peso da alma, à sua direção natural, impedindo-lhe o gozo, (3) debilita a operação porque o que se faz com tristeza é mais débil, e (4) danifica o corpo. Vejamos as quatro variantes de tristeza por acrescentar-lhe algo alheio à sua razão própria: (a) misericórdia (tristeza virtuosa pelo mal alheio), (b) inveja (tristeza viciosa sentida pelo bem alheio, fruto da pusilanimidade porque qualquer bem que suceda a alguém próximo parece-lhe que foi superado em muito – são filhas da inveja a murmuração, que é ofuscar a glória alheia ocultamente, a detração, que é ofuscar a glória alheia publicamente, a alegria pela adversidade alheia, a tristeza pela prosperidade alheia e, finalmente, o ódio contra a própria pessoa), (c) ansiedade ou angústia (situação triste na qual não se vislumbra uma fuga), e (d) acídia (forma profunda de tristeza viciosa do próprio bem espiritual, que deprime a alma a ponto de deixá-la imóvel, estupefata, narcotizada e encerrada em si mesma, congelamento da evolução da vida mental, “náusea” da vida, possível inclinação ao suicídio – pode manifestar-se por um excesso de atividade, produto da ansiedade, poia a pessoa não pode estar tranquila consigo mesma, e, não podendo fugir de si, tenta escapar “pela janela dos sentidos” – as filhas da acídia são o desespero, a pusilanimidade, o torpor no cumprimento dos preceitos, o rancor a quem exorta ao bem espiritual, a malícia e a divagação mental sobre coisas ilícitas). Há quatro remédios contra a tristeza: (1) expressar a dor por pranto e gemidos (pois a atenção da alma se dispersa), (2) compaixão dos amigos (forma-se a imagem de que outros carregam a dor da pessoa e, ademais, que é amada, o que causa prazer), (3) contemplação da verdade (porque é nisso que se encontra máximo deleite e, portanto, quanto mais perfeitamente alguém é amante da sabedoria, tanto mais mitigada será a tristeza e sua dor), e (4) terapêutica do corpo (sono, banhos etc., pois todo deleite mitiga a tristeza).

Temor vicioso. São João Damasceno distingue seis espécies de temor: (1) retraimento (quando alguém evita atuar pelo temor de um esforço excessivo), (2) rubor (quando alguém teme cometer uma torpeza no agir), (3) vergonha (quando alguém já cometeu alguma torpeza no agir), (4) admiração (quando alguém considera algum grande mal cujo término não se alcança conhecer), (5) estupor (quando alguém nos oferece algum mal insólito [extraordinário, raro, singular] que pela imaginação nos parece grande), (6) agonia (quando alguém teme algum infortúnio futuro imprevisível). Curiosamente, a pusilanimidade não se refere ao temor porque a pessoa, no caso da pusilanimidade, não se sente capaz de realizar um bem árduo, enquanto no temor o objeto é um mal árduo que ela não se sente capaz de repelir. A pusilanimidade é o vício do defeito da esperança, enquanto o temor é o vício do excesso da esperança. Mas é verdade que o defeito de se estimar insuficiente (temor) parece ser um efeito da pusilanimidade. Veja que interessante excerto de Tomás de Aquino:

O traço do retraimento apresenta-se naqueles que consideram de especial dificuldade qualquer tarefa ou dever que a vida lhes impõe, não confiando em suas próprias forças para desempenhá-lo. Via de regra, este traço aparece na forma de movimentos progressivos lentos, de “atitude retardatária", de modo que a distância entre o indivíduo e a questão vital diante da qual se encontra não se encurta muito no curso do tempo: em certos casos, essa distância permanece constante. Isto ocorre, por exemplo, quando uma pessoa que se deveria ocupar de determinado assunto se encontra dedicada a outra coisa muito distinta. porque descobre, de repente, sua inaptidão para o que tem de fazer. Ela acaba por descobrir uma infinidade de inconvenientes, até ao ponto em que chega a parecer-lhe logicamente impossível o trabalho que deveria realizar. As formas expressivas do retraimento são, por conseguinte, não apenas movimentos retardatários, mas também medidas de segurança que o indivíduo toma para eludir sua responsabilidade e poder, tranquilamente, não fazer nada. [...] Chama-se débil e delicado [ou retraído] aquele que falha naquilo que muitos enfrentam, resistindo, e superam com êxito. A debilidade e a delicadeza correspondem ao mesmo, pois a delicadeza é uma espécie de debilidade. O débil escapa desordenadamente de toda tristeza, e o delicado propriamente foge de toda tristeza que deriva do esforço.

