27 de dezembro de 2010

A tranquilidade interior em um mundo barulhento


Às vezes parece que não há lugar no mundo onde não haja barulho. Nós até pagamos para que haja barulho. É comum vermos pessoas andando por lugares belos e serenos com fones de ouvido ligados em um iPod. Crianças fazem suas lições de casa também usando fones de ouvido. A música raramente é tranquila, mas quase sempre alta e barulhenta. Também é comum presenciarmos casas nas quais a TV serve de "música ambiente". Muitos dispositivos tecnológicos foram criados para fazer barulho e nos entreter. Para que esse barulho todo? Por que escolhemos viver com barulho? Será que há alguma relação com a intranquilidade que sentimos em nossas vidas?

O Ancião Paísio conhecia este problema.
A agitação exterior os deixa confortáveis por causa de sua própria intranquilidade interior. Há barulho por toda parte... Não há um só lugar intocado pelo barulho... Nem mesmo no Monte Athos. Certa vez alguns monges vieram à minha kalyvi [cabana monástica] e começaram a conversar bem alto. Eu disse a um deles: "Falem mais baixo; eles podem ouvi-los lá do outro lado". Ele continuou a falar alto. "Fale mais baixo", repeti. "Abençoe-me, Padre", ele respondeu. "Nós temos um gerador em nosso mosteiro e nos acostumamos a falar alto para ouvir-nos uns aos outros". Pode uma coisa dessas? Ao invés de rezar a Oração de Jesus e falar em voz baixa, eles gritam porque se acostumaram a ter um gerador...
Até mesmo os monges se queixam do barulho em suas vidas. Como poderemos encontrar paz se nos cercamos cada vez mais de barulhos infindáveis? O barulho é um estímulo físico que nos mantém concentrados neste mundo físico. No entanto, nosso objetivo é espiritual, é nos unirmos a Deus. A alma -- a parte invisível de nosso ser e que, portanto, não é física -- precisa ser capaz de reivindicar o controle para que possa receber o Espírito e nos guiar em nossas tarefas cotidianas. Os ruídos e barulhos tornam-se distrações que nos mantêm ancorados nas coisas e desejos deste mundo físico.

Vivemos em um mundo poluído por ruídos e barulhos. Não conseguimos evitá-los. Como, então, conseguiremos ganhar a tranquilidade interior necessária para a vida espiritual?

O Ancião Paísio recomendava o seguinte:
O que devemos fazer é tomar tudo aquilo que se apresenta em nosso caminho e extrair o melhor em prol do combate espiritual no qual estamos inseridos. Temos de nos esforçar para adquirirmos a tranquilidade interior e, neste sentido, até mesmo os barulhos podem ser úteis se forem compreendidos da maneira correta. O que realmente importa é lidar com o problema da maneira correta. Devemos a tudo enfrentar com bons pensamentos. Se você estiver em um ambiente barulhento, mas conseguir atingir a tranquilidade interior, terá alcançado algo de muito valor. Se não conseguir atingir a tranquilidade em meio aos distúrbios, então não conseguirá encontrar tranquilidade nem mesmo em um ambiente tranquilo. Quando a tranquilidade interior desperta no homem, tudo dentro dele será tranquilo, e ele não se deixará perturbar por nada. mas se ele precisar de tranquilidade exterior para encontrar a tranquilidade interior, então, quando estiver em um lugar desses, ainda assim ele precisará de uma vara para expulsar as cigarras de dia e os chacais à noite para que eles não o incomodem! Em outras palavras, ele expulsará aquilo que, na verdade, o diabo está ajuntando. A tarefa dele é criar dificuldades para obstruir nossos esforços, até que ele nos vire do avesso.
O desafio do crescimento espiritual é encontrar tranquilidade em meio aos distúrbios exteriores. Não devemos tentar acobertá-los com outros barulhos, como músicas de iPod ou com a TV. Temos de aprender a encontrar a tranquilidade interior no barulho exterior que nos rodeia, não importa qual seja. Aprendemos a fazer isso com a prática da Oração de Jesus. A oração contínua nos dará a tranquilidade interior que procuramos.

