23 de julho de 2006

A abolição do Homem e o triunfo da Natureza

O escritor britânico C.S. Lewis (1898-1963), nascido na Irlanda do Norte, tornou-se relativamente conhecido no Brasil após o lançamento do filme As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa. Compondo uma série de sete excelentes histórias infantis, As Crônicas de Nárnia não representam, no entanto, o que há de melhor nos escritos de Lewis: seus livros de não-ficção.

Lewis foi ateu por muitos anos até que, em 1931, converteu-se ao Cristianismo, passando a freqüentar a Igreja Anglicana e a participar de seus ritos e cultos. Sua maior preocupação, porém, não era propagar especificamente a doutrina anglicana, mas explicar aos leitores os fundamentos do Cristianismo, fundamentos esses que Lewis entendia serem comuns a todas as denominações cristãs. Mas talvez ainda mais importante do que suas obras apologéticas sejam as contribuições de Lewis para refutar as bases do pensamento modernista, que se julga evoluído e mais inteligente em relação a seus antepassados atrasados, supersticiosos e burros.

The Abolition of Man (A Abolição do Homem) é, certamente, a obra de crítica ao modernismo mais conhecida de Lewis. Como o conservadorismo é, sob certos aspectos, uma reação ao modernismo e suas ideologias políticas - e sendo Lewis ele mesmo um conservador - espero, com este pequeno resumo, contribuir na formação do pensamento conservador brasileiro. Vou concentrar-me no argumento de Lewis, sendo que algumas questões paralelas por ele discutidas, embora pertinentes e importantes, serão desconsideradas, a título de brevidade.

* * *

C.S. Lewis inicia sua argumentação lançando uma crítica ao Livro Verde, escrito por Gaius e Titius. Trata-se de um livro de inglês, destinado a "meninos e meninas das últimas séries". Na verdade, tanto o nome do livro quanto dos autores são pseudônimos, uma vez que o propósito de Lewis é criticar as idéias ali contidas, e não propriamente os autores; Lewis não quer passar a impressão de que tem algo pessoal contra eles.

No segundo capítulo, Gaius e Titius citam a conhecida história de Coleridge na cachoeira. Havia dois turistas presentes: um a chamou de "sublime", e o outro, de "bonita". Dizem os autores: "Quando o homem disse Isto é sublime, ele parecia fazer um comentário sobre a cachoeira... Na verdade... ele não estava falando da cachoeira, mas dos seus próprios sentimentos. O que ele realmente disse foi Eu tenho um sentimento que minha mente associa à palavra 'Sublime'... Essa confusão está sempre presente na nossa linguagem. Aparentamos dizer algo muito importante sobre alguma coisa, e na verdade estamos apenas dizendo algo sobre nossos próprios sentimentos".

Lewis percebe nesse raciocínio, à primeira vista inofensivo, uma visão-de-mundo repulsiva. Dessa explicação de Gaius e Titius depreende-se que:

1) Todas as frases que contenham julgamentos de valor ('Isto é sublime' etc.) são, na verdade, expressões sobre o estado emocional de quem as emite.

2) Essas expressões não têm nenhuma importância.

Lewis critica duramente tais tentativas modernas de 'desmascarar' emoções, afirmando que (1) fazer crítica literária é difícil, já 'desmascarar' a emoção com base num lugar-comum racionalista está ao alcance de qualquer bocó e (2) a mente dos jovens, ao contrário do que se pensa, não precisa ser resguardada de supostos excessos de sensibilidade, mas, ao contrário, precisa ser "despertada do sono da fria vulgaridade".

Para entender a perversão empreendida por Gaius e Titius, Lewis explica que "Até bem recentemente, os homens em geral acreditavam que o universo tinha uma natureza tal que nossas reações emocionais poderiam tanto ser congruentes como incongruentes em relação a ele - acreditavam, na verdade, que os objetos não são meros receptores, mas podem merecer nossa aprovação ou desaprovação, nossa reverência ou nosso desprezo. O homem que chamou a queda-d'água de sublime não tinha simplesmente a intenção de descrever as suas próprias emoções: ele também afirmava que o objeto merecia tais emoções" (grifos do autor). A partir daí, Lewis cita uma série de autores antigos, desde Aristóteles e Platão até Santo Agostinho, lembrando que a educação tradicional por eles sugerida, ao contrário de 'desmascarar' emoções, era precisamente treinar o jovem a sentir prazer, repulsa e ódio em relação às coisas que realmente são prazerosas, repulsivas e odiáveis.

Em suma, há uma doutrina do valor objetivo, uma ordem objetiva, por assim dizer, ao qual todas as tradições, de uma maneira ou de outra, se referem a respeito do que é o universo e do que somos nós. Pois essa ordem objetiva é a responsável por gerar a convicção de que certas posturas são realmente verdadeiras e outras realmente falsas. A título de brevidade, já que as tradições dão diferentes nomes a essa ordem, Lewis a chamará sempre de Tao. "E, uma vez que nossas aprovações e desaprovações são assim reconhecimentos do valor objetivo ou respostas a uma ordem objetiva, os estados emocionais podem portanto estar em harmonia com a razão (quando sentimos afeição por aquilo que merece aprovação) ou em desarmonia com ela (quando percebemos que a afeição é merecida mas não conseguimos senti-la). Nenhuma emoção é, em si mesma, um julgamento...todas as emoções e sentimentos são alógicos. Mas eles podem ser razoáveis ou irrazoáveis na medida em que se conformam à Razão ou não conseguem conformar-se".

Os homens que estão fora do Tao podem, assim, adotar duas posturas: (1) como Gaius e Titius, devem se empenhar em remover os sentimentos da mente das novas gerações ou (2) encorajar sentimentos por razões que nada tenham a ver com "pertinência" ou "merecimento" intrínsecos.
A primeira opção, isto é, a mera tentativa de neutralizar ou reverter os sentimentos despertados perante objetos e situações, a título de tornar as pessoas "objetivas" ou "racionais" resultará no que Lewis chama de "homens sem peito". Essa expressão foi inspirada em Alanus ab Insulis, segundo o qual a cabeça domina o estômago por meio do peito - que é o trono das emoções transformadas em sentimentos estáveis pelo hábito treinado. A cabeça é a razão, o peito os sentimentos estáveis e o estômago as emoções viscerais, desmedidas, irrazoáveis. Não é sem espanto constatarmos que, atualmente, pessoas assim são chamadas de "intelectuais". Lewis afirma, com um leve toque irônico, que "Suas cabeças não são maiores que as comuns: é a atrofia do peito logo abaixo que faz com que pareçam assim".

Ora, se pensarmos de maneira mais detida sobre essa questão, em especial sobre os autores do Livro Verde, veremos que não é verdade que eles desejem criar "homens sem peito". Isso fica claro quando percebermos que o próprio Livro Verde, o próprio fato de ter sido escrito e publicado, é um desejo de incutir novos valores e sentimentos nos leitores. Parece que os autores desmascaram os sentimentos e valores, e efetivamente o fazem, mas não é verdade que desejem parar por aí, senão não teriam escrito o livro que, exatamente pelo fato de ser sido escrito, manifesta um propósito de propagar novos valores aos jovens.

Titius e Gaius, ou quaisquer Inovadores que, semelhantemente a eles, desejem posicionar-se fora do Tao mas, mesmo assim, encontrar bases "realísticas" para novos valores, podem adotar duas posturas:

1) A base realística do "verdadeiro valor" reside na utilidade da ação para a comunidade. Ou seja, bom é aquilo que é útil para a comunidade. Mas tal postura exige a solução de um dilema: se nem toda a comunidade pode morrer, pois nesse caso a comunidade se extinguiria, então alguns membros dela deverão se sacrificar para proteger toda ela, como soldados num país em guerra. Levanta-se aqui a razoabilíssima questão: "Por que logo eu deveria ser um dos que se arriscam?" No fim das contas, o Inovador terá de apelar, afirmando que "a sociedade tem de ser preservada" é uma proposição racional em si, e não meramente sentimental; mas isso equivaleria, precisamente, a retornar ao Tao!

2) A base realística do "verdadeiro valor" reside nos instintos. Ora, mas isso é uma grande bobagem: dizer que alguém deve agir em obediência ao instinto é apenas uma maneira elegante de dizer que não se sabe por que agir assim. Afinal, alguns instintos devem ser obedecidos, outros não. Mesmo os Inovadores mais empedernidos reconhecem isso. Todavia, voltamos à questão: quais as bases para se privilegiar um instinto e desprezar outro? No fim das contas, o Inovador terá de apelar a um critério de decisão sobreposto ao instinto, dando cabo da própria teoria dos instintos.

Percebemos então, em ambas as posturas acima, que os Inovadores atacam os valores tradicionais, o Tao, fazendo uso velado e deformado do próprio Tao. Lewis afirma que as ideologias surgem exatamente daí: "Tudo aquilo que se pretende ser um novo sistema ou (como se diz agora) uma 'ideologia' consiste em fragmentos do próprio Tao, arbitrariamente arrancados de seu contexto e então hipertrofiados até a loucura em seu isolamento, mas devendo ainda ao Tao, e somente a ele, a validade que possuem". E conclui: "A capacidade da mente humana para inventar novos valores não é maior do que a de imaginar uma nova cor primária, ou, na verdade, a de criar um novo sol e um novo céu no qual ele se mova".

Ora, quando os homens optam por sair do Tao, qual sistema de valores passarão a adotar? Se você não se dispõe a obedecer ao Tao, tampouco a cometer o suicídio, a obediência aos impulsos e gostos imediatos é a única via possível. Quando todas as noções que dizem "isto é bom" são desmoralizadas, permanece a que diz "eu quero".

O homem moderno, os Inovadores e Manipuladores do nosso tempo, sem o Tao ou com um Tao brutalmente deturpado, passam a manipular a Natureza, a fim de satisfazer seus desejos imediatos. É a chamada "conquista da Natureza pelo Homem", um eufemismo para o progresso das ciências aplicadas.

Lewis mostra que essa conquista, além de falsa, é inversa: é a Natureza que está conquistando o Homem. Todas as invenções, todos os "avanços" e "progressos", não representam o poder do Homem sobre a Natureza, mas o poder de alguns homens sobre o resto dos homens com a Natureza como instrumento. Avião, rádio, internet: não se pode dizer que estamos conquistando a Natureza com eles. Afinal, o Homem é tanto sujeito quanto objeto de tal poder: aviões são bons, mas não quando nos jogam bombas na cabeça; o rádio é bom, mas não quando terroristas o usam para intercomunicarem-se; a internet é boa, mas não quando é usada por Manipuladores para vasculhar nossa intimidade.

O que se quer dizer com isso é que essas invenções, muito além de apenas nos trazerem confortos e divertimentos, trazem em si o acúmulo cada vez maior de poder nas mãos de alguns poucos homens, à medida que a modernidade "avança". Lewis nos propõe um exercício de imaginação: como será o século C d.C.? Como estaremos vivendo lá pelo ano 10.000 d.C.? Quanto mais o tempo passa, cada vez menos homens têm cada vez mais poder em suas mãos. "Os últimos homens, longe de serem os herdeiros do poder, serão os que mais estarão sujeitos à mão mortal dos grandes Planejadores e Manipuladores, e serão os menos capazes de exercer algum poder sobre o futuro. Cada novo poder conquistado pelo homem é da mesma forma um poder sobre o homem. Cada avanço o deixa mais fraco, ao mesmo tempo que mais forte. O último estágio virá quando, mediante a eugenia, a manipulação pré-natal e uma educação e propaganda baseadas numa perfeita psicologia aplicada, o Homem alcançar um completo domínio sobre si mesmo. A natureza humana será a última parte da Natureza a se render ante o Homem".

Estes homens do futuro não serão homens: serão artefatos. "A conquista final do homem mostrou-se a abolição do Homem". A raça humana estará sujeita a alguns poucos indivíduos que, por sua vez, estarão sujeitos àquilo que neles mesmos é