28 de fevereiro de 2014

Quanto mais escura a noite, mais brilham as estrelas


Os sofrimentos dos infiéis são como as tempestades que tudo destroem, mas as lágrimas dos fiéis são como as chuvas finas e graciosas que fazem florescer as belas flores da virtude na alma. Eis uma das mais extraordinárias características de nossa fé cristã: ela traz a paz mesmo em meio ao sofrimento. Ela transforma os sofrimentos em júbilo.

[...]

Devemos então nos lamentar quando Deus nos manda os sofrimentos? Não, não devemos, mas devemos, isso sim, beijar a Mão que nos pune. Porque o Senhor corrige o que ama, e açoita a qualquer que recebe por filho. Se suportais a correção, diz o Apóstolo Paulo, Deus vos trata como filhos; porque, que filho há a quem o pai não corrija? Mas, se estais sem disciplina, da qual todos são feitos participantes, sois então bastardos, e não filhos. (Hebreus 12:6-8)

Não há um santo sequer que não tenha trilhado o caminho do sofrimento. São João Crisóstomo afirma: "Quando as tribulações [sofrimentos] vierem, não permitamos que esses sinais de Deus sejam tomados como abandono, mas devemos considerá-los como sinais de que o Senhor se preocupa conosco, pois, ao permitir que as tribulações recaiam sobre nós, Ele limpa nossos pecados". Deus não abandona a quem envia os sofrimentos e tribulações, mas, pelo contrário, Ele demonstra Sua proximidade. Perto está o Senhor dos que têm o coração quebrantado, e salva os contritos de espírito. Muitas são as aflições do justo, mas o Senhor o livra de todas. (Salmos 34:18-19) Quanto maior a angústia, mais próximo Deus está; quanto mais escura a noite, mais brilham as estrelas.

Cristão, sê confortado na angústia que sofres. Saibas que Deus não pune apenas os que vendem sua alma ao diabo para desfrutarem de alegrias e prazeres terrenos. Deus não castiga apenas aqueles que não são Seus. Como bom Pai, Ele não está preocupado com a correção e a educação dos filhos dos outros; todo pai castiga seus próprios filhos. Se Deus te manda tribulações e castigos, não fiques desconsolado, mas alegra-te, pois tu és um de Seus filhos e Ele ocupa-se de tua salvação! Lamenta-te um pouco. Isso não é pecado. Mas lamenta-te com fé!

Fonte: Arquimandrita Seraphim Aleksiev, The Meaning of Suffering, St. Xenia Skete, Wildwood, CA, EUA, 1994.

Imagem: Sofrimento Inconsolável, Ivan Kramskoy, 1884, Rússia.

25 de fevereiro de 2014

"Não cometi nenhum pecado importante"


Caros leitores, nós fomos criados para Deus, e somente nEle encontramos a felicidade suprema a qual nossos corações aspiram. Somente Deus pode nos fazer felizes! Dê ao homem o que quiser. Ele o desfrutará por uns tempos, mas depois se tornará indiferente à coisa porque sentirá que algo mais, algo mais elevado, está faltando. Ora, não é exatamente assim que as crianças se comportam, se divertindo com um brinquedo novo até que comecem a sentir fome? Elas deixam o brinquedo de lado e vão atrás de comida. Uma espécie de fome interior por verdade, alegria e paz no Espírito Santo (cf. Romanos 14:17) tormenta a alma e não nos deixa em paz, mesmo entre os maiores prazeres da vida e entre as realizações mais invejáveis do mundo.

É em vão que algumas pessoas não esclarecidas tentam situar os maiores males da humanidade em outra parte que não no pecado. Alguns consideram a doença com o maior dos males, outras a pobreza, outras ainda a morte. Mas nem a doença, nem a pobreza, nem a morte, nem qualquer outro desastre terreno é tão maligno quanto o pecado. Essas desgraças terrenas não nos separam de Deus se O estivermos buscando com sinceridade, mas, pelo contrário, aproximam-nos dEle.

[...]

“Não cometi nenhum pecado importante”. Não mesmo? Quando alguém fica num quarto fechado por muito tempo acaba se acostumando ao ar impuro e nem percebe como ele está desagradável. Mas se alguém de fora entra no quarto não aguentará o fedor e fugirá.

Os Santos Padres ensinam que é muito difícil para o homem enxergar seus próprios pecados. Dizem eles que essa cegueira é causada pelo diabo. Abba Isaías afirma: “Quando o homem se aparta daquele que está à sua esquerda, isto é, da comunhão com os demônios e de suas sugestões, então enxergará plenamente seus pecados contra Deus; então ele conhecerá Jesus. Mas o homem será incapaz de enxergar seus pecados até que se aparte deles mediante esforços e sofrimentos. Quem conseguiu alcançar essa condição encontrou lágrimas e orações; à medida que se recordam da amizade dissimulada com as paixões, não se acanham em olhar à Deus e viver constantemente com o espírito aquebrantado”.

Se fosse fácil enxergar nossos pecados Santo Efraim, o Sírio, não teria rezado assim: “Senhor, permita que eu enxergue minhas transgressões”. Nem teria São João de Kronstadt dito: “Eis um autêntico dom de Deus: poder enxergar seus pecados em sua multidão e em toda sua repugnância”.

No fim das contas, quem acha que não tem pecados importantes está verdadeiramente cego.

