18 de janeiro de 2025

Breves notas sobre o ser


Assim como numa luta os movimentos só são possíveis graças à estabilidade do chão, que lhes dá sustentação, assim também o movimento (passagem da potência ao ato) só é possível graças a algo imutável, isto é, ao ser. A liberdade experimentada por um lutador só é possível graças ao chão: é ele que permite ao lutador explorar suas potencialidades. O ser humano, para florescer suas potencialidades e ganhar liberdade, também precisa desse “chão”: o ser, a ordem ontológica estabelecida por Deus.

As potencialidades do ser humano são como as cores, enquanto o ser é a própria luz. Quando as criaturas realizam seu ser elas estão realizando uma perfeição divina por participação. Negar o ser é como um peixe negar a existência da água. Deus não apenas doa o ser do nada às criaturas, mas ele as sustenta e conserva. Essa sustentação é uma continuação do ato da criação. Entre o nada e o ser há um abismo infinito, e transpor este abismo é necessária uma força infinita.

A criatura tem vários níveis de atualidade. O mais superficial é, por exemplo, no caso de um gato, sua cor, pelo, tamanho etc. Há um nível mais profundo, que é sua "gatidade" (a forma substancial, assim como no homem é sua "humanidade"), que é a raiz do nível mais superficial. No entanto, há ainda um nível mais profundo, que é aquilo no qual enraíza-se todas as criaturas: é o actus essendi, o ato de ser, o ser. O ser é o mediador (ponto de contato) transcendental da causalidade divina, ele é o primeiro princípio imanente de todos os entes. É ele que concentra toda a energia ontológica a partir da qual a criação se sustenta; é como se Deus estivesse “empurrando” a criação pelo ato de ser.

A diferença entre a criatura e Deus é que Deus é o Ser Subsistente, ele é Ser por essência, enquanto a criatura tem ser limitado por uma essência. No homem, o ser se distingue de sua essência, enquanto em Deus a essência é o Ser coincidem. O ser é dado ao homem, e ele não pode fazer nada em relação a ele. No entanto, embora o vínculo ontológico não possa ser rompido, o homem é capaz de moralmente romper tal vínculo, atrofiando as potencialidades que naturalmente tem para a realização de seu ser. Todo ser quer comunicar-se, todo ser quer florescer. Isso se observa nas plantas e animais, por exemplo. No homem, a inteligência e a vontade são as potências de sua alma que devem prioritariamente ser realizadas. Urge ao homem passar da potência ao ato, irradiar seu ato de ser, propender à sua plenitude. Trata-se de uma tendência estrutural e ontológica. O homem precisa aceitar a realidade, dizer sim a ela, para que possa estabelecer sua orientação diante do ser a partir da aceitação da verdade e do bem.

Mas como exercer o ser no mundo? Como organizar a vida humana para realizar-se, isto é, para a felicidade? Toda vida humana dá testemunho do anseio de alcançar a felicidade. Isso já vimos extensamente nas inúmeras postagens sobre amor, felicidade, aperfeiçoamento da alma, psicoterapia etc. O desejo humano de conhecer, a “perplexidade” ou “espanto” anunciado por Aristóteles, é precisamente o que lhe empurrará a conhecer seu fundamento, seu propósito, aquilo que lhe orientará diante da realidade. As questões fundamentais que a inteligência encontra lhe darão uma bússola que orientará o homem para o exercício de suas potencialidades, para sua afirmação no mundo. A metafísica - não a matemática, não a física, não a biologia - é a ciência que apresentará à inteligência o ser e por conseguinte apetecerá a vontade a buscá-lo em amor.

Ora, para o leitor deste blog não restará dúvida do que estamos falando: o homem tem um fim último, uma orientação verdadeira. Como só há uma verdade (o Cristo, evidentemente, o “chão”), então há só uma orientação verdadeira. Como só há um Deus (novamente, o Cristo, o “chão”), então há só um fim digno ao homem, um único “sumo bem”. Uma falsa orientação tolherá o livre desenvolvimento das potencialidades humanas. É como uma camisa de força.

Cumpramos, pois, nosso dever: desenvolver as virtudes intelectuais e morais que nos permitirão, por analogia, participar da vida do Ser nesta vida e nos séculos dos séculos.

