19 de setembro de 2023

A potência cogitativa na TCC


O psicólogo italiano Giuseppe Butera expõe interessantes pontos de contato que antecipam em Tomás de Aquino alguns tópicos que mais tarde seriam desenvolvidos no âmbito das terapias cognitivo-comportamentais.

A potência cogitativa , que nos animais se encontra subdesenvolvida na forma de potência estimativa, é o sentido interno mais importante no homem. É ela que, uma vez alimentada pelos sentidos externos,  apreende os objetos, situações e experiências como "adequadas" ou "inadequadas", como se fossem juízos instintivos. No entanto, se nos animais ela é simples intuição sensível, nos homens ela é alimentada pelo conhecimento adquirido pela experiêcia direta (memória) e pela instrução (razão). Como a razão lê o que há de universal, por conseguinte ela é capaz de informar a cogitação, que funciona como uma espécie de "razão particular". Por outro lado, a memória, ao acumular experências prévias, desenvolve certos hábitos imaginativos que informam a cogitação, dando-lhe mais velocidade a aprensões familiares.

Observa-se, portanto, que enquanto nos animais a estimação é fixa, nos homens a cogitação é programável, como se fosse um computador. No entanto, mesmo nos homens ela não é racional nem irracional, mas simplesmente "não-racional".

É a ação da potência cogitativa que desencadeará a reação das paixões (emoções) da alma. Aqui pouco importa se a apreensão é "correta" ou "incorreta", "verdadeira" ou "falsa". A cogitação é incapaz de alcançar tais juízos.

Pois bem, Butera conclui que os "pensamentos automáticos", tão extensamente popularizados por Aaron Beck e sua terapia cognitivo-comportamental, são precisamente as reações pré-conscientes da potência cogitativa. São automáticas, mas são reprogramáveis. São pensamentos, mas não são conscientes. Precisamente o que a cogitação é: um sentido interno cuja resposta é automática e age sobre o restante da alma com a vivacidade de pensamentos. É possível perscrutar e identificar as reações da cogitação e reprogramá-las racionalmente, assim como séculos mais tarde Beck descobriu que é possível perscrutar e identificar os pensamentos automáticos e reprogramá-los racionalmente.

A cura não é imediata como a programação de um computador. As potências da alma sensitiva, sejam externas ou internas, estão intimamente ligadas ao corpo e, portanto, são pouco maleáveis. É possível reorientá-las, mas é necessário tempo, consistência e paciência.

Fonte: Giuseppe Butera, La anticipación de Tomás de Aquino a la terapia cognitiva, Interpsiquis Vol. XXII, 2021.

16 de setembro de 2023

Abstração e projeção


Podemos ser levados a crer que quanto mais naturalista, detalhada e fiel à realidade pictórica for uma obra de arte tanto mais desenvolvida e superior ela será em relação às representações abstratas e de inspiração geométrica. Inspirado pela obra e ensinos de Alois Riegl, o historiador alemão Wilhelm Worringer chega a conclusões não só divergentes como de certa forma contrárias a tal senso comum.

Worringer parte da ideia de que o gozo estético é um autogozo objetivado. Em outras palavras, a beleza extraída de uma obra de arte é resultado do contraste, ou mesmo fusão, da ampliação do olhar interno até o ponto que abarque toda a obra com a delimitação da imaginação para que a isole de seu ambiente originário. Se posso abandonar-me sem antagonismo interior à tal atividade de ampliação/delimitação, então disso resultará um sentimento de liberdade e prazer. O objeto estará como que compenetrado por minha atividade, por minha vida interior. Eis o “autogozo objetivado”. O “belo” seria uma projeção positiva, enquanto o “feio” uma projeção negativa.

Concomitantemente, identifica dois polos estilísticos claramente distintos encontrados na estética das obras de arte: (1) o afã de projeção sentimental (Einfühlung, ou “empatia”), cuja satisfação se encontra na beleza do orgânico, e (2) o afã de abstração, cuja satisfação se encontra na beleza do inorgânico, do que nega a vida, do cristalino.

Ora, se o autogozo objetivado é a definição mesma de gozo estético, então Worringer rejeita a ideia de que somente a projeção sentimental possa cumprir com louvor os critérios para extrair tal gozo da criação artística. Isso porque, com base no método criado por Riegl, a vontade artística absoluta, ou seja, a vontade artística desligada de quaisquer objetos, sendo uma exigência interior latente nos homens, se manifesta como vontade de forma. Toda obra de arte é, em seu mais intimo ser, tão-somente uma objetivação dessa vontade de forma.

Observe que a arte genuína é uma satisfação profunda de uma necessidade psíquica. Não cabe, portanto, confundir “arte” com “imitação”. Trata-se de um erro muito comum: a imitação é mera habilidade manual (um “gosto brincalhão pela reprodução de modelos naturais”) e carece de importância estética. A arte genuína é a expressão estilística da vontade artística absoluta.

O estilo resultante do afã de abstração – como nas formas de uma pirâmide ou nos mosaicos bizantinos – se trata de um impulso diametralmente oposto ao afã de projeção. A tendência abstrata se revela na vontade de arte dos povos em estado de natureza, na vontade de arte de todas as épocas primitivas e de certos povos orientais de cultura superior. Trata-se de uma tendência resultante de uma intensa inquietação interior ante os fenômenos do mundo circundante. Worringer lança mão da expressão agorafobia espiritual para designar tal impulso: algo como uma ansiedade em ficar em situações ou locais sem uma maneira de escapar facilmente ou em que a ajuda pode não estar disponível no caso de a ansiedade intensa se desenvolver. Há uma intensa necessidade por quietude, por desprender cada coisa individual pertencente ao mundo exterior de sua condição arbitrária e de sua aparente casualidade e eternizá-la mediante a aproximação a formas abstratas e em encontrar dessa maneira um ponto de repouso na fuga dos fenômenos. Observe: não há intromissão do intelecto no estilo abstrato, ou seja, não há nenhum tipo de aspiração a conformar-se a supostas leis de regularidade geométrica, mas sim uma necessidade interior elementar.

Os dois polos – projeção e abstração – são, ao fim e ao cabo, diferentes níveis de uma necessidade comum: a ânsia de alienar-se do próprio ego. Tal ânsia de alienação é incomparavelmente mais intensa e mais consequente no afã de abstração. Worringer não deixa de notar que a ânsia de alienação do ego é a essência suprema do gozo estético e, por que não, da felicidade humana mesmo.

Concluo portanto que a arte abstrata, embora primitiva em termos cronológicos, é primordial em termos ontológicos, pois é ela que retrata melhor o anseio dos homens em escapar da escravidão ao ego e alçar novos e maiores voos no plano sobrenatural. Os povos que não aposentaram sua arte abstrata mas, pelo contrário, a sofisticaram e aprofundaram, são provavelmente aqueles que melhor combinaram gozo estético e elevação espiritual.

Fonte: Wilhelm Worringer, Abstracción y naturaleza, Fondo de Cultura Económica, Cidade do México, México, 1953.

14 de setembro de 2023

A educação da espontaneidade


É possível educar os sentimentos? Ou, pelo contrário, os sentimentos devem ser o guia em torno do qual devem orbitar nossos pensamentos, condutas e juízos? Vejamos o que diz o filósofo espanhol Julián Marías.

O homem tem um caráter convivial, social e histórico. Em outras palavras, se imagina e se projeta dentro de uma forma histórico-social. Mas é necessário acrescentar que é possível sair dessa forma, que é algo que muitas vezes tem sido negado com notória falsidade. Mais ainda: sempre se sai dessa forma porque toda situação é instável, e justamente por isso existe a história.

É um grave erro portanto a “programação”, a fixação das formas, que nunca podem ser mais do que um ponto de partida. Isso elimina algo decisivo: a espontaneidade. Na vida é essencial o aporte dos impulsos, dos desejos, da imaginação – realidades sobre as quais pesa certo “descrédito”. É fundamental a reação viva, imediata, direta aos elementos da circunstância, especialmente às pessoas. É preciso que reivindiquemos a importância e a validade do “gosto”, que não coincide necessariamente com o prazer.

É preciso dar o devido valor à atração pessoal imediata, que costuma ser muito mais ampla e completa que a atração deliberada ou “racional” (aquela é mais racional, mas da razão vital).

Alguém poderia pensar que esta insistência na espontaneidade, esta preferência por ela, exclui a educação ou a relega a uma posição secundária. Acredito que, pelo contrário, ela a exige: é preciso educar a espontaneidade. Ela se nutre de experiências, imaginações, ensaios, explorações do desconhecido. Ora, a espontaneidade deseducada é pobre, limitada à herança, não somente biológica, mas sobretudo social. Entendo a educação como cultivo e incremento à espontaneidade.

É evidente a enorme influência que a ficção tem aqui: poesia, teatro, literatura, cinema; e não menos importante, a conversação. Aliada às vivências e experiências reais, as virtuais que se recebem do outro – do próximo presente com quem se conversa ou do criador, talvez falecido há séculos – são ótimos instrumentos de dilatação e intensificação da vida.

A diversidade de idades, a convivência com várias gerações, é essencial. Isso permite a libertação da circunstância temporal, a ampliação do horizonte.

[...]

O “estar” carrega em si o conceito de instalação, que é a maneira como o homem “se encontra” na vida, fazendo algo e sendo alguém. Poderíamos definir temperamento como a modulação dessa instalação. O temperamento portanto é uma modulação essencial daquilo em que se está quando se está vivendo. [...] Alegria e tristeza, austeridade e jovialidade, severidade e piada, secura e afetuosidade; eis alguns exemplos possíveis de temperamento, que contêm incontáveis variedades e matizes. Existem temperamentos habituais que poderíamos chamar de vigentes. E existe a possibilidade de sua alteração estimulada ou artificial, como festas, orgias, álcool, drogas.