Normalmente, os pecados menores são mais perigosos do que os maiores crimes, pois estes pesam muito na consciência e insistem em serem expiados, confessados, resolvidos, apagados, enquanto os pecados menores, embora não pesem tanto na alma, possuem aquela característica perigosa de a tornarem insensível à graça de Deus e indiferente à salvação. Poucas pessoas perecem por conta de animais ferozes, mas muitas morrem por causa da ação de minúsculos micróbios, invisíveis a olho nu. Por serem considerados insignificantes, os pecados pequenos normalmente passam desapercebidos. Embora sejam facilmente esquecidos, eles criam em nós o pior dos hábitos – o hábito de pecar, de embotar a consciência moral. Assim, o miserável pecador acaba enganando-se a si próprio, concluindo que não é pecador coisa nenhuma, que tudo está bem, quando na verdade ele não passa de um escravo abjeto do pecado.


Os pecados menores engendram uma verdadeira estagnação na vida espiritual da pessoa. Assim como o relógio de parede para de funcionar por causa do acúmulo de poeira, assim também o pulso espiritual do homem gradualmente desaparece sob a camada grossa de pecados acumulados. Para que o relógio volte a funcionar, a poeira tem de ser eliminada. Para que o homem restaure sua vida espiritual, ele tem de confessar até mesmo o menor dos pecados.

Fonte: Arquimandrita Seraphim Aleksiev, The Forgotten Medicine, St. Xenia Skete, Wildwood, CA, EUA, 1994.

Imagem: O anjo da guarda indica o caminho dizendo: "Vá, confessa teus pecados a teu pai espiritual". O demônio, porém, opondo-lhe, diz: "Tu és ainda jovem, e o que quer que tenhas pecado poderás confessar no teu leito de morte". - Gravura do livro Instruções Espirituais ao Penitente, séc. XIX.

18 de fevereiro de 2014

O mecanismo do bode expiatório


Falo aqui apenas das perseguições coletivas ou com ressonâncias coletivas. Por perseguições coletivas entendo as violências cometidas diretamente por multidões assassinas, como o massacre dos judeus durante a peste negra. Por perseguições com ressonâncias coletivas entendo as violências tipo caça às bruxas, legais em suas formas, mas geralmente encorajadas por uma opinião pública superexcitada.

(1) O primeiro estereótipo da perseguição é o cultural, que de algum modo se eclipsa, tornando-se indiferenciado. Compreendendo isso, apreendemos melhor a coerência do processo persecutório e a espécie de lógica que liga entre si todos os estereótipos de que ele se compõe.

Não temos de nos preocupar com as causas últimas dessa crença, como, por exemplo, os desejos inconscientes de que nos falam os psicanalistas, ou a vontade secreta de oprimir de que nos falam os marxistas. Situamo-nos aquém disso. Nossa preocupação é mais elementar: interessa-nos apenas a mecânica da acusação e o entrelaçamento das representações e das ações persecutórias. Temos aí um sistema e, caso sejam absolutamente necessárias causas para compreendê-lo, bastar-nos-á a mais imediata e a mais evidente. O terror inspirado aos homens pelo eclipse cultural, a confusão universal que se traduz pelo surgimento da multidão; esta, no limite, torna-se uma com a comunidade literalmente não diferenciada, privada de tudo aquilo que difere os homens uns dos outros no tempo e no espaço: eis, com efeito, que eles se reúnem de modo desordenado em um só e mesmo lugar e momento.

A multidão tende sempre à perseguição, pois as causas naturais daquilo que a perturba, daquilo que a transforma em turba, não podem interessá-la. A multidão, por definição, procura a ação, mas não consegue agir sobre as causas naturais. Procura, então, uma causa acessível e que satisfaça seu apetite de violência.

(2) Todas as acusações estereotipadas circulavam a respeito dos judeus e de outros bodes expiatórios coletivos durante a peste negra. Guillaume de Machaut, todavia, não os menciona. Como vimos, ele acusa os judeus de envenenar os rios. Deixa de lado as acusações mais incríveis, e sua relativa moderação se deve talvez à sua qualidade de “intelectual”. Quiçá ela também tenha uma significação mais geral, ligada à evolução das mentalidades no fim da Idade Média.

A finalidade da operação permanece a mesma. A acusação de envenenamento permite lançar a responsabilidade de desastres perfeitamente reais sobre pessoas das quais de fato não foram encontradas as atividades criminais.

Nada acrescento quanto às acusações estereotipadas. Vemos sem dificuldade que há sempre o mesmo estereótipo e sobretudo aquilo que o une ao primeiro, ou seja, o da crise indiferenciada.

(3) Passo agora ao terceiro estereótipo. As minorias étnicas tendem a polarizar com as maiorias. Temos aí um critério de seleção vitimaria, relativo a cada sociedade, sem dúvida, mas que é transcultural em seu princípio.

Ao lado dos critérios culturais e religiosos, há os puramente físicos. Há, por exemplo, uma anormalidade social; aqui é a média que define a norma. Quanto mais a pessoa se distancia do status social mais comum, em um ou outro meio, mais crescem os riscos de perseguição. Vemos isso sem dificuldade para aqueles que se situam na parte baixa da escala.

