Em
Ler Platão, Thomas A. Szlezák introduz o leitor no
ponto de vista interpretativo das doutrinas não-escritas (
agrapha dogmata) de Platão, conhecido entre
os estudiosos das obras platônicas como Escola de Tübingen. Em outras palavras, o objetivo
é “chegar a uma interpretação dos escritos filosóficos de Platão que resista à
sua crítica da escrita elaborada no
Fedro. Querer desvalorizar a própria
desvalorização da escrita por parte de Platão ou convertê-la em seu contrário,
como foi usual desde o romantismo e ainda o é de muitas maneiras, não abrirá um
caminho para a compreensão do escritor Platão”. Em suma, o leitor de Platão tem
como desafio resistir aos preconceitos modernos da interpretação dos escritos
de Platão.
O que se segue são trechos selecionados dessa obra de
Szlezák.
* * *
O leitor de Platão não é apenas um espectador passivo, mas
uma peça ativa nas discussões ensejadas nos diálogos. As reações do leitor,
portanto, também devem ultrapassar o mero entendimento analítico para abranger
todo o seu ser. Um dos exemplos mais conhecidos é o de Cálicles no diálogo Górgias.
Cálicles defende a tese do chamado direito natural do mais forte, segundo a
qual é lícito e correto que aquele que supera os outros em força e poder os
subjugue e, cruelmente, os submeta às exigências de seus próprios interesses.
Segundo esse ponto de vista, a própria natureza deseja o domínio do mais forte,
e a concepção usual de justiça, que põe o direito do outro como limite à
realização dos desejos pessoais, não seria mais que uma construção ideológica
dos fracos, que querem desacreditar a saudável aspiração do forte à satisfação
irrestrita de seus instintos e desejos (cf. Górgias, 482 c – 486 d).
Quando Sócrates lhe demonstra com argumentos concludentes que a idéia
convencional de justiça é plena de sentido e que, em contrapartida, o chamado direito
do mais forte é em si mesmo contraditório, Cálicles já não pode ir adiante –
mas não por falta de inteligência, pois ele claramente a tem bastante, e sim
por causa das limitações de seu caráter. Dito de outra maneira: a solução real
do problema, que para Platão somente pode ser alcançada pelo recurso à
estrutura interna do homem, não precisa ser comunicada a um caráter como a de
Cálicles, já que lhe faltam os pressupostos para uma recepção adequada de tais
verdades. Dessa forma, Cálicles recebe apenas uma refutação ad hominem,
na medida em que Sócrates demonstra a contraditoriedade de sua posição em seu
próprio nível de argumentação (494 ss.).
Para Platão, o filosofar só é possível entre amigos, ou
seja, entre pessoas que se tratam com benevolência mútua – mas amizade, aqui,
não tem a conotação afetiva que comumente a damos hoje em dia, e sim a
orientação comum pelo divino, pela idéia de Bem.
Como no caso da leitura não há propriamente um “interlocutor
benevolente”, já que estamos diante de um livro, a contraparte viva da amizade
é substituída pela letra da escrita. Isso causa uma série de contratempos que
dificultam a postura correta perante a doutrina que se almeja transmitir. Essa
dificuldade, não sem freqüência, é substituída pela tendência moderna de nivelar
o texto, exigindo-se dele a publicidade incondicional de panos de fundo
suspeitados. Não toleramos que haja doutrinas ou entendimentos ocultos: esta
idéia nos é ofensiva, incompreensível, insuportável. Este fato já mostra, por
si só, que o leitor é ele mesmo um fator deformador da compreensão dos textos
platônicos. O deslocamento do leitor em relação ao texto platônico pode
condená-lo a uma compreensão rasteira.
Acontece que o tema da ocultação ocorre inúmeras vezes na
obra de Platão. A retenção do saber, por exemplo, é um fator absolutamente
estruturante no diálogo Eutidemo. Se o leitor se recusar a tornar-se cônscio
desta retenção, todo o diálogo lhe será misterioso, quando não enganoso. O
que é raro é precioso (Eutidemo 304 b).
