27 de novembro de 2020

A vida do Pe. Lazarus Moore



O Pe. Lazarus é amplamente considerado um dos grandes missionários e estudiosos do século XX.

Padre missionário ortodoxo que serviu na Palestina, Transjordânia, Índia, Grécia, Austrália, Califórnia e Alasca, ele traduziu o Saltério, os quatro Evangelhos, a Escada da Ascese Divina, a Arena, o Antigo Livro de Orações de Jordanville, a biografia de São Serafim de Sarov, e inúmeros outros manuscritos e ofícios antes de seu repouso em 1992.

O Pe. Lazarus se chamava Edgar Moore e nasceu em Swindon, Inglaterra, em 18 de outubro de 1902. Aos dezoito anos mudou-se para Alberta, Canadá, e trabalhou como pastor, estivador, trabalhador rural e na ferrovia. Foi no Canadá que o Pe. Lazarus experimentou um profundo despertar espiritual e ouviu “um chamado de Deus” para se tornar missionário.

Com o chamado de Deus em seu coração, Pe. Lazarus voltou para a Inglaterra para estudar no St Augustine’s, um colégio missionário anglicano em Canterbury, Inglaterra, por cinco anos. Ele foi ordenado diácono na Igreja da Inglaterra em 1930 e foi ordenado sacerdote anglicano em 1931.

O Pe. Lazarus se interessou por viagens, e seu processo de conversão o levou para a Índia em 1933, onde se juntou à sanga Christa Seva, uma irmandade anglo-indiana com um ashram em Poona. Os estudos em tradição e história da Igreja o levaram à Terra Santa e ao Monte Athos, onde floresceu seu desejo de abraçar o Cristianismo Ortodoxo.

O Pe. Lázaro entrou em contato com hierarcas russos e visitou a Sérvia, recebido pelo Metropolita Antonio (Khrapovitsky) da Igreja Ortodoxa Russa no Exterior (ROCOR), que na época estava sediada em Sremsky Karlovsky, perto de Belgrado.

No mosteiro de Milkovo, antes de ser ordenado pelo Arcebispo Feofan em janeiro de 1936 (?) ao sacerdócio, o Pe. Lazarus tornou-se monge. Seu coração e sua mente se aprofundaram na Igreja Ortodoxa e ele foi designado para a Missão Eclesiástica Russa que fica em Jerusalém, no Convento de Santa Maria Madalena, no Getsêmani.

Dois santos mártires, a grã-duquesa Elizabeth Feodorovna da Rússia e sua colega monja Bárbara Yakovleva, estão sepultadas na igreja. O Pe. Lazarus trabalhou em estreita colaboração com as abadessas Maria (Robinson) e Maria (Sprott), também convertidas do anglicanismo. Ele deu aulas em uma escola em Betânia (Palestina), que era mantida pela Missão Eclesiástica Russa. Foi aí que ele completou um primeiro esboço da Vida de São Serafim.

Mas então a guerra estourou.

A batalha e o caos social que se seguiram forçaram o Pe. Lazarus e sua pequena comunidade de Santa Maria fugirem a pé pelo deserto até a Transjordânia.

Após a guerra árabe-israelense de 1948, o recém-fundado Estado de Israel entregou a propriedade do convento ao governo ateu militante da União Soviética, o que acabou por dissolver a missão e o convento.

O Pe. Lazarus então viveu na região da Transjordânia por um ano e em 1952 retornou à Índia, ajudando um grupo de ortodoxos sírios não-calcedonianos em Malabar, sul da Índia, que haviam abordado o Sínodo Russo buscando admissão na Ortodoxia calcedoniana.

O Pe. Lazarus ficou na Índia por mais 20 anos.

Ele ajudou no trabalho missionário, traduzindo vida de santos e ofícios da Igreja, escrevendo e servindo a Deus com todo o seu coração, mente e alma em meio à pobreza, doença e distúrbios políticos e sociais.

Ele transmitiu homilias através do rádio, trabalhando sob condições extremas de calor, ataques de malária e um isolamento incrível. Muito de seu trabalho de tradução do eslavo e grego para o inglês foi concluído e publicado durante essa época, por diversas vezes na revista Orthodox Life, publicada pelo Mosteiro de Jordanville, em Nova York.

Foi nesse mosteiro que o Pe. Lazarus traduziu o Antigo Livro de Orações de Jordanville, a Arena, a Escada da Ascese Divina e vários outros manuscritos. Ele trabalhava com uma velha máquina de escrever manual, vertendo preciosas palavras espirituais página por página. Frequentemente, ele teve de interromper seu trabalho porque a eletricidade acabava.

Como as batinas pretas eram culturalmente ofensivas para os residentes locais, o Pe. Lazarus usava uma batina branca durante esse tempo. E foi durante este período, na Índia, que conheceu Ghandi e a monja Gavrilia, a asceta do amor.

Em 1972, o Pe. Lázaro foi convocado para a Grécia, onde trabalhou e cogitou em se estabelecer para sempre, mas em 1974 foi chamado para servir na Austrália. Aqui, seus esforços durante um período de 8 anos floresceram no que é hoje a próspera e bela Missão Ortodoxa da Santa Cruz.

