Eis um interessante diálogo entre dois ortodoxos acerca da doutrina cristã de que não há absolutamente nenhuma semelhança entre o criado e o Incriado. O diálogo começa com um comentário sobre a crítica de Vladimir Moss à exposição do Pe. John Romanides sobre essa doutrina.
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A: Moss não entendeu nada da tese do Pe. John Romanides sobre a relação entre criado e Incriado. Romanides deixa claro que a Escritura faz uso, de fato, de palavras baseadas na experiência humana para descrever certas (mas não todas) energias divinas de Deus. Porém, quanto mais uma pessoa se aproxima de Deus e experiencia em estado glorificado a visão de Deus, mais ela entende que todas essas descrições de Deus contidas na Escritura não consistem no verdadeiro conhecimento de Deus. O verdadeiro conhecimento de Deus torna Deus anônimo, tanto em Sua essência quanto em Suas energias. Trata-se da treva divina experienciada por Moisés no Sinai.
Se as energias de Deus fossem de fato capazes de serem descritas, então as energias de Deus nos ajudariam a entender a essência de Deus. Isso acabaria reduzindo a Ortodoxia a um sistema neoplatônico ou mesmo escolástico. Mas sabemos que a essência de Deus é incognoscível e incomunicável. É por isso que São Dionísio, o Areopagita, ensina que Deus não é nem três, nem um, porque se pensarmos em Deus como três, retrataremos algo que consiste de três. Idem para um. Mas Deus não pode ser comparado com nada, daí Ele não ser nem três, nem um, nem nenhum número de nada. Se pudéssemos realmente conhecer racionalmente algo acerca de Deus, então não precisaríamos nos tornar como Ele para conhecê-Lo; e conhecê-Lo significa experienciá-Lo da maneira como Ele escolhe se revelar, seja como luz, treva etc. Chamamos Deus de "amor" porque é desta forma que os santos O experienciaram, mas em verdade Ele está para além do amor; na verdade, Ele não é amor porque amor é apenas uma experiência humana limitada. Romanides prossegue explicando, porém, que quando Deus encarnou-Se no Cristo, então passamos a conhecer algo de Deus através de Sua natureza humana.
Estes são ensinamentos ortodoxos bem básicos que Moss deveria entender, mas suas intenções ficam claras quando, na primeira linha de seu artigo, ele chama Romanides de "neocalendarista". Como Romanides, em toda sua genialidade, não era um veterocalendarista, Moss não pensaa duas vezes em analisar um conceito fundamental da teologia ortodoxa da maneira mais superficial e elementar possível.
B: Então seria correto dizer que todos os nomes de Deus (grande, poderoso, bom, um, três) são resultado de uma abordagem catafática, mas quando Deus é abordado apofaticamente (ou "misticamente", se eu puder me expressar dessa forma), todos esses nomes são não apenas insuficientes, mas incorretos? Se é assim, como Romanides explica a Encarnação e todas as manifestações de Deus no Velho Testamento? Se a energia de Deus -- que é a "parte" de Deus que se comunica conosco -- é audível e visível, deve haver alguma similaridade entre ela e este mundo, vaga e incompleta, mas similaridade mesmo assim.
A: Sim, mas [similaridade] somente de acordo com a experiência humana. Em última instância, nós limitamos Deus ao fazer isso e, portanto, não devemos supor que Deus seja qualquer uma dessas coisas. Quanto mais nos aproximamos de Deus "de glória em glória", tanto mais inominável Ele se torna. A Encarnação significa Deus descer ao nosso nível, mas isto ocorre apenas para abrir-nos um caminho para aproximarmos dEle. Através da theosis conhecemos a Deus como luz, embora também possamos conhecê-Lo como treva. Essa luz e essa treva não tem nada a ver com a luz e a treva que conhecemos, já que a luz criada supera a treva e a treva criada é a ausência de luz. Tratam-se de descrições oriundas da experiência humana para comunicar a pessoas de mentalidade mundana, que não tiveram essa experiência, e a conduzi-las a essa experiência, a qual não tem absolutamente nada a ver com nada criado. Ocorre que quando comunicamos essas coisas fazendo uso de nossa experiência humana, acabamos necessariamente por compará-las com realidades criadas, pois as pessoas que experienciaram a "luz" incriada não têm outra maneira de comunicar essa experiência. É por isso que não existem analogias entre algo criado e algo incriado. Quano um santo fala com um não-santo sobre a luz incriada, o não-santo entende algo totalmente diferente do santo. Mas quando dois santos que tiveram a mesma experiência falam um com o outro acerca dessa experiência, eles se entendem perfeitamente, e isso não tem nada a ver com a conversa entre um santo e um não-santo. Assim, podemos dizer que um santo fala com um não-santo catafaticamente, mas santos falam entre si apofaticamente.
B: Mas e quanto à doutrina da kenosis? Jesus Cristo teria "renunciado" (ou "ocultado") sua natureza divina para que as pessoas impurificadas e desiluminadas de sua época pudessem olhá-Lo, falar-Lhe etc., ou seja, experienciá-Lo, sem efetivamente alcançar a theosis?
A: Não foi isso o que eu disse.
B: Eu sei. O que estou querendo saber é se posso deduzir, baseado no que você disse, que a doutrina da kenosis explica por que as pessoas podiam ver e falar com Jesus Cristo, o qual tem uma natureza plenamente divina e uma natureza plenamente humana, sem imediatamente alcançar a theosis. Isso também explicaria porque as pessoas da época de Jesus Cristo, ao vê-Lo, tocá-Lo e falar-Lhe, não poderiam inferir similaridades entre o criado e o Incriado -- elas não se uniam às Suas energias ao interagir com Ele, mesmo que Cristo estivesse "bem ali". O que acha?
A: Houveram relances das energias incriadas, tais como a Transfiguração, e, a exemplo dos profetas do passado, os apóstolos operaram milagres em nome de Jesus (pela autoridade de Deus) enquanto Jesus ainda se encontrava em seu ministério, mas não houve nenhuma aquisição do Espírito Santo até o Pentecostes. A Transfiguração, aliás, é um excelente exemplo do que São Dionísio e São Gregório de Nissa explicaram sobre a relação entre o criado e o Incriado. Jesus transfigurou-Se, mas esse fato é explicado apenas na linguagem da experiência humana. O Espírito Santo veio como uma nuvem luminosa. Em nossa experiência humana, conseguimos imaginar uma nuvem luminosa, mas o fato é que não foi bem isso o que os apóstolos viram, mas essa acabou sendo a maneira com que conseguiram explicar. Porém, esses apóstolos viram o Cristo de uma maneira nunca antes vista e, a despeito do que tenham visto, essa glória não pôde ser descrita com palavras objetivas.
Outro exemplo é o conceito de "inferno" usado pelo Cristo. Na doutrina ortodoxa, inferno é a glória incriada de Deus experienciada pelos impenitentes. Às vezes é descrito como fogo, às vezes como treva, às vezes como depósito de lixo (sheol), às vezes como ranger de dentes etc. São descrições que todos podemos entender segundo nossa experiência humana, mas a verdade é que elas não guardam semelhança alguma com a realidade. Não há palavras ou conceitos que possam descrever a realidade incriada ou as energias incriadas de Deus. É por isso que Deus, no Velho Testamento, é às vezes descrito como uma galinha que ajunta sob suas asas, às vezes como uma autoridade sentada em um trono ou como um jovem que luta com Jacó.
Isso tudo está bem explicado em Patristic Theology, do Pe. John Romanides. Tente ler também uma boa tradução de São Dionísio e a "Vida de Moisés", de São Gregório de Nissa.