Vemos menos bem, ao contrário, que à marginalidade dos miseráveis, ou marginalidade de fora, é preciso acrescentar uma segunda, a marginalidade de dentro, a dos ricos e dos poderosos. O monarca e sua corte frequentemente fazem pensar no olho de um ciclone. Esta dupla marginalidade sugere uma organização social em redemoinho. Em tempo normal, sem dúvida, os ricos e os poderosos gozam de todos os tipos de proteções e de privilégios que faltam aos deserdados. Todavia, não são as circunstâncias normais que aqui nos interessam, e sim os períodos de crise. O mais breve olhar sobre a história universal revela que os riscos de morte violenta nas mãos de uma multidão descontrolada são estatisticamente mais elevados para os privilegiados do que para qualquer outra categoria.

Não há cultura no interior da qual cada um não se sinta “diferente” dos outros e não pense as “diferenças” como legítimas e necessárias.

Não é a diferença no seio do sistema que significam as marcas da seleção vitimaria, mas a diferença fora do sistema, é a possibilidade para o sistema de diferir de sua própria diferença, ou, em outras palavras, de não diferir do todo, de cessar de existir como sistema.

Os estrangeiros são incapazes de respeitar as “verdadeiras” diferenças; eles não têm costumes ou não têm gosto conforme os casos; apreendem mal o diferencial enquanto tal. O barbaros não é aquele que fala outra língua, mas aquele que mistura as únicas distinções verdadeiramente significativas, as da língua grega.

Contrariamente ao que se repete a nosso redor, não é nunca a diferença que aborrece os perseguidores, e sim seu contrário indizível, a indiferenciação. [Ou seja, a minoria é perseguida porque desperta na maioria a consciência da indiferenciação. A maioria se atina para o fato de que sua cultura não é realmente diferente].

(4) Há um quarto estereótipo, que é a própria violência; dela trataremos mais adiante.

Fonte: René Girard, O Bode Expiatório, Paulus, São Paulo, 2004.

Imagem: William Hollman Hunt, The Scapegoat, 1856.

17 de fevereiro de 2014

Conhecimento e familiaridade


Sob a ótica do senso comum, conhecimento tem a ver com familiaridade. O conhecido, diz a linguagem comum, é o familiar. Se você está acostumado com alguma coisa, se você lida e se relaciona habitualmente com ela, então você pode dizer que a conhece. O desconhecido, por oposição, é o estranho. O grau de conhecimento, nessa perspectiva, é função do grau de familiaridade: quanto mais familiar, mais conhecido. Daí a fórmula: “eu sei = eu estou familiarizado com isso como algo certo”. Mas se o objeto revela alguma anormalidade, se ele ganha um aspecto distinto ou se comporta de modo diferente daquele a que estou habituado, perco a segurança que tinha e percebo que não o conhecia tão bem quanto imaginava. Urge domá-lo, reapaziguar a imaginação. Ao reajustar minha expectativa e ao familiarizar-me com o novo aspecto ou o novo comportamento, recupero a sensação de conhecê-lo.

Sob a ótica da abordagem científica, contudo, a familiaridade é não só falha como critério de conhecimento como ela é inimiga do esforço de conhecer. A sensação subjetiva de conhecimento associada à familiaridade é ilusória e inibidora da curiosidade interrogante de onde brota o saber. O familiar não tem o dom de se tornar conhecido só porque estamos habituados a ele. Aquilo a que estamos acostumados, ao contrário, revela-se com frequência o mais difícil de conhecer verdadeiramente.

Não é por estar absolutamente familiarizado om a faculdade da visão, por exemplo, que eu conheço algo sobre os processos e mecanismos intrincados que me levam a enxergar as coisas. A humanidade, de fato, conviveu durante centenas de milhares de anos com a experiência subjetiva da visão – a sensação de se estar vendo o que se vê –, sem que ninguém se desse conta de que nada sabia a respeito. Foi só a partir do momento em que alguns homens perderam a familiaridade com a visão e passaram a encará-la como problema – como algo estranho e alheio demandando algum tipo de explicação – que o conhecimento do fenômeno começou a sair do chão. A familiaridade cega.

Na abordagem científica, a objetividade substitui a familiaridade e a sensação pré-reflexiva de conhecimento como critério de saber. O grau de conhecimento é função do grau de objetividade: quanto mais objetivo, mais verdadeiro. O grau zero do conhecimento, nessa perspectiva, consiste no vale-tudo permissivo e relativista do “assim é se lhe parece”. O grau máximo é a verdade objetiva que se mantém soberana mesmo que nela não creiam: “A verdade é o que é, e segue sendo verdade, ainda que se pense o revés”.

* * *

Vivemos de modo indelével, imersos em subjetividade. As perguntas fundamentais do autoconhecimento – quem sou? o que realmente desejo? o que devo fazer de minha vida? qual o sentido de tudo isso? – estão fora do escopo e do projeto constitutivo da ciência. Imaginar que ela será algum dia capaz de atender à nossa demanda por autoconhecimento, valores e inteligibilidade é como esperar que um transmissor de fax interprete o sentido de um texto ou que um cego de nascença nos ilumine sobre a natureza das cores.

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A percepção interna que temos dos nossos processos e estados mentais e do tipo de pessoa que somos não se dá por meio de órgãos sensoriais, como é o caso na apreensão da realidade externa, mas por meio de um processo mental reflexivo que é parte integrante de nossa própria mente e que, ao ser acionado, termina modificando e criando uma nova realidade interna. Por mais que eu busque sair de mim e encontrar um ponto de vista externo, que me permita um saber isento e fidedigno de minha vida mental/emocional ou de meu caráter, não tenho como deixar de sujeitar o objeto de minha introspecção à minha própria subjetividade. A observação de si interage e funde-se rudemente com o observado. A interpretação é o texto.