Durante sua estada na Austrália, o Pe. Lázaro buscou a libertação canônica da diocese russa e foi aceito na jurisdição do Patriarcado de Antioquia.

Em 1983, o Pe. Lázaro recebeu um convite do Pe. Peter Gillquist para viver em meio à Igreja Evangélica Ortodoxa na América para ajudá-los na transição do protestantismo para a Ortodoxia canônica.

O Pe. Lazarus aceitou e, em 1987, milhares de indivíduos foram recebidos na Arquidiocese Ortodoxa de Antioquia. O Pe. Lazarus viveu em Santa Bárbara durante cinco anos, tornando-se um amado ancião e professor da próspera Igreja de Santo Atanásio, onde tocou muitas vidas.

Mas em 1989, sua saúde começou a piorar e ele se mudou para a comunidade da Catedral de São João em Eagle River, Alasca. Aqui, o Pe. Lazarus compartilhou os últimos anos de sua vida ajudando a comunidade de São João na transição para a Ortodoxia.

Em 27 de novembro de 1992, o Pe. Lazarus adormeceu no Senhor. No quarto dia após seu repouso, ele foi enterrado no cemitério da Catedral de São João. Como sinal claro da ressurreição, a paisagem nevada do Alasca foi milagrosamente descongelada para revelar um relvado verde brilhante.

Três águias voavam neste instante.

O Pe. Lazarus nos deixou “viajando com anjos”. Através de seu trabalho como monge, sacerdote, tradutor, professor, amigo e autor, inúmeras almas foram e ainda hoje são nutridas no amor para e por Deus.

Glória a Deus!

Fonte: Fr. Lazarus Moore Foundation

6 de novembro de 2020

Culpa e vergonha


Há um ditado muito útil que aponta a diferença entre culpa e vergonha. A culpa diz respeito ao que eu fiz - a vergonha diz respeito a quem eu sou. Não são conceitos independentes, principalmente em uma cultura em que o que fazemos é a resposta que se dá à pergunta: "Quem é você?" A cultura americana tradicional freqüentemente é descrita como sendo “baseada na culpa”, ou seja, os pensamentos religiosos em geral são centrados na bondade que se pode detectar nas ações das pessoas. O sistema jurídico é um exemplo disso. As teorias da expiação popularizadas na teologia protestante versam principalmente sobre o perdão pelas coisas que fizemos de errado. “Todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus” (Romanos 3:23) é um versículo muito citado. Todos são culpados de algo e precisam de perdão. No entanto, essa postura simplesmente ignora a questão da vergonha.

Martinho Lutero descreveu o cristão como um "monte de esterco coberto de neve". A “neve” é a justiça de Cristo. Nós próprios somos apenas esterco. Pela fé, aceitamos a justiça de Cristo como nossa e somos "cobertos". É uma imagem que trata a culpa e deixa a vergonha intocada. Assim, o que fiz é “coberto”, mas eu mesmo permaneço o que sou (esterco). Não acho que seja essa a intenção de Lutero. Mesmo assim, é um exemplo infeliz de uma cultura que exteriorizou o eu, confundindo-o com “o que fazemos” ou, mais provavelmente, deixando-o de lado completamente.

O pensamento ortodoxo, por outro lado, tende a fundar as ações no funcionamento do eu. Elas são “sintomas” de um processo interno. Ouvimos isso na descrição de São Paulo de sua luta espiritual.

“Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço. E, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa. De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim.” (Romanos 7: 15-20)

São Paulo quer fazer o bem, mas algo está agindo nele que produz o que não é bom. Eis o pecado: um processo . Em outro trecho, ele igualará esse processo ao da própria morte. Pecado é morte, morte é pecado.

De modo geral, é impossível separar essas coisas (culpa e vergonha). Em termos teológicos, a Ortodoxia é descrita como tendo uma visão “ontológica”, uma visão que vê as coisas em termos de nosso próprio ser, nosso ser como um todo. Não é algo jurídico (como se nossas ações fossem isoladas) porque não conseguimos avaliar adequadamente nossas ações quando as consideramos isoladamente, individualmente.

Se tomamos a imagem de Lutero, a Ortodoxia (e São Paulo) descreveria a “neve” da justiça de Cristo como aquilo que transforma tudo o que há em nós que pode ser descrito como “esterco” em neve. Deus se tornou o que somos [esterco] para que pudéssemos nos tornar o que Ele é [neve]. Nas palavras de São Paulo:

“Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus.” (2 Co 5:21).

O grito de São Paulo no final da passagem de Romanos não é de culpa. A culpa diz: “O que eu fiz?” São Paulo grita: “Desventurado homem que sou! Quem me livrará deste corpo de morte?" Este é o grito de vergonha, o reconhecimento em um nível existencial de que quem eu sou está em um estado de miséria.