Na República, a prescrição de conduzir apenas os
mais capazes à contemplação do princípio supremo, a Idéia do Bem, e isso apenas
depois dos 50 anos (República 540 a), simplesmente não faria sentido se os
jovens de 20 anos pudessem obter informações em toda parte, até mesmo na
forma escrita, sobre as atividades filosóficas da última fase. Sócrates
age “esotericamente” no Eutidemo: ele dispõe de um saber mais fundamental,
porém não vê necessidade alguma de o expor a interlocutores [Eutidemo e
Dionisidoro] que têm uma formação insuficiente ou que não são apropriados para
a filosofia. Portanto, a habilidade de reter saber filosófico se necessário,
caso as circunstâncias o exijam, é algo que Platão apresenta como uma qualidade
positiva do filósofo verdadeiro. O sofista é por essência
antiesotérico. Platão atribui justamente a Protágoras, o líder da sofítica do
século V, a defesa do princípio de abertura na comunicação do saber
(Protágoras 317 b-c).
Quase todos os diálogos de
Platão mostram que o condutor do diálogo teria algo mais a dizer sobre a
essência da questão, mas se recusa a fazê-lo nesse momento e nesse lugar por
julgar seu interlocutor incapaz ou despreparado. São as “passagens de retenção”.
Eis as principais
características das obras de Platão:
(1) Elas
retratam conversações, pois para Platão o pensar é uma conversa da alma consigo
mesma, embora apresentem longos discursos monológicos (p.ex., a quinta parte
do sexto livro das Leis, o discurso de Eros no Fedro e, sobretudo, o monólogo
do personagem-título em Timeu).
(2) Ocorrem num
lugar e num espaço determinados, pois a entrada na prática filosófica nunca
ocorrerá sem engajamento pessoal.
(3) Cada diálogo
possui um líder da conversação, ou seja, não há uma conversação entre iguais, o
que remete à concepção platônica da comunicação do saber filosófico.
(4) O líder da
conversação fala com apenas um interlocutor de cada vez, ou seja, cada
participante permanece focado apenas no líder e é por ele corrigido. Há casos
em que o líder decide que a conversação não é produtiva e continua o diálogo
com interlocutores imaginários, como os ateus do décimo livro das Leis, Diótima
no Banquete ou o hóspede anônimo de Sócrates em Hípias maior.
(5) O líder da
conversação pode responder a todas as objeções, ou seja, os interlocutores não
podem superar o líder em nenhuma situação.
(6) A
conversação progride aos solavancos a um degrau qualitativamente superior.
(7) O líder da
conversação não leva a argumentação a um fim orgânico.
(8) Cada diálogo
tem uma ou mais passagens de retenção.
O condutor do diálogo
platônico pode filosofar deliberadamente em vários níveis – o nível eleito por
Sócrates dependerá do interlocutor, de suas necessidades e de sua capacidade de
compreensão. Ele nunca passa a um nível superior sem algum motivo: a verdadeira
filosofia não se oferece a si mesma aos interessados, mas quer ser procurada.
Como isso não foi compreendido (preferiu-se pensar, em vez disso, num Sócrates
supostamente importuno, que filosofa na rua com qualquer um), tampouco se
compreendeu por que o autor limita propositalmente o movimento ascendente – as
passagens de retenção.
Há três diferentes graus de
destinatários nos diálogos platônicos: (a) os leigos, (b) os que receberam uma
formação científica, e (c) os discípulos de Platão na Academia. Curioso é que
os diálogos são concebidos de tal forma que os sábios os julgam interessantes e
os principiantes conseguem extrair algum proveito (talvez a única exceção seja
a segunda parte de Parmênides).
No Fedro, Platão explica que
o objetivo da escrita é (a) servir de função mnemônica para aquele que sabe
(Fedro 278 a 1), (b) servir de diversão, cujo êxito traz alegria ao autor
(Fedro 276 d 4-8) e (c) que o filósofo tenha meio de remuneração em sua velhice
(Fedro 276 d 1-4).