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Ao ouvirmos uma voz gravada, qualquer que ela seja, a eletricidade conduzida pela pele aumenta. Ao ouvirmos nossa própria voz gravada, a condutividade dérmica aumenta ainda mais, e isso é objetivamente registrado e medido por um instrumento chamado polígrafo. O surpreendente é que quando somos convidados a identificar uma voz gravada, dizendo se ela é ou não a nossa própria voz, nossas respostas são em média menos certas do que as registradas pelo polígrafo. O que se verificou a partir de testes exaustivos é que os erros de identificação não são aleatórios, mas estão estreitamente relacionados com o estado mental do sujeito. Enquanto estados depressivos e de baixa autoestima tendem a nos fazer errar pelo não-reconhecimento da voz, mesmo quando ela é nossa, estados eufóricos e de elevada autoestima tendem, ao contrário, a nos fazer reconhecer erroneamente, como nossas, vozes que não nos pertencem.

A interferência da subjetividade aparece aqui nas variações da capacidade de identificar corretamente a própria voz gravada. O autoengano está na inconsistência entre as respostas oferecidas pela condutividade dérmica e medidas pelo polígrafo, de um lado, e as respostas dadas oralmente pelo sujeito, de outro. É como se o corpo soubesse corretamente, embora ignorando saber, aquilo que a mente ignora, embora acreditando saber.

No experimento, contudo, a voz, apesar de nossa, está vindo de fora. Imagine agora o que acontecesse quando se trata de reconhecer e procurar entender não alguma coisa unívoca e externa, como a própria voz gravada, mas a cacofonia de vozes silenciosas que povoam a nossa mente; quando o que está em jogo é a miríade caleidoscópica de estados e processos mentais/emocionais cuja simples designação linguística é problemática. Escolha o seu próprio caminho: pecado original, alienação, inconsciente, gene egoísta. Os mapas diferem, as metáforas se alternam e as soluções teóricas se multiplicam na história das ideias, mas a experiência do labirinto interno é essencialmente a mesma: “O coração humano possui tantos interstícios nos quais a vaidade se esconde, tantos orifícios nos quais a falsidade espreita, e está tão ornado de hipocrisia enganosa que ele com frequência trapaceia a si próprio”.

* * *

O autoengano é incompatível com a intenção consciente de enganar-se a si próprio. Pela sua própria natureza reflexiva e autorreferente, ele não pode ser deliberado ou planejado de forma calculada, como são os exemplos mais notórios de blefe, trapaça, fraude e engano de terceiros. A noção de autoengano voluntário e deliberado – no sentido em que o mentiroso trama e calcula sua próxima mentira – é uma contradição lógica.

O hipócrita interior que nos habita em segredo é um animal distinto do hipócrita social que nos ronda e assedia. Como um sedutor sutil e insinuante, mas astuciosamente dissimulado e oblíquo, ele sabe que “a melhor maneira de persuadir consiste em não persuadir”. A mentira que constamos em silêncio para nós mesmos não mente, seduz. Ela se reveste do semblante da verdade para melhor mentir.

O autoengano é, por natureza, uma ocorrência passiva, ou seja, fechada à atenção consciente e sujeita a uma lógica peculiar. Nele não há lugar para a deliberação, a má-fé e o cálculo frio característicos dos casos mais claros de logro e tapeação interpessoal. Se a luz da atenção consciente é o farol do hipócrita social – uma mentira puxa outra e todo cuidado é pouco para não ser pilhado no pulo –, ela é fatal para o trabalho subterrâneo e anônimo do hipócrita interior.