A abordagem ortodoxa para a salvação se foca na pessoa como um todo (e, portanto, na experiência da vergonha). É inevitável que tal abordagem ontológica (se focando em toda a pessoa no nível do ser) encontrará questões ligadas à vergonha - precisamente porque a vergonha é como nos sentimos sobre "quem somos". Assim, questões ligadas à humildade e ao autoesvaziamento estão na vanguarda da vida espiritual ortodoxa. Se nossas vidas fossem medidas em termos de culpa (as coisas que fizemos), seria absurdo confessar que “Eu sou o principal dos pecadores”. É apenas no nível do nosso próprio ser que a mundanidade de nossas vidas pode ser vista.

Há muito tempo penso que a culpa é uma categoria problemática, algo que perde o foco. Se eu nunca tivesse feito nada de errado, a condição real de minha alma permaneceria a mesma: ela está presa pela morte. Eu também observei ao longo dos anos, como alguém que ouve confissões, que nunca é a culpa que leva alguém ao arrependimento. A culpa não é a linguagem tradicional da confissão. Ouça esta oração em preparação para a comunhão:

Ó Senhor meu Deus, sei que não sou digno nem suficiente para que entres debaixo do meu teto, na habitação da minha alma, pois está tudo deserto e em ruínas, e não tens um lugar adequado dentro de mim para deitar Tua cabeça. Mas, das alturas de Tua glória, Tu te humilhaste, então agora leva-me em minha humildade; assim como Tu te humilhaste a deitar em uma manjedoura em uma caverna, então digna-te agora também a entrar na manjedoura de minha alma muda e corpo corrupto. Assim como não deixaste de entrar na casa de Simão, o leproso, nem te esqueceste de comer ali com pecadores, entra também na casa da minha pobre alma, toda leprosa e cheia de pecado….

Não se trata aqui de lamentar-se de coisas terríveis que foram feitas, uma admissão de culpa. Este é um reconhecimento voluntário de vergonha. Costumo advertir àqueles que são novos nas orações da Ortodoxia para serem cuidadosos. Essas orações são escritas por santos de uma forma muito poética que expressa o fundo do nosso coração. Muitas pessoas, ao ouvirem essa linguagem, podem entrar em desespero ou sentir que a oração está tentando envergonhá-las. Nesses casos, instruo as pessoas a orar com suas próprias palavras no início, simplesmente dizendo: “Não sou digno. Ajuda-me." Com o tempo, as palavras sagradas dos santos se tornarão as do seu próprio coração.

Anos atrás, quando eu era anglicano, aprendi a “oração do acesso humilde”:

Não temos a pretensão de vir a esta Tua mesa, ó misericordioso Senhor, confiando em nossa própria justiça, mas em Tua multiforme e grande misericórdia. Não somos dignos a ponto de recolher as migalhas debaixo de Tua mesa. Mas Tu és o mesmo Senhor, cuja propriedade é sempre ter misericórdia: Conceda-nos, portanto, gracioso Senhor, comer a carne de Teu querido Filho Jesus Cristo, e beber o Seu sangue, para que nossos corpos pecaminosos sejam limpos por Seu corpo, e nossas almas lavadas pelo Seu preciosíssimo sangue, e que possamos cada vez mais habitar nEle, e Ele em nós. Amém.

Mesmo como padre ortodoxo, continuo a usar essa oração antes de receber a comunhão. Há muito tempo está unida ao meu coração e tornou-se parte de mim. Hoje é usada por alguns ortodoxos no rito ocidental.

Se você se dedicar às palavras do Novo Testamento, aos poucos ficará claro que muito pouco dele se relaciona à culpa - às coisas que as pessoas fizeram de errado. Em vez disso, está focado no próprio estado de nossos corações, no que nos tornamos ou “quem somos” e, portanto, muito mais relacionado com a vergonha.

Acrescentarei para encerrar que é possível pensar na vergonha em termos meramente psicológicos. Isso é muito bom, mas não atinge a realidade mais profunda da questão. A nudez de Adão e Eva pode ser vista em vários níveis. É, em primeiro lugar, uma questão literal: eles não tinham roupas. Em segundo lugar, é uma questão emocional, psicológica: eles sentem vergonha e querem se esconder. Terceiro, e este é um grande mistério, eles perderam a glória original com a qual foram vestidos, a semelhança de Deus. Esta é uma transfiguração da plenitude do nosso ser. Ouvimos ecos disso em São Paulo:

Porque sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo se desfizer, temos de Deus um edifício, uma casa não feita por mãos, eterna, nos céus. E por isso também gememos, desejando ser revestidos da nossa habitação, que é do céu; se, todavia, estando vestidos, não formos achados nus. Porque também nós, os que estamos neste tabernáculo, gememos carregados; não porque queremos ser despidos, mas revestidos, para que o mortal seja absorvido pela vida. Ora, quem para isto mesmo nos preparou foi Deus, o qual nos deu também o penhor do Espírito. (2 Co 5:1-5)  

E assim nossa vergonha será dissolvida. Glória a Deus.

Fonte: Pe. Stephen Freeman, Guilt and Shame – What’s The Difference.