As convicções modernas de
Schleiermacher e Friedländer, segundo as quais o diálogo escrito cumpre a mesma
função que o “discurso vivo e animado” (Fedro 276 a 8) não encontra apoio em
absolutamente nenhum texto de Platão. No entanto, não é o caso de acusar
Schleiermacher e Friedländer de serem “antiesotéricos”. O que ocorre é que
ambos situam os elementos esotéricos dentro do próprio texto, cuja descoberta o
próprio leitor tem de fazer, enquanto a escola esotérica “histórica” aponta
para doutrinas existentes para além do diálogo escrito. Esta diferença entre o
esoterismo hermenêutico de Schleiermacher e o esoterismo histórico de Giovanni Reale é a divisão por excelência da
interpretação dos diálogos platônicos. Schleiermacher ignora olimpicamente as passagens de retenção. Ademais, a moderna teoria do diálogo torna
a comunicação das reflexões decisivas dependente das qualidades intelectuais
do leitor. Contudo, vimos no Górgias que Cálicles não é excluído dos “grandes
mistérios” por falta de inteligência, mas pela disposição moral de seu
caráter. Na República, onde se exprime sobre as qualidades absolutamente
fundamentais necessárias à “natureza filosófica”, Platão dá às vantagens éticas
a mesma ênfase dada às vantagens intelectuais (República 485 b – 487 a).
É também de grande interesse
para nosso tema o fato de Platão, na parte intermediária do Protágoras (338 e –
347 a), dramatizar – com grande engenhosidade e em busca do essencial – a
tentativa de avançar numa questão filosófica pela interpretação de um texto. É
como se Platão quisesse dizer: toda interpretação é necessariamente má
interpretação, pelo menos parcialmente. Para Platão, todo “falar com voz
alheia”, isto é, toda interpretação, é de importância secundária. O autor, por
não estar presente no local, não pode ser interrogado pessoalmente, e as
suposições sobre o que ele quis dizer permanecem conseqüentemente fora de
controle. Esta crítica afasta o uso de textos e conduz ao filosofar oral.
Nas últimas páginas do Fedro
(274 b – 278 e), há também uma “crítica da escrita”. Trata-se de um ponto
culminante no Fedro, pois somente com essa compreensão teremos a chave para
compreender a estrutura do diálogo platônico em geral. Não há dúvida de que
para Platão a comunicação oral viva tem primazia, e de que o discurso falado é
o âmbito pelo qual se deve medir o escrito. Uma arte filosófica do
discurso não somente pressupõe o domínio das prescrições da retórica corrente
para a composição formal, mas também se baseia em duas habilidades bem mais
exigentes e abrangentes: o conhecimento da essência das coisas de que trata o
discurso e o conhecimento da natureza das almas a que o discurso pretende se
dirigir (277 b c). Ambos conhecimentos só podem ser adquiridos mediante a
diligente investigação da filosofia das Idéias que Platão designa como
“dialética” e entende como “grande rodeio” ao qual no diálogo se pode apenas
aludir, mas não percorrer (cf. Fedro 274 a, 246 a – duas passagens de retenção
típicas). Sócrates introduz um mito do deus egípcio Thoth, que levou a escrita
juntamente com outras descobertas ao Rei Thamus. Thoth representa, portanto, a
ilusão de que é possível adquirir sabedoria e discernimento pela escrita, ou
seja, “externamente, por meio de sinais estranhos [à alma]”. Thamus estilhaça
por completo essa ilusão. A escrita não favorece, mas prejudica a memória, isto
é, a capacidade da alma ir buscar coisas em seu próprio interior; ela é apenas
um meio para se lembrar. Somente o didakhé, o ensinamento no intercurso
pessoal, pode transmitir um saber claro e confiável (274 e – 275 c). Platão
insiste nas deficiências básicas da escrita, inerentes à sua essência. Mas o
que é inerente à natureza de uma coisa não pode ser eliminado por um uso mais
ou menos habilidoso dessa coisa. Psicologicamente, é compreensível que desde
Schleiermacher os partidários modernos de Thoth, o deus com fé na virtude dos
livros, tenham sentido a necessidade de reverter o juízo de Platão afirmando
que escrever em enigmas e alusões terá no leitor perspicaz o desejado efeito da
clareza e solidez do conhecimento. Devemos entretanto, com serenidade e sem intenção
polêmica, dizer que se trata aqui de uma complementação metodologicamente
inadmissível das asserções do texto, e, de fato, uma complementação que leva ao
oposto do que Platão queria. Ora, afinal, (1) o livro fala para todos, ou seja,
ele não pode escolher seu leitor, nem se calar diante de determinados leitores
(275 e 2-3); (2) o livro diz sempre o mesmo, ao ponto de Platão equiparar a
escrita às figuras sem vida da pintura (275 d 4-9); (3) o livro não pode se
defender se injustamente depreciado (275 e 3-5). A escolha do interlocutor, o
silêncio diante de pessoas inapropriadas e o auxílio por meio de novos
argumentos não são metáforas para Platão, devendo ser literalmente entendidas
como as condições básicas da comunicação do conhecimento filosófico.