Dois caminhos básicos se oferecem para chegar lá [i.e. deflagrar processos físicos e mentais involuntários]: o transporte situacional e o mergulho introspectivo. A candidata mais óbvia para nos propiciar o transporte situacional pretendido é sem dúvida a arte. Livros, peças, filmes, rituais religiosos e canções com frequência nos conduzem à vizinhança de emoções mais absorventes, e por aí a coisa pode acontecer. O caminho das pedras é o mergulho introspectivo. A condição sine qua non do sucesso da operação é conseguir sinceramente esquecer o que estou tentando fazer. O efeito líquido dependerá crucialmente da minha capacidade de abstrair a artificialidade do projeto e embarcar sem reservas na emoção do momento. A arte tem o dom não só de nos fazer esquecer e sentir, mas de nos fazer esquecer que estamos esquecendo e de nos fazer não sentir que sentimos sem sentir. É este segundo elemento – o enquadramento do círculo implícito em esquecer que estamos esquecendo e não sentir que sentimos o que não sentimos – que a consciência intermitente da premeditação bloqueia. Quando, por qualquer motivo, o interruptor da atenção consciente não desliga e as luzes internas da mente alerta teimam em ciscar e zunir, o transporte e o mergulho são anêmicos ou não convencem. O vento não sopra, o periscópio enguiçado não desce. O interruptor mental da entrega e do abandono é um bicho arisco. A posição da chave não pode ser livremente escolhida. Mais que impotente, o dedo intrusivo da vontade consciente é, com frequência, contraproducente. Nosso repertório de ações propiciatórias é diversificado, mas sujeito a restrições inibidoras. O uso e abuso de agentes químicos e ficcionais externos está intimamente ligado à delicadeza e dificuldade de operações desse tipo. “É uma exigência da natureza”, reconhece Goethe com argúcia, “que o homem, de tempos em tempos, se anestesie sem dormir; daí o gosto de fumar tabaco, beber aguardente ou fumar ópio”. Alguns, é certo, parecem bastar-se a si mesmos. “Três quartos das demandas existentes no mundo”, observou o crítico social inglês John Ruskin em 1870, “são românticas – baseadas em visões, idealismos, esperanças e afetos; e a regulação da carteira é, na sua essência, a regulação da imaginação e do coração”. A imaginação engole o estômago. A escalada do recurso a catalisadores químicos e ficcionais no mundo contemporâneo – a busca frenética e insaciável de situações e estados mentais que tragam o alívio da anestesia desperta do duplo esquecer – é uma evidência avassaladora da demanda por processos que nos permitam a um só tempo dirigir e soltar, controlar e largar as rédeas sobre nós mesmos. Na prática, o que torna as mentiras que contamos para nós mesmos mais palatáveis e fáceis de digerir é o fato de que existem mentiras e mentiras. A mentira simples, como a que faz do círculo um quadrado, é um caso limite. O passado é dotado de maior ou menor plasticidade na memória humana, mas ele não pode ser diferente do que foi. Mas, quando se trata do futuro, a história é outra. Se existe alguma coisa irremediavelmente fechado quando contemplamos o passado, existe algo curiosamente aberto quando vislumbramos o futuro. A indeterminação lógica de crenças e afirmações acerca do que está por acontecer é um trapézio que nos convida a inacreditáveis e silenciosas proezas. Existem dois poderosos núcleos de interesse, entretanto, para os quais converge uma parte expressiva das ações e expectativas humanas: o apetite por sexo e amor na vida privada e o apetite por poder, riqueza e proeminência na vida pública. Ao redor desses dois vetores gravitam vigorosas e obstinadas paixões na dinâmica de qualquer sociedade. Não surpreender, portanto, que também sejam, cada um a seu modo, espaços privilegiados para a fixação involuntária de crenças e o exercício do prometer autoenganado. Sonhar e acreditar no sonho são o sal da vida. Não há nada de errado, em princípio, em apostar alto na vida privada ou na vida pública, correr o risco no amor, na política, nos negócios, na arte ou no que for o caso. O problema não está em sonhar e apostar, mas na qualidade do sonho e na natureza da aposta. O melhor dos mundos seria combinar o ideal prático da coragem das nossas convicções, quando se trata de agir, com o ideal epistêmico da máxima frieza e distanciamento para atacar e rever as nossas convicções, quando se trata de pensar. A dificuldade reside em viver à altura dessa exigência simultânea de entrega e autocontrole. A quadratura do círculo é insidiosa e segue um padrão bem definido. Duvidar dói. Se a certeza que me toma é tão íntima, veemente e arrebatadora, então ela só pode ser verdadeira. Se o meu entusiasmo pela causa é tão intenso e as convicções que me movem à frente são tão fortes, então elas não podem ser falsas. Seria exagero supor que quanto maior a intensidade de uma crença, menor a probabilidade de que ela seja verdadeira. Mas o envolvimento de emoções poderosas no processo de formação de crenças é razão de sobra para que se proceda com a máxima cautela. Todo cuidado é pouco. O brilho intenso ofusca e o calor é inimigo da luz. Crenças saturadas de desejo podem ser verdadeiras, falsas ou indecidíveis. Mas o simples fato de que estão saturadas de desejo é sinal de que temos um enorme interesse – e ínfima isenção – na determinação do seu valor de verdade. Está aberta a porta dos fundos para a inocência culpada de resultados que escarnecem brutalmente de nossas intenções.

* * *

A subjetividade humana abriga duas forças paralelas e simétricas. De um lado está a nossa resistência a uma visão radicalmente imparcial – neutra, isenta e externa – de nós mesmos: ninguém consegue pisar fora do círculo de sua individualidade e ser efetivamente o outro para si próprio. É possível afastar-se um pouco, buscar um ponto de vista externo, abordar criticamente a nossa natural parcialidade, mas existem limites lógicos e psicológicos ao impulso de se olhar de fora para si mesmo.

No outro extremo, no entanto, encontramos uma resistência surda e arraigada ao que nos afronta como sendo o efeito de uma parcialidade excessiva por nós mesmos: ninguém suporta conviver com uma imagem repugnante de si próprio e estamos permanentemente ocupados em corrigir, pelo menos em alguma medida, o viés abusivo de nossa sensibilidade espontânea por tudo aquilo que nos toca e afeta mais de perto. Se a imparcialidade levada ao limite fere e sufoca o animal humano, os excessos de parcialidade por nós mesmos, quando se tornam explícitos e abertamente reconhecidos, ofendem, agridem e envergonham a nossa humanidade.

Ninguém nasce com ela, mas alguma faculdade de ordem moral, assim como a competência para o uso da linguagem, faz parte do equipamento básico do homem para a vida em sociedade. Essa capacidade se manifesta, entre outras coisas, no sentimento de vergonha diante dos outros e de nós mesmos, e no exercício de alguma forma de discernimento entre o certo e o errado em situações envolvendo escolha moral.

Fonte: Eduardo Gianetti, Auto-engano, Companhia das Letras, São Paulo, 2005.

