19 de setembro de 2023
A potência cogitativa na TCC
16 de setembro de 2023
Abstração e projeção
Podemos ser
levados a crer que quanto mais naturalista, detalhada e fiel à realidade
pictórica for uma obra de arte tanto mais desenvolvida e superior ela será em relação
às representações abstratas e de inspiração geométrica. Inspirado pela obra e
ensinos de Alois Riegl, o historiador alemão Wilhelm Worringer chega a
conclusões não só divergentes como de certa forma contrárias a tal senso comum.
Worringer
parte da ideia de que o gozo estético
é um autogozo objetivado. Em outras palavras, a beleza extraída de uma obra
de arte é resultado do contraste, ou mesmo fusão, da ampliação do olhar interno até o ponto que abarque toda a obra com
a delimitação da imaginação para que
a isole de seu ambiente originário. Se posso abandonar-me sem antagonismo interior à tal atividade de ampliação/delimitação, então
disso resultará um sentimento de liberdade e prazer. O objeto estará como que
compenetrado por minha atividade, por minha vida interior. Eis o “autogozo
objetivado”. O “belo” seria uma projeção positiva, enquanto o “feio” uma projeção
negativa.
Concomitantemente, identifica dois polos estilísticos claramente distintos
encontrados na estética das obras de arte: (1) o afã de projeção sentimental (Einfühlung, ou “empatia”), cuja satisfação
se encontra na beleza do orgânico, e (2) o afã de abstração, cuja satisfação se
encontra na beleza do inorgânico, do que nega a vida, do cristalino.
Ora, se o
autogozo objetivado é a definição mesma de gozo estético, então Worringer
rejeita a ideia de que somente a projeção sentimental possa cumprir com louvor
os critérios para extrair tal gozo da criação artística. Isso porque, com base
no método criado por Riegl, a vontade
artística absoluta, ou seja, a vontade artística desligada de quaisquer
objetos, sendo uma exigência interior latente nos homens, se manifesta como
vontade de forma. Toda obra de arte é,
em seu mais intimo ser, tão-somente uma objetivação dessa vontade de forma.
Observe que
a arte genuína é uma satisfação profunda de uma necessidade psíquica. Não cabe,
portanto, confundir “arte” com “imitação”. Trata-se de um erro muito comum: a imitação
é mera habilidade manual (um “gosto brincalhão pela reprodução de modelos
naturais”) e carece de importância estética. A arte genuína é a expressão estilística
da vontade artística absoluta.
O estilo
resultante do afã de abstração – como nas formas de uma pirâmide ou nos
mosaicos bizantinos – se trata de um impulso diametralmente oposto ao afã de projeção.
A tendência abstrata se revela na vontade de arte dos povos em estado de
natureza, na vontade de arte de todas as épocas primitivas e de certos povos
orientais de cultura superior. Trata-se de uma tendência resultante de uma
intensa inquietação interior ante os fenômenos do mundo circundante. Worringer
lança mão da expressão agorafobia
espiritual para designar tal impulso: algo como uma ansiedade em ficar em situações
ou locais sem uma maneira de escapar facilmente ou em que a ajuda pode não
estar disponível no caso de a ansiedade intensa se desenvolver. Há uma intensa
necessidade por quietude, por desprender cada coisa individual pertencente ao
mundo exterior de sua condição arbitrária e de sua aparente casualidade e
eternizá-la mediante a aproximação a formas abstratas e em encontrar dessa
maneira um ponto de repouso na fuga dos fenômenos. Observe: não há intromissão do
intelecto no estilo abstrato, ou seja, não há nenhum tipo de aspiração a
conformar-se a supostas leis de regularidade geométrica, mas sim uma
necessidade interior elementar.
Os dois
polos – projeção e abstração – são, ao fim e ao cabo, diferentes níveis de
uma necessidade comum: a ânsia de alienar-se do próprio ego. Tal ânsia de alienação
é incomparavelmente mais intensa e mais consequente no afã de abstração.
Worringer não deixa de notar que a ânsia de alienação do ego é a essência suprema
do gozo estético e, por que não, da felicidade humana mesmo.
Concluo
portanto que a arte abstrata, embora primitiva em termos cronológicos, é
primordial em termos ontológicos, pois é ela que retrata melhor o anseio dos
homens em escapar da escravidão ao ego e alçar novos e maiores voos no plano
sobrenatural. Os povos que não aposentaram sua arte abstrata mas, pelo
contrário, a sofisticaram e aprofundaram, são provavelmente aqueles que melhor
combinaram gozo estético e elevação espiritual.
Fonte: Wilhelm Worringer, Abstracción y naturaleza, Fondo de Cultura Económica, Cidade do México, México, 1953.
14 de setembro de 2023
A educação da espontaneidade
É possível
educar os sentimentos? Ou, pelo contrário, os sentimentos devem ser o guia em
torno do qual devem orbitar nossos pensamentos, condutas e juízos? Vejamos o
que diz o filósofo espanhol Julián Marías.
O homem tem um caráter convivial, social e histórico. Em outras palavras, se imagina e se projeta dentro de uma forma histórico-social. Mas é necessário acrescentar que é possível sair dessa forma, que é algo que muitas vezes tem sido negado com notória falsidade. Mais ainda: sempre se sai dessa forma porque toda situação é instável, e justamente por isso existe a história.
É um grave erro portanto a “programação”, a fixação das formas, que nunca podem ser mais do que um ponto de partida. Isso elimina algo decisivo: a espontaneidade. Na vida é essencial o aporte dos impulsos, dos desejos, da imaginação – realidades sobre as quais pesa certo “descrédito”. É fundamental a reação viva, imediata, direta aos elementos da circunstância, especialmente às pessoas. É preciso que reivindiquemos a importância e a validade do “gosto”, que não coincide necessariamente com o prazer.
É preciso dar o devido valor à atração pessoal imediata, que costuma ser muito mais ampla e completa que a atração deliberada ou “racional” (aquela é mais racional, mas da razão vital).
Alguém poderia pensar que esta insistência na espontaneidade, esta preferência por ela, exclui a educação ou a relega a uma posição secundária. Acredito que, pelo contrário, ela a exige: é preciso educar a espontaneidade. Ela se nutre de experiências, imaginações, ensaios, explorações do desconhecido. Ora, a espontaneidade deseducada é pobre, limitada à herança, não somente biológica, mas sobretudo social. Entendo a educação como cultivo e incremento à espontaneidade.
É evidente a enorme influência que a ficção tem aqui: poesia, teatro, literatura, cinema; e não menos importante, a conversação. Aliada às vivências e experiências reais, as virtuais que se recebem do outro – do próximo presente com quem se conversa ou do criador, talvez falecido há séculos – são ótimos instrumentos de dilatação e intensificação da vida.
A diversidade de idades, a convivência com várias gerações, é essencial. Isso permite a libertação da circunstância temporal, a ampliação do horizonte.
[...]
O “estar” carrega em si o conceito de instalação, que é a maneira como o homem “se encontra” na vida, fazendo já algo e sendo alguém. Poderíamos definir temperamento como a modulação dessa instalação. O temperamento portanto é uma modulação essencial daquilo em que se está quando se está vivendo. [...] Alegria e tristeza, austeridade e jovialidade, severidade e piada, secura e afetuosidade; eis alguns exemplos possíveis de temperamento, que contêm incontáveis variedades e matizes. Existem temperamentos habituais que poderíamos chamar de vigentes. E existe a possibilidade de sua alteração estimulada ou artificial, como festas, orgias, álcool, drogas.
A afetividade, o mundo dos sentimentos, é o envolvente da vida. [...] A vida apresenta certos sintomas de grosseria, de pobreza, de monotonia, de instabilidade; e, mais ainda, de secura, de prosaísmo (achatamento, insipidez). Será que não nos falta uma educação sentimental adequada?
Fonte: Julián Marías, La educación sentimental, Alianza Editorial, Madrid, Espanha, 1992.
5 de setembro de 2023
A metafísica do amor
Frederick
Wilhelmsen acredita que o amor é algo que reside no coração de todo ser humano,
e a melhor forma de abordar o tema, para aqueles que são mais voltados à
meditação filosófica, é por meio da ontologia da existência. Aqueles que seguem o Cristo sabem que a lei final é a
lei do amor e que a cidade a que estamos destinados é a Cidade de Deus. Como
inspiração da importância do tema, eis alguns ensinamentos de Jesus Cristo e do
Apóstolo:
E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o
primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu
próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os
profetas. Mateus
22:37-40
E no Sermão
da Montanha disse Jesus: Ouvistes que foi
dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos,
bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que
vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos
céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça
sobre justos e injustos. Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis?
Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos
irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim? Sede vós pois
perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus. Mateus 5:43-48
O amor é sofredor, é benigno; o amor não é
invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com
indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não
folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo
espera, tudo suporta. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão
aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque,
em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; mas, quando vier o que é
perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. 1 Coríntios 13:4-10.
É
importante que antes o leitor tome contato com as descobertas de Wilhelmsen
quanto à estrutura paradoxal da existência. Em suma, a existência não existe, ou seja, a existência não é
um ente existente como um homem, uma árvore, um cachorro, um anjo, uma montanha, um planeta etc. Estes entes singulares actualizam a estrutura contida em seus universais,
ou seja, em suas essências, mas a existência, em si mesma, não se manifesta
como ente, ela é desprovida de estrutura.
As dimensões da existência humana: trágica e
extática
Com base
nesse entendimento, Wilhelmsen identifica duas ordens, ou dimensões, da
existência humana.
Uma é a dimensão trágica, na qual o homem se vê como ser contingente, finito, sem
fundamento em si mesmo, sem apoio do mundo (que supostamente é seu); em outras
palavras, como se estivesse perpetuamente caminhando à beira de um abismo que
leva ao nada. Enfrentar a morte e dar-lhe sentido é uma realidade da qual
nenhum homem tem o direito de querer escapar. Que terrível estado de
insegurança vive o homem: embora ameaçado pelo não-ser, o homem continua sendo.
Outra é a dimensão extática, na qual o homem se vê
obrigado a entregar-se ao mundo das coisas e especialmente ao mundo das
pessoas. O ser do homem é estruturalmente um ser com outros: (1) na comunicação,
ou seja, na exigência por compartilhar sentido com outra pessoa, (2) no cuidado, ou seja, quando o contingente
zela por outro contingente; e (3) no amor,
o ápice do êxtase, ou seja, quando o ser do homem se torna ser-para-o-outro, isto é, o ser autenticamente humano. O homem
inautêntico é, portanto, aquele que não se doa ao outro, mas, pelo contrário,
se apropria do ser do outro para si próprio. Em vez de superar sua pobreza
ontológica abrindo-se para amar o outro, o homem inautêntico acentua essa
pobreza preenchendo seu ser com o ser do outro: ao invés de ser-para-o-outro,
se transforma no ser-para-o-apropriado.
Que
profundo paradoxo vive o homem: extaticamente deseja dar, tragicamente deseja
ser preenchido; extaticamente precisa jogar-se fora, tragicamente precisa ser
acolhido. Não há nada no homem, nem em suas partes, nem no todo, sobre o qual
possa assentar-se e declarar candidamente que encontrou sua identidade. A
personalidade do homem, ou seja, o aperfeiçoamento de sua pessoa, não é
constituído por um “eu”, mas por um “nós”.
Este
entendimento começou a romper-se na Renascença, quando pouco a pouco o
desenvolvimento de uma pessoa (i.e. personalidade) foi sendo entendido como o
cultivo de um ego. Note que o homem medieval desconhecia a dicotomia
sujeito-objeto. Para ele, sujeito é
aquilo que há de supremo, de eminente, no ser, enquanto objeto é o conhecimento desse sujeito. O homem conhecedor era
apenas mais um sujeito dentre tantos outros sujeitos no cosmos. Para o homem
moderno, no entanto, o sujeito é somente o ego pensante, enquanto objeto é o
conteúdo desse sujeito pensante.
Este
rompimento foi posteriormente, ou concomitantemente, potencializado pela
palavra escrita. Enquanto o homem antigo e medieval filosofava com coisas e
pessoas diante de si, o homem da modernidade clássica filosofava com folhas de
papel diante de si. Homens solitários como Descartes, Spinoza, e mesmo Leibniz,
estavam envoltos em uma cultura livresca na qual as imagens sensoriais eram
eminentemente espaciais, carentes de movimento, posteriormente congeladas em
abstrações transformadas em absolutos ontológicos. Observe como na psique da
filosofia moderna o ego pensante torna-se o centro da existência, o juiz do
mundo, em oposição aos objetos “lá fora”. O ego pensante eleva-se à categoria
de personalidade abstrata, a qual toda a realidade curva-se ante sua validação
e racionalidade. O ego pensante ganha pois ares de divindade.
Mas talvez
o motivo mais importante esteja no seio mesmo da Idade Média. Wilhelmsen nota
que se abateu na Europa do começo do século XIV uma espécie de “ansiedade
coletiva”. O bom combate ao qual o Apóstolo havia chamado os seguidores do
Cristo, a civilização de camponeses, soldados e monges, começou a cansar em
meio ao nada e à falta de sentido do mundo natural. Pouco a pouco essa
civilização começou a buscar alívio desse fardo da contingência. O homem
renascentista começou a enxergar na natureza uma excelência e uma beleza antes despercebidas.
O corpo humano bem formado e estético, uma racionalidade baseada na moderação
moral da Ética a Nicômaco; a Renascença começou a negar insistentemente a
trágica situação humana e o mistério da contingência de sua existência
temporal. A abertura do ser no homem foi fechada e selada.
A pessoa humana é aquele todo no ser que, experimentando-se como finito e contingente, sem qualquer domínio sobre o seu próprio ser, existe, no entanto, dentro de uma ordem de ser à qual o seu próprio ser está aberto e na qual deve procurar o seu destino, a ponto de almejar a superação do mundo e a doação de si mesmo a um Ser que, não necessitando dele em nenhum sentido, no entanto se dá e cura assim as feridas da contingência.
Wilhelmsen
nota, no entanto, que o ser não deve ser reduzido a um mero “ser-para”, ou
seja, o ser não é apenas a relação que estabelece. O ser é, em suas palavras
paradoxais, “simplesmente ser, mas todo ser está aberto de si mesmo”.
Observe como
a metafísica do ser pode nos ajudar a entender como, e por que, o homem tende a
distanciar-se do todo que é em favor
de seu ego. Por exemplo, quando
estamos doentes sentimos que nosso
ser está como que se dissolvendo, se despedaçando, se estilhaçando. É como se o
corpo doente de repente estivesse “aí”, flutuando diante do espírito
observador, como se o corpo fosse uma peça adjacente, um elemento meramente
contíguo à alma. Em termos morais
algo semelhante acontece. Observamos nosso passado com certo assombro e
mesquinhez, e nos perguntamos como, afinal, desperdiçamos tanto tempo com bobagens
e negligenciamos o desenvolvimento de nossas qualidades, de nossos
relacionamentos, de nossas carreiras, de nosso crescimento espiritual. Uma vida
reduzida às cinzas da esperança. Ou mesmo em nossas experiências filosóficas que, por meio da
introspecção típica da meditação cognitiva, termina por concluir de maneira
afobada que o homem é seu ego e que
apenas tem um corpo. Quando estou
morrendo, não devo concluir que meu ser permanece no ego, mas, pelo contrário,
a angústia da morte é sinal de que o corpo também é meu ser. Aqui chama a
atenção que Montserrat Calvo Artes chegará à mesma conclusão: sou meu corpo,
não tenho um corpo.
Sim, claro,
é evidente que há um senso de distância entre corpo, alma e espirito. É
evidente que o corpo não participa do ser da mesma forma que o espírito
participa do ser. Mas é evidente também que somos um ser, que somos uma unidade,
e não vários seres meramente aglutinados. Somos um ser (um esse), que na verdade é um ente
(um ens), um “está sendo”. Este é
o ponto: somos inseparáveis de nossa existência. Sou meu corpo, minhas
operações, minhas faculdades: o esse
não é a alma nem o corpo, mas o esse
toca a alma, a parte formal do corpo. Como demonstrou Santo Tomás de Aquino,
por participação, o corpo também faz parte do ser do participante. É notável o
que acontece quando o homem divorcia o corpo da alma. Quando o exercício do
poder é divorciado do corpo, o homem perde o senso de responsabilidade sobre
seus efeitos. Bernanos comenta sobre o piloto que, embora capaz de apertar um
botão e matar milhares de pessoas, é incapaz de matar uma borboleta com as
mãos.
Modernamente,
o humanismo em suas diversas formas é
uma maneira de tentar escapar da dimensão trágica da existência humana. O
humanismo é incapaz de entender que, temporalmente falando, o homem não está
acima do cosmos das coisas e valores. O homem é um ser relacionado a, e não um ser que se
relaciona. O efeito de abafar a dimensão trágica é bloquear o chamado ao
êxtase. Desde a psicologia de Jung à educação liberal de Mortimer Adler, todo
humanismo está convicto de que o homem contém em si (mesmo que admita a
existência de Deus) a fonte e o fundamento de sua própria perfeição: o
humanismo veda, sela, isola a pessoa em seu ego e busca dentro da pessoa selada a sua personalidade, negligenciando a
abertura do ser, a finalidade mesma do homem. O humanismo se esquece de que a
pobreza do homem é sua glória.
A filosofia espanhola
Para melhor
esclarecer como se dá a relação do homem com essas dimensões da existência,
Wilhelmsen lança mão de dois filósofos espanhóis: José Ortega y Gasset e Xavier
Zubiri. O fato de ter vivido alguns anos na Espanha e ensinado na Universidade
de Pamplona lhe garantiu um extenso contato com a filosofia deste país.
Ademais, a filosofia nunca se divorcia dos temas e problemas típicos do local
onde se desenvolve, e no caso da Espanha, após a queda do império espanhol e
certo complexo de inferioridade perante os países do norte europeu, Wilhelmsen
não deixa de notar como os filósofos espanhóis do século XX procuraram entender
a relação do passado e do futuro da Espanha no contexto da Cristandade
ocidental, permitindo assim que se concentrassem mais na dimensão histórico/temporal
da existência humana, precisamente o que Wilhelmsen busca para, a partir desse
patamar histórico, elucidar a dimensão aberta (“extática”) da existência
humana.
É notável
portanto que a especulação metafísica espanhola se recuse em aceitar uma teoria
do ser que o veja de maneira estática, isolada, fechada. Pelo contrário, os
grandes filósofos espanhóis sempre admitiram, a despeito das orientações
religiosas que defendam, que a existência humana possui uma estrutura histórica
e aberta. É precisamente acerca desse ponto que Ortega cunhou sua hoje famosa
máxima da razão vital: Yo soy yo y mi
circunstancia. O ser humano, para Ortega, não é propriamente um ser, mas um
“vai sendo” (va siendo), ou seja, se
por um lado uma realidade físico-matemática é regida e expressa por uma lei,
uma realidade humana é expressa por uma história. Observe que para Ortega a
vida é maior do que o ser porque a vida humana se lança não para aquilo que não foi, mas para aquilo que pode ser à luz do que foi. Em outras
palavras, o passado está aqui em mim. Eu sou o passado, mas eu também sou maior
do que meu passado e, portanto, mais amplo que meu ser. O ser estático,
isolado, fechado, é um mero cenário, mas o ser dinâmico, relacional, aberto, é um
drama. Tal ser estático é paralítico assim como são paralíticos os corpos
geométricos. O ser dinâmico é ao mesmo tempo história e tradição porque o ser
dinâmico é ao mesmo tempo um progresso para o eu e um engendramento desse mesmo
eu.
Zubiri
concorda que o ser estático, aquele que provém do “é” subsistente às coisas,
tem de ser corrigido à luz do ser quando aplicado à inteligência. O ser do
homem é um “ser-aberto-às-coisas”, um “ser-é-outro”. Ao mesmo tempo, este
“ser-outro” é um retorno da inteligência a si mesma: quanto mais me estendo ao
próximo, tanto mais me torno o eu que sou. Ao ponderar sobre o ser das coisas,
o ser do homem e o ser de Deus, Zubiri alcança um entendimento do ser que, a
exemplo de Ortega, é aberto, extenso, descerrado, destapado. Além disso, Zubiri
também nota a diferença entre a concepção de amor entre cristãos latinos e
cristãos gregos. Para o Padres gregos, o amor (agape) tão reiteradamente mencionado por São Paulo e São João deve
ser entendido em um sentido estritamente metafísico. Não se trata de um amor
moral, mas de um amor ontológico.
Ao mesmo
tempo, Zubiri também nota que a energeia
aristotélica, própria dos seres vivos (ver post anterior sobre Wilhelmsen) -- ao contrário da enteléquia, própria das
coisas, que era designada como atualidade --, é melhor designada
como atividade, ou seja, como algo
que está sendo, que se está
desenvolvendo, que é “ec-stático” (extático), que se difunde a si mesmo
dinamicamente. Zubiri sustenta que o ser estático – fixo e completo – sempre recebe enquanto o ser dinâmico – ação
primitiva e radical – sempre executa.
Para os gregos, essência não é o correlativo de uma definição, como entendiam
os latinos, mas uma atividade radical constituinte do próprio ser, a própria
raiz de toda sua manifestação. A essência é algo ativo, é como se a essência
fosse uma “para-essência” manifestada numa dinâmica que é a própria verdade da ousia, pois é esta essência dinâmica que
torna a ousia cognoscível. Zubiri
sagazmente diz que Deus não é Ato Puro, mas Ação Pura. E tal atualidade, no
caso do homem, é dada, segundo Zubiri, por sua origem. É assim, portanto, que
se dá a personalidade: ela tende para a origem e fundamento de seu ser e, ao
mesmo tempo, àqueles que compartilham da mesma natureza. Estamos falando,
claro, de uma abertura, de uma doação, à Deus e aos demais homens. Estamos
falando não de um simples eros, mas
de um agape, de um amor místico. Eis
também por que Zubiri concorda com os Padres gregos sobre o primado da
personalidade sobre a natureza, e, por extensão, sobre o primado da Trindade
sobre a Unidade divina, ao contrário do que entendiam os latinos.
Mais bela
ainda é a meditação empreendida por Wilhelmsen quando nota que algo de agape está presente em eros também. Quando nos dedicamos à
manufatura de algo, à decoração de um aposento, por exemplo, algo dele retorna
a nós. Em outras palavras, obtemos aperfeiçoamento mediante o eros que nos ligou à construção e uso
daquele objeto. No caso dos seres humanos, algo mais amplo ocorre: quando nos
relacionamos em amor (agape) a outros
seres humanos, não só este amor se difunde de nós a eles, mas deles a nós
também. É o típico caso do amor de uma homem por uma mulher, por exemplo. No
caso das coisas, o aperfeiçoamento é uma certeza;
no caso dos homens, o aperfeiçoamento é uma esperança.
Ser, não-ser e amor
No entanto,
ao longo da história da filosofia, alguns pensadores concluíram que o amor não é
o aspecto eminente do ser, mas sim o poder. Isso é compreensível porque
precisamente em função da dimensão trágica da existência, isto é, a tentativa
de escapar da aniquilação, do “não-ser”, da inexistência, o ser tem de afirmar-se
na existência, arraigar-se no real. Observe que há aí uma dupla negação: o ser
é a negação da negação do ser, ou seja, a negação do não-ser. É o “poder do ser”:
a autoafirmação do ser sem o não-ser não seria autoafirmação, mas uma mera
autoidentidade imóvel. É o não-ser que impele o ser a abandonar sua reclusão e
o força a afirmar-se dinamicamente.
Assim
pensava o filósofo alemão Paul Tillich, que influenciou grandemente o
Protestantismo. Se ser é poder, então esse poder tem de ser exercido contra
alguma coisa. Essa alguma coisa é o não-ser. É o poder que melhor representa o
ser, eis o aspecto mais eminente da existência.
Mas
Wilhelmsen não aceita esse entendimento. A exemplo do que fará em sua obra
sobre a estrutura paradoxal da existência, o filósofo americano não deixa de
notar que o não-ser simplesmente não pode ser articulado intelectualmente e nem
mesmo experienciado imaginativamente. Se cremos que o fizemos é porque transformamos
o não-ser em algo que ele não é, em
algo extravagante e evanescente, sem duvida, mas ainda assim algo. Esse algo, que evidentemente não é o não-ser, é precisamente o veículo
do caos, o arauto da destruição da personalidade humana. É precisamente a contemplação,
a consideração, que um individuo ou sociedade faça do seu “ser” que determinará
como manejará a ansiedade ante o “não-ser”. Para os antigos gregos, por
exemplo, ser é estrutura, forma, autoconsistência, identidade, ordem. O não-ser
então é o devir, a mudança, a corrupção, a desordem. Antonio Millan Puelles
resumiu brilhantemente a coisificação do não-ser em uma frase genial: El no ser es aqui, no la falta de forma,
sino la forma del faltar. A ansiedade grega é conquistada pelo amor grego à
ordem. Os gregos nunca questionaram o ser enquanto tal porque nunca lhes havia
ocorrido a ideia de que o cosmos fosse uma dádiva de Deus e que, portanto,
poderia o ser não ser.
Wilhelmsen
acredita refutar, ou ao menos responder, à ideia do não-ser com um raciocínio simples.
O universo do ser é simplesmente porque
Deus o causou. Por que Deus o causou? Porque Ele quis. Por que Ele quis? A
pergunta não admite resposta porque se perde no mistério da liberdade divina. Não
há uma “razão” para Deus querer, mas algo que transcende todas as razões: o amor.
Há o ser e não o nada porque há o amor. O amor não é uma razão, mas é uma
causa. A criação não é uma dádiva de Deus para nós; nós somos a dádiva.
A pergunta não
é, portanto, por que há o ser e não antes o nada, mas por que todos esses “nadas”
ontológicos estão exercendo o ato de ser? Somos ontologicamente pobres, somos
radicalmente insuficientes. A alternativa à ansiedade do “não-ser” de um mundo
criado por Jesus Cristo é uma só: gratidão.
O
fundamento do poder do ser contra as forças da corrupção e do nada é o amor a
si mesmo. Quando amo a mim mesmo eu amo todo o ser do qual eu sou uma parte. Ao
amar o todo eu amo a mim mesmo. O homem é, e ao mesmo tempo não é, o todo no
qual participa – esse todo é evidentemente o ser –, mas o homem somente
participa no ser ao abrir-se à realidade de sua totalidade. Amar a si mesmo é
amar o próximo porque o amor a si mesmo é o próprio ser do homem. Um ato cujo
término é o próximo ama seu término ao amar a si mesmo e ama a si mesmo ao amar
seu término. Em suma, amar a si mesmo é
amar o próximo.
Abrir-se de
si mesmo e acolher o próximo. Que tolo paradoxo: ganhamos nossa alma ao tirá-la
fora. O verdadeiro amor é tolo, afinal, mas eis a herança que compete à raça
humana. Ao invés de fugir dela, melhor abraçá-la.
Fonte: Frederick Wilhelmsen, The Metaphysics of Love, Angelico Press, Brooklyn, NY, EUA, 2022.
24 de agosto de 2023
Evolução mística
O teólogo e sacerdote espanhol
Juan Arintero influenciou de maneira importante a teologia católica do início do século XX ao reunir
em uma série de livros e ensaios os ensinamentos místicos dos santos da Igreja.
Uma de suas queixas, que aliás se aplicam igualmente ao ambiente ortodoxo, é de
que a vida religiosa e paroquial perde o sentido se não estiver conectada à
vida místico-espiritual. A ideia de que a vida mística é exclusiva daqueles que
estão vocacionados para ela equivale a dizer que há homens e mulheres que não estão
vocacionados a serem humanos. O objetivo da vida humana é a união com Deus, e
tal união não é algo que o ser humano tenha o direito de não querer.
Anotei aqui
apenas os aspectos que considero convenientes e úteis à minha vida e aos meus estudos,
mesmo porque há uma série de aspectos que, não sem surpresa, se assemelham ao
que é ensinado na Igreja Ortodoxa, mas o leitor não fará mal em aprofundar-se
na obra deste dedicado sacerdote e amante da vida mística. Ademais, por se
tratar de descrições e classificações de experiências místicas, a linguagem
empregada frequentemente se assemelha à linguagem poética, uma vez que os
referentes àquilo que está sendo dito estão em um plano para além do plano que
operamos deste lado da realidade.
Na sua obra
mais famosa, Arintero explica que a expressão evolução mística significa o progresso da vida da graça no homem. É
quando se forma em nós o próprio Cristo. Mas há duas sendas na vida espiritual:
(1) a vida ascética da união conformativa, vivida um tanto inconscientemente,
na qual a imensa maioria dos fiéis ao mortificarem as paixões e exercitarem
metodicamente as virtudes e práticas piedosas procura adquirir moralmente algum tipo de contemplação e, com o tempo, suas
almas começam a sentir os toques do Espírito (embora não os sinta como
sobrenaturais), e (2) a vida mística
da união transformativa, guiada pelo
próprio Espírito, que habita substancialmente (e não apenas acidentalmente,
como no caso das virtudes e ciências) a alma ao moldar o caráter por fora e por
dentro, penetrando até o mais intimo do coração, estabelecendo uma relação não moral,
mas ontológica, com o fiel.
A revelação
divina nos faz ver como a vida intima de Deus não é a de um Deus uno e solitário, típico do Deus encontrado pelos filósofos, o Deus
absoluto, o “Ser Supremo”, o Deus da unidade nas obras da criação, mas um Deus trino. O Deus dos filósofos é aquele que
encontramos com base nas simples e naturais relações
de causalidade na criação, mas o Deus vivo é aquele que encontramos nas sobrenaturais
relações de amizade cordial, pois supõe
uma verdadeira semelhança. Por isso dizia Santa Teresa de Ávila que os livros demasiadamente
“concertados” (combinados, encadeados, “lógicos”) a repugnavam e até lhe faziam
perder a devoção, pois o excesso de abstração faz com que percamos de vista o
todo real e vivente que somos.
Arintero lança
mão do termo “graça criada” para explicar a ação do Espírito na vida humana,
mas cabe lembrar que tal expressão serve apenas para diferenciar a graça do próprio
Espírito. Parece-me algo semelhante à distinção entre “essência” e “energia”,
ambas incriadas, típica da teologia ortodoxa. Arintero parece admitir que
qualificar tal graça de “criada” pode trazer problemas de interpretação, assim
que explicaque o melhor seria chamá-la de “graça participada” enquanto o
Espírito é a “graça em si”.
Ademais,
quanto às virtudes, Arintero as classifica como “naturais” (ou seja,
adquiridas) e “infusas” (ou seja, inspiradas, comunicadas gratuitamente, emprestadas).
As virtudes cardeais são tanto naturais quanto infusas. As virtudes teologais e
os dons do Espírito, apenas infusas. Da união das virtudes com o exercício dos
dons do Espírito resultam os frutos do Espírito, entre as quais, as
bem-aventuranças.
Arintero
detalha as virtudes, os dons, os frutos, a “noite escura” pela qual perpassam
os santos a caminho da contemplação divina. Há três graus de contemplação: (1)
a breve oração de recolhimento (infusa, muito superior à oração adquirida com
esforços e diligência humana), na qual não há meditação, nem raciocínio, mas
apenas um simples e tranquilo olhar contemplativo, (2) a longa oração de
quietude, na qual, além do entendimento, a vontade se torna cativa ao Espírito,
(3) oração de união, na qual a alma é introduzida na “câmara régia” e todas as
suas energias se encontram unidas a Ele. Arintero belamente assim a descreve:
Às vezes, o uso dos sentidos externos não é completamente perdido; Estes, principalmente no início, funcionam um pouco, embora com dificuldade, fazendo com que o que está sendo falado ou cantado de perto seja ouvido como à distância, e todos os objetos sejam percebidos como muito confusos. Os poderes internos também não estão perdidos, mas apenas como se estivessem adormecidos para tudo o que está fora; porque, estando a alma assim, completamente absorta em Deus, ainda não tem forças suficientes para se ocupar com as coisas externas ao mesmo tempo. E se a caridade ou a obediência a compelem, enquanto durar esse doce cativeiro, deve ser praticada uma violência tão extrema - que faz com que muitos derramem sangue pela boca - causando-lhes não pouco dano; e mesmo assim, a maioria deles, para prestar atenção ao que está fora, tem que se soltar na atenção interna que os absorveu. Tudo o que eles virem lhes causará tédio e desgosto, e tudo parecerá estranho e como nunca visto antes. Já são habitantes do céu e concidadãos dos santos e, vendo as belezas celestiais, consideram vil tudo neste mundo, e não podem deixar de lamentar ao verem como se prolonga o seu exílio, onde se julgam estrangeiros e peregrinos. E, verdadeiramente, tais almas encontram-se exiladas entre pessoas ferozes, que as obrigam a zelar por si mesmas para não caírem nas suas armadilhas e não se perderem ou correrem o risco de perder os seus ricos tesouros.
Fonte: Juan Arintero, Evolución Mística, Editorial San Esteban, Salamanca, Espanha, 1989.
16 de agosto de 2023
Elementos de psicologia das emoções: Santo Tomás de Aquino vs. René Descartes
Tomismo
Santo Tomás
baseia-se especialmente nos ensinamentos de Aristóteles presentes (mas não só)
em sua Retórica. Seu Tratado das Paixões encontra-se na Suma Teológica, embora
não seja somente aí que ele versa sobre o tema. Embora as paixões (emoções) tenham uma dimensão médica
(física), Santo Tomás está mais preocupado com sua dimensão moral (espiritual).
As paixões
são movimentos, ou seja, são atos transitórios, estados passageiros. São o
contrario das disposições estáveis, como os hábitos (vícios e virtudes). Tais
atos são produto de potências, também chamadas “faculdades”, humanas, chamadas
de apetites. Assim como entender é o ato
da inteligência, assim como recordar é o ato da memória, assim como imaginar é
o ato da imaginação, a paixão é o ato do apetite. A partir do início do século
XIX deixou-se de pensar nas emoções como atos que procedem de uma faculdade.
Os apetites
fazem referência a um bem ou mal. Os apetites portanto podem ser por atração
(por um bem) e por repulsão (por um mal).
Santo Tomás
ensina que há duas ordens de apetite: o apetite
sensitivo e o apetite intelectivo
(ou vontade). O apetite intelectivo
(vontade) tende ao bem tal como o capta a inteligência, ou seja, de maneira universal
– não este ou aquele bem, mas o bem enquanto tal. O apetite sensitivo tende ao
bem tal como o capta o sentido, ou seja, de maneira particular.
Quanto ao
apetite sensitivo, há dois tipos: o apetite
concupiscível (ou desejo) e o apetite
irascível (ou assertividade). O
apetite concupiscível tende ao bem prazeroso, enquanto o apetite irascível
tende ao bem difícil, árduo, ou seja, o sentido capta a coisa como repulsiva,
mas o apetite irascível impulsa o homem a tender ao desagradável (por isso
“difícil”). O sentido que capta a coisa é o sentido interno, chamado também de estimativa (cf. A cosmovisão medieval,
de C. S. Lewis), que capta significados particulares (não conceitos
universais). A estimativa é a dimensão que ativa as paixões (emoções).
A paixão,
para Santo Tomás, é psicossomática, ou seja, não é espiritual, mas corporal, e
tem uma forma e uma matéria. Por exemplo, materialmente a ira seria o fervor do
sangue no coração, enquanto formalmente é a vingança.
O gênero da paixão é determinado por seu objeto, ou seja, se é um bem ou mal. Vejamos como as principais se dividem:
Cartesianismo
Descartes sustenta
uma visão de mundo dualista e isso evidentemente afetará de maneira decisiva a psicologia
das emoções. As paixões (que passam a ser chamadas por Descartes de “emoções”
ou “sentimentos”) são algo da alma, não do corpo. Isso porque o corpo, como
ente material, é dotado exclusivamente de quantidade, e tudo o que é
qualitativo é necessariamente mental.
Talvez o
aspecto mais importante em Descartes seja o início da perda paulatina da ideia
de que as emoções sejam apetitivas. Em outras palavras, para Descartes as emoções
são apenas e tão-somente sensações de modificações corporais. A emoção deixa de
ser um afeto e passa a ser uma sensação. É claro, e isso não se pode negar, que
notamos na emoção certas comoções corporais: nó na garganta, palpitações,
rubor, respiração ofegante etc. Ora, mas o que causa essas comoções? Descartes
acredita que ambas as coisas, as emoções e as comoções corporais, são idênticas.
As emoções perdem seu caráter de tendência a um bem (ou de aversão ante um mal)
e são reduzidas a estados afetivos corporais. Sentir uma emoção é sentir seu
corpo.
Na moral
clássica há um conflito a ser harmonizado entre a parte sensitiva e a parte intelectiva,
enquanto que na moral moderna há um conflito a ser harmonizado entre a mente e o
corpo. Em termos gerais, ao longo dos séculos subsequentes, diversas teorias
psicológicas foram desenvolvidas para explicar as emoções, mas que se enquadram
na visão de Descartes: James-Lange, Cannon-Bird, Schachter-Singer, Antonio
Damasio etc.
Magda Arnold
Essa
psicóloga tcheca se inspira na doutrina das paixões de Santo Tomás e a atualiza
com os avanços biológicos e fisiológicos disponíveis na metade do século XX.
Ela é responsável por um giro cognitivo na psicologia das emoções.
Para
Arnold, sentimentos são níveis baixos de afetividade, nos quais basicamente se
distinguem sentimentos de agrado e desagrado. Por outro lado, as emoções seriam
níveis mais elevados de afetividade e nas quais se interpõem cognições (ela as
chama de appraisals, ou avaliações). Estas
cognições não são juízos intelectuais propriamente, mas um juízo sensorial, algo
muito mais imediato, quase instantâneo, que se soma à percepção sensitiva. É
equivalente ao sentido da estimativa de Santo Tomás e que para os homens e
animais lhes dá o juízo de bondade ou maldade de um objeto. A emoção é portanto
uma realidade psicossomática. O juízo sensorial, ou seja, o appraisal, é como um detector formal do
objeto. Santo Tomás acrescentaria que o appraisal
não é um elemento determinante da conduta, mas a ele acrescenta-se também a
vontade. O homem pode escolher motivar-se de acordo com as emoções/appraisals, mas também escolher de
acordo com a vontade.
Ela desenvolve uma teoria das emoções notoriamente inspirada em Santo Tomás:
9 de agosto de 2023
A existência não existe: a estrutura paradoxal da existência
A tese
central do filósofo americano Frederick Wilhelmsen é a de que a existência não existe. Ela carece de
uma estrutura e, portanto, não pode ser afirmada nem negada. Por isso
Wilhelmsen propõe algo como uma “metafísica transdialética”, paradoxal,
barroca, uma metafísica que, nas suas palavras, não seja “covarde”, mas
“cavalheiresca”. Veremos como ele chega lá, mas antes é preciso que retomemos o
desenvolvimento de alguns conceitos metafísicos fundamentais da Antiguidade e
da Idade Média.
Parmênides → Heráclito → Platão → Aristóteles → Avicena → Averróis → Santo Tomás de Aquino
Parmênides provavelmente foi o primeiro filósofo pré-socrático
que sacrificou o múltiplo, ou seja, o mundo conhecido da sensação. Ele substantivou
o “é” verbal, típico do mundo da intuição sensível, e o transformou em um
“Ser”. Assim, o “é” se converte no Uno, Imutável, Incausado, Infinito etc. Heráclito, por outro lado, insistiu em
negar qualquer vínculo entre o ser e a realidade sensível. Ele concordava que a
inteligência unifica e apresenta a realidade como algo que “é”, mas negou que
esse fator fosse extramental. Em outras palavras, para Heráclito o Ser é uma
mentira e o mundo real é composto de mudanças constantes.
A filosofia
de Platão representa um esforço para
equilibrar as tensões do ser descobertas por Heráclito e Parmênides. Para
Platão, ser significa “ser igual a si mesmo”, ou seja, o ser platônico é isso que já é, o conseguido, o
finalizado, o feito. Ortega y Gasset não deixa de apontar em Platão a velha
tendência grega a interpretar a realidade como presença. De qualquer forma, quando
constitui o ser como “mesmidade”, Platão indica que, apesar do fenômeno da
mudança, o ser permanece em seu estado puro na forma. Este celular que tenho em mãos sofre mudanças
constantemente, seja de posição, seja de alguma qualidade (cor etc.), seja sua
constituição material, mas ele continua sendo “si mesmo”. Houve uma mudança de
forma (preto para vermelho, por exemplo), mas o celular continua sendo “si
mesmo”. Ora, se o ser é “mesmidade”, então o ser se encontra em estado puro
somente dentro da mente. As ideias ou formas do ser não mudam. O ser nas coisas
muda, suas formas não. Os homens vêm e vão, as coisas belas se apresentam ao
mundo e logo morrem, mas as ideias de humanidade e beleza permanecem idênticas.
As formas estão “localizadas”, digamos assim, na inteligência humana, que as
capta em sua pureza. Para o homem vulgar, a realidade é apenas e tão-somente aquilo
que afeta os sentidos e paixões. Para o homem inteligente, há uma diferença
entre realidade e ilusão. Platão ensina que o mundo sensível “participa” na
inteligibilidade do mundo das ideias ou formas. As coisas são apenas “exemplos”
imperfeitos e imaturos das formas do ser. As formas existem, ou seja, se
“exibem”, como ensinou Mário Ferreira, mas não existem “em absoluto”, ou seja,
não são ser. Destruir a forma implica, portanto, em destruir o mundo dos entes
e simultaneamente assassinar a inteligência.
No entanto,
Aristóteles “localizou” a relação
forma-coisas de outra maneira. Platão, como vimos, pensou essa relação como se
originando na mente e terminando nas coisas. Para o Estagirita, no entanto, as
formas são descobertas no mundo das coisas juntamente com suas próprias
configurações. Em outras palavras, Aristóteles nega o “mundo duplicado” de
Platão e nega, portanto, que haja um ser fora das coisas. Ademais, Platão, como
vimos, entendia a mudança como uma substituição de uma forma por outra.
Aristóteles não via assim: para ele, a mudança contém um “princípio” ou
“elemento” que, como bem sabemos, se chama “potência” (ou às vezes
“potencialidade”). Ele descobriu uma primeira potência radical que está
presente em todas as coisas suscetíveis a mudança: o “princípio de não-ser
relativo” (qualquer coisa que é pode deixar de ser) ou “infinitude” (qualquer
coisa é potencialmente qualquer outra coisa). Trata-se da famosa “matéria
prima” aristotélica. É a matéria prima que impede que tudo aconteça ao mesmo
tempo e simultaneamente permite que as coisas possam “acontecer”. A matéria
prima é o princípio do tempo, portanto. Por outro lado, para Aristóteles a
forma é uma limitação estrutural, ou determinação ativa, da coisa. É o que uma
coisa é agora. É a famosa atualidade. As formas são, portanto, os
atos da matéria, são os princípios que energizam e especificam a matéria,
determinando-a desta ou daquela maneira. A essas duas “causas internas” (matéria
e forma), Aristóteles acrescentou outras duas “causas externas” (o agente e a
finalidade), que, juntas, compõem a natureza.
A natureza e as quatro causas são uma e mesma coisa. A realidade é causalidade. Os erros filosóficos são erros sobre as
causas.
Há, no
entanto, atos que não são finalizados ou realizados. Os exemplos simples de
potência e ato que explicam as mudanças cotidianas, como uma parede que antes
era branca e agora é vermelha ou um animal que se move numa floresta, não são
capazes de explicar os “atos vitais”, ou seja, ações como pensar, contemplar,
imaginar, conhecer, amar etc. Posso pensar em “x” e continuar pensando em “x”
indefinidamente, assim como posso amar “y” e continuar amando “y”
indefinidamente etc. Nas mudanças estritamente falando, nas mudanças simples,
há um presente que tem um passado. Nos atos vitais, o “processo” se identifica
com o próprio ato; não há propriamente um ato que emane de uma potência. Em
suma: à mudança estrita chamamos enteléquia, à mudança ampla imanente chamamos
energia. Wilhelmsen aponta que Aristóteles fracassou ao insistir que o ato
formal se esgota na matéria, ou seja, na ordem do ser o ato formal não
desempenha nenhuma atividade “para o ser mesmo”. É como se a transcendência
aristotélica estivesse “encurtada”, algo com uma “transcendência material”.
Se para
Platão ser significa forma, para Aristóteles ser significa substância, ou seja,
a raiz ou base do ser. É a substância (ou forma substancial) que faz a coisa
ser o que é e fazer o que faz. A forma, para Aristóteles, simplesmente não existe.
Ele nega ostensivamente que a forma seja o principio ontológico do que quer que
seja. Muito bem, mas essa constatação nos impõe um dilema: se o ser só existe nas coisas compostas, ou seja, o principio do ser
não está nem na matéria nem na forma, mas essas coisas compostas só existem
através da matéria e da forma, então como essas coisas compostas podem ser ou
existir através de matéria e forma que não são nada em absoluto? Em poucas
palavras, as coisas compostas têm ser através de forma e matéria que, por sua
vez, não têm ser nenhum. Ortega não deixa de observar que o Deus aristotélico é
um “filósofo que se admira a si mesmo no espelho”. Não faz nada, não governa,
não age.
Ora, no
mundo islâmico o pensamento platônico e aristotélico foi mais bem preservado, e
foi no âmbito do Islã que houve certo desenvolvimento de suas descobertas. Avicena concluiu que se o “cavalo em si”
(ele gostava desse exemplo) existe tanto neste cavalo individual quanto no
“cavalo universal”, então o “cavalo em si” não é nem o existente individual nem
o existente universal. O “cavalo em si” não pode estar em dois “lugares” ao
mesmo tempo. Avicena deduziu uma distinção entre o principio de essência
(natureza) e o principio de ser (existência). Em outras palavras, essência e
existência são realmente distintas e, além disso, são distintas dos universais.
Há um “terceiro elemento” que pode ser compartilhado tanto pela existência
quanto pelos universais. Trata-se da essência (natureza), que em seu estado
puro é pura possibilidade de ser em alguma ordem, seja ela individual ou
universal. Portanto, o possível é anterior ao atual e, consequentemente, a
existência é um acidente da essência (natureza). Nas palavras de Avicena, a
existência “lhe ocorre” à essência (natureza). Enquanto para Aristóteles os
acidentes se derivam do ser, para Avicena o próprio ser também é um acidente da
essência (natureza). Deus confere às essências puras o acidente da existência
(ser) e, de certa forma, a essência desempenha um papel prévio e mais
primordial do que a existência. Ou seja, as coisas são antes de serem, digamos,
e assim a liberdade divina e a liberdade humana se convertem em um mito ou
superstição. A existência é “esvaziada” de importância, pois ele é mero
prolongamento da possibilidade. À moda de Leibnitz, os “predicados” estão
contidos na “mônada”. Xavier Zubiri não poderia estar mais de acordo: a
realidade é algo mais fundamental que o ser ou a existência.
Averróis nota que se a existência é um acidente, se o
ser pertence à ordem acidental, então a existência tem de “funcionar” da mesma
maneira que os demais acidentes “funcionam”. Ora, o ser (existência) não é substância, nem quantidade, nem
qualidade, nem nenhuma categoria. Portanto, o ser nada é realmente. Absolutamente nada real, nenhuma coisa real, existe. É
necessária uma metafísica que contorne esse absurdo, que veja o ser
(existência) como um princípio último do real, mas que de forma alguma se identifique com o real.
Aqui entra
um aspecto sobre o próprio exercício da metafísica como atividade intelectual.
Wilhelmsen nota que tradicionalmente, como o fazem modernamente Étienne Gilson
e outros tomistas, a metafísica é considerada como uma atividade pertencente à
segunda operação da mente, ou seja, ao ato de julgar. Isso significa que o ser, a exemplo de quaisquer coisas, é
tratado pela mente como algo que se “vê” ou que se “presencia”, isto é, como
algo que você pode vislumbrar detidamente. Wilhelmsen, a exemplo de Mário
Ferreira dos Santos, discorda: a metafísica é mais bem uma atividade da
terceira operação da mente, ou seja, ao ato de arrazoar. O julgamento jamais alcançará a existência, pois a
existência não é um “ser isto ou aquilo”. O ser não é um objeto que possa ser
pensado pela inteligência humana. O intelecto deve portanto arrazoar sobre o ser como o “é”, e
jamais converter esse “é” a um objeto. Parece-me que Wilhelmsen propõe que a
metafísica parta sempre de raciocínios ontológicos em lugar de raciocínios
lógicos. É como se a metafísica tivesse que contentar-se com a obscuridade,
algo semelhante à obscuridade de que falam os místicos. Nas palavras de
Wilhelmsen, “[a metafísica] não alcança sua glória, mas se mostra orgulhosa por
haver sido fiel à luz da inteligência”.
Bem,
retomando o que ensinou Avicena, a essência (natureza) goza de três funções ontológicas:
(1) essência do mundo, no qual existe individualmente, (2) essência na mente,
na qual existe universalmente e (3) essência como essência. Mas, segundo Santo Tomás de Aquino, a função (3), essência
pura, é uma ficção. É algo que você pode cogitar, que você pode pensar, mas não
é algo que você possa cortar (cindir, como diria Santo Tomás) do ser, sob pena
de reduzir a essência ao não-ser, ao zero, ao nada. Ele conclui que o ser (existência) é o princípio metafísico mais
importante, que engloba a essência sem identificar-se com ela. O “ser” não
pode ser definido porque se situa fora da ordem das definições. A definição é o
que pensamos de uma coisa e responde à determinação da própria coisa, de sua
estrutura, e encontra-se arraigada na forma. Mas o “é” não pode ser concebido
porque não é nem tem estrutura ou forma.
Ora, embora
a existência englobe a essência, deve haver entre elas uma relação única e
radical. Daí Santo Tomás lança mão do conceito de “ente”. Ente é em português o
particípio presente de ser, assim como “temente” é particípio de “temer”. Ente
indica a atividade de existir, assim como temente indica a atividade de temer.
É quase um gerúndio, que também desempenha funções semelhantes a um particípio
presente. Se todos os entes, todos os “sendos”, são determinados, é impossível
que eles retroativamente determinem o próprio ser, a própria existência. Se a
determinação do ser não pode vir de fora dele, então forçosamente terá de vir
de dentro. O ser transcende a forma e a matéria, mas mostra-se racionalmente
como núcleo transcendente de tudo o que é.
A estrutura paradoxal da existência
O ser ou a
existência é, portanto, uma extramentalidade
radical. Em outras palavras, a existência não pode ser concebida nem
experienciada pelo homem e, portanto, está enraizada de maneira totalmente
externa à mente humana. É como e a existência portasse um princípio de
não-identidade com a natureza (essência). Enquanto os objetos são como que
“lançados” à inteligência e à sensibilidade, a existência nunca é dada, nunca
“está aí”, nunca é lançada. Assim, a essência ou natureza é o que Wilhelmsen
chama de ordem analítica da causalidade,
isto é, as causas aristotélicas são a base da análise científica. Uma análise
perfeita, portanto, é a resolução de determinada realidade em suas quatro
causas.
No entanto,
quando uma análise se separa da função
sintética da existência ocorre uma “fragmentação”. É o que aconteceu na era
racionalista, inaugurada por Descartes e potencializada por Gutenberg, uma vez
que a realidade foi dissecada em um mosaico de ideias modeladas por palavras
impressas em livros. O prejuízo filosófico foi enorme. A unidade de compreensão
humana do real perdeu-se em meio à fragmentação da vida: econômico vs. lúdico,
sacro vs. profano, alta cultura vs. cultura popular etc. A máquina é uma
espécie de arquétipo da mente analítica que se projeta no real. A análise,
divorciada da síntese, engendra uma hostilidade à unidade do ser e, por que não
dizer, à paz do ser.
Wilhelmsen
mostra que toda operação analítica perde “algo”. Não importa se a analise é
perfeitíssima: “algo” sempre desaparece. O homem apaixonado por uma mulher, ao
enumerar suas qualidades, perderá “algo” necessariamente. Esse “algo” não é
nada em concreto. É apenas e tão-somente o “ser” do analisado. O ato de existir transcende a ordem
analítica. Em termos estéticos, o esse
(ser) é barroco puro, ou seja, não se reduz à mera soma da assombrosa
complexidade de materiais, sintetizando uma pluralidade de essências díspares.
O ser é um catalisador da natureza, das essências. Em termos práticos, não há
sinfonia, poema, crise moral ou intuição criativa que se explique pela
conjunção de suas causas.
O filósofo
que assim procede, ou seja, o filósofo que é capaz de entender que o “é” da
existência não se apresenta, não se presencia, no real como um objeto, intui o
que Wilhelmsen chama de transcendência
negativa. Em outras palavras, a
existência não existe, ou ainda, a existência não existe da maneira como a
projeção dinâmica das essências no tempo existe. Se pudéssemos criar uma imagem
da existência, seria algo como o vento que empurra um barco à vela. O vento não
está onde estava e não pode ser visto, mas o barco navega alegremente. Assim
também o Espírito preenche todas as coisas, mas não se identifica com nenhuma
delas.
Vale a pena
repetir: o ato de existir nem é nem não é.
Se eu afirmo que a atividade existencial é,
então a reduzo a uma coisa dotada ela mesma de existência. Se eu afirmo que a
atividade existencial não é, então
reduzo a coisa a um inexistente. O ser é formalmente sua própria contradição. O
ser denota sua identidade com o não-ser.
A
dificuldade em aceitarmos a estrutura paradoxal da existência está no fato de
que abordamos a existência do ponto de vista dialético, ou seja, identificamos
uma tensão entre opostos e a partir daí queremos contradizê-los para buscar uma
unidade superior. O pensador dialético é um sujeito obcecado com a tensão, mas
é incapaz de viver dentro dela. O paradoxo, no entanto, alcança a tensão e a mantém. O filósofo digno desse nome
rejeita afirmar ou negar a atividade existencial e filosofa dentro da tensão. Esse filósofo força-se
a concluir que a existência não é essência nem não é essência. O esse (ser) da coisa é algo que não pode
ser assimilado intencionalmente (quanto à esfera intencional da realidade cf.
Dicionário Filosófico de Mortimer Adler, verbete SER). Wilhelmsen belamente
afirma que:
Eu transcendo afirmativamente na fé fusionando-me com o Deus da Revelação mediante a graça, e transcendo negativamente na metafísica negando que o esse é natureza. [...] Por natureza, as coisas são não-entes. Todos nós somos nadas vindos ao ser, mas ainda que tenhamos sido feitos para ser, a existência não se arraiga em nós. A existência não se assenta na natureza da mesma maneira que as sementes se assentam na terra lavrada onde crescem e se convertem em parte do campo.
Com isso,
Wilhelmsen quer dizer que não há identidade metafísica entre a existência e a
natureza. Trata-se de uma verdade “extremamente radical”.
A metafísica mal-assombrada pelo nada
O fato de o
pensamento metafísico dos últimos séculos ter situado o ser ou existência no
nível da essência ou natureza detonou profundos efeitos na filosofia e na
cultura. Em especial, embora não só, a filosofia existencialista é um sintoma
dessa doença. O nada, que de certa forma sempre se encontrou sob a realidade passa agora a brotar de dentro do ser.
Heidegger
foi quem melhor expressou essa intuição ao interrogar-se por que existe o ser e
não antes o nada. Observe que para Heidegger o nada é uma função do ser. Se não
há o ser, então haveria, ou resultaria, o nada. Aqui notamos uma espécie de
fracasso da essência para o homem. Sim, pois se Wilhelmsen tem razão ao afirmar
que a essência ou natureza só é inteligível se a distinguimos do ser ou
existência, então a pergunta de Heidegger simplesmente não faz sentido. Foi
essa distinção ontológica que permitiu ao Ocidente desenvolver o mundo natural,
que soltou as amarras do desenvolvimento científico e tecnológico antes preso à
confusão entre natural e metafísico, entre ser e essência. Mas o homem que se
contenta em ver a natureza única e exclusivamente como essência se arrisca a
ser ameaçado pelo nada. É como se o homem contemporâneo tivesse resvalado ao
velho entendimento de outras civilizações segundo o qual ser existência e
essências são uma e mesma coisa. O próprio desenvolvimento tecnológico e
científico tomou as rédeas da civilização ocidental e, para continuar exercendo
sua hegemonia, não pode permitir que o ser se reintroduza na ordem da essência
e, portanto, o afoga no mar do esquecimento. O cansaço e o tédio do homem
contemporâneo é resultado não do progresso em si, mas desse afogamento do ser,
desse esquecimento ditatorial do ser em prol do próprio progresso científico e
tecnológico. Portanto, a pergunta de Heidegger não é uma pergunta efetivamente,
mas um sintoma do esquecimento do homem contemporâneo a respeito do ser. Ele
perdeu, digamos, a “densidade existencial” das coisas. É claro que o
desenvolvimento das matemáticas e da ciência moderna exige que o ser seja isolado.
Mas isolá-lo é uma coisa, esquecê-lo por completo é outra. Perguntar sobre o
não-ser (nada) é algo que só pode ocorrer a quem tome a natureza como ponto de
partida. Como descobriu Santo Tomás de Aquino, o ser abarca a essência, mas a
essência não inclui o ser. Se o homem contemporâneo insistir em não ir além da
essência, se insistir em não transcendê-la novamente, se afogará na angústia. E
a resposta para essa angústia é uma só: Deus.
Há, confirme
Norberto del Prado, uma não-identidade radical entre os entes – ou seja, uma
mesma árvore não é idêntica a uma outra árvore, mas é sim idêntica a si mesma –
e uma identidade do ser em Deus. Em outras palavras, no plano das essências há
uma dualidade mesmo-outro (mesma árvore, outra árvore), mas no plano da
existência há apenas identidade e não-identidade (é árvore, não é árvore).
Quando Heidegger substitui o ser pelo nada, trata o nada como uma alteridade do
ser, como se ser e nada fossem o “mesmo” e o “outro” típico dos entes na
natureza. O que o juízo afirma é apenas e tão-somente que a árvore é. O juízo não afirma que o ser da
árvore exista. O ser da árvore não é
um dado da experiência humana, não é algo do qual tenhamos experiência
cognitiva. A existência, novamente, é uma realidade extramental, ela não é nem
não é, ela escapa da ordem do “dado” e da objetividade. A existência não pode
ser contradita, no sentido de que não pode ser oposta ou dualizada. Não se
trata aqui de negar a existência, mas de negar a existência da existência.
Wilhelmsen
acredita que a inserção do “não-ser” no ser é consequência de uma teologia
protestante dialética.
Pessoa vs. natureza
Uma distinção
entre indivíduo e pessoa se faz notar em função da “localização” do ser na
existência ou na essência. Se Cristo é verdadeiramente uma pessoa que subsiste em duas naturezas,
então existe de algum modo uma distinção entre pessoa e natureza. Wilhelmsen
nota que a Cristandade tende a situar a personalidade dentro da estrutura do ser, consequentemente a natureza situa-se na
ordem da essência, o que a desveste do caráter divino que lhe havia outorgado o
pensamento clássico. Não sou eu que estou “a serviço” da natureza, mas é a
natureza que está a meu serviço.
Afinal,
quem sou eu? Este “quem” não é apenas a soma de tudo o que é, mas há um “plus”
ou “excesso”, que é o ato de existir. A personalidade humana só existe dentro
de sua fonte, que é Deus. Ela só existe em
Deu, o esse da pessoa é de Deus,
embora não seja, claro, o Esse de
Deus. Ora, se Deus é a Identidade da existência, então Ele também é a
Identidade da personalidade humana. O futuro da personalidade humana não depende
exclusivamente do futuro impessoal, ou seja, do conjunto de fatores causais já
dados em potência a ser atualizado. Em outras palavras, o futuro pessoal não se
reduz à dimensão material da natureza humana, ou seja, a liberdade pessoal transcende
a determinação inscrita na ordem da natureza. Meu futuro, portanto, está em
Cristo. É nEle que serei conhecido, é nEle que me encontrarei em plenitude.
Minha identidade em Cristo é o pleno retorno de meu ser a sua fonte.
Fonte: Frederick Wilhelmsen, The Paradoxical Structure of Existence, Routledge, Nova York, NY, EUA, 2015.
17 de julho de 2023
Mais insights estoicos
Aprender a
morrer, de acordo com os estoicos, é desaprender
a ser escravo.
* * *
Sócrates
costumava dizer que a morte é como alguém que brinca usando uma máscara
assustadora, vestida de bicho-papão para assustar as crianças pequenas. O sábio
remove cuidadosamente a máscara e, olhando-a de frente, não encontra nada que valha a pena temer.
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Uma vez que
realmente aceitamos nosso próprio fim como um fato inevitável da vida, faz tão
pouco sentido desejar a imortalidade como desejar corpos tão duros quanto
diamante ou poder voar nas asas de um pássaro. [...] Como a morte está entre as coisas mais certas da vida, para um homem
sábio, ela deve estar entre as menos temidas.
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Os estudos
abrangentes de Zenão o convenceram de que disciplinas intelectuais como lógica e metafísica poderiam contribuir
potencialmente para o desenvolvimento de nosso caráter moral. Zenão estabeleceu
um currículo para o estoicismo dividido em três tópicos abrangentes: ética,
lógica e física (que inclui metafísica e teologia).
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Os estoicos
adotaram a divisão socrática das virtudes cardeais em sabedoria, justiça,
coragem e moderação. As outras três virtudes podem ser entendidas como a
sabedoria sendo aplicada às nossas ações em diferentes áreas da vida. A justiça é a sabedoria aplicada à esfera
social, no nosso relacionamento com outras pessoas. Mostrar coragem e moderação significa dominar nossos medos e desejos,
respectivamente, superando o que os estoicos chamavam de “paixões”. [...] Como
Sócrates havia dito anteriormente, as vantagens externas na vida só são boas se
soubermos usá-las com sabedoria. No entanto, se algo pode ser usado para o bem
ou para o mal, não pode ser realmente bom em si mesmo, portanto, deve ser
classificado como “indiferente” ou neutro. Os estoicos diriam que coisas como
saúde, riqueza e reputação são, no máximo, vantagens ou oportunidades, em vez
de serem coisas boas por si sós. As vantagens sociais, materiais e físicas, na
verdade, trazem aos indivíduos tolos mais oportunidades
de prejudicar a si mesmos e aos outros. [...] O sábio estoico, ou o homem
sensato, não precisa de nada, mas usa tudo para o bem; o tolo acredita que
“precisa” de inúmeras coisas, mas as utiliza para o mal.
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Marco
aprendeu que os estoicos acreditavam que havia um relacionamento entre o verdadeiro amor à sabedoria e uma maior
capacidade de resiliência emocional. Sua filosofia continha em si uma
terapia moral e psicológica (therapeia)
para mentes perturbadas pela raiva, medo, tristeza e desejos doentios. Eles
chamaram o objetivo dessa terapia de apatheia,
que não significa apatia, mas liberdade em relação aos desejos e emoções
prejudiciais (paixões). Dizer que Apolônio ensinou a filosofia estoica a Marco
é, portanto, também dizer que o treinou para desenvolver resiliência mental por
meio de uma forma antiga de psicoterapia e autoaperfeiçoamento, às vezes
descrita como a “terapia das paixões”.
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Epicteto
dizia a seus alunos que os fundadores do estoicismo distinguiam entre dois estágios de resposta a qualquer evento,
incluindo situações ameaçadoras. Primeiro vêm as impressões inicias (fantasia), que são impostas
involuntariamente à nossas mentes pelo que nos cerca, quando somos inicialmente
expostos a um evento como a tempestade no mar. [...] Até mesmo a mente de um
perfeito sábio estoico será inicialmente abalada por choques abruptos desse tipo,
e ele se afastará instintivamente, tomado pelo medo. Essa reação é fruto não de
um julgamento de valor incorreto a respeito dos perigos enfrentados, mas de um
reflexo emocional que surge em seu corpo, que ignora temporariamente a razão.
[...] Por outro lado, a capacidade humana de pensar pode fazer com que
perpetuemos nossas preocupações além desses limites naturais. A razão, nossa maior bênção, também é a
nossa maior maldição. No segundo estágio de resposta, os estoicos dizem que
geralmente adicionamos julgamentos voluntários de “consentimento” (sunkatatheseis) a essas primeiras
impressões automáticas. Aqui, a resposta do sábio estoico difere daquela
apresentada pela maioria das pessoas. Ele não se deixa levar pelas reações
emocionais iniciais a uma situação que tenha invadido sua mente. Epicteto
afirma que o estoico não deve consentir ou confirmar essas primeiras
impressões, tais como a ansiedade diante do perigo. Em vez disso, ele as
rejeita como sendo um engano, analisa-as com indiferença, abandonando-as.
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Sêneca
também observou que certos infortúnios atingem o homem sábio sem incapacita-lo,
como a dor física, as doenças, a perda de amigos ou filhos ou catástrofes
infligidas por derrota na guerra. Esse tipo de coisa pode arranhá-lo, mas jamais feri-lo.
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O Hamlet de
Shakespeare exclama: “Não existe nada bom ou ruim, mas pensar faz com que seja
assim”. Os estoicos concordariam que não
há nada de bom ou ruim no mundo externo. Somente o que depende de nós pode
ser considerado verdadeiramente “bom” ou “ruim”, o que torna esses termos
sinônimos de virtude e vício.
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A
catastrofização geralmente envolve o pensamento “E se?”. E se o pior cenário
possível vier a acontecer? Isso seria insuportável. Por outro lado,
descatastrofizar tem sido descrito como sair
do “E se?” para o “E daí?”: Então, e se tal coisa acontecer? Não é o fim do
mundo; eu posso lidar com isso. [...] Lembrar-seda transitoriedade dos eventos
é uma das estratégias favoritas de Marco. Uma maneira de fazer isso é se
perguntar: “Realisticamente, o que provavelmente acontecerá a seguir? E depois?
E então, o que mais?”. E assim por diante.
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Uma das
lendas mais famosas sobre Diógenes, o Cínico, conta como Alexandre, o Grande,
procurou o filósofo. É uma justaposição de opostos: Diógenes viva como um
mendigo, e Alexandre era o homem mais poderoso de todo o mundo conhecido. No
entanto, quando Alexandre perguntou a Diógenes se havia algo que poderia fazer
por ele, o Cínico teria respondido que Alexandre poderia sair da frente, pois estava bloqueando o sol. Diógenes podia
falar com Alexandre como se fossem iguais porque era indiferente à riqueza e ao
poder. Diz-se que Alexandre se afastou e retornou às suas conquistas,
aparentemente sem ter adquirido muita sabedoria.
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Outra
técnica útil de esclarecimento de valores para estudantes de estoicismo envolve
a criação de duas listas curtas em colunas lado a lado intituladas “Desejado” e
“Admirado”:
1. Desejado. As coisas que você mais deseja para si na
vida.
2. Admirado. As qualidades que você considera mais
louváveis e admiráveis em outras pessoas.
A princípio,
essas duas listas quase nunca são idênticas. Por que elas são diferentes e como
sua vida mudaria se você desejasse as qualidades que considera admiráveis em
outras pessoas? Como os estoicos poderiam dizer, o que aconteceria se você tornasse
a virtude sua prioridade número um na vida? O aspecto mais importante desse exercício
de esclarecimento de valores, para os estoicos, seria compreender a verdadeira
natureza do bem maior do homem, elucidar nosso objetivo mais fundamental e
viver de acordo com ele. Tudo no estoicismo remete a um objetivo final de
apreender a verdadeira natureza do bem e viver de acordo com isso.
Depois de
esclarecer seus valores fundamentais, você pode compará-los às virtudes
cardeais estoicas da sabedoria, justiça, coragem e moderação.
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Lúcio
estruturou toda a vida em torna da busca por prazeres vazios como forma de
evitar entrar em contato com suas emoções. Os psicólogos sabem que as pessoas
geralmente adotam hábitos que consideram prazerosos – das redes sociais ao crack – como uma maneira de se distrair
ou reprimir sentimentos desagradáveis. No caso de Lúcio, o álcool e outras diversões
talvez lhe oferecessem uma maneira de escapar da preocupação com suas
responsabilidades como imperador. Como veremos, não há nada de errado com o
prazer, a menos que comecemos tanto a desejá-los que negligenciemos nossas
responsabilidades ou substituamos atividades saudáveis e gratificantes por atividades
que não o são.
Buscar
prazeres vazios e transitórios nunca levará à verdadeira felicidade em longo
prazo. Entretanto, o prazer pode ser complexo – pode nos atrair se passando por
algo que não é. O que todos nós realmente procuramos na vida é o sentimento de
autêntica felicidade e satisfação que os estoicos chamavam eudaimonia. [...] As pessoas ainda confundem prazer com felicidade
e frequentemente acham difícil imaginar outra perspectiva de vida.
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Contudo, o valor de um homem pode ser medido pelas
coisas que ele estima. Gostar do sofrimento dos outros é ruim. Sentir
prazer em ver homens arriscando perder a vida ou sofrer ferimentos graves
seria, portanto, considerado um vício pelos estoicos. Por outro lado, é bom
gostar de ver as pessoas florescerem. Você pode pensar que isso seja óbvio; no
entanto, o prazer pode nos cegar até o ponto de não vermos as consequências para
os outros e para nós mesmos.
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Há mais
dois pontos-chaves sobre alegria estoica que devem ser enfatizados:
1. Os
estoicos tendiam a ver a alegria não como o objetivo da vida, que é a
sabedoria, mas como um subproduto dela, portanto, acreditavam que tentar encontra-la
diretamente poderia nos levar ao caminho errado se a busca fosse à custa da
sabedoria.
2. A
alegria no sentido estoico é fundamentalmente ativa, e não passiva; vem da percepção
da qualidade virtuosa de nossas próprias ações, das coisas que fazemos,
enquanto os prazeres corporais surgem de experiências que acontecem conosco,
mesmo que sejam consequência de ações como comer, beber ou fazer sexo.
Marco diz,
portanto, que não é nos sentimentos, mas nas ações, que reside o seu bem
supremo.
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Em outras
palavras, os estoicos não eram desmancha-prazeres. Marco estava convencido de
que poderia obter tanta satisfação saudável com as coisas simples que
aconteciam em sua vida quanto os que buscava prazer, como seu irmão,
satisfazendo vorazmente seus desejos doentios. Sócrates também alegou, paradoxalmente,
que aqueles que praticam o controle realmente obtêm mais prazer com coisas como
comida e bebida do que aqueles que se entregam a elas em excesso. A fome é o melhor sabor, disse ele, enquanto,
se comermos demais, estragamos nosso apetite. [...] No entanto, um paradoxo
ainda mais profundo reside na noção de que, em última análise, a virtude da autodisciplina pode se tornar uma fonte
maior de “prazer” do que comida ou outros objetos externos de nosso desejo.
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Pensando
bem, poucos afirmariam que essa é a maneira mais gratificante de passar a vida.
Ninguém nunca teve as frases “Eu gostaria de ter visto mais televisão” ou “Eu
gostaria de ter passado mais tempo no Facebook” gravadas na lápide.
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Devemos nos
lembrar de que a dor é sempre suportável,
pois é sempre aguda ou crônica, mas nunca as duas coisas ao mesmo tempo. Um dos
pais da igreja, Tertuliano, resumiu a ideia dizendo que Epicuro cunhou a máxima
“um pouco de dor é desprezível, e uma grande dor não é duradoura”. Portanto,
você pode aprender a suportar dizendo a si mesmo que a dor não durará muito se
for intensa ou que será capaz de suportar algo muito pior se a dor for crônica.
As pessoas frequentemente se opõem a isso afirmando que a dor que sentem é ao
mesmo tempo crônica e aguda. [...] O ponto é que uma dor crônica além da nossa
capacidade de suportar teria nos matado, então, o fato de ainda estarmos de pé
prova que somos capazes de suportar algo muito pior. Embora isso possa ser
difícil de aceitar para algumas pessoas, os participantes dos meus cursos online que sofreram muitos anos com dor
crônica relataram que essa máxima epicurista foi de grande ajuda para eles,
assim como para muitas pessoas ao longo dos séculos anteriores. [...] Por que
os antigos consideravam essa estratégia específica uma maneira útil de lidar
com a dor? Quando as pessoas estão realmente em dificuldade, elas se concentram
em sua incapacidade de lidar com o problema e na sensação de que o problema
está ficando fora de controle. “Eu simplesmente não aguento mais isso!”. No
entanto, Epicuro afirma que, concentrando-se nos limites de sua dor, em termos
de duração ou gravidade, é possível desenvolver uma mentalidade mais voltada
para o enfrentamento e menos sobrecarregada por preocupações ou emoções negativas
a respeito de sua condição. Marco também acreditava ser útil pensar em sua dor
como confinada a uma parte específica do corpo, em vez de se deixar consumir
por ela, imaginando-a mais difundida. A dor quer dominar sua mente, tornando-se
a história toda.
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Então, como
Marco pôde superar sua total falta de experiência e se tornar um líder militar
tão talentoso? Como permaneceu calmo diante de situações incertas e contra
inimigos tão formidáveis? Uma das técnicas estoica mais importantes empregadas
por ele foi a de agir “com uma cláusula de reserva” (hupexhaire sis). [...] Essencialmente, significa realizar qualquer ação enquanto aceita com
tranquilidade que o resultado não está inteiramente sob seu controle.
Aprendemos com Sêneca e outros que isso pode assumir a forma de uma advertência,
como “Se o destino permitir”, “Se Deus quiser” ou “Se nada me impedir”. [...]
Estamos perseguindo um resultado eterno “com a reserva” de que o resultado não depende
inteiramente de nós. [...] De fato, Marco chega ao ponto de dizer que, se você não
age com a cláusula de reserva em mente, qualquer falha imediatamente se tornará
um mal para você, ou uma fonte potencial de sofrimento.
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Enquanto a
psicoterapia moderna geralmente se concentra na ansiedade e na depressão, os
estoicos se debruçavam mais sobre o problema da raiva. [...] Eles acreditavam
que a raiva é uma forma de desejo.
[...] A raiva geralmente consiste no desejo de prejudicar alguém, porque
achamos que fez algo errado e merece ser punido. [...] A raiva decorre da ideia
de que uma injustiça foi cometida ou de que alguém fez algo que não deveria ser
feito. A raiva está frequentemente associada à impressão de que você, de alguma
forma, foi ameaçado por outra pessoa, tornando a raiva uma companheira intima
do medo. [...] Não devemos responder a pessoas desagradáveis e inimigos com
raiva, mas tratar isso como uma oportunidade de exercitar nossa própria
sabedoria e virtude. Os estoicos veem as pessoas problemáticas como se fossem
uma receita de um médico ou de um parceiro de treinamento designado por um
treinador de luta livre. [...] Apolônio é retratado dizendo: “Existem homens
maus – eles são uteis para ti; sem eles, que necessidade haveria de se ter
virtudes?”.
A próxima estratégia
envolve imaginar a pessoa de quem você está com raiva de uma maneira mais
completa e abrangente – não se concentre apenas nos aspectos de seu caráter ou
comportamento que você considera mais irritantes. Marco diz a si mesmo para
considerar com cuidado o tipo de pessoa que costuma ofendê-lo. Então,
imagina-os pacientemente em suas vidas diárias: comendo em suas mesas de
jantar, dormindo sem suas camas, fazendo sexo, descansando, e assim por diante.
[...]
Nenhum
homem faz o mal conscientemente, o que também implica que ninguém o faz de
propósito. [...] Se está fazendo o que é errado, você deve assumir que é porque
não sabe agir de uma maneira melhor. Como Sócrates indicou, ninguém quer
cometer erros ou ser enganado; toda as criaturas racionais desejam
inerentemente a verdade. [...] Todos se ressentem de ser chamados de cruéis ou
desonrosos. Em certo sentido, acreditam que o que estão fazendo é certo ou pelo
menos aceitável. Não importa quão perversa aquela conclusão possa parecer, ela
é justificada na própria mente de quem a formulou. Se pensarmos constantemente
nas outras pessoas como estando enganadas, e não simplesmente sendo maldosas,
como privadas de sabedoria para encarar seus desejos, inevitavelmente lidaremos
de maneira mais gentil com elas. [...] Da mesma forma, não julgamos as crianças
com severidade quando elas cometem erros, pois não sabem o que estão fazendo.
No entanto, os adultos ainda cometem os mesmos erros morais que as crianças.
Eles não desejam ser ignorantes, mas agem como tal sem ter essa intenção.
Lembrar que
as outras pessoas são humanas, e imperfeitas, pode ajuda-lo a receber críticas
(ou elogios) delas de uma maneira mais equilibrada e menos emocional.
[...]
As ações dos
outros são externas a nós e não podem danificar nosso caráter, mas nossa própria
raiva nos transforma em um tipo diferente de pessoa, quase como um animal, e,
para os estoicos, esse é o maior dano. “Outra pessoa me fez mal? Isso é
problema dela, não meu”.
Fonte: Donald Robertson, Pense como um imperador, CDG Edições, Porto Alegre, Brasil, 2022.
Veja também: A estupidez inteligente e outros insights estoicos