Ira viciosa (iracúndia). A ira pode surgir ou da razão ou da avaliação dos sentidos internos. A ira vem da ofensa, e a ofensa vem do julgamento de que fomos menosprezados. E no fundo desse menosprezo está o amor à própria excelência. É verdade que a excelência pode ser real, e não fictícia, mas o fato é que a ofensa surge mais naqueles que suspeitam não ter essa excelência. Quem realmente é virtuoso não se ofende facilmente, seja pela magnanimidade (pois poucas coisas lhe são verdadeiramente dignas de atenção), seja pela humildade (pois conhece suas debilidades e imperfeições). O virtuoso em geral se ofende quando se ataca o bem comum ou seus amigos. Os inclinados à ira são os vaidosos e os pusilânimes. A ira é a desordem contrária à mansidão, enquanto a crueldade (castigo excessivo) é a desordem contrária à clemência (castigo moderado). Vejamos os filhos da ira, seguindo Tomás a São Gregório Magno:

A ira se pode considerar de três maneiras: uma, segundo está no coração. Assim nascem da ira dois vícios. Um da parte daquele contra quem o indivíduo se zanga, a quem julga indigno de ter feito o que fez. Esta é a indignação. O outro vício é da parte de si mesmo. Vale dizer, enquanto pensa diversos modos de vingança, e preenche o ânimo com tais pensamentos, como diz Jo 15: Acaso o sábio preenche seu estômago com ardor? Este é o inchaço da mente. De outro modo, se considera a ira enquanto manifesta-se em palavras. E, assim, da ira procede uma dupla desordem. Uma, na medida em que o homem manifesta sua ira no modo de falar como se disse aquele que disser ao seu irmão, imbecil... A isso corresponde a gritaria, por esta entendendo palavras desordenadas e confusas. Outra e a desordem segundo a qual se irrompe em palavras injuriosas. Se se referem a Deus, chama-se blasfêmia; se são contra o próximo, insolência. De um terceiro modo, considera-se a ira segundo se chega até a ação. E assim nascem as rixas, pelas quais se entende todo tipo de dano que se realiza, por ira, na ação contra o próximo.

Segundo São João Damasceno, e seguindo também a Aristóteles, Tomás elenca três tipos de personalidade de acordo com o modo da ira manifestar-se neles. Há (1) os agudos, que hoje em dia chamaríamos de “irritáveis”, de temperamento colérico, explosivo. Suas reações são primitivas e são tocados por uma palavra qualquer, e – antes que o valor e o significado dessa palavra sejam apreendidos com exatidão e elaborados pela personalidade – se desencadeia uma reação. Há (2) os amargos, no quais a tristeza permanece e não manifestam sua ira exteriormente, senão que a guardam dentro de si. Por esse motivo, não podem ser ajudados pelos demais. São os melancólicos, naturalmente mais introvertidos e astutos, e se afligem mais gravemente em seu interior, sendo molestos para si mesmos, e, sobretudo, para seus amigos, com os quais não podem conviver prazerosamente. Seu humor é depressivo, e tem uma visão cética ou pessimista da vida. Suas experiências penosas se aprofundam, vivendo-as durante longo tempo e conduzindo a crises. Há (3) os difíceis, que mantêm sua raiva por um desejo veemente de vingança, e a ira não cessa até que se veja consumada. Eles se zangam pelo que não é necessário e, claro, por mais tempo do que é necessário.