Em Fedro 278 c 4 – e 3,
Platão separa a totalidade de autores em dois grupos bastante desiguais. Um
grupo, sem dúvida a maioria, pode ser chamado, segundo seu respectivo produto
literário, o grupo dos poetas, escritores de discurso ou escritores de leis. O outro
grupo recebe um nome que não apenas o separa de Deus, mas também o une a Ele –
pois somente no nome philosophos há uma ressonância da qualidade
distintiva de Deus, ser sábio (sophos). O philosophos deve essa
maior proximidade com Deus a seu “saber”: aquele “que sabe em que consiste a
verdade” (278 c 4-5) não é outro senão o dialético, isto é, o pensador que
reconhece a verdade das coisas no sentido da doutrina das Idéias. É a esse
conhecimento das Idéias que o philosophos deve uma superioridade sobre
seus escritos. Ao outro grupo dos autores não-filosóficos pertence quem “não
possui nada mais valioso do que aquilo que compôs e escreveu, passando longo
tempo a rever, tirando uma coisa aqui e acrescentando outra acolá” (278 d 8 – e
1). Tornar-se filósofo significa experimentar uma “transformação da alma” (psykhes
periagoge) (República 521 c 6; cf. Fedro 518 d 4). O conceito de philosophos
refere a essa reorientação ontológica (cf. Fédon, 101 e; Banquete 204 b ss.
[Eros como philosophos]; República 474d ss.; Fedro 249c; Teeteto 172 c-177 c; Timeu, 53 d). O philosophos, no sentido de Platão, dispõe
sempre de timiotera, ou seja, da “posse de algo mais valioso do que seus
escritos”. Para Platão, a dialética conduz ao princípio não-hipotético de todas
as coisas, ou, dito de outra maneira, há para o dialético um “fim da viagem”
(República 532 e 3).
As “coisas mais importantes
e de posição mais elevada (as mais valiosas)” são, segundo o Político (285 e 4),
as entidades incorpóreas do mundo das Idéias. Para Platão, a fonte última de
“categoria” e “valor” é a idéia mesma do Bem como princípio de tudo. Mas também
o saber participa da categoria do Bem. Em geral, o saber é de categoria
superior à opinião correta (Mênon 98 a 7), pois ele “amarra” com argumentos o
que há de correto na opinião. A fundamentação última deve vir “do princípio de
todas as coisas”; a ascensão rumo ao princípio ocorre por gradações: de
hipótese para “hipótese superior” até o “não-hipotético” (Fédon 101 d-e;
República 511 b). “Possuir algo de maior valor” (timiotera) significa,
portanto, para o dialético o mesmo que estar em condição de fundamentar de tal
modo uma explicação dada que o “amarrar” por meio de argumentos escolha sempre
um “ponto de ligação” que seja superior na série de hipóteses.