14 de janeiro de 2025

Psicologia em 3 atos


Eu elogio a vida. Não a que levo, mas aquela que sei dever ser vivida. (Sêneca)

1. A pergunta fundamental

A filosofia é a base para o estudo da mente. É ela que fará – e tentará responder – a pergunta fundamental: o que sou eu?  Esse “eu” age de acordo com aquilo que o sustenta, de acordo com aquilo que lhe dá um sentido, um fim. O mito de Ésquilo de Prometeu (aquele que tem “antevisão”) e de seu irmão Epimeteu (aquele que tem “pós-visão”) conta a criação do mundo. Epimeteu criou os animais, mas não tinha mais nada para atribuir ao homem. Prometeu vai ao Monte Olimpo e rouba o fogo dos deuses, dando aos seres humanos a capacidade de cognição e entendimento da realidade.

A partir desse mito se pode compreender que a existência humana não é exatamente uma tragédia, como a expressão “tragédia grega” poderia sugerir, mas um “drama”, ou seja, um ambiente ou espaço dentro do qual devemos exercer o “fogo dos deuses” e cumprir a obrigação de nos aperfeiçoar, de nos desenvolver, e alcançar o mais que possível o estado para o qual fomos criados.

No diálogo A Apologia de Sócrates, Platão mostra ao leitor a imortalidade da alma e, mais do que isso, que o processo que o levou a descobri-la é a busca pela verdade. Essa mesma verdade é aquela buscada pelo “fogo dos deuses” roubado por Prometeu.

2. O apogeu

Na história humana, o apogeu foi a encarnação de Jesus Cristo, o Verbo. Em nossas vidas também há de haver um apogeu, mas isso depende da resposta a esta pergunta fundamental: qual a vida que você deseja viver?

Em seu Da Tranquilidade da Alma, Sêneca, motivado pela ética estoica, procura ensinar o viver bem, o viver uma vida bem vivida, uma vida que se aproxime da perfeição humana. Segundo Sêneca, essa vida bem vivida, essa “vida tranquila”, só é possível alcançá-la mediante a integração de todas as faculdades da alma, numa unidade em equilíbrio.

Tomás de Aquino, por seu lado, desenvolve com base na metafísica aristotélica o conhecimento acerca das paixões da alma. “Paixão”, como se sabe, é aquilo que a alma recebe do exterior, ou seja, aquilo que lhe sobrevém (sentir) e a modifica (compreender). A paixão, portanto, está no plano da afetividade, da “receptividade” do que vem de fora, e repercute na alma em forma de carência e desejo. A paixão é mais própria da potência sensitiva do que intelectiva, pois é a parte sensitiva que provoca mudanças corporais.

Os sofrimentos estão relacionados com o modo como nós nos afetamos (eis a paixão) pelas nossas vivências. A psicologia, portanto, lida com os movimentos da pessoa humana. As paixões, portanto, podem ser as centelhas que vão mover a pessoa a buscar bens – não bens materiais, mas bens imateriais.

3. O declínio

Em sua Sabedoria dos Antigos, Francis Bacon recorda personagens dos mitos da antiguidade clássica e os usa como fonte de inspiração para tratar 4 temas que lhe são caros: a distinção entre filosofia e teologia, o lugar do materialismo naturalista, o lugar do método científico e o realismo político. Embora seus temas tenham sido uma tentativa genuína de recobrar as verdades descobertas pelos antigos e medievais, fato é que, com ele e Descartes, inicia-se o período moderno, e as sucessivos erros causados pelas sucessivas revoluções. 

Por outro lado, Romano Guardini foi capaz, em meio às turbulências do mundo contemporâneo, de refletir e conceber o conceito de encontro. O encontro é aquilo que marca o homem, ao passo que o mundo é o lugar no qual se dão os encontros. São eles, os encontros, que permitem a relação do homem com a bondade e a verdade. O declínio do mundo contemporâneo é marcado pela destruição, ou pelo menos obstaculização, dos encontros que permitem tal engajamento espiritual.

Fonte: Paulo Pacheco, Psicologia em 3 atos, YouTube, 2024.