Sadismo e masoquismo. Se iracúndia é excesso de ira e crueldade é excesso de castigo, a brutalidade (ou ferocidade) é o prazer no sofrimento alheio sem motivo. Trata-se de uma maldade bestial, uma crueldade monstruosa, e por isso ela não se opõe à clemência, mas a uma virtude mais super-excelente, a qual Aristóteles chama heroica ou divina. Portanto, a brutalidade (ou ferocidade) é mais propriamente um transtorno antissocial da personalidade, uma psicopatia fria, não melhorável e não educável. Neste contexto, tanto o sadismo quanto o masoquismo (sentir prazer no rebaixamento e no sofrimento próprio) são ambos casos de aegritudo animalis. Mas como a dor e o sofrimento podem, paradoxalmente, produzir gozo? A resposta é que a dor e o sofrimento são prazeres per accidens aqui: ao sádico e ao masoquista o sofrimento e a dor lhes trazem “benefícios secundários”, como libertar-se da angústia.

Avareza (ou cobiça). É o amor desordenado pelo dinheiro. O vício contrário é a prodigalidade. A avareza se opõe à liberalidade (pois escraviza a pessoa ao dinheiro) e à justiça (pois a pessoa retém o que pertence aos outros). A avareza é a raiz de todos os pecados porque o dinheiro é o meio pelo qual se podem satisfazer todos os apetites desordenados. Esse desejo infinito de riquezas depende da razão, que tem ela certa infinitude também. O problema aqui é que o dinheiro, diferentemente da saúde, por exemplo, é uma concupiscência que se ordena ao fim, isto é, não é ele mesmo um fim, então só deve ser desejado na medida em que convém ao fim. A avareza pode estar na base de muitas situações de stress e de ansiedade patológica. Um dos disfarces da avareza é buscar adotar publicamente medidas pontuais de prodigalidade.

Tem razão [Erich] Fromm quando assinala este [a avareza] como um dos grandes males de nossa cultura, e quando afirma que o importante não é “ter”, mas “ser”. Mas, segundo o Angélico, este último não é bom se não “é” segundo a razão. Também o soberbo pode não buscar o “ter”, e sim o “ser”, mas fora dos limites de sua capacidade.

Gula. A gula, assim como a luxúria (a veremos em seguida), são ambos vícios da intemperança. Interessantemente, a gula não é um vício tanto do paladar, mas de “certo tato”, porque o prazer está menos em saborear os alimentos e mais propriamente em ingeri-los. Se a desordem estivesse mais ligada ao paladar, estaríamos diante do vício da curiosidade.  A gula consiste no desejo desordenado do deleite. Quanto ao deleite, (1) se a causa é natural (alguém que goste de alimentos custosos e seletos), trata-se da gula abundantemente, (2) se a causa é artificial (alguém que goste de alimentos de preparo demasiadamente refinado), trata-se da gula refinadamente. Quanto ao desejo, (3) se a pessoa se apressa a em chegar ao termo, trata-se da gula precipitadamente, (4) se a pessoa se comporta de maneira desordenada na ingestão da comida, trata-se da gula vorazmente, e (5) se a pessoa segue comendo mesmo depois de ter alcançado sua meta, trata-se da gula demasiadamente. Vale lembrar aqui que a intemperança, seja na gula ou no ato venéreo, anula a capacidade intelectual, ou seja, apaga a capacidade de penetrar profundamente no sentido das coisas. Vejamos o que diz Tomás a esse respeito:

Diz-se que possui um sentido agudo da inteligência aquele que imediatamente, pelo conhecimento das propriedades das coisas, ou também de seus efeitos, compreende a natureza da coisa, e na medida em que chega a considerar até os menos aspectos dela. Em contrapartida, diz-se que é de inteligência obtusa aquele que não pode chegar a conhecer a verdade de uma coisa senão através de muitas explicações, e ainda assim não pode chegar a considerar perfeitamente tudo o que pertence à essência da coisa.

Por isso diz Tomás que o guloso pratica uma atividade totalmente sensual que termina por embotar a capacidade de penetração do espírito. Quanto à “gula de bebidas embriagantes” (alcoolismo), ou seja, ebriedade, é a que mais aprisiona o afeto. O problema dessa dependência não é só o efeito embriagante em si, que seria suficientemente maléfico, mas a própria habituação do corpo à bebida e as penas a ela atribuídas. Similarmente, embora nos tempos de Tomás obviamente não se versavam sobre essas coisas, inclui-se na “ebriedade” o tabagismo e o consumo de drogas entorpecentes. Aqui trata-se de aegritudo animalis, algo no nível de comer terra ou as próprias unhas, porque trata-se de sentir prazer naquilo que é desprazeroso e contrário à disposição da natureza humana. Também entram aqui formas patológicas de curiosidade (opostas à estudiosidade), a ludopatia (vício em jogos, que pode ter origem na alegria tola, efeito da gula).

