6 de fevereiro de 2014

Luto


Ninguém me disse que o luto se parecia tanto com o medo. Não estou com medo, mas a sensação é a mesma. [...] Quando falo do medo, quero referir-me ao medo puramente animal, ao recuo do organismo diante da possível destruição, ao sentimento asfixiante, à sensação de ser um rato numa ratoeira. Esse sentimento é intrasferível. A mente pode até compreender; já o corpo menos. (p. 29 e 37).

No momento seguinte [ao golpe repentino de lembranças acaloradas], passa-se às lágrimas e à autopiedade. Lágrimas piegas. Quase prefiro os momentos de agonia. Pelo menos, eles são puros e honestos; mas o banho de autopiedade, o afundar-se nela, o prazer repugnante de entregar-se a ela – isso me enoja. Se eu der rédea solta e esse estado de espírito, em poucos minutos terei substituído a mulher real [Joy Davidman, a recém-falecida esposa de C. S. Lewis] por uma simples boneca pela qual vou chorar desesperadamente. (p. 30).

Enquanto isso, onde está Deus? Esse é um dos sintomas mais inquietantes. Quando você está feliz, muito feliz, não faz nenhuma ideia de vir a necessitar dEle, tão feliz, que se vê tentado a sentir suas reivindicações como uma interrupção; se se lembrar e voltar a Ele com gratidão e louvor, você será – ou assim parece – recebido de braços abertos. Mas, volte-se para Ele, quando estiver em grande necessidade, quando toda outra forma de amparo for inútil, e o que você encontrará? Uma porta fechada na sua cara, ao som do ferrolho passado duas vezes do lado de dentro. Depois disso, silêncio. Bem que você poderia dar as costas e ir embora. Quanto mais espera, mais enfático o silêncio se torna. Não há luzes nas janelas. Talvez seja uma casa vazia. Será que, algum dia, chegou a ser habitada? Assim pareceu, certa vez. E essa semelhança era tão forte quanto agora. O que isso pode significar? Por que em tempos prósperos Ele mais parece um comandante e em tempos conturbados Sua ajuda é tão ausente?

Não que eu esteja (suponho) correndo o risco de deixar de acreditar em Deus. O perigo real é o de vir a acreditar em coisas tão horríveis sobre Ele. A conclusão a que tenho horror de chegar não é “então, apesar de tudo, Deus não existe”, mas “então é assim que Deus é realmente. Não se iluda”. (p. 31-32).

É difícil ter paciência com pessoas que dizem: “A morte não existe”, ou “A morte não importa”. A morte existe e, seja lá o que for, ela importa. Tudo o que acontece tem consequências, e tanto a morte quanto as consequências são irrevogáveis e irreversíveis. Você pode, do mesmo modo, dizer que o nascimento não importa. Ao olhar para o céu noturno, pergunto-me se há algo mais certo do que isto. Em todos os tempos e espaços, se me fosse dado sondá-los, não encontraria em lugar algum o rosto dela, sua voz, seu toque. Ela morreu. Está morta. Será que a palavra é tão difícil de se aprender?

Não tenho nenhuma boa fotografia dela. Não posso sequer lhe ver o rosto claramente em minha imaginação. Não resta dúvida: a explicação é por demais simples. Vimos o rosto dos que mais conhecemos de modo tão variado, de tantos ângulos, sob tantas luzes, com expressões tão diversas – acordando, dormindo, rindo, chorando, comendo, conversando, pensando –, que todas as impressões preenchem nossa memória ao mesmo tempo e se anulam num simples borrão; mas sua voz ainda é vívida. A voz lembrada – que é capaz de transformar-me a qualquer momento num menino chorão. (p.39).

Fala-me acerca da verdade da religião e ouvirei de bom grado. Fale-me acerca do dever da religião e ouvirei resignadamente; mas não me venha falar sobre as formas de consolo que a religião fornece, caso contrário desconfiarei que você não sabe do que está falando.