Platão disse mais de uma vez
que a ascensão a um princípio último, transcendente é a finalidade do sujeito
cognoscente. E, nas ocasiões em que os estudiosos notaram esse fato,
acentuou-se quase sempre a ascensão como tal e esqueceu-se de que os diálogos
sempre mostram apenas uma parte do movimento ascendente e indicam com
suficiente clareza a deliberada limitação do processo. Aristóteles, na
Metafísica e em outras obras, se refere a uma doutrina platônica dos princípios
que não encontramos nessa forma nos diálogos. Os modernos não estão dispostos a
reconhecer que Aristóteles, que vivera vinte anos na Academia de Platão, podia
conhecer detalhes mais precisos sobre a teoria platônica dos princípios do que
é possível ao platônico de hoje, na medida em que este se atém unicamente aos
diálogos. Por que justamente a parte da filosofia que trata dos princípios deve
ser protegida da divulgação escrita? Contra o pano de fundo da crítica da
escrita, a resposta é simples: quanto mais complexo é o objeto, tanto maior é a
probabilidade de uma depreciação injustificada por parte de pessoas
incompreensivas, contras as quais o escrito, na ausência de seu autor, não pode
se defender (cf. Fedro 275 d-e).
Não encontramos indícios de
que Platão alimentou a crença de que pudesse se aproximar do filosofar oral
escrevendo por um sofisticado uso de alusões sutis, indicações indiretas e
insinuações cifradas. Esta foi, antes, a crença ingênua de Friedrich
Schleiermacher, que ligava a isso a convicção antiesotérica de que, pela arte
da comunicação "indireta", Platão não teria necessidade de reservar
ao âmbito da oralidade partes essenciais de sua filosofia. (a) A forma mais
simples de alusão é uma referência em forma de citação, como a que aparece em
Fedro 276 e 2-3. Não pode haver dúvida de que Platão se refere aqui à sua
própria obra principal como um caso de "divertimento" filosófico
escrito. As próprias obras de Platão estão incluídas na crítica de tudo o que é escrito. A crítica também implica os diálogos
quando ela se refere a todo o escrito. (b) A propósito dos "archai ainda
mais altos" (Timeu 53 d), de maneira alguma deles são esclarecidos neste ou
em qualquer outro trecho. Idem para a origem de todas as coisas em Leis X 894 a
1-8. (c) Com relação à exposição das idéias filosóficas que no Eutidemo
transparecem "por trás" das argumentações confusas e aparentemente
absurdas, nenhum dos "enigmas" poderia ser solucionado sem um
conhecimento da exposição não-cifrada da doutrina da anamnese e do conceito de
dialética no Mênon, no Fédon e na República. Em resumo, Platão se serve, de bom
grado, dos mais diferentes tipos de alusões, insinuações e referências, mas sem
jamais manifestar a intenção de atribuir à técnica literária da alusão um papel
central na comunicação filosófica. A ilusão cifrada pode ser decodificada por
qualquer leitor com a inteligência necessária para isso. A moderna teoria do
diálogo pretende atribuir às alusões e referências no texto escrito a tarefa
que somente a filosofia oral pode cumprir.
A forma do diálogo platônico
não é um elemento exterior, mas essencial para seu conteúdo. Platão faz uso de
alguns expedientes dramatúrgicos. (a) Ação contínua. Um meio pelo qual Platão
mantém essa ação na memória do leitor é a repetição do motivo. A ação contínua
no Eutidemo consiste no desmascaramento dos erísticos Eutidemo e Dionisidoro
como não-esotéricos. O motivo mediante o qual essa ação é levada adiante e
dividida em fases é, de um lado, o do "ocultamento" e, de outro, o da
oposição de "divertimento" e "sério". A mensagem do
Eutidemo, que só é perceptível pela consideração do leitmotiv e da ação
contínua, diz que o verdadeiro filósofo deve ser esotérico. A ação contínua na
República consiste na tentativa de alguns amigos de Sócrates de
"obrigá-lo" a comunicar suas visões acerca da justiça, do melhor
Estado e finalmente do Bem e da dialética como caminho para a Idéia do Bem. O
motivo é que os amigos querem "segurar" Sócrates e não o
"liberar" de maneira nenhuma; ele, contudo, acredita poder convencer
os amigos a deixá-lo partir (República 327 a-c). (b) Interrupção do diálogo
narrado pelo diálogo que emoldura a conversação. O Eutidemo, em termos formais,
é um relato de Sócrates a Críton sobre uma conversação que ele teve no dia
anterior com dois erísticos no Liceu. No curso desse relato, ficamos sabendo
que o jovem Clínias dissera, a respeito da arte da dialética, que ela se
apodera da "presa" da matemática tal como a política se apodera da
presa da ciência estratégica, uma cidade conquistada, por exemplo (290 c-d).