Luxúria. A luxúria se dá de dois modos: (1) o ato é exteriormente ordenado, mas interiormente desordenado (dentro do ato matrimonial), e (2) o ato é tanto exterior quanto interiormente desordenado (fora do ato matrimonial). Os efeitos da luxúria pertencem alguns à ordem cognitiva (cegueira mental, inconsideração, inconsistência, precipitação) e outros à ordem afetiva (egoísmo, ódio de Deus, amor do tempo presente, desespero). A castidade, como as demais temperanças, capacita a pessoa a viver a partir de seu centro espiritual, que ilumina toda sua personalidade, concentrando o verdadeiro eu na contemplação. É claro, portanto, que a luxúria (e também a gula, como vimos), separa e dispersa o verdadeiro eu do centro intelectual, concentrando as energias da alma num aspecto periférico de seu ser, que faz confundir o eu verdadeiro com a sensualidade e a imaginação enlouquecida, transformando o próximo num instrumento de prazer egocêntrico. Assim como a gula, na luxúria pode estar envolvida alguma aegritudo animalis, como a homossexualidade e a “blandura” (masturbação). É importante lembrar que para Tomás o coito normal não é aquele orientado ao orgasmo, mas à procriação.

A PSICOTERAPIA TOMISTA

Critérios diagnósticos e princípios terapêuticos

Já dissemos acima que nós homens temos um conhecimento experimental e habitual de nossa própria mens, a chamada memoria sui. É verdade que este conhecimento pode muito bem não ser exaustivo e sujeito a deformações, a ponto de nosso autoconhecimento falsear-se em função de desordem de nossas próprias inclinações afetivas e, assim, confundirmos nosso verdadeiro eu por um eu fictício. Dessa maneira, amamos em nós o que não nos pertence e absolutizamos um aspecto secundário de nossa personalidade.

Mas isso é sobre nosso autoconhecimento. Quanto ao conhecimento das coisas, não temos uma percepção direta da alma das pessoas. Nosso conhecimento é irremediavelmente universal, e não particular. Não há de outra: temos apenas duas formas de conhecer a alma das pessoas. (1) o que elas dizem de si mesmas, que é a fonte principal porque a linguagem expressa os conceitos mentais, que “são o mais íntimo que um coração diz em seu interior (verbum cordis); há evidentemente os que se enganam a si mesmos e há quem engane os demais, ou, em outras palavras, falta a virtude da humildade (ver-se como se é) e da veracidade (dizer as coisas por fora como a pessoa as diz por dentro); e (2) o que a elas mostram de sua conduta, gestos, movimentos, vestes, modo de se expressar, o que nada mais é do que uma consequência do caráter hilemórfico do ser humano (“o corpo manifesta a alma, conquanto não perfeitamente”). Este último aspecto é interessante porque os gestos, o modo de se expressar, os golpes de vista, o movimento das mãos e olhos, tudo isso são reações espontâneas que surgem quando não há tempo de deliberar porque provêm do hábito e, portanto, do caráter.

Eis que o autoconhecimento e o conhecimento dos demais indivíduos devem unir-se, pois no conhecimento prático a razão universal funciona em estreita união com a razão particular. Mais profundamente, conhecemos a interioridade dos outros por analogia com a nossa. Pelo que a maior ou menor simpatia (ou, diríamos hoje, empatia) que possamos ter em relação a eles nos dará uma maior ou menor compreensão do que lhes sucede. Nosso experimentum nos permitirá, ou impedirá, de entender o que o outro experimenta. “Ninguém percebe nos demais os sentimentos que não é capaz de experimentar em si mesmo”.