A não ser, claro, que você seja daqueles que acreditam literalmente em tudo que se diz nas reuniões típicas de família a respeito “do outro lado do rio”, retratando uma perspectiva completamente irreal e terrena; mas nada disso é bíblico e não passa de hinos e litografias ruins. Não há na Bíblia uma palavra sequer sobre o mundo vindouro. Além disso, soa falso. Sabemos que não poderia ser assim. A realidade nunca se repete. Não existe nada que seja tirado de nós e, depois, é-nos devolvido do mesmo jeito que se apresentava. Como os espíritas sabem fisgar as pessoas! “As coisas deste lado não são tão diferentes, afinal de contas”. Há charutos no Céu. Pois é isso que todos nós apreciaremos. Um passado feliz reconquistado.

E é por isso, só por isso, que grito, enlouquecido, no meio da madrugada, lançando súplicas vazias no ar.

E o pobre C. [um conhecido de Lewis] faz-me a seguinte citação: “(...) não se entristeçam como os outros que não têm esperança.” (I Ts 4:13). Espanta-me o modo pelo qual somos convidados a pôr em prática palavras endereçadas de maneira tão óbvia aos que são superiores a nós. O que o Apóstolo Paulo diz só pode consolar os que amam a Deus mais do que aos mortos, e aos mortos mais do que a si mesmos. Se uma mãe se lamenta não por aquilo que ela perdeu, mas por aquilo que seu filho morto perdeu, é um consolo acreditar que o filho não perdeu o objetivo para o qual foi criado. E é um consolo acreditar que ela mesma, ao perder sua principal ou única felicidade natural, não perdeu algo maior – que ela ainda pode esperar “glorificar a Deus e usufruí-lo para sempre”. Um consolo para o espírito voltado para Deus, espírito eterno que há dentro dela. Mas não para sua condição de mãe. A felicidade propriamente materna deve ser anulada. Nunca, em nenhum lugar, em tempo algum, ela terá o filho em seu colo, nem lhe dará um banho, nem lhe contará uma história, nem fará planos para o seu futuro, tampouco verá o filho de seu filho.

Dizem-me que H. [Joy Davidman] agora é feliz, que está em paz. O que faz essas pessoas terem tanta certeza disso? Como essas pessoas têm tanta certeza de que toda a angústia termina com a morte? Mais da metade do mundo cristão e milhões no Oriente têm uma crença diferente. Como podem saber que ela está agora “descansando”? Por que deveria a separação (se nada mais o puder), que tanto angustia a pessoa que ama e ficou para trás, ser indolor para a pessoa a quem amou e agora parte?

“Porque ela está nas mãos de Deus”; mas, se assim for, ela estava nas mãos de Deus durante todo o tempo, e vi o que lhe fizeram aqui. Será que de repente as pessoas se tornam mais gentis conosco no momento em que deixamos o corpo? E, se for dessa maneira, por quê? Se a bondade de Deus não é coerente com o ato de nos ferir, então, ou Deus não é bom, ou não há Deus algum: pois, na única vida que O conhecemos, Ele nos fere de um modo tal, além de nossos piores pavores, acima de tudo o que podemos imaginar. Se essa bondade for condizente com o ato de nos ferir, então Ele pode muito bem fazer isso depois da morte de maneira tão intolerável quanto antes dela. (p. 47-50).