Nessa afirmação está implícita uma relação entre matemática e dialética que
somente é compreensível a partir da teoria da ciência contida na República
(510 c ss; 531 c ss) e que, dentro do Eutidemo, onde falta qualquer preparação
para o resultado, parece um bloco errante. Para enfatizar a importância do
reconhecimento de que a matemática está subordinada à dialética, Platão
interrompe o diálogo narrado e faz Críton perguntar se o jovem Clínias
realmente disse algo tão inteligente; se foi mesmo ele, então ele não necessita
de mais instrução humana (290 e). Para nosso espanto, Sócrates não está disposto
a garantir que foi Clínias e declara que também poderia ter sido Ctesipo. Mas,
quando Críton também se recusa a aceitar isso, Sócrates exprime a suposição de
que "um dos seres superiores", presentes no momento, poderia ter
introduzido esse conhecimento (290 a 4). Não é preciso refletir por muito tempo
para adivinhar de que voz o deus desconhecido se serviu. Não há dúvida de que
com a dialética o reino do que é "superior", da filosofia
"divina", é tocado. Platão não confia na compreensibilidade da breve
alusão à sua teoria da ciência, mas utiliza adicionalmente o bem mais nítido
meio dramatúrgico da interrupção do diálogo narrado para deixar claro ao leitor
que por trás do diálogo há uma riqueza filosófica não explicitada, que está
para o que é explicitamente tratado assim como o reino do divino está para o
humano. (c) Troca de interlocutor. Em vários diálogos, o primeiro interlocutor
de Sócrates é substituído no curso da conversação, a maioria das vezes, mas não
sempre, por alguém com idéias análogas. A troca de pessoas indica, muitas
vezes, uma troca do nível da argumentação e, por regra geral, está ligada a um
caso de "auxílio" ao logos (por exemplo, Fedro 276 e - 277 a). A dupla
troca de pessoas no Górgias produz, num sentido, uma linha ascendente à medida
que a discussão conduz a perguntas cada vez mais fundamentais e a tensão
dramática da discussão cresce continuamente. Essa linha ascendente se
entrecruza de forma fascinante com um movimento contrário, à medida que a
posição oposta se torna, em termos de conteúdo, cada vez menos respeitável e se
afunda cada vez mais.
A ironia talvez seja a
técnica estilística mais famosa de Platão. Uma ação dramática pode estar
inteiramente determinada pela ironia (como é o caso do Eutidemo); um personagem
inteiro pode se mostrar sob a luz da ironia (como Eutífron ou Hípias); ou a
aparição de um personagem pode ser ironicamente relativizado pelo contexto
dramático (como Alcibíades no Banquete), ou talvez até mesmo uma única reação
de um personagem que, em outros aspectos, não está mergulhado em ironia (basta
pensar, por exemplo, na capacidade de esquecimento de Adimanto com relação às
limitações a que o discurso está sujeito: República IV 504 a-c). É importante que
não confundamos a ironia platônica com a ironia romântica. A ironia romântica
não se dirige contra um adversário determinado, mas contra tudo e todos. Para o
romântico não pode haver nada absoluto que estaria imune à relativização
irônica. Em Platão, em contrapartida, é evidente que a ironia se retrai diante
do que ele chama de âmbito "divino" do sempre-existente e diante da
philosophia "divina" como empenho em apreender noeticamente o reino
do sempre-existente.