Algo fundamental para o terapeuta é que ele mesmo tem de ser o porta-voz da ordem. Afinal, quem possui o bem em plenitude entende melhor, em sua causa mais profunda, o que significa dele estar privado. O mais importante não é, como na psicanálise, detectar todos os recantos dos pensamentos e sentimentos doentios alheios, mas intuir o que a pessoa pode chegar a ser. É muito melhor curar do que diagnosticar. A virtude da misericórdia é o fundamento pelo qual alguém conhece retamente o outro – retamente, sim, porque é possível ter um conhecimento empático do outro baseado na malícia comum.

Eis um interessante esquema de “diagnóstico” apresentado por Echavarría:


A terapia

Aqui devemos separar o incontinente (consciente de seu mal) do intemperante/vicioso (inconsciente de seu mal). Enquanto o incontinente deve ser apoiado em sua luta contra o vício, mas é claro que com o vicioso é necessário um trabalho prévio, e mais longo e difícil, de conscientização sobre sua situação. Esse trabalho é dificultado pelo estado afetivo em que se encontra.

Mas nada disso basta, ou seja, não basta a mera admoestação verbal para o bem e contra o mal. Afinal de contas, o juízo que o paciente tem a respeito de sua situação vem muito mais das disposições habituais que apresenta. O fim, ensina Tomás, é algo que não se pode ensinar. A mudança não pode ser meramente cognitiva, mas tem de ser volitiva. A vontade é o motor de toda a vida afetiva humana. Essa mudança não se levará adiante senão pela eliminação do “hábito que causa o erro, por meio de uma prolongada habituação contrária”. Não se trata de mera terapia comportamental, mas uma formação de virtudes.

  1. Deve-se determinar qual a inclinação negativa mais relevante, ou seja, o vício capital. Não necessariamente será o vício mais “plural”, ou seja, mais “vistoso”. O mais comum é que o este vício não coincida com o motivo da consulta, nem com os defeitos que a pessoa crê possuir, embora sejam muitas vezes consequências do vício dominante.
  2. Deve-se determinar qual é o fim fictício que a pessoa persegue, ou seja, o fim fictício que estrutura seu caráter e dirige suas condutas.
  3. Deve-se mostrar ao paciente que este é seu problema, mostrando qual o mecanismo pelo qual os vícios deformam e controlam seu pensamento prático, em especial como sua experiência está deformada por suas inclinações irracionais.
  4. "Como consequência, não basta uma reestruturação de seu pensamento, nem uma simples mudança comportamental, senão que estas se devem fundar numa luta consciente e voluntária contra o próprio vício capital. Isto implica, como dissemos, uma revolução e uma conversão interior que o psicólogo não pode garantir nem produzir. E nem sequer a pessoa deixada a si mesma parece ser sempre capaz de consegui-lo. Essa mudança da mente não é possível sem o apoio da graça. [...] A influência exterior [do psicólogo], então, deve conduzir à reintrodução da pessoa em sua memoria sui, no centro espiritual de sua personalidade, no qual ela recebe a luz espiritual, natural e sobrenatural, que são o princípio efetivo de toda mudança. Se o homem que ajuda desde fora pode ser chamado pedagogo, é sobretudo o Mestre interior o verdadeiro médico da alma que pode produzir a única transformação efetiva: a que procede das instâncias mais profundas do próprio ser. O experimentum doentio da memória sensitiva só se pode transformar a partir da experiência profunda que provém da memória espiritual [memoria sui]; e isto implica uma mudança afetiva em relação ao fim, por meio da caridade".

Para tanto, três são as forças interiores que auxiliarão a graça: (a) a humildade (como dissemos, para a pessoa falar sem máscaras), (b) dirigir a vista para a luz da verdade (que brilha no ápice da mente e mostra o caminho da mudança), e (c) o amor do bem.

O homem pleno

A pessoa só conseguirá libertar-se dos defeitos que limitam seu desenvolvimento humano se encontrar alguém que a ame com amor de benevolência, que a ame por aquilo que verdadeiramente é, e por si mesma, e não de modo egoísta, com amor de concupiscência (pais, mestres, psicoterapeuta, boas amizades em geral). O ótimo seria um psicólogo virtuoso e sábio.

Fonte: Martín Echavarría, A práxis da psicologia, Editora CDB, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2021.