Fonte: With Pain and Love for Contemporary Life, p. 189-193, 201-202

20 de dezembro de 2010

Natal vazio


C. S. Lewis

Há três coisas que chamamos de "Natal". A primeira é a festa religiosa. Ela é importante e obrigatória para os cristãos, mas, já que não é do interesse de todos, não vou dizer mais nada sobre ela. A segunda (ela tem conexões histórias com a primeira, mas não precisamos falar disso aqui) é o feriado popular, uma ocasião para confraternização e hospitalidade. Se fosse da minha conta ter uma "opinião" sobre isso, eu diria que aprovo essa confraternização. Mas o que eu aprovo ainda mais é cada um cuidar da sua própria vida. Não vejo razão para ficar dando opiniões sobre como as pessoas deveriam gastar seu dinheiro e seu tempo com os amigos. É bem provável que elas queiram minha opinião tanto quanto eu quero a delas. Mas a terceira coisa a que se chama "Natal" é, infelizmente, da conta de todo mundo.

Refiro-me à chantagem comercial. A troca de presentes era apenas um pequeno ingrediente da antiga festividade inglesa. O sr. Pickwick levou um bacalhau a Dingley Dell [1]; o arrependido Scrooge [2] encomendou um peru para seu secretário; os amantes mandavam presentes de amor; as crianças ganhavam brinquedos e frutas. Mas a idéia de que não apenas todos os amigos mas também todos os conhecidos devam dar presentes uns aos outros, ou pelo menos enviar cartões, é já bem recente e tem sido forçada sobre nós pelos comerciantes. Nenhuma destas circunstâncias é, em si, uma razão para condená-la. Eu a condeno nos seguintes termos.

1. No cômputo geral, a coisa é bem mais dolorosa do que prazerosa. Basta passar a noite de Natal com uma família que tenta seguir a "tradição" (no sentido comercial do termo) para constatar que a coisa toda é um pesadelo. Bem antes do 25 de dezembro as pessoas já estão acabadas – fisicamente acabadas pelas semanas de luta diária em lojas lotadas, mentalmente acabadas pelo esforço de lembrar todas as pessoas a serem presenteadas e se os presentes se encaixam nos gostos de cada um. Elas não estão dispostas para a confraternização; muito menos (se quisessem) para participar de um ato religioso. Pela cara delas, parece que uma longa doença tomou conta da casa.

2. Quase tudo o que acontece é involuntário. A regra moderna diz que qualquer pessoa pode forçar você a dar-lhe um presente se ela antes jogar um presente no seu colo. É quase uma chantagem. Quem nunca ouviu o lamento desesperado e injurioso do sujeito que, achando que enfim a chateação toda terminou, de repente recebe um presente inesperado da sra. Fulana (que mal sabemos quem é) e se vê obrigado a voltar para as tenebrosas lojas para comprar-lhe um presente de volta?

3. Há coisas que são dadas de presente que nenhum mortal pensaria em comprar para si – tralhas inúteis e barulhentas que são tidas como "novidades" porque ninguém foi tolo o bastante em adquiri-las. Será que realmente não temos utilidade melhor para os talentos humanos do que gastá-los com essas futilidades?

4. A chateação. Afinal, em meio à algazarra, ainda temos nossas compras normais e necessárias, e nessa época o trabalho em fazê-las triplica.

Dizem que essa loucura toda é necessária porque faz bem para a economia. Pois esse é mais um sintoma da condição lunática em que vive nosso país – na verdade, o mundo todo –, no qual as pessoas se persuadem mutuamente a comprar coisas. Eu realmente não sei como acabar com isso. Mas será que é meu dever comprar e receber montanhas de porcarias todo Natal só para ajudar os lojistas? Se continuar desse jeito, daqui a pouco eu vou dar dinheiro a eles por nada e contabilizar como caridade. Por nada? Bem, melhor por nada do que por insanidade.

[1] Samuel Pickwick é o personagem principal de Pickwick Papers, romance de Charles Dickens no qual suas aventuras são narradas. Dingley Dell é o nome de uma fazenda, um dos cenários do romance. (N. do T.)

[2] Referência ao avarento milionário Ebenezer Scrooge, personagem da obra Um Conto de Natal, de Charles Dickens. (N. do T.)

Publicado originalmente em God in the Dock -- Essays on Theology and Ethics (Deus no Banco dos Réus – Ensaios sobre Teologia e Ética), 1957.