13 de fevereiro de 2014

Arte e pseudoarte


Numa impressionante obra publicada um século atrás, o filósofo italiano Benedetto Croce se referiu à distinção, para ele radical, entre a arte propriamente dita e a pseudoarte, cujo objetivo era entreter, atiçar ou distrair. Essa distinção foi adotada pelo filósofo inglês R. G. Collingwood, discípulo de Croce, que raciocinou da seguinte forma: quando me deparo com uma obra de arte verdadeira, não são as minhas reações o que interessa, e sim o significado e conteúdo daquele objeto. É a experiência o que a mim se apresenta, a qual se incorpora de modo singular naquela forma sensorial específica. Quando, porém, o que busco é entretenimento, não estou interessado na causa, mas no efeito. Tudo aquilo que tenha o efeito certo me parece bom, não existindo qualquer espaço para o juízo, seja ele estético ou não.

A questão que Croce e Collingwood levantam é exagerada: por que não posso me interessar por uma obra de arte e, ao mesmo tempo, sentir-me entretido por ela? Não nos distraímos por causa da distração, e sim da graça. A distração não se opõe ao interesse estético, visto já representar uma forma dele. Assim, não surpreenderá perceber que, ao desprezarem com tamanho exagero as artes que buscam o entretenimento, tanto Croce como Collingwood esboçaram mais uma teoria estética implausível na história da literatura.

Não obstante, ambos estavam corretos ao achar que há uma grande diferença entre o tratamento artístico de um tema e a mera promoção do efeito. Em certa medida, a imagem fotográfica nos insensibilizou para este contraste. Se, a exemplo da moldura de um quadro, o palco teatral impede a entrada do mundo, a câmera deixa o mundo entrar – espalhando a mesma ratificação serena sobre o ator que finge morrer sobre a calçada e o balão que acidentalmente paira por sobre a rua, em segundo plano. Além disso, vemo-nos tentados a fazer desse defeito um encanto, encorajando uma espécie de “vício pela realidade” no observador. Trata-se da tentação de concentrarmo-nos nos aspectos da realidade que nos chamam a atenção ou instigam, independentemente de seu significado dramático. A arte genuína também nos entretém; no entanto, ela o faz ao nos afastar das cenas que retrata, distanciando-nos o bastante para engendrar uma simpatia desinteressada pelos personagens, e não emoções vicárias de nossa parte.

[...]

Essa distinção [entre o interesse estético e o efeito puro e simples] pode ser reformulada como a distinção entre imaginação e fantasia. A verdadeira arte encanta a imaginação, ao passo que os efeitos instigam a fantasia. As coisas imaginárias são ponderadas; as fantasias, desempenhadas. Tanto a fantasia como a imaginação dizem respeito a irrealidades; no entanto, enquanto as irrealidades da fantasia penetram e poluem nosso mundo, as irrealidades da imaginação existem num mundo que lhes é próprio e no qual vagueamos livremente com um complacente desapego.

A sociedade moderna está repleta de objetos fantasiosos, visto que as imagens realistas da fotografia, do cinema e da TV oferecem uma satisfação substituta a nossos desejos proibidos, legitimando-os, portanto, dessa forma. Um desejo fantasioso não busca nem uma descrição literária, nem a pintura delicada de um objeto, e sim um simulacro – uma imagem em que todos os véus da hesitação foram rasgados. Esse desejo se abstém do estilo e da convenção porque ambos impedem a formação do substituto e o submetem a um julgamento. A fantasia ideal é perfeitamente realizada e perfeitamente irreal – um objeto imaginário que nada deixa a cargo da imaginação. As propagandas comercializam tais objetos, os quais pairam no pano de fundo da vida moderna e a todo momento nos instigam a realizar nossos sonhos em vez de buscar as realidades.

As cenas imaginadas, por sua vez, não são realizadas, mas representadas; elas se apresentam imbuídas de pensamento e estão longe de serem substitutos colocados no lugar do inalcançável. Antes, são deliberadamente postas à distância, num mundo próprio. A convenção, o enquadramento e a coibição são partes integrantes do processo imaginativo. Nós só adentramos uma pintura por meio da moldura que afasta dela o mundo em que vivemos. A convenção e o estilo são mais importantes que a realização; e, quando os pintores adornam suas imagens com um trompe-l´oeil realista, muitas vezes questionamos o resultado, declarando-os insípidos ou kitsch.

Fonte: Roger Scruton, Beleza, É Realizações, São Paulo, 2013, p. 111-115.

Imagem: Sandro Botticelli, O Nascimento de Vênus, c. 1485, Galleria degli Uffizi, Florença.

6 de fevereiro de 2014

Luto


Ninguém me disse que o luto se parecia tanto com o medo. Não estou com medo, mas a sensação é a mesma. [...] Quando falo do medo, quero referir-me ao medo puramente animal, ao recuo do organismo diante da possível destruição, ao sentimento asfixiante, à sensação de ser um rato numa ratoeira. Esse sentimento é intrasferível. A mente pode até compreender; já o corpo menos. (p. 29 e 37).

No momento seguinte [ao golpe repentino de lembranças acaloradas], passa-se às lágrimas e à autopiedade. Lágrimas piegas. Quase prefiro os momentos de agonia. Pelo menos, eles são puros e honestos; mas o banho de autopiedade, o afundar-se nela, o prazer repugnante de entregar-se a ela – isso me enoja. Se eu der rédea solta e esse estado de espírito, em poucos minutos terei substituído a mulher real [Joy Davidman, a recém-falecida esposa de C. S. Lewis] por uma simples boneca pela qual vou chorar desesperadamente. (p. 30).