A afetividade, o mundo dos sentimentos, é o envolvente da vida. [...] A vida apresenta certos sintomas de grosseria, de pobreza, de monotonia, de instabilidade; e, mais ainda, de secura, de prosaísmo (achatamento, insipidez). Será que não nos falta uma educação sentimental adequada?

Fonte: Julián Marías, La educación sentimental, Alianza Editorial, Madrid, Espanha, 1992.

5 de setembro de 2023

A metafísica do amor


Frederick Wilhelmsen acredita que o amor é algo que reside no coração de todo ser humano, e a melhor forma de abordar o tema, para aqueles que são mais voltados à meditação filosófica, é por meio da ontologia da existência. Aqueles que seguem o Cristo sabem que a lei final é a lei do amor e que a cidade a que estamos destinados é a Cidade de Deus. Como inspiração da importância do tema, eis alguns ensinamentos de Jesus Cristo e do Apóstolo:

E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas. Mateus 22:37-40

E no Sermão da Montanha disse Jesus: Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo.  Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos. Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim? Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus. Mateus 5:43-48

O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. 1 Coríntios 13:4-10.

É importante que antes o leitor tome contato com as descobertas de Wilhelmsen quanto à estrutura paradoxal da existência. Em suma, a existência não existe, ou seja, a existência não é um ente existente como um homem, uma árvore, um cachorro, um anjo, uma montanha, um planeta etc. Estes entes singulares actualizam a estrutura contida em seus universais, ou seja, em suas essências, mas a existência, em si mesma, não se manifesta como ente, ela é desprovida de estrutura.

As dimensões da existência humana: trágica e extática

Com base nesse entendimento, Wilhelmsen identifica duas ordens, ou dimensões, da existência humana.

Uma é a dimensão trágica, na qual o homem se vê como ser contingente, finito, sem fundamento em si mesmo, sem apoio do mundo (que supostamente é seu); em outras palavras, como se estivesse perpetuamente caminhando à beira de um abismo que leva ao nada. Enfrentar a morte e dar-lhe sentido é uma realidade da qual nenhum homem tem o direito de querer escapar. Que terrível estado de insegurança vive o homem: embora ameaçado pelo não-ser, o homem continua sendo.

Outra é a dimensão extática, na qual o homem se vê obrigado a entregar-se ao mundo das coisas e especialmente ao mundo das pessoas. O ser do homem é estruturalmente um ser com outros: (1) na comunicação, ou seja, na exigência por compartilhar sentido com outra pessoa, (2) no cuidado, ou seja, quando o contingente zela por outro contingente; e (3) no amor, o ápice do êxtase, ou seja, quando o ser do homem se torna ser-para-o-outro, isto é, o ser autenticamente humano. O homem inautêntico é, portanto, aquele que não se doa ao outro, mas, pelo contrário, se apropria do ser do outro para si próprio. Em vez de superar sua pobreza ontológica abrindo-se para amar o outro, o homem inautêntico acentua essa pobreza preenchendo seu ser com o ser do outro: ao invés de ser-para-o-outro, se transforma no ser-para-o-apropriado.

Que profundo paradoxo vive o homem: extaticamente deseja dar, tragicamente deseja ser preenchido; extaticamente precisa jogar-se fora, tragicamente precisa ser acolhido. Não há nada no homem, nem em suas partes, nem no todo, sobre o qual possa assentar-se e declarar candidamente que encontrou sua identidade. A personalidade do homem, ou seja, o aperfeiçoamento de sua pessoa, não é constituído por um “eu”, mas por um “nós”.

Este entendimento começou a romper-se na Renascença, quando pouco a pouco o desenvolvimento de uma pessoa (i.e. personalidade) foi sendo entendido como o cultivo de um ego. Note que o homem medieval desconhecia a dicotomia sujeito-objeto. Para ele, sujeito é aquilo que há de supremo, de eminente, no ser, enquanto objeto é o conhecimento desse sujeito. O homem conhecedor era apenas mais um sujeito dentre tantos outros sujeitos no cosmos. Para o homem moderno, no entanto, o sujeito é somente o ego pensante, enquanto objeto é o conteúdo desse sujeito pensante.

Este rompimento foi posteriormente, ou concomitantemente, potencializado pela palavra escrita. Enquanto o homem antigo e medieval filosofava com coisas e pessoas diante de si, o homem da modernidade clássica filosofava com folhas de papel diante de si. Homens solitários como Descartes, Spinoza, e mesmo Leibniz, estavam envoltos em uma cultura livresca na qual as imagens sensoriais eram eminentemente espaciais, carentes de movimento, posteriormente congeladas em abstrações transformadas em absolutos ontológicos. Observe como na psique da filosofia moderna o ego pensante torna-se o centro da existência, o juiz do mundo, em oposição aos objetos “lá fora”. O ego pensante eleva-se à categoria de personalidade abstrata, a qual toda a realidade curva-se ante sua validação e racionalidade. O ego pensante ganha pois ares de divindade.

Mas talvez o motivo mais importante esteja no seio mesmo da Idade Média. Wilhelmsen nota que se abateu na Europa do começo do século XIV uma espécie de “ansiedade coletiva”. O bom combate ao qual o Apóstolo havia chamado os seguidores do Cristo, a civilização de camponeses, soldados e monges, começou a cansar em meio ao nada e à falta de sentido do mundo natural. Pouco a pouco essa civilização começou a buscar alívio desse fardo da contingência. O homem renascentista começou a enxergar na natureza uma excelência e uma beleza antes despercebidas. O corpo humano bem formado e estético, uma racionalidade baseada na moderação moral da Ética a Nicômaco; a Renascença começou a negar insistentemente a trágica situação humana e o mistério da contingência de sua existência temporal. A abertura do ser no homem foi fechada e selada.

A pessoa humana é aquele todo no ser que, experimentando-se como finito e contingente, sem qualquer domínio sobre o seu próprio ser, existe, no entanto, dentro de uma ordem de ser à qual o seu próprio ser está aberto e na qual deve procurar o seu destino, a ponto de almejar a superação do mundo e a doação de si mesmo a um Ser que, não necessitando dele em nenhum sentido, no entanto se dá e cura assim as feridas da contingência.

Wilhelmsen nota, no entanto, que o ser não deve ser reduzido a um mero “ser-para”, ou seja, o ser não é apenas a relação que estabelece. O ser é, em suas palavras paradoxais, “simplesmente ser, mas todo ser está aberto de si mesmo”.

Observe como a metafísica do ser pode nos ajudar a entender como, e por que, o homem tende a distanciar-se do todo que é em favor de seu ego. Por exemplo, quando estamos doentes sentimos que nosso ser está como que se dissolvendo, se despedaçando, se estilhaçando. É como se o corpo doente de repente estivesse “aí”, flutuando diante do espírito observador, como se o corpo fosse uma peça adjacente, um elemento meramente contíguo à alma. Em termos morais algo semelhante acontece. Observamos nosso passado com certo assombro e mesquinhez, e nos perguntamos como, afinal, desperdiçamos tanto tempo com bobagens e negligenciamos o desenvolvimento de nossas qualidades, de nossos relacionamentos, de nossas carreiras, de nosso crescimento espiritual. Uma vida reduzida às cinzas da esperança. Ou mesmo em nossas experiências filosóficas que, por meio da introspecção típica da meditação cognitiva, termina por concluir de maneira afobada que o homem é seu ego e que apenas tem um corpo. Quando estou morrendo, não devo concluir que meu ser permanece no ego, mas, pelo contrário, a angústia da morte é sinal de que o corpo também é meu ser. Aqui chama a atenção que Montserrat Calvo Artes chegará à mesma conclusão: sou meu corpo, não tenho um corpo.

Sim, claro, é evidente que há um senso de distância entre corpo, alma e espirito. É evidente que o corpo não participa do ser da mesma forma que o espírito participa do ser. Mas é evidente também que somos um ser, que somos uma unidade, e não vários seres meramente aglutinados. Somos um ser (um esse), que na verdade é um ente (um ens), um “está sendo”. Este é o ponto: somos inseparáveis de nossa existência. Sou meu corpo, minhas operações, minhas faculdades: o esse não é a alma nem o corpo, mas o esse toca a alma, a parte formal do corpo. Como demonstrou Santo Tomás de Aquino, por participação, o corpo também faz parte do ser do participante. É notável o que acontece quando o homem divorcia o corpo da alma. Quando o exercício do poder é divorciado do corpo, o homem perde o senso de responsabilidade sobre seus efeitos. Bernanos comenta sobre o piloto que, embora capaz de apertar um botão e matar milhares de pessoas, é incapaz de matar uma borboleta com as mãos.

Modernamente, o humanismo em suas diversas formas é uma maneira de tentar escapar da dimensão trágica da existência humana. O humanismo é incapaz de entender que, temporalmente falando, o homem não está acima do cosmos das coisas e valores. O homem é um ser relacionado a, e não um ser que se relaciona. O efeito de abafar a dimensão trágica é bloquear o chamado ao êxtase. Desde a psicologia de Jung à educação liberal de Mortimer Adler, todo humanismo está convicto de que o homem contém em si (mesmo que admita a existência de Deus) a fonte e o fundamento de sua própria perfeição: o humanismo veda, sela, isola a pessoa em seu ego e busca dentro da pessoa selada a sua personalidade, negligenciando a abertura do ser, a finalidade mesma do homem. O humanismo se esquece de que a pobreza do homem é sua glória.

A filosofia espanhola

Para melhor esclarecer como se dá a relação do homem com essas dimensões da existência, Wilhelmsen lança mão de dois filósofos espanhóis: José Ortega y Gasset e Xavier Zubiri. O fato de ter vivido alguns anos na Espanha e ensinado na Universidade de Pamplona lhe garantiu um extenso contato com a filosofia deste país. Ademais, a filosofia nunca se divorcia dos temas e problemas típicos do local onde se desenvolve, e no caso da Espanha, após a queda do império espanhol e certo complexo de inferioridade perante os países do norte europeu, Wilhelmsen não deixa de notar como os filósofos espanhóis do século XX procuraram entender a relação do passado e do futuro da Espanha no contexto da Cristandade ocidental, permitindo assim que se concentrassem mais na dimensão histórico/temporal da existência humana, precisamente o que Wilhelmsen busca para, a partir desse patamar histórico, elucidar a dimensão aberta (“extática”) da existência humana.