16 de dezembro de 2010

Santa Julia, Virgem e Mártir


Julia nasceu em Cartago [na atual Tunísia], de família nobre. Quando os persas tomaram Cartago, muitas pessoas foram escravizadas. Santa Julia foi capturada, escravizada e entregue a um mercador sírio, que era pagão. Percebendo que Julia era cristã, tentou convencê-la por diversas vezes a negar o Cristo e juntar-se ao paganismo, mas Julia jamais concordaria com suas propostas. Porém, como Julia era confiável e muito leal em seu serviço, o mercador resolveu deixá-la em paz e não mais falar-lhe sobre questões de fé.

Um dia, o mercador resolveu carregar seu barco com produtos e, tomando Julia consigo, navegou por terras distantes para fazer negócios. Quando chegaram na Córsega, havia ali uma grande festa pagã. O mercador juntou-se à festa e começou a fazer oferendas blasfemas. Julia permaneceu no barco, e chorava muito, pois muitos homens viviam em erros tolos e não conheciam a verdade.

De alguma maneira, os pagãos ficaram sabendo de Julia e a removeram do barco, apesar de seu mestre não ter concordado com isto. Eles começaram a torturá-la. Eles cortaram seus seios fora e atiraram-na em uma rocha. Depois, crucificaram-na em uma cruz na qual Santa Julia entregou sua alma a Deus.

A morte de Santa Julia foi revelada por um anjo aos monges de uma ilha próxima, chamada de Margarita ou Górgona. Os monges foram até o local e solenemente enterraram o corpo da mártir. Muitos milagres ocorreram na sepultura de Santa Julia ao longo dos séculos, sendo que ela apareceu em pessoa a algumas pessoas. Ela repousou no Senhor no século VI.

Muitos anos depois, os fiéis tiveram a idéia de construir uma nova igreja em outro local a fim de honrar Santa Julia, já que a velha igreja era muito pequena e encontrava-se deteriorada. Assim, eles arregimentaram todo o material necessário, como pedras, tijolos, areia e tudo o mais. Ocorreu que, naquela noite, na véspera do dia em que pretendiam assentar os primeiros tijolos, todo o material foi movido por uma mão invisível para a velha igreja. Confusos, os homens carregaram todo o material de volta para o local da nova igreja, mas a mesma coisa aconteceu outra vez: o material foi deslocado para o terreno da velha igreja. O vigia noturno viu uma jovem senhorita "toda incandescente", em gado branco, carregando o material para a velha igreja. Foi então que todos entenderam que Santa Julia não desejava que a igreja fosse construída em outro local. Assim, os fiéis demoliram a velha igreja e construíram uma nova igreja exatamente no mesmo lugar.

Fonte: São Nicolau Velimirovich, Os Prólogos de Ochrid, 29 de julho.

* * *


Durante a tomada de Cartago [na atual Tunísia], uma menina cristã de nome Julia foi escravizada e vendida a um mercador pagão, que levou-a consigo à Palestina. Embora estivesse cercada por idólatras, a menina manteve-se apegada aos padrões nos quais havia sido criada, preservando assim sua fé no Cristo. Ela cumpriu com afinco tudo o que lhe era exigido e manteve-se fiel a seu senhor, cumprindo a injunção do Apóstolo: Vós, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne... Servindo de boa vontade como ao Senhor, e não como aos homens (Efésios 6:5,7).

Embora Julia fosse mansa e obediente, não havia como persuadi-la a fazer algo contra os mandamentos do Cristo. Por diversas vezes o mercador tentou convencê-la a abandonar a fé cristã e viver à maneira dos pagãos. Mas Julia preferia morrer a ter de negar o Cristo. O mercador enraiveceu-se e tentou matá-la; porém, percebendo o quanto ela era fiel e obediente, finalmente deixou-a em paz. Ele espantava-se com sua mansidão, sua paciência, sua natureza laboriosa. Ao tornar-se adulta, o mercador confiou-lhe importantes questões comerciais. Após os longos e duros dias de trabalho, Julia ficava feliz por ocupar-se de orações e leituras espirituais.