Os mitos de Platão são quase
tão famosos quanto suas ironias. Por um lado, Platão apresenta o mito em clara
oposição ao logos. Por outro lado, ele deliberadamente embaça a fronteira entre
o mito e o logos em certos casos particulares. Há uma questão freqüentemente
discutida que procura saber se o mito em Platão está subordinado ao logos ou se
ele transmite uma verdade superior que não é alcançada pelo logos. Essa última
suposição de que os mitos encerram um conteúdo de verdade mais elevado deriva
da percepção de correntes modernas irracionalistas e não pode se apoiar nas
reflexões de Platão. Por outro lado, uma subordinação do mito ao logos tampouco
pode ser aceita se com isso se entende que o mito é um ornamento mais ou menos
dispensável, uma transposição meramente ilustrativa de pontos de vista obtidos
de outras maneiras. Se fosse essa a opinião de Platão sobre o papel do mito,
ele dificilmente poderia lhe ter dado um espaço tão amplo em sua obra. Sem
dúvida, a penetração dialética da realidade, que se efetua no logos
argumentativo, é o objetivo último do filósofo. Mas não se pode renunciar à
força psicagógica do mito; ademais, a capacidade das imagens e histórias de
representar um estado de coisas de forma global e intuitiva é um complemento
imprescindível da análise conceitual. Visto dessa forma, o mito aparece como
uma segunda via de acesso à realidade, que certamente, quanto ao conteúdo, não
pode ser independente do logos, mas oferece, em comparação com ele, um plus que
não pode ser substituído por nada.
Não existe em Platão uma
conversação entre iguais. Na única vez em que faz que se reúnam homens do mesmo
formato intelectual, no Timeu, ele evita o diálogo: Timeu realiza perante
Sócrates, Crítias e Hermógenes um monólogo de várias horas. Mas o enigma se
resolve sem problemas se tomamos a crítica da escrita como medida: um colóquio
entre dialéticos do mesmo nível intelectual teria de ascender rapidamente
àquele âmbito da teoria dos princípios que o filósofo reserva intencionalmente
para o auxílio oral. Dessa maneira, Timeu é o único diálogo sem um
condutor da conversa. No Fédon, Sócrates diz que é preciso fazer abstração de
sua pessoa e prestar atenção apenas na verdade (91 c). Abstrair-se do individual
é, portanto, uma tarefa do “aprendiz”. As figuras apresentadas são, sem
exceção, almas “coloridas” (Fedro 277 c 2), isto é, não-equilibradas, não ainda
suficientemente purificadas do ponto de vista filosófico. Se o dialético busca
o logos apropriado a cada uma delas, isso significa que ele não se move na
esfera que é sua meta: a esfera do conhecimento puramente conceitual (cf.
República 511 b-c).
Concluímos que, num olhar
retrospectivo sobre a teoria moderna do diálogo platônico, que atribui ao
diálogo escrito a tarefa que Platão reserva à atividade filosófica oral,
podemos dizer: essa teoria não apenas é não-platônica no sentido de que não
pode se apoiar em nenhum texto de Platão, como também é antiplatônica no
sentido de que infringe o espírito e a letra da crítica da escrita e
intencionalmente se faz de surda às contínuas e claras referências de Platão à
sua doutrina oral dos princípios.
Por fim, cabe lembrar que o esoterismo não tem nada a ver com a observância do segredo que se
apóia na coação. Quem o infringe infringe seu juramento e se expõe às sanções
da seita a que pertencia até então. Mas o esoterismo é um ditame da razão, não
o resultado da coação por um grupo. Quem infringe a retenção não se expõe a
nenhum tipo de sanção, nem prejudica a comunidade, mas o objeto em questão: o
pensamento sobre os princípios, tão rico em pressupostos, não pode desenvolver
seu efeito positivo se é erroneamente recebido por falta de preparação
adequada. O saber filosófico não é um meio para um fim, mas um fim em si mesmo,
e deveria, por isso, ser transmitido apropriadamente, com a circunspecção
necessária, não mecanicamente. Em suma: o esoterismo tem relação com o objeto,
a observância do segredo com o poder. Por conseguinte, os diálogos devem ser
lidos como fragmentos da filosofia de Platão que apontam para além de si
mesmos.
* * *
Há inúmeras ordens de leitura dos diálogos de Platão, desde as cronológicas até as antigas tetralogias. Talvez uma das mais tradicionais seja a de Albino (c. 150 d.C.) --
Introdução aos Diálogos de Platão -- onde se recomenda a seguinte ordem inicial:
Alcibíades,
Fédon,
República,
Timeu.