É notável portanto que a especulação metafísica espanhola se recuse em aceitar uma teoria do ser que o veja de maneira estática, isolada, fechada. Pelo contrário, os grandes filósofos espanhóis sempre admitiram, a despeito das orientações religiosas que defendam, que a existência humana possui uma estrutura histórica e aberta. É precisamente acerca desse ponto que Ortega cunhou sua hoje famosa máxima da razão vital: Yo soy yo y mi circunstancia. O ser humano, para Ortega, não é propriamente um ser, mas um “vai sendo” (va siendo), ou seja, se por um lado uma realidade físico-matemática é regida e expressa por uma lei, uma realidade humana é expressa por uma história. Observe que para Ortega a vida é maior do que o ser porque a vida humana se lança não para aquilo que não foi, mas para aquilo que pode ser à luz do que foi. Em outras palavras, o passado está aqui em mim. Eu sou o passado, mas eu também sou maior do que meu passado e, portanto, mais amplo que meu ser. O ser estático, isolado, fechado, é um mero cenário, mas o ser dinâmico, relacional, aberto, é um drama. Tal ser estático é paralítico assim como são paralíticos os corpos geométricos. O ser dinâmico é ao mesmo tempo história e tradição porque o ser dinâmico é ao mesmo tempo um progresso para o eu e um engendramento desse mesmo eu.

Zubiri concorda que o ser estático, aquele que provém do “é” subsistente às coisas, tem de ser corrigido à luz do ser quando aplicado à inteligência. O ser do homem é um “ser-aberto-às-coisas”, um “ser-é-outro”. Ao mesmo tempo, este “ser-outro” é um retorno da inteligência a si mesma: quanto mais me estendo ao próximo, tanto mais me torno o eu que sou. Ao ponderar sobre o ser das coisas, o ser do homem e o ser de Deus, Zubiri alcança um entendimento do ser que, a exemplo de Ortega, é aberto, extenso, descerrado, destapado. Além disso, Zubiri também nota a diferença entre a concepção de amor entre cristãos latinos e cristãos gregos. Para o Padres gregos, o amor (agape) tão reiteradamente mencionado por São Paulo e São João deve ser entendido em um sentido estritamente metafísico. Não se trata de um amor moral, mas de um amor ontológico.

Ao mesmo tempo, Zubiri também nota que a energeia aristotélica, própria dos seres vivos (ver post anterior sobre Wilhelmsen) -- ao contrário da enteléquia, própria das coisas, que era designada como atualidade --, é melhor designada como atividade, ou seja, como algo que está sendo, que se está desenvolvendo, que é “ec-stático” (extático), que se difunde a si mesmo dinamicamente. Zubiri sustenta que o ser estático – fixo e completo – sempre recebe enquanto o ser dinâmico – ação primitiva e radical – sempre executa. Para os gregos, essência não é o correlativo de uma definição, como entendiam os latinos, mas uma atividade radical constituinte do próprio ser, a própria raiz de toda sua manifestação. A essência é algo ativo, é como se a essência fosse uma “para-essência” manifestada numa dinâmica que é a própria verdade da ousia, pois é esta essência dinâmica que torna a ousia cognoscível. Zubiri sagazmente diz que Deus não é Ato Puro, mas Ação Pura. E tal atualidade, no caso do homem, é dada, segundo Zubiri, por sua origem. É assim, portanto, que se dá a personalidade: ela tende para a origem e fundamento de seu ser e, ao mesmo tempo, àqueles que compartilham da mesma natureza. Estamos falando, claro, de uma abertura, de uma doação, à Deus e aos demais homens. Estamos falando não de um simples eros, mas de um agape, de um amor místico. Eis também por que Zubiri concorda com os Padres gregos sobre o primado da personalidade sobre a natureza, e, por extensão, sobre o primado da Trindade sobre a Unidade divina, ao contrário do que entendiam os latinos.

Mais bela ainda é a meditação empreendida por Wilhelmsen quando nota que algo de agape está presente em eros também. Quando nos dedicamos à manufatura de algo, à decoração de um aposento, por exemplo, algo dele retorna a nós. Em outras palavras, obtemos aperfeiçoamento mediante o eros que nos ligou à construção e uso daquele objeto. No caso dos seres humanos, algo mais amplo ocorre: quando nos relacionamos em amor (agape) a outros seres humanos, não só este amor se difunde de nós a eles, mas deles a nós também. É o típico caso do amor de uma homem por uma mulher, por exemplo. No caso das coisas, o aperfeiçoamento é uma certeza; no caso dos homens, o aperfeiçoamento é uma esperança.

Ser, não-ser e amor

No entanto, ao longo da história da filosofia, alguns pensadores concluíram que o amor não é o aspecto eminente do ser, mas sim o poder. Isso é compreensível porque precisamente em função da dimensão trágica da existência, isto é, a tentativa de escapar da aniquilação, do “não-ser”, da inexistência, o ser tem de afirmar-se na existência, arraigar-se no real. Observe que há aí uma dupla negação: o ser é a negação da negação do ser, ou seja, a negação do não-ser. É o “poder do ser”: a autoafirmação do ser sem o não-ser não seria autoafirmação, mas uma mera autoidentidade imóvel. É o não-ser que impele o ser a abandonar sua reclusão e o força a afirmar-se dinamicamente.

Assim pensava o filósofo alemão Paul Tillich, que influenciou grandemente o Protestantismo. Se ser é poder, então esse poder tem de ser exercido contra alguma coisa. Essa alguma coisa é o não-ser. É o poder que melhor representa o ser, eis o aspecto mais eminente da existência.

Mas Wilhelmsen não aceita esse entendimento. A exemplo do que fará em sua obra sobre a estrutura paradoxal da existência, o filósofo americano não deixa de notar que o não-ser simplesmente não pode ser articulado intelectualmente e nem mesmo experienciado imaginativamente. Se cremos que o fizemos é porque transformamos o não-ser em algo que ele não é, em algo extravagante e evanescente, sem duvida, mas ainda assim algo. Esse algo, que evidentemente não é o não-ser, é precisamente o veículo do caos, o arauto da destruição da personalidade humana. É precisamente a contemplação, a consideração, que um individuo ou sociedade faça do seu “ser” que determinará como manejará a ansiedade ante o “não-ser”. Para os antigos gregos, por exemplo, ser é estrutura, forma, autoconsistência, identidade, ordem. O não-ser então é o devir, a mudança, a corrupção, a desordem. Antonio Millan Puelles resumiu brilhantemente a coisificação do não-ser em uma frase genial: El no ser es aqui, no la falta de forma, sino la forma del faltar. A ansiedade grega é conquistada pelo amor grego à ordem. Os gregos nunca questionaram o ser enquanto tal porque nunca lhes havia ocorrido a ideia de que o cosmos fosse uma dádiva de Deus e que, portanto, poderia o ser não ser.

Wilhelmsen acredita refutar, ou ao menos responder, à ideia do não-ser com um raciocínio simples. O universo do ser é simplesmente porque Deus o causou. Por que Deus o causou? Porque Ele quis. Por que Ele quis? A pergunta não admite resposta porque se perde no mistério da liberdade divina. Não há uma “razão” para Deus querer, mas algo que transcende todas as razões: o amor. Há o ser e não o nada porque há o amor. O amor não é uma razão, mas é uma causa. A criação não é uma dádiva de Deus para nós; nós somos a dádiva.

A pergunta não é, portanto, por que há o ser e não antes o nada, mas por que todos esses “nadas” ontológicos estão exercendo o ato de ser? Somos ontologicamente pobres, somos radicalmente insuficientes. A alternativa à ansiedade do “não-ser” de um mundo criado por Jesus Cristo é uma só: gratidão.

O fundamento do poder do ser contra as forças da corrupção e do nada é o amor a si mesmo. Quando amo a mim mesmo eu amo todo o ser do qual eu sou uma parte. Ao amar o todo eu amo a mim mesmo. O homem é, e ao mesmo tempo não é, o todo no qual participa – esse todo é evidentemente o ser –, mas o homem somente participa no ser ao abrir-se à realidade de sua totalidade. Amar a si mesmo é amar o próximo porque o amor a si mesmo é o próprio ser do homem. Um ato cujo término é o próximo ama seu término ao amar a si mesmo e ama a si mesmo ao amar seu término. Em suma, amar a si mesmo é amar o próximo.

Abrir-se de si mesmo e acolher o próximo. Que tolo paradoxo: ganhamos nossa alma ao tirá-la fora. O verdadeiro amor é tolo, afinal, mas eis a herança que compete à raça humana. Ao invés de fugir dela, melhor abraçá-la.

Fonte: Frederick Wilhelmsen, The Metaphysics of Love, Angelico Press, Brooklyn, NY, EUA, 2022.

24 de agosto de 2023

Evolução mística


O teólogo e sacerdote espanhol Juan Arintero influenciou de maneira importante a teologia católica do início do século XX ao reunir em uma série de livros e ensaios os ensinamentos místicos dos santos da Igreja. Uma de suas queixas, que aliás se aplicam igualmente ao ambiente ortodoxo, é de que a vida religiosa e paroquial perde o sentido se não estiver conectada à vida místico-espiritual. A ideia de que a vida mística é exclusiva daqueles que estão vocacionados para ela equivale a dizer que há homens e mulheres que não estão vocacionados a serem humanos. O objetivo da vida humana é a união com Deus, e tal união não é algo que o ser humano tenha o direito de não querer.