Sentimentos, e sentimentos e sentimentos. Em vez disso, vamos tentar pensar. Do ponto de vista racional, que novo fato a morte de H. trouxe ao problema do universo? Que bases me concedeu para duvidar de tudo aquilo que acredito? Eu já sabia que essas coisas, e coisas piores, aconteciam diariamente. Eu teria dito que as havia levado em consideração. Eu fora alertado – eu alertara a mim mesmo – quanto a não contar com a felicidade terrena. Tínhamos, até mesmo, a promessa de sofrimentos. Eles faziam parte do programa. Até mesmo nos disseram: “Bem-aventurados os que choram...”,  e eu aceitava isso. Não há nada que eu não tivesse considerado. É claro que é diferente quando as coisas acontecem conosco, não com os outros, e na realidade, não na imaginação. Sim, mas deveria, para um homem são, fazer tanta diferença assim? Não, e não faria para um homem cuja fé houvesse sido a fé verdadeira, e cuja preocupação com as tristezas dos outros fosse preocupação real. O caso é muito comum. Se meu castelo ruiu com uma tacada, é porque era um castelo de cartas. A fé que “levou essas coisas em consideração” não era fé, mas imaginação. Levá-las em conta não era compaixão verdadeira. Se houvesse realmente me preocupado, como achei que havia, com as tristezas do mundo, não deveria estar tão assoberbado quando minha própria tristeza chegou. Foi uma fé imaginária, que jogava com fichas inofensivas, rotuladas de “Doença”, “Dor”, “Morte” e “Solidão”. Achei que havia confiado na corda até que se tornou importante saber se ela suportaria o meu peso. Agora que isso importa percebo que não confiava nela.

Jogadores de bridge explicam-me que deve haver um pouco de dinheiro no jogo “ou, então, as pessoas não vão levá-lo a sério”. Aparentemente é assim. Sua aposta – Deus ou nenhum Deus, um bom Deus ou o Sádico Cósmico, a vida eterna ou a não-entidade – não vai ser levada a sério se nela nada de valor estiver em jogo. E você nunca perceberá como ela era séria enquanto as apostas não estiverem muitíssimo altas, enquanto você não descobrir que está jogando não pelas fichas, nem pelos seis centavos, mas por todo centavo que há no mundo. Nada menos que isso abalará um homem – ou, pelo menos, um homem como eu – e seu pensamento puramente verbal e suas crenças meramente conceituais. O homem deve ficar fora do ar antes que recobre os sentidos. Só a tortura trará a verdade à luz. Só sob tortura é que o homem a descobrirá. (p. 58-59).

Quanto mais acreditamos que Deus fere apenas para curar, menos nos é dado crer que haja alguma utilidade em suplicar por ternura. Um homem cruel pode ser subornado – pode cansar-se de seu esporte imoral – pode ter um acesso temporário de bondade, como os alcoólatras têm acessos de sobriedade; mas suponha que aquilo com que você se bate seja um cirurgião cujas intenções são inteiramente boas. Quanto mais gentil e consciente ele for, mais impiedosamente prosseguirá cortando. Se ele desistir diante de suas súplicas, se ele se detiver antes que a operação chegue ao fim, toda a dor até àquele ponto terá sido inútil; porém é crível que semelhantes extremos de tortura sejam necessários? Bem, faça sua escolha. As torturas ocorrem. Se elas são desnecessárias, então não há Deus nenhum, tampouco um Deus mau. Se há um Deus bom, então essas torturas são necessárias. Pois nenhum Ser que fosse bom, mesmo de maneira comedida, provavelmente seria capaz de infligi-las ou de permiti-las caso elas não fossem necessárias.

Seja o que for, não há como escapar.

O que as pessoas querem dizer quando afirmam: “Não tenho medo de Deus porque sei que Ele é bom”? Será que nunca foram ao dentista? (p. 63-64).

Pode um mortal fazer perguntas que Deus não considera passíveis de resposta? Absolutamente, sim. Todas as perguntas sem sentido não são passíveis de resposta. Quantas horas há num quilômetro? O amarelo é quadrado ou redondo? Provavelmente, metade das perguntas que fazemos – metade de nossos grandes problemas teológicos e metafísicos – pertencem a essa categoria. (p.85).

Fonte: A Anatomia de uma Dor: Um Luto em Observação (A Grief Observed) – C. S. Lewis – Editora Vida – 2006 – São Paulo.