Julia ainda estava na faixa dos 20 anos de idade quando seu senhor a fez acompanhá-lo em uma jornada de negócios. No meio do caminho, seu barco fez uma parada na ilha mediterrânea de Córsega. Lá ainda haviam muito idólatras. Perto da orla, ao avistar um grupo de pessoas que estavam oferecendo sacrifícios a deuses pagãos, o mercador desejou juntar-se a eles. Ele saiu do barco, juntamente com todos os que estavam a bordo -- todos, menos Julia. Ela ficou para trás, no barco, lamentando-se profundamente das almas perdidas dos pagãos.

Durante a ausência do mercador, alguns habitantes da ilha entraram no barco. Ao avistarem Julia e descobrirem que era cristã, correram para avisar o líder, o qual disse ao mercador: "Por que nem todos os seus servos vieram honrar os deuses?"

"Todos estão aqui", disse o mercador.

"Então por que me disseram que há em seu barco uma mulher que se recusa a curvar-se perante os deuses?"

"Minha serva Julia?", perguntou o mercador. "Não há como convencê-la a afastar-se das ilusões da religião cristã. Eu mesmo tentei de várias formas; tentei com doçura, tentei com ameaças, e a teria matado há muito tempo não fosse o fato de ela ser tão fiel a mim, tão laboriosa".

"Ela tem de curvar-se aos deuses", disse o líder pagão. "Se tu quiseres, comprarei ela de ti e a forçarei a honrar nossos deuses".

"Pois eu lhe digo que ela preferiria morrer a abandonar sua fé, além de que me recuso a vendê-la. Todas os seus bens nem mesmo começariam a compensar os serviços dela".

Furioso, o líder pagão decidiu que traria a criada cristã a todo custo e a forçaria a oferecer sacrifícios aos deuses. Ele embriagou o mercador e, enquanto ele dormia, mandou buscar Julia,

"Faça um sacrifício aos deuses", ordenou-lhe, "e eu comprarei tua liberdade de teu senhor".

"Minha liberdade reside no trabalho a Cristo e em servir-Lhe de consciência limpa", respondeu a mulher. "Não posso juntar-me à tua fraude".

O líder ordenou que lhe batessem. Ela aguentou tudo calada, dizendo em seguida: "Por minha causa Cristo sofreu murros e cusparadas. Estou pronta para sofrer por Ele".

Julia foi sujeita a todo sorte de torturas; arrancaram-lhe os cabelos, bateram-na severamente e sem dó, mas ela permaneceu impávida.

"Confesso Aquele que por minha causa foi esmurrado, coroado com espinhos e crucificado na Cruz. Eu sou Sua serva e estou pronta para compartilhar de Seus sofrimentos", disse a jovem com coragem.

Após longas e cruéis torturas, Julia foi crucificada em uma cruz.

Ao acordar, o mercador descobriu o que tinha acontecido e entristeceu-se profundamente; mas nada mais podia ser feito, pois o último sopro de vida já havia sido dado por sua serva. Quando sua santa alma partiu para o Senhor, várias pessoas que ali estavam viram uma pomba branca como a neve sair de sua boca; outros viram anjos que circundavam a virgem e mártir. Aterrorizados, eles saírem correndo, deixando o corpo pendurado na cruz. Naquela mesma noite, tudo o que havia acontecido foi revelado em sonhos a alguns monges de uma olha vizinha. Eles foram encarregados de buscar o corpo e dar-lhe um enterro digno. Foi o que fizeram. Mais tarde, uma igreja foi construída exatamente no local onde a santa mártir havia sofrido. Daquele dia em diante, muitos cristãos têm honrado a memória de Santa Julia, a qual o próprio Senhor a tem glorificado com milagres.

Fonte: Vidas de Santos, compilado por A. N. Bakhmetova, Moscou, 1872.

* * *

Tropário (tom 4)

Tua cordeira Julia, ó Jesus, em prantos clama a Ti em alta voz: "Meu Noivo, aspiro por Ti e em torturas busco a Ti. Sou crucificada e sepultada contigo em meu Batismo, e por Ti sofro até que eu reine contigo. Morro por Ti para que viva em Ti". Recebe aquela que como um sacrifício sem mácula foi violentada por Tua causa. Pelas suas intercessões, pois Tu és misericordioso, salva nossas almas.