Anotei aqui apenas os aspectos que considero convenientes e úteis à minha vida e aos meus estudos, mesmo porque há uma série de aspectos que, não sem surpresa, se assemelham ao que é ensinado na Igreja Ortodoxa, mas o leitor não fará mal em aprofundar-se na obra deste dedicado sacerdote e amante da vida mística. Ademais, por se tratar de descrições e classificações de experiências místicas, a linguagem empregada frequentemente se assemelha à linguagem poética, uma vez que os referentes àquilo que está sendo dito estão em um plano para além do plano que operamos deste lado da realidade.

Na sua obra mais famosa, Arintero explica que a expressão evolução mística significa o progresso da vida da graça no homem. É quando se forma em nós o próprio Cristo. Mas há duas sendas na vida espiritual: (1) a vida ascética da união conformativa, vivida um tanto inconscientemente, na qual a imensa maioria dos fiéis ao mortificarem as paixões e exercitarem metodicamente as virtudes e práticas piedosas procura adquirir moralmente algum tipo de contemplação e, com o tempo, suas almas começam a sentir os toques do Espírito (embora não os sinta como sobrenaturais), e (2) a vida mística da união transformativa, guiada pelo próprio Espírito, que habita substancialmente (e não apenas acidentalmente, como no caso das virtudes e ciências) a alma ao moldar o caráter por fora e por dentro, penetrando até o mais intimo do coração, estabelecendo uma relação não moral, mas ontológica, com o fiel.

A revelação divina nos faz ver como a vida intima de Deus não é a de um Deus uno e solitário, típico do Deus encontrado pelos filósofos, o Deus absoluto, o “Ser Supremo”, o Deus da unidade nas obras da criação, mas um Deus trino. O Deus dos filósofos é aquele que encontramos com base nas simples e naturais relações de causalidade na criação, mas o Deus vivo é aquele que encontramos nas sobrenaturais relações de amizade cordial, pois supõe uma verdadeira semelhança. Por isso dizia Santa Teresa de Ávila que os livros demasiadamente “concertados” (combinados, encadeados, “lógicos”) a repugnavam e até lhe faziam perder a devoção, pois o excesso de abstração faz com que percamos de vista o todo real e vivente que somos.

Arintero lança mão do termo “graça criada” para explicar a ação do Espírito na vida humana, mas cabe lembrar que tal expressão serve apenas para diferenciar a graça do próprio Espírito. Parece-me algo semelhante à distinção entre “essência” e “energia”, ambas incriadas, típica da teologia ortodoxa. Arintero parece admitir que qualificar tal graça de “criada” pode trazer problemas de interpretação, assim que explicaque o melhor seria chamá-la de “graça participada” enquanto o Espírito é a “graça em si”.

Ademais, quanto às virtudes, Arintero as classifica como “naturais” (ou seja, adquiridas) e “infusas” (ou seja, inspiradas, comunicadas gratuitamente, emprestadas). As virtudes cardeais são tanto naturais quanto infusas. As virtudes teologais e os dons do Espírito, apenas infusas. Da união das virtudes com o exercício dos dons do Espírito resultam os frutos do Espírito, entre as quais, as bem-aventuranças.

Arintero detalha as virtudes, os dons, os frutos, a “noite escura” pela qual perpassam os santos a caminho da contemplação divina. Há três graus de contemplação: (1) a breve oração de recolhimento (infusa, muito superior à oração adquirida com esforços e diligência humana), na qual não há meditação, nem raciocínio, mas apenas um simples e tranquilo olhar contemplativo, (2) a longa oração de quietude, na qual, além do entendimento, a vontade se torna cativa ao Espírito, (3) oração de união, na qual a alma é introduzida na “câmara régia” e todas as suas energias se encontram unidas a Ele. Arintero belamente assim a descreve:

Às vezes, o uso dos sentidos externos não é completamente perdido; Estes, principalmente no início, funcionam um pouco, embora com dificuldade, fazendo com que o que está sendo falado ou cantado de perto seja ouvido como à distância, e todos os objetos sejam percebidos como muito confusos. Os poderes internos também não estão perdidos, mas apenas como se estivessem adormecidos para tudo o que está fora; porque, estando a alma assim, completamente absorta em Deus, ainda não tem forças suficientes para se ocupar com as coisas externas ao mesmo tempo. E se a caridade ou a obediência a compelem, enquanto durar esse doce cativeiro, deve ser praticada uma violência tão extrema - que faz com que muitos derramem sangue pela boca - causando-lhes não pouco dano; e mesmo assim, a maioria deles, para prestar atenção ao que está fora, tem que se soltar na atenção interna que os absorveu. Tudo o que eles virem lhes causará tédio e desgosto, e tudo parecerá estranho e como nunca visto antes. Já são habitantes do céu e concidadãos dos santos e, vendo as belezas celestiais, consideram vil tudo neste mundo, e não podem deixar de lamentar ao verem como se prolonga o seu exílio, onde se julgam estrangeiros e peregrinos. E, verdadeiramente, tais almas encontram-se exiladas entre pessoas ferozes, que as obrigam a zelar por si mesmas para não caírem nas suas armadilhas e não se perderem ou correrem o risco de perder os seus ricos tesouros.

Fonte: Juan Arintero, Evolución Mística, Editorial San Esteban, Salamanca, Espanha, 1989.

16 de agosto de 2023

Elementos de psicologia das emoções: Santo Tomás de Aquino vs. René Descartes


A psicologia do século XX só pode ser entendida investigando as raízes anteriores à formação da psicologia científica por Wilhelm Wundt (1832-1920). Estas raízes fundam-se em duas figuras: René Descartes (século XVII) e Santo Tomás de Aquino (século XIII). A concepção das emoções em última instância deriva de uma dessas duas versões clássicas: cartesiana ou tomista.

Tomismo

Santo Tomás baseia-se especialmente nos ensinamentos de Aristóteles presentes (mas não só) em sua Retórica. Seu Tratado das Paixões encontra-se na Suma Teológica, embora não seja somente aí que ele versa sobre o tema. Embora as paixões (emoções) tenham uma dimensão médica (física), Santo Tomás está mais preocupado com sua dimensão moral (espiritual).

As paixões são movimentos, ou seja, são atos transitórios, estados passageiros. São o contrario das disposições estáveis, como os hábitos (vícios e virtudes). Tais atos são produto de potências, também chamadas “faculdades”, humanas, chamadas de apetites. Assim como entender é o ato da inteligência, assim como recordar é o ato da memória, assim como imaginar é o ato da imaginação, a paixão é o ato do apetite. A partir do início do século XIX deixou-se de pensar nas emoções como atos que procedem de uma faculdade.

Os apetites fazem referência a um bem ou mal. Os apetites portanto podem ser por atração (por um bem) e por repulsão (por um mal).

Santo Tomás ensina que há duas ordens de apetite: o apetite sensitivo e o apetite intelectivo (ou vontade). O apetite intelectivo (vontade) tende ao bem tal como o capta a inteligência, ou seja, de maneira universal – não este ou aquele bem, mas o bem enquanto tal. O apetite sensitivo tende ao bem tal como o capta o sentido, ou seja, de maneira particular.

Quanto ao apetite sensitivo, há dois tipos: o apetite concupiscível (ou desejo) e o apetite irascível (ou assertividade).  O apetite concupiscível tende ao bem prazeroso, enquanto o apetite irascível tende ao bem difícil, árduo, ou seja, o sentido capta a coisa como repulsiva, mas o apetite irascível impulsa o homem a tender ao desagradável (por isso “difícil”). O sentido que capta a coisa é o sentido interno, chamado também de estimativa (cf. A cosmovisão medieval, de C. S. Lewis), que capta significados particulares (não conceitos universais). A estimativa é a dimensão que ativa as paixões (emoções).

A paixão, para Santo Tomás, é psicossomática, ou seja, não é espiritual, mas corporal, e tem uma forma e uma matéria. Por exemplo, materialmente a ira seria o fervor do sangue no coração, enquanto formalmente é a vingança.

O gênero da paixão é determinado por seu objeto, ou seja, se é um bem ou mal. Vejamos como as principais se dividem:


Cartesianismo

Descartes sustenta uma visão de mundo dualista e isso evidentemente afetará de maneira decisiva a psicologia das emoções. As paixões (que passam a ser chamadas por Descartes de “emoções” ou “sentimentos”) são algo da alma, não do corpo. Isso porque o corpo, como ente material, é dotado exclusivamente de quantidade, e tudo o que é qualitativo é necessariamente mental.

Talvez o aspecto mais importante em Descartes seja o início da perda paulatina da ideia de que as emoções sejam apetitivas. Em outras palavras, para Descartes as emoções são apenas e tão-somente sensações de modificações corporais. A emoção deixa de ser um afeto e passa a ser uma sensação. É claro, e isso não se pode negar, que notamos na emoção certas comoções corporais: nó na garganta, palpitações, rubor, respiração ofegante etc. Ora, mas o que causa essas comoções? Descartes acredita que ambas as coisas, as emoções e as comoções corporais, são idênticas. As emoções perdem seu caráter de tendência a um bem (ou de aversão ante um mal) e são reduzidas a estados afetivos corporais. Sentir uma emoção é sentir seu corpo.

Na moral clássica há um conflito a ser harmonizado entre a parte sensitiva e a parte intelectiva, enquanto que na moral moderna há um conflito a ser harmonizado entre a mente e o corpo. Em termos gerais, ao longo dos séculos subsequentes, diversas teorias psicológicas foram desenvolvidas para explicar as emoções, mas que se enquadram na visão de Descartes: James-Lange, Cannon-Bird, Schachter-Singer, Antonio Damasio etc.

Magda Arnold

Essa psicóloga tcheca se inspira na doutrina das paixões de Santo Tomás e a atualiza com os avanços biológicos e fisiológicos disponíveis na metade do século XX. Ela é responsável por um giro cognitivo na psicologia das emoções.