Enquanto isso, onde está Deus? Esse é um dos sintomas mais inquietantes. Quando você está feliz, muito feliz, não faz nenhuma ideia de vir a necessitar dEle, tão feliz, que se vê tentado a sentir suas reivindicações como uma interrupção; se se lembrar e voltar a Ele com gratidão e louvor, você será – ou assim parece – recebido de braços abertos. Mas, volte-se para Ele, quando estiver em grande necessidade, quando toda outra forma de amparo for inútil, e o que você encontrará? Uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho passado duas vezes do lado de dentro. Depois disso, silêncio. Bem que você poderia dar as costas e ir embora. Quanto mais espera, mais enfático o silêncio se torna. Não há luzes nas janelas. Talvez seja uma casa vazia. Será que, algum dia, chegou a ser habitada? Assim pareceu, certa vez. E essa semelhança era tão forte quanto agora. O que isso pode significar? Por que em tempos prósperos Ele mais parece um comandante e em tempos conturbados Sua ajuda é tão ausente?

Não que eu esteja (suponho) correndo o risco de deixar de acreditar em Deus. O perigo real é o de vir a acreditar em coisas tão horríveis sobre Ele. A conclusão a que tenho horror de chegar não é “então, apesar de tudo, Deus não existe”, mas “então é assim que Deus é realmente. Não se iluda”. (p. 31-32).

É difícil ter paciência com pessoas que dizem: “A morte não existe”, ou “A morte não importa”. A morte existe e, seja lá o que for, ela importa. Tudo o que acontece tem consequências, e tanto a morte quanto as consequências são irrevogáveis e irreversíveis. Você pode, do mesmo modo, dizer que o nascimento não importa. Ao olhar para o céu noturno, pergunto-me se há algo mais certo do que isto. Em todos os tempos e espaços, se me fosse dado sondá-los, não encontraria em lugar algum o rosto dela, sua voz, seu toque. Ela morreu. Está morta. Será que a palavra é tão difícil de se aprender?

Não tenho nenhuma boa fotografia dela. Não posso sequer lhe ver o rosto claramente em minha imaginação. Não resta dúvida: a explicação é por demais simples. Vimos o rosto dos que mais conhecemos de modo tão variado, de tantos ângulos, sob tantas luzes, com expressões tão diversas – acordando, dormindo, rindo, chorando, comendo, conversando, pensando –, que todas as impressões preenchem nossa memória ao mesmo tempo e se anulam num simples borrão; mas sua voz ainda é vívida. A voz lembrada – que é capaz de transformar-me a qualquer momento num menino chorão. (p.39).

Fala-me acerca da verdade da religião e ouvirei de bom grado. Fale-me acerca do dever da religião e ouvirei resignadamente; mas não me venha falar sobre as formas de consolo que a religião fornece, caso contrário desconfiarei que você não sabe do que está falando.

A não ser, claro, que você seja daqueles que acreditam literalmente em tudo que se diz nas reuniões típicas de família a respeito “do outro lado do rio”, retratando uma perspectiva completamente irreal e terrena; mas nada disso é bíblico e não passa de hinos e litografias ruins. Não há na Bíblia uma palavra sequer sobre o mundo vindouro. Além disso, soa falso. Sabemos que não poderia ser assim. A realidade nunca se repete. Não existe nada que seja tirado de nós e, depois, é-nos devolvido do mesmo jeito que se apresentava. Como os espíritas sabem fisgar as pessoas! “As coisas deste lado não são tão diferentes, afinal de contas”. Há charutos no Céu. Pois é isso que todos nós apreciaremos. Um passado feliz reconquistado.

E é por isso, só por isso, que grito, enlouquecido, no meio da madrugada, lançando súplicas vazias no ar.

E o pobre C. [um conhecido de Lewis] faz-me a seguinte citação: “(...) não se entristeçam como os outros que não têm esperança.” (I Ts 4:13). Espanta-me o modo pelo qual somos convidados a pôr em prática palavras endereçadas de maneira tão óbvia aos que são superiores a nós. O que o Apóstolo Paulo diz só pode consolar os que amam a Deus mais do que aos mortos, e aos mortos mais do que a si mesmos. Se uma mãe se lamenta não por aquilo que ela perdeu, mas por aquilo que seu filho morto perdeu, é um consolo acreditar que o filho não perdeu o objetivo para o qual foi criado. E é um consolo acreditar que ela mesma, ao perder sua principal ou única felicidade natural, não perdeu algo maior – que ela ainda pode esperar “glorificar a Deus e usufruí-lo para sempre”. Um consolo para o espírito voltado para Deus, espírito eterno que há dentro dela. Mas não para sua condição de mãe. A felicidade propriamente materna deve ser anulada. Nunca, em nenhum lugar, em tempo algum, ela terá o filho em seu colo, nem lhe dará um banho, nem lhe contará uma história, nem fará planos para o seu futuro, tampouco verá o filho de seu filho.

Dizem-me que H. [Joy Davidman] agora é feliz, que está em paz. O que faz essas pessoas terem tanta certeza disso? Como essas pessoas têm tanta certeza de que toda a angústia termina com a morte? Mais da metade do mundo cristão e milhões no Oriente têm uma crença diferente. Como podem saber que ela está agora “descansando”? Por que deveria a separação (se nada mais o puder), que tanto angustia a pessoa que ama e ficou para trás, ser indolor para a pessoa a quem amou e agora parte?

“Porque ela está nas mãos de Deus”; mas, se assim for, ela estava nas mãos de Deus durante todo o tempo, e vi o que lhe fizeram aqui. Será que de repente as pessoas se tornam mais gentis conosco no momento em que deixamos o corpo? E, se for dessa maneira, por quê? Se a bondade de Deus não é coerente com o ato de nos ferir, então, ou Deus não é bom, ou não há Deus algum: pois, na única vida que O conhecemos, Ele nos fere de um modo tal, além de nossos piores pavores, acima de tudo o que podemos imaginar. Se essa bondade for condizente com o ato de nos ferir, então Ele pode muito bem fazer isso depois da morte de maneira tão intolerável quanto antes dela. (p. 47-50).

Sentimentos, e sentimentos e sentimentos. Em vez disso, vamos tentar pensar. Do ponto de vista racional, que novo fato a morte de H. trouxe ao problema do universo? Que bases me concedeu para duvidar de tudo aquilo que acredito? Eu já sabia que essas coisas, e coisas piores, aconteciam diariamente. Eu teria dito que as havia levado em consideração. Eu fora alertado – eu alertara a mim mesmo – quanto a não contar com a felicidade terrena. Tínhamos, até mesmo, a promessa de sofrimentos. Eles faziam parte do programa. Até mesmo nos disseram: “Bem-aventurados os que choram...”,  e eu aceitava isso. Não há nada que eu não tivesse considerado. É claro que é diferente quando as coisas acontecem conosco, não com os outros, e na realidade, não na imaginação. Sim, mas deveria, para um homem são, fazer tanta diferença assim? Não, e não faria para um homem cuja fé houvesse sido a fé verdadeira, e cuja preocupação com as tristezas dos outros fosse preocupação real. O caso é muito comum. Se meu castelo ruiu com uma tacada, é porque era um castelo de cartas. A fé que “levou essas coisas em consideração” não era fé, mas imaginação. Levá-las em conta não era compaixão verdadeira. Se houvesse realmente me preocupado, como achei que havia, com as tristezas do mundo, não deveria estar tão assoberbado quando minha própria tristeza chegou. Foi uma fé imaginária, que jogava com fichas inofensivas, rotuladas de “Doença”, “Dor”, “Morte” e “Solidão”. Achei que havia confiado na corda até que se tornou importante saber se ela suportaria o meu peso. Agora que isso importa percebo que não confiava nela.

Jogadores de bridge explicam-me que deve haver um pouco de dinheiro no jogo “ou, então, as pessoas não vão levá-lo a sério”. Aparentemente é assim. Sua aposta – Deus ou nenhum Deus, um bom Deus ou o Sádico Cósmico, a vida eterna ou a não-entidade – não vai ser levada a sério se nela nada de valor estiver em jogo. E você nunca perceberá como ela era séria enquanto as apostas não estiverem muitíssimo altas, enquanto você não descobrir que está jogando não pelas fichas, nem pelos seis centavos, mas por todo centavo que há no mundo. Nada menos que isso abalará um homem – ou, pelo menos, um homem como eu – e seu pensamento puramente verbal e suas crenças meramente conceituais. O homem deve ficar fora do ar antes que recobre os sentidos. Só a tortura trará a verdade à luz. Só sob tortura é que o homem a descobrirá. (p. 58-59).

Quanto mais acreditamos que Deus fere apenas para curar, menos nos é dado crer que haja alguma utilidade em suplicar por ternura. Um homem cruel pode ser subornado – pode cansar-se de seu esporte imoral – pode ter um acesso temporário de bondade, como os alcoólatras têm acessos de sobriedade; mas suponha que aquilo com que você se bate seja um cirurgião cujas intenções são inteiramente boas. Quanto mais gentil e consciente ele for, mais impiedosamente prosseguirá cortando. Se ele desistir diante de suas súplicas, se ele se detiver antes que a operação chegue ao fim, toda a dor até àquele ponto terá sido inútil; porém é crível que semelhantes extremos de tortura sejam necessários? Bem, faça sua escolha. As torturas ocorrem. Se elas são desnecessárias, então não há Deus nenhum, tampouco um Deus mau. Se há um Deus bom, então essas torturas são necessárias. Pois nenhum Ser que fosse bom, mesmo de maneira comedida, provavelmente seria capaz de infligi-las ou de permiti-las caso elas não fossem necessárias.

Seja o que for, não há como escapar.

O que as pessoas querem dizer quando afirmam: “Não tenho medo de Deus porque sei que Ele é bom”? Será que nunca foram ao dentista? (p. 63-64).

Pode um mortal fazer perguntas que Deus não considera passíveis de resposta? Absolutamente, sim. Todas as perguntas sem sentido não são passíveis de resposta. Quantas horas há num quilômetro? O amarelo é quadrado ou redondo? Provavelmente, metade das perguntas que fazemos – metade de nossos grandes problemas teológicos e metafísicos – pertencem a essa categoria. (p.85).

Fonte: A Anatomia de uma Dor: Um Luto em Observação (A Grief Observed) – C. S. Lewis – Editora Vida – 2006 – São Paulo.