16 de setembro de 2023

Abstração e projeção


Podemos ser levados a crer que quanto mais naturalista, detalhada e fiel à realidade pictórica for uma obra de arte tanto mais desenvolvida e superior ela será em relação às representações abstratas e de inspiração geométrica. Inspirado pela obra e ensinos de Alois Riegl, o historiador alemão Wilhelm Worringer chega a conclusões não só divergentes como de certa forma contrárias a tal senso comum.

Worringer parte da ideia de que o gozo estético é um autogozo objetivado. Em outras palavras, a beleza extraída de uma obra de arte é resultado do contraste, ou mesmo fusão, da ampliação do olhar interno até o ponto que abarque toda a obra com a delimitação da imaginação para que a isole de seu ambiente originário. Se posso abandonar-me sem antagonismo interior à tal atividade de ampliação/delimitação, então disso resultará um sentimento de liberdade e prazer. O objeto estará como que compenetrado por minha atividade, por minha vida interior. Eis o “autogozo objetivado”. O “belo” seria uma projeção positiva, enquanto o “feio” uma projeção negativa.

Concomitantemente, identifica dois polos estilísticos claramente distintos encontrados na estética das obras de arte: (1) o afã de projeção sentimental (Einfühlung, ou “empatia”), cuja satisfação se encontra na beleza do orgânico, e (2) o afã de abstração, cuja satisfação se encontra na beleza do inorgânico, do que nega a vida, do cristalino.

Ora, se o autogozo objetivado é a definição mesma de gozo estético, então Worringer rejeita a ideia de que somente a projeção sentimental possa cumprir com louvor os critérios para extrair tal gozo da criação artística. Isso porque, com base no método criado por Riegl, a vontade artística absoluta, ou seja, a vontade artística desligada de quaisquer objetos, sendo uma exigência interior latente nos homens, se manifesta como vontade de forma. Toda obra de arte é, em seu mais intimo ser, tão-somente uma objetivação dessa vontade de forma.

Observe que a arte genuína é uma satisfação profunda de uma necessidade psíquica. Não cabe, portanto, confundir “arte” com “imitação”. Trata-se de um erro muito comum: a imitação é mera habilidade manual (um “gosto brincalhão pela reprodução de modelos naturais”) e carece de importância estética. A arte genuína é a expressão estilística da vontade artística absoluta.

O estilo resultante do afã de abstração – como nas formas de uma pirâmide ou nos mosaicos bizantinos – se trata de um impulso diametralmente oposto ao afã de projeção. A tendência abstrata se revela na vontade de arte dos povos em estado de natureza, na vontade de arte de todas as épocas primitivas e de certos povos orientais de cultura superior. Trata-se de uma tendência resultante de uma intensa inquietação interior ante os fenômenos do mundo circundante. Worringer lança mão da expressão agorafobia espiritual para designar tal impulso: algo como uma ansiedade em ficar em situações ou locais sem uma maneira de escapar facilmente ou em que a ajuda pode não estar disponível no caso de a ansiedade intensa se desenvolver. Há uma intensa necessidade por quietude, por desprender cada coisa individual pertencente ao mundo exterior de sua condição arbitrária e de sua aparente casualidade e eternizá-la mediante a aproximação a formas abstratas e em encontrar dessa maneira um ponto de repouso na fuga dos fenômenos. Observe: não há intromissão do intelecto no estilo abstrato, ou seja, não há nenhum tipo de aspiração a conformar-se a supostas leis de regularidade geométrica, mas sim uma necessidade interior elementar.

Os dois polos – projeção e abstração – são, ao fim e ao cabo, diferentes níveis de uma necessidade comum: a ânsia de alienar-se do próprio ego. Tal ânsia de alienação é incomparavelmente mais intensa e mais consequente no afã de abstração. Worringer não deixa de notar que a ânsia de alienação do ego é a essência suprema do gozo estético e, por que não, da felicidade humana mesmo.

Concluo portanto que a arte abstrata, embora primitiva em termos cronológicos, é primordial em termos ontológicos, pois é ela que retrata melhor o anseio dos homens em escapar da escravidão ao ego e alçar novos e maiores voos no plano sobrenatural. Os povos que não aposentaram sua arte abstrata mas, pelo contrário, a sofisticaram e aprofundaram, são provavelmente aqueles que melhor combinaram gozo estético e elevação espiritual.

Fonte: Wilhelm Worringer, Abstracción y naturaleza, Fondo de Cultura Económica, Cidade do México, México, 1953.