Para Arnold, sentimentos são níveis baixos de afetividade, nos quais basicamente se distinguem sentimentos de agrado e desagrado. Por outro lado, as emoções seriam níveis mais elevados de afetividade e nas quais se interpõem cognições (ela as chama de appraisals, ou avaliações). Estas cognições não são juízos intelectuais propriamente, mas um juízo sensorial, algo muito mais imediato, quase instantâneo, que se soma à percepção sensitiva. É equivalente ao sentido da estimativa de Santo Tomás e que para os homens e animais lhes dá o juízo de bondade ou maldade de um objeto. A emoção é portanto uma realidade psicossomática. O juízo sensorial, ou seja, o appraisal, é como um detector formal do objeto. Santo Tomás acrescentaria que o appraisal não é um elemento determinante da conduta, mas a ele acrescenta-se também a vontade. O homem pode escolher motivar-se de acordo com as emoções/appraisals, mas também escolher de acordo com a vontade.

Ela desenvolve uma teoria das emoções notoriamente inspirada em Santo Tomás:


Fonte: Martín Echavarría, Las pasiones humanas, conferência proferida na Universidad de Valencia, Valencia, Espanha, 2020.

9 de agosto de 2023

A existência não existe: a estrutura paradoxal da existência


A tese central do filósofo americano Frederick Wilhelmsen é a de que a existência não existe. Ela carece de uma estrutura e, portanto, não pode ser afirmada nem negada. Por isso Wilhelmsen propõe algo como uma “metafísica transdialética”, paradoxal, barroca, uma metafísica que, nas suas palavras, não seja “covarde”, mas “cavalheiresca”. Veremos como ele chega lá, mas antes é preciso que retomemos o desenvolvimento de alguns conceitos metafísicos fundamentais da Antiguidade e da Idade Média.

Parmênides Heráclito Platão Aristóteles Avicena Averróis Santo Tomás de Aquino

Parmênides provavelmente foi o primeiro filósofo pré-socrático que sacrificou o múltiplo, ou seja, o mundo conhecido da sensação. Ele substantivou o “é” verbal, típico do mundo da intuição sensível, e o transformou em um “Ser”. Assim, o “é” se converte no Uno, Imutável, Incausado, Infinito etc. Heráclito, por outro lado, insistiu em negar qualquer vínculo entre o ser e a realidade sensível. Ele concordava que a inteligência unifica e apresenta a realidade como algo que “é”, mas negou que esse fator fosse extramental. Em outras palavras, para Heráclito o Ser é uma mentira e o mundo real é composto de mudanças constantes.

A filosofia de Platão representa um esforço para equilibrar as tensões do ser descobertas por Heráclito e Parmênides. Para Platão, ser significa “ser igual a si mesmo”, ou seja, o ser platônico é isso que já é, o conseguido, o finalizado, o feito. Ortega y Gasset não deixa de apontar em Platão a velha tendência grega a interpretar a realidade como presença. De qualquer forma, quando constitui o ser como “mesmidade”, Platão indica que, apesar do fenômeno da mudança, o ser permanece em seu estado puro na forma. Este celular que tenho em mãos sofre mudanças constantemente, seja de posição, seja de alguma qualidade (cor etc.), seja sua constituição material, mas ele continua sendo “si mesmo”. Houve uma mudança de forma (preto para vermelho, por exemplo), mas o celular continua sendo “si mesmo”. Ora, se o ser é “mesmidade”, então o ser se encontra em estado puro somente dentro da mente. As ideias ou formas do ser não mudam. O ser nas coisas muda, suas formas não. Os homens vêm e vão, as coisas belas se apresentam ao mundo e logo morrem, mas as ideias de humanidade e beleza permanecem idênticas. As formas estão “localizadas”, digamos assim, na inteligência humana, que as capta em sua pureza. Para o homem vulgar, a realidade é apenas e tão-somente aquilo que afeta os sentidos e paixões. Para o homem inteligente, há uma diferença entre realidade e ilusão. Platão ensina que o mundo sensível “participa” na inteligibilidade do mundo das ideias ou formas. As coisas são apenas “exemplos” imperfeitos e imaturos das formas do ser. As formas existem, ou seja, se “exibem”, como ensinou Mário Ferreira, mas não existem “em absoluto”, ou seja, não são ser. Destruir a forma implica, portanto, em destruir o mundo dos entes e simultaneamente assassinar a inteligência.

No entanto, Aristóteles “localizou” a relação forma-coisas de outra maneira. Platão, como vimos, pensou essa relação como se originando na mente e terminando nas coisas. Para o Estagirita, no entanto, as formas são descobertas no mundo das coisas juntamente com suas próprias configurações. Em outras palavras, Aristóteles nega o “mundo duplicado” de Platão e nega, portanto, que haja um ser fora das coisas. Ademais, Platão, como vimos, entendia a mudança como uma substituição de uma forma por outra. Aristóteles não via assim: para ele, a mudança contém um “princípio” ou “elemento” que, como bem sabemos, se chama “potência” (ou às vezes “potencialidade”). Ele descobriu uma primeira potência radical que está presente em todas as coisas suscetíveis a mudança: o “princípio de não-ser relativo” (qualquer coisa que é pode deixar de ser) ou “infinitude” (qualquer coisa é potencialmente qualquer outra coisa). Trata-se da famosa “matéria prima” aristotélica. É a matéria prima que impede que tudo aconteça ao mesmo tempo e simultaneamente permite que as coisas possam “acontecer”. A matéria prima é o princípio do tempo, portanto. Por outro lado, para Aristóteles a forma é uma limitação estrutural, ou determinação ativa, da coisa. É o que uma coisa é agora. É a famosa atualidade. As formas são, portanto, os atos da matéria, são os princípios que energizam e especificam a matéria, determinando-a desta ou daquela maneira. A essas duas “causas internas” (matéria e forma), Aristóteles acrescentou outras duas “causas externas” (o agente e a finalidade), que, juntas, compõem a natureza. A natureza e as quatro causas são uma e mesma coisa. A realidade é causalidade. Os erros filosóficos são erros sobre as causas.

Há, no entanto, atos que não são finalizados ou realizados. Os exemplos simples de potência e ato que explicam as mudanças cotidianas, como uma parede que antes era branca e agora é vermelha ou um animal que se move numa floresta, não são capazes de explicar os “atos vitais”, ou seja, ações como pensar, contemplar, imaginar, conhecer, amar etc. Posso pensar em “x” e continuar pensando em “x” indefinidamente, assim como posso amar “y” e continuar amando “y” indefinidamente etc. Nas mudanças estritamente falando, nas mudanças simples, há um presente que tem um passado. Nos atos vitais, o “processo” se identifica com o próprio ato; não há propriamente um ato que emane de uma potência. Em suma: à mudança estrita chamamos enteléquia, à mudança ampla imanente chamamos energia. Wilhelmsen aponta que Aristóteles fracassou ao insistir que o ato formal se esgota na matéria, ou seja, na ordem do ser o ato formal não desempenha nenhuma atividade “para o ser mesmo”. É como se a transcendência aristotélica estivesse “encurtada”, algo com uma “transcendência material”.

Se para Platão ser significa forma, para Aristóteles ser significa substância, ou seja, a raiz ou base do ser. É a substância (ou forma substancial) que faz a coisa ser o que é e fazer o que faz. A forma, para Aristóteles, simplesmente não existe. Ele nega ostensivamente que a forma seja o principio ontológico do que quer que seja. Muito bem, mas essa constatação nos impõe um dilema: se o ser só existe nas coisas compostas, ou seja, o principio do ser não está nem na matéria nem na forma, mas essas coisas compostas só existem através da matéria e da forma, então como essas coisas compostas podem ser ou existir através de matéria e forma que não são nada em absoluto? Em poucas palavras, as coisas compostas têm ser através de forma e matéria que, por sua vez, não têm ser nenhum. Ortega não deixa de observar que o Deus aristotélico é um “filósofo que se admira a si mesmo no espelho”. Não faz nada, não governa, não age.

Ora, no mundo islâmico o pensamento platônico e aristotélico foi mais bem preservado, e foi no âmbito do Islã que houve certo desenvolvimento de suas descobertas. Avicena concluiu que se o “cavalo em si” (ele gostava desse exemplo) existe tanto neste cavalo individual quanto no “cavalo universal”, então o “cavalo em si” não é nem o existente individual nem o existente universal. O “cavalo em si” não pode estar em dois “lugares” ao mesmo tempo. Avicena deduziu uma distinção entre o principio de essência (natureza) e o principio de ser (existência). Em outras palavras, essência e existência são realmente distintas e, além disso, são distintas dos universais. Há um “terceiro elemento” que pode ser compartilhado tanto pela existência quanto pelos universais. Trata-se da essência (natureza), que em seu estado puro é pura possibilidade de ser em alguma ordem, seja ela individual ou universal. Portanto, o possível é anterior ao atual e, consequentemente, a existência é um acidente da essência (natureza). Nas palavras de Avicena, a existência “lhe ocorre” à essência (natureza). Enquanto para Aristóteles os acidentes se derivam do ser, para Avicena o próprio ser também é um acidente da essência (natureza). Deus confere às essências puras o acidente da existência (ser) e, de certa forma, a essência desempenha um papel prévio e mais primordial do que a existência. Ou seja, as coisas são antes de serem, digamos, e assim a liberdade divina e a liberdade humana se convertem em um mito ou superstição. A existência é “esvaziada” de importância, pois ele é mero prolongamento da possibilidade. À moda de Leibnitz, os “predicados” estão contidos na “mônada”. Xavier Zubiri não poderia estar mais de acordo: a realidade é algo mais fundamental que o ser ou a existência.

Averróis nota que se a existência é um acidente, se o ser pertence à ordem acidental, então a existência tem de “funcionar” da mesma maneira que os demais acidentes “funcionam”. Ora, o ser (existência) não é substância, nem quantidade, nem qualidade, nem nenhuma categoria. Portanto, o ser nada é realmente. Absolutamente nada real, nenhuma coisa real, existe. É necessária uma metafísica que contorne esse absurdo, que veja o ser (existência) como um princípio último do real, mas que de forma alguma se identifique com o real.

Aqui entra um aspecto sobre o próprio exercício da metafísica como atividade intelectual. Wilhelmsen nota que tradicionalmente, como o fazem modernamente Étienne Gilson e outros tomistas, a metafísica é considerada como uma atividade pertencente à segunda operação da mente, ou seja, ao ato de julgar. Isso significa que o ser, a exemplo de quaisquer coisas, é tratado pela mente como algo que se “vê” ou que se “presencia”, isto é, como algo que você pode vislumbrar detidamente. Wilhelmsen, a exemplo de Mário Ferreira dos Santos, discorda: a metafísica é mais bem uma atividade da terceira operação da mente, ou seja, ao ato de arrazoar. O julgamento jamais alcançará a existência, pois a existência não é um “ser isto ou aquilo”. O ser não é um objeto que possa ser pensado pela inteligência humana. O intelecto deve portanto arrazoar sobre o ser como o “é”, e jamais converter esse “é” a um objeto. Parece-me que Wilhelmsen propõe que a metafísica parta sempre de raciocínios ontológicos em lugar de raciocínios lógicos. É como se a metafísica tivesse que contentar-se com a obscuridade, algo semelhante à obscuridade de que falam os místicos. Nas palavras de Wilhelmsen, “[a metafísica] não alcança sua glória, mas se mostra orgulhosa por haver sido fiel à luz da inteligência”.

Bem, retomando o que ensinou Avicena, a essência (natureza) goza de três funções ontológicas: (1) essência do mundo, no qual existe individualmente, (2) essência na mente, na qual existe universalmente e (3) essência como essência. Mas, segundo Santo Tomás de Aquino, a função (3), essência pura, é uma ficção. É algo que você pode cogitar, que você pode pensar, mas não é algo que você possa cortar (cindir, como diria Santo Tomás) do ser, sob pena de reduzir a essência ao não-ser, ao zero, ao nada. Ele conclui que o ser (existência) é o princípio metafísico mais importante, que engloba a essência sem identificar-se com ela. O “ser” não pode ser definido porque se situa fora da ordem das definições. A definição é o que pensamos de uma coisa e responde à determinação da própria coisa, de sua estrutura, e encontra-se arraigada na forma. Mas o “é” não pode ser concebido porque não é nem tem estrutura ou forma.

Ora, embora a existência englobe a essência, deve haver entre elas uma relação única e radical. Daí Santo Tomás lança mão do conceito de “ente”. Ente é em português o particípio presente de ser, assim como “temente” é particípio de “temer”. Ente indica a atividade de existir, assim como temente indica a atividade de temer. É quase um gerúndio, que também desempenha funções semelhantes a um particípio presente. Se todos os entes, todos os “sendos”, são determinados, é impossível que eles retroativamente determinem o próprio ser, a própria existência. Se a determinação do ser não pode vir de fora dele, então forçosamente terá de vir de dentro. O ser transcende a forma e a matéria, mas mostra-se racionalmente como núcleo transcendente de tudo o que é.

A estrutura paradoxal da existência

O ser ou a existência é, portanto, uma extramentalidade radical. Em outras palavras, a existência não pode ser concebida nem experienciada pelo homem e, portanto, está enraizada de maneira totalmente externa à mente humana. É como e a existência portasse um princípio de não-identidade com a natureza (essência). Enquanto os objetos são como que “lançados” à inteligência e à sensibilidade, a existência nunca é dada, nunca “está aí”, nunca é lançada. Assim, a essência ou natureza é o que Wilhelmsen chama de ordem analítica da causalidade, isto é, as causas aristotélicas são a base da análise científica. Uma análise perfeita, portanto, é a resolução de determinada realidade em suas quatro causas.

No entanto, quando uma análise se separa da função sintética da existência ocorre uma “fragmentação”. É o que aconteceu na era racionalista, inaugurada por Descartes e potencializada por Gutenberg, uma vez que a realidade foi dissecada em um mosaico de ideias modeladas por palavras impressas em livros. O prejuízo filosófico foi enorme. A unidade de compreensão humana do real perdeu-se em meio à fragmentação da vida: econômico vs. lúdico, sacro vs. profano, alta cultura vs. cultura popular etc. A máquina é uma espécie de arquétipo da mente analítica que se projeta no real. A análise, divorciada da síntese, engendra uma hostilidade à unidade do ser e, por que não dizer, à paz do ser.

Wilhelmsen mostra que toda operação analítica perde “algo”. Não importa se a analise é perfeitíssima: “algo” sempre desaparece. O homem apaixonado por uma mulher, ao enumerar suas qualidades, perderá “algo” necessariamente. Esse “algo” não é nada em concreto. É apenas e tão-somente o “ser” do analisado. O ato de existir transcende a ordem analítica. Em termos estéticos, o esse (ser) é barroco puro, ou seja, não se reduz à mera soma da assombrosa complexidade de materiais, sintetizando uma pluralidade de essências díspares. O ser é um catalisador da natureza, das essências. Em termos práticos, não há sinfonia, poema, crise moral ou intuição criativa que se explique pela conjunção de suas causas.

O filósofo que assim procede, ou seja, o filósofo que é capaz de entender que o “é” da existência não se apresenta, não se presencia, no real como um objeto, intui o que Wilhelmsen chama de transcendência negativa. Em outras palavras, a existência não existe, ou ainda, a existência não existe da maneira como a projeção dinâmica das essências no tempo existe. Se pudéssemos criar uma imagem da existência, seria algo como o vento que empurra um barco à vela. O vento não está onde estava e não pode ser visto, mas o barco navega alegremente. Assim também o Espírito preenche todas as coisas, mas não se identifica com nenhuma delas.

Vale a pena repetir: o ato de existir nem é nem não é. Se eu afirmo que a atividade existencial é, então a reduzo a uma coisa dotada ela mesma de existência. Se eu afirmo que a atividade existencial não é, então reduzo a coisa a um inexistente. O ser é formalmente sua própria contradição. O ser denota sua identidade com o não-ser.

A dificuldade em aceitarmos a estrutura paradoxal da existência está no fato de que abordamos a existência do ponto de vista dialético, ou seja, identificamos uma tensão entre opostos e a partir daí queremos contradizê-los para buscar uma unidade superior. O pensador dialético é um sujeito obcecado com a tensão, mas é incapaz de viver dentro dela. O paradoxo, no entanto, alcança a tensão e a mantém. O filósofo digno desse nome rejeita afirmar ou negar a atividade existencial e filosofa dentro da tensão. Esse filósofo força-se a concluir que a existência não é essência nem não é essência. O esse (ser) da coisa é algo que não pode ser assimilado intencionalmente (quanto à esfera intencional da realidade cf. Dicionário Filosófico de Mortimer Adler, verbete SER). Wilhelmsen belamente afirma que:

Eu transcendo afirmativamente na fé fusionando-me com o Deus da Revelação mediante a graça, e transcendo negativamente na metafísica negando que o esse é natureza. [...] Por natureza, as coisas são não-entes. Todos nós somos nadas vindos ao ser, mas ainda que tenhamos sido feitos para ser, a existência não se arraiga em nós. A existência não se assenta na natureza da mesma maneira que as sementes se assentam na terra lavrada onde crescem e se convertem em parte do campo.

Com isso, Wilhelmsen quer dizer que não há identidade metafísica entre a existência e a natureza. Trata-se de uma verdade “extremamente radical”.

A metafísica mal-assombrada pelo nada

O fato de o pensamento metafísico dos últimos séculos ter situado o ser ou existência no nível da essência ou natureza detonou profundos efeitos na filosofia e na cultura. Em especial, embora não só, a filosofia existencialista é um sintoma dessa doença. O nada, que de certa forma sempre se encontrou sob a realidade passa agora a brotar de dentro do ser.

Heidegger foi quem melhor expressou essa intuição ao interrogar-se por que existe o ser e não antes o nada. Observe que para Heidegger o nada é uma função do ser. Se não há o ser, então haveria, ou resultaria, o nada. Aqui notamos uma espécie de fracasso da essência para o homem. Sim, pois se Wilhelmsen tem razão ao afirmar que a essência ou natureza só é inteligível se a distinguimos do ser ou existência, então a pergunta de Heidegger simplesmente não faz sentido. Foi essa distinção ontológica que permitiu ao Ocidente desenvolver o mundo natural, que soltou as amarras do desenvolvimento científico e tecnológico antes preso à confusão entre natural e metafísico, entre ser e essência. Mas o homem que se contenta em ver a natureza única e exclusivamente como essência se arrisca a ser ameaçado pelo nada. É como se o homem contemporâneo tivesse resvalado ao velho entendimento de outras civilizações segundo o qual ser existência e essências são uma e mesma coisa. O próprio desenvolvimento tecnológico e científico tomou as rédeas da civilização ocidental e, para continuar exercendo sua hegemonia, não pode permitir que o ser se reintroduza na ordem da essência e, portanto, o afoga no mar do esquecimento. O cansaço e o tédio do homem contemporâneo é resultado não do progresso em si, mas desse afogamento do ser, desse esquecimento ditatorial do ser em prol do próprio progresso científico e tecnológico. Portanto, a pergunta de Heidegger não é uma pergunta efetivamente, mas um sintoma do esquecimento do homem contemporâneo a respeito do ser. Ele perdeu, digamos, a “densidade existencial” das coisas. É claro que o desenvolvimento das matemáticas e da ciência moderna exige que o ser seja isolado. Mas isolá-lo é uma coisa, esquecê-lo por completo é outra. Perguntar sobre o não-ser (nada) é algo que só pode ocorrer a quem tome a natureza como ponto de partida. Como descobriu Santo Tomás de Aquino, o ser abarca a essência, mas a essência não inclui o ser. Se o homem contemporâneo insistir em não ir além da essência, se insistir em não transcendê-la novamente, se afogará na angústia. E a resposta para essa angústia é uma só: Deus.

Há, confirme Norberto del Prado, uma não-identidade radical entre os entes – ou seja, uma mesma árvore não é idêntica a uma outra árvore, mas é sim idêntica a si mesma – e uma identidade do ser em Deus. Em outras palavras, no plano das essências há uma dualidade mesmo-outro (mesma árvore, outra árvore), mas no plano da existência há apenas identidade e não-identidade (é árvore, não é árvore). Quando Heidegger substitui o ser pelo nada, trata o nada como uma alteridade do ser, como se ser e nada fossem o “mesmo” e o “outro” típico dos entes na natureza. O que o juízo afirma é apenas e tão-somente que a árvore é. O juízo não afirma que o ser da árvore exista. O ser da árvore não é um dado da experiência humana, não é algo do qual tenhamos experiência cognitiva. A existência, novamente, é uma realidade extramental, ela não é nem não é, ela escapa da ordem do “dado” e da objetividade. A existência não pode ser contradita, no sentido de que não pode ser oposta ou dualizada. Não se trata aqui de negar a existência, mas de negar a existência da existência.

Wilhelmsen acredita que a inserção do “não-ser” no ser é consequência de uma teologia protestante dialética.

Pessoa vs. natureza

Uma distinção entre indivíduo e pessoa se faz notar em função da “localização” do ser na existência ou na essência. Se Cristo é verdadeiramente uma pessoa que subsiste em duas naturezas, então existe de algum modo uma distinção entre pessoa e natureza. Wilhelmsen nota que a Cristandade tende a situar a personalidade dentro da estrutura do ser, consequentemente a natureza situa-se na ordem da essência, o que a desveste do caráter divino que lhe havia outorgado o pensamento clássico. Não sou eu que estou “a serviço” da natureza, mas é a natureza que está a meu serviço.

Afinal, quem sou eu? Este “quem” não é apenas a soma de tudo o que é, mas há um “plus” ou “excesso”, que é o ato de existir. A personalidade humana só existe dentro de sua fonte, que é Deus. Ela só existe em Deu, o esse da pessoa é de Deus, embora não seja, claro, o Esse de Deus. Ora, se Deus é a Identidade da existência, então Ele também é a Identidade da personalidade humana. O futuro da personalidade humana não depende exclusivamente do futuro impessoal, ou seja, do conjunto de fatores causais já dados em potência a ser atualizado. Em outras palavras, o futuro pessoal não se reduz à dimensão material da natureza humana, ou seja, a liberdade pessoal transcende a determinação inscrita na ordem da natureza. Meu futuro, portanto, está em Cristo. É nEle que serei conhecido, é nEle que me encontrarei em plenitude. Minha identidade em Cristo é o pleno retorno de meu ser a sua fonte.

Fonte: Frederick Wilhelmsen, The Paradoxical Structure of Existence, Routledge, Nova York, NY, EUA, 2015.

17 de julho de 2023

Mais insights estoicos


Aprender a morrer, de acordo com os estoicos, é desaprender a ser escravo.

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Sócrates costumava dizer que a morte é como alguém que brinca usando uma máscara assustadora, vestida de bicho-papão para assustar as crianças pequenas. O sábio remove cuidadosamente a máscara e, olhando-a de frente, não encontra nada que valha a pena temer.

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Uma vez que realmente aceitamos nosso próprio fim como um fato inevitável da vida, faz tão pouco sentido desejar a imortalidade como desejar corpos tão duros quanto diamante ou poder voar nas asas de um pássaro. [...] Como a morte está entre as coisas mais certas da vida, para um homem sábio, ela deve estar entre as menos temidas.

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Os estudos abrangentes de Zenão o convenceram de que disciplinas intelectuais como lógica e metafísica poderiam contribuir potencialmente para o desenvolvimento de nosso caráter moral. Zenão estabeleceu um currículo para o estoicismo dividido em três tópicos abrangentes: ética, lógica e física (que inclui metafísica e teologia).

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Os estoicos adotaram a divisão socrática das virtudes cardeais em sabedoria, justiça, coragem e moderação. As outras três virtudes podem ser entendidas como a sabedoria sendo aplicada às nossas ações em diferentes áreas da vida. A justiça é a sabedoria aplicada à esfera social, no nosso relacionamento com outras pessoas. Mostrar coragem e moderação significa dominar nossos medos e desejos, respectivamente, superando o que os estoicos chamavam de “paixões”. [...] Como Sócrates havia dito anteriormente, as vantagens externas na vida só são boas se soubermos usá-las com sabedoria. No entanto, se algo pode ser usado para o bem ou para o mal, não pode ser realmente bom em si mesmo, portanto, deve ser classificado como “indiferente” ou neutro. Os estoicos diriam que coisas como saúde, riqueza e reputação são, no máximo, vantagens ou oportunidades, em vez de serem coisas boas por si sós. As vantagens sociais, materiais e físicas, na verdade, trazem aos indivíduos tolos mais oportunidades de prejudicar a si mesmos e aos outros. [...] O sábio estoico, ou o homem sensato, não precisa de nada, mas usa tudo para o bem; o tolo acredita que “precisa” de inúmeras coisas, mas as utiliza para o mal.

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Marco aprendeu que os estoicos acreditavam que havia um relacionamento entre o verdadeiro amor à sabedoria e uma maior capacidade de resiliência emocional. Sua filosofia continha em si uma terapia moral e psicológica (therapeia) para mentes perturbadas pela raiva, medo, tristeza e desejos doentios. Eles chamaram o objetivo dessa terapia de apatheia, que não significa apatia, mas liberdade em relação aos desejos e emoções prejudiciais (paixões). Dizer que Apolônio ensinou a filosofia estoica a Marco é, portanto, também dizer que o treinou para desenvolver resiliência mental por meio de uma forma antiga de psicoterapia e autoaperfeiçoamento, às vezes descrita como a “terapia das paixões”.

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Epicteto dizia a seus alunos que os fundadores do estoicismo distinguiam entre dois estágios de resposta a qualquer evento, incluindo situações ameaçadoras. Primeiro vêm as impressões inicias (fantasia), que são impostas involuntariamente à nossas mentes pelo que nos cerca, quando somos inicialmente expostos a um evento como a tempestade no mar. [...] Até mesmo a mente de um perfeito sábio estoico será inicialmente abalada por choques abruptos desse tipo, e ele se afastará instintivamente, tomado pelo medo. Essa reação é fruto não de um julgamento de valor incorreto a respeito dos perigos enfrentados, mas de um reflexo emocional que surge em seu corpo, que ignora temporariamente a razão. [...] Por outro lado, a capacidade humana de pensar pode fazer com que perpetuemos nossas preocupações além desses limites naturais. A razão, nossa maior bênção, também é a nossa maior maldição. No segundo estágio de resposta, os estoicos dizem que geralmente adicionamos julgamentos voluntários de “consentimento” (sunkatatheseis) a essas primeiras impressões automáticas. Aqui, a resposta do sábio estoico difere daquela apresentada pela maioria das pessoas. Ele não se deixa levar pelas reações emocionais iniciais a uma situação que tenha invadido sua mente. Epicteto afirma que o estoico não deve consentir ou confirmar essas primeiras impressões, tais como a ansiedade diante do perigo. Em vez disso, ele as rejeita como sendo um engano, analisa-as com indiferença, abandonando-as.

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Sêneca também observou que certos infortúnios atingem o homem sábio sem incapacita-lo, como a dor física, as doenças, a perda de amigos ou filhos ou catástrofes infligidas por derrota na guerra. Esse tipo de coisa pode arranhá-lo, mas jamais feri-lo.

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O Hamlet de Shakespeare exclama: “Não existe nada bom ou ruim, mas pensar faz com que seja assim”. Os estoicos concordariam que não há nada de bom ou ruim no mundo externo. Somente o que depende de nós pode ser considerado verdadeiramente “bom” ou “ruim”, o que torna esses termos sinônimos de virtude e vício.

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A catastrofização geralmente envolve o pensamento “E se?”. E se o pior cenário possível vier a acontecer? Isso seria insuportável. Por outro lado, descatastrofizar tem sido descrito como sair do “E se?” para o “E daí?”: Então, e se tal coisa acontecer? Não é o fim do mundo; eu posso lidar com isso. [...] Lembrar-seda transitoriedade dos eventos é uma das estratégias favoritas de Marco. Uma maneira de fazer isso é se perguntar: “Realisticamente, o que provavelmente acontecerá a seguir? E depois? E então, o que mais?”. E assim por diante.

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Uma das lendas mais famosas sobre Diógenes, o Cínico, conta como Alexandre, o Grande, procurou o filósofo. É uma justaposição de opostos: Diógenes viva como um mendigo, e Alexandre era o homem mais poderoso de todo o mundo conhecido. No entanto, quando Alexandre perguntou a Diógenes se havia algo que poderia fazer por ele, o Cínico teria respondido que Alexandre poderia sair da frente, pois estava bloqueando o sol. Diógenes podia falar com Alexandre como se fossem iguais porque era indiferente à riqueza e ao poder. Diz-se que Alexandre se afastou e retornou às suas conquistas, aparentemente sem ter adquirido muita sabedoria.

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Outra técnica útil de esclarecimento de valores para estudantes de estoicismo envolve a criação de duas listas curtas em colunas lado a lado intituladas “Desejado” e “Admirado”:

1. Desejado. As coisas que você mais deseja para si na vida.

2. Admirado. As qualidades que você considera mais louváveis e admiráveis em outras pessoas.

A princípio, essas duas listas quase nunca são idênticas. Por que elas são diferentes e como sua vida mudaria se você desejasse as qualidades que considera admiráveis em outras pessoas? Como os estoicos poderiam dizer, o que aconteceria se você tornasse a virtude sua prioridade número um na vida? O aspecto mais importante desse exercício de esclarecimento de valores, para os estoicos, seria compreender a verdadeira natureza do bem maior do homem, elucidar nosso objetivo mais fundamental e viver de acordo com ele. Tudo no estoicismo remete a um objetivo final de apreender a verdadeira natureza do bem e viver de acordo com isso.

Depois de esclarecer seus valores fundamentais, você pode compará-los às virtudes cardeais estoicas da sabedoria, justiça, coragem e moderação.

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Lúcio estruturou toda a vida em torna da busca por prazeres vazios como forma de evitar entrar em contato com suas emoções. Os psicólogos sabem que as pessoas geralmente adotam hábitos que consideram prazerosos – das redes sociais ao crack – como uma maneira de se distrair ou reprimir sentimentos desagradáveis. No caso de Lúcio, o álcool e outras diversões talvez lhe oferecessem uma maneira de escapar da preocupação com suas responsabilidades como imperador. Como veremos, não há nada de errado com o prazer, a menos que comecemos tanto a desejá-los que negligenciemos nossas responsabilidades ou substituamos atividades saudáveis e gratificantes por atividades que não o são.

Buscar prazeres vazios e transitórios nunca levará à verdadeira felicidade em longo prazo. Entretanto, o prazer pode ser complexo – pode nos atrair se passando por algo que não é. O que todos nós realmente procuramos na vida é o sentimento de autêntica felicidade e satisfação que os estoicos chamavam eudaimonia. [...] As pessoas ainda confundem prazer com felicidade e frequentemente acham difícil imaginar outra perspectiva de vida.

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Contudo, o valor de um homem pode ser medido pelas coisas que ele estima. Gostar do sofrimento dos outros é ruim. Sentir prazer em ver homens arriscando perder a vida ou sofrer ferimentos graves seria, portanto, considerado um vício pelos estoicos. Por outro lado, é bom gostar de ver as pessoas florescerem. Você pode pensar que isso seja óbvio; no entanto, o prazer pode nos cegar até o ponto de não vermos as consequências para os outros e para nós mesmos.

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Há mais dois pontos-chaves sobre alegria estoica que devem ser enfatizados:

1. Os estoicos tendiam a ver a alegria não como o objetivo da vida, que é a sabedoria, mas como um subproduto dela, portanto, acreditavam que tentar encontra-la diretamente poderia nos levar ao caminho errado se a busca fosse à custa da sabedoria.

2. A alegria no sentido estoico é fundamentalmente ativa, e não passiva; vem da percepção da qualidade virtuosa de nossas próprias ações, das coisas que fazemos, enquanto os prazeres corporais surgem de experiências que acontecem conosco, mesmo que sejam consequência de ações como comer, beber ou fazer sexo.

Marco diz, portanto, que não é nos sentimentos, mas nas ações, que reside o seu bem supremo.

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Em outras palavras, os estoicos não eram desmancha-prazeres. Marco estava convencido de que poderia obter tanta satisfação saudável com as coisas simples que aconteciam em sua vida quanto os que buscava prazer, como seu irmão, satisfazendo vorazmente seus desejos doentios. Sócrates também alegou, paradoxalmente, que aqueles que praticam o controle realmente obtêm mais prazer com coisas como comida e bebida do que aqueles que se entregam a elas em excesso. A fome é o melhor sabor, disse ele, enquanto, se comermos demais, estragamos nosso apetite. [...] No entanto, um paradoxo ainda mais profundo reside na noção de que, em última análise, a virtude da autodisciplina pode se tornar uma fonte maior de “prazer” do que comida ou outros objetos externos de nosso desejo.

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Pensando bem, poucos afirmariam que essa é a maneira mais gratificante de passar a vida. Ninguém nunca teve as frases “Eu gostaria de ter visto mais televisão” ou “Eu gostaria de ter passado mais tempo no Facebook” gravadas na lápide.

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Devemos nos lembrar de que a dor é sempre suportável, pois é sempre aguda ou crônica, mas nunca as duas coisas ao mesmo tempo. Um dos pais da igreja, Tertuliano, resumiu a ideia dizendo que Epicuro cunhou a máxima “um pouco de dor é desprezível, e uma grande dor não é duradoura”. Portanto, você pode aprender a suportar dizendo a si mesmo que a dor não durará muito se for intensa ou que será capaz de suportar algo muito pior se a dor for crônica. As pessoas frequentemente se opõem a isso afirmando que a dor que sentem é ao mesmo tempo crônica e aguda. [...] O ponto é que uma dor crônica além da nossa capacidade de suportar teria nos matado, então, o fato de ainda estarmos de pé prova que somos capazes de suportar algo muito pior. Embora isso possa ser difícil de aceitar para algumas pessoas, os participantes dos meus cursos online que sofreram muitos anos com dor crônica relataram que essa máxima epicurista foi de grande ajuda para eles, assim como para muitas pessoas ao longo dos séculos anteriores. [...] Por que os antigos consideravam essa estratégia específica uma maneira útil de lidar com a dor? Quando as pessoas estão realmente em dificuldade, elas se concentram em sua incapacidade de lidar com o problema e na sensação de que o problema está ficando fora de controle. “Eu simplesmente não aguento mais isso!”. No entanto, Epicuro afirma que, concentrando-se nos limites de sua dor, em termos de duração ou gravidade, é possível desenvolver uma mentalidade mais voltada para o enfrentamento e menos sobrecarregada por preocupações ou emoções negativas a respeito de sua condição. Marco também acreditava ser útil pensar em sua dor como confinada a uma parte específica do corpo, em vez de se deixar consumir por ela, imaginando-a mais difundida. A dor quer dominar sua mente, tornando-se a história toda.

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Então, como Marco pôde superar sua total falta de experiência e se tornar um líder militar tão talentoso? Como permaneceu calmo diante de situações incertas e contra inimigos tão formidáveis? Uma das técnicas estoica mais importantes empregadas por ele foi a de agir “com uma cláusula de reserva” (hupexhaire sis). [...] Essencialmente, significa realizar qualquer ação enquanto aceita com tranquilidade que o resultado não está inteiramente sob seu controle. Aprendemos com Sêneca e outros que isso pode assumir a forma de uma advertência, como “Se o destino permitir”, “Se Deus quiser” ou “Se nada me impedir”. [...] Estamos perseguindo um resultado eterno “com a reserva” de que o resultado não depende inteiramente de nós. [...] De fato, Marco chega ao ponto de dizer que, se você não age com a cláusula de reserva em mente, qualquer falha imediatamente se tornará um mal para você, ou uma fonte potencial de sofrimento.

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Enquanto a psicoterapia moderna geralmente se concentra na ansiedade e na depressão, os estoicos se debruçavam mais sobre o problema da raiva. [...] Eles acreditavam que a raiva é uma forma de desejo. [...] A raiva geralmente consiste no desejo de prejudicar alguém, porque achamos que fez algo errado e merece ser punido. [...] A raiva decorre da ideia de que uma injustiça foi cometida ou de que alguém fez algo que não deveria ser feito. A raiva está frequentemente associada à impressão de que você, de alguma forma, foi ameaçado por outra pessoa, tornando a raiva uma companheira intima do medo. [...] Não devemos responder a pessoas desagradáveis e inimigos com raiva, mas tratar isso como uma oportunidade de exercitar nossa própria sabedoria e virtude. Os estoicos veem as pessoas problemáticas como se fossem uma receita de um médico ou de um parceiro de treinamento designado por um treinador de luta livre. [...] Apolônio é retratado dizendo: “Existem homens maus – eles são uteis para ti; sem eles, que necessidade haveria de se ter virtudes?”.

A próxima estratégia envolve imaginar a pessoa de quem você está com raiva de uma maneira mais completa e abrangente – não se concentre apenas nos aspectos de seu caráter ou comportamento que você considera mais irritantes. Marco diz a si mesmo para considerar com cuidado o tipo de pessoa que costuma ofendê-lo. Então, imagina-os pacientemente em suas vidas diárias: comendo em suas mesas de jantar, dormindo sem suas camas, fazendo sexo, descansando, e assim por diante.

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Nenhum homem faz o mal conscientemente, o que também implica que ninguém o faz de propósito. [...] Se está fazendo o que é errado, você deve assumir que é porque não sabe agir de uma maneira melhor. Como Sócrates indicou, ninguém quer cometer erros ou ser enganado; toda as criaturas racionais desejam inerentemente a verdade. [...] Todos se ressentem de ser chamados de cruéis ou desonrosos. Em certo sentido, acreditam que o que estão fazendo é certo ou pelo menos aceitável. Não importa quão perversa aquela conclusão possa parecer, ela é justificada na própria mente de quem a formulou. Se pensarmos constantemente nas outras pessoas como estando enganadas, e não simplesmente sendo maldosas, como privadas de sabedoria para encarar seus desejos, inevitavelmente lidaremos de maneira mais gentil com elas. [...] Da mesma forma, não julgamos as crianças com severidade quando elas cometem erros, pois não sabem o que estão fazendo. No entanto, os adultos ainda cometem os mesmos erros morais que as crianças. Eles não desejam ser ignorantes, mas agem como tal sem ter essa intenção.

Lembrar que as outras pessoas são humanas, e imperfeitas, pode ajuda-lo a receber críticas (ou elogios) delas de uma maneira mais equilibrada e menos emocional.

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As ações dos outros são externas a nós e não podem danificar nosso caráter, mas nossa própria raiva nos transforma em um tipo diferente de pessoa, quase como um animal, e, para os estoicos, esse é o maior dano. “Outra pessoa me fez mal? Isso é problema dela, não meu”.

Fonte: Donald Robertson, Pense como um imperador, CDG Edições, Porto Alegre, Brasil, 2022.

Veja também: A estupidez inteligente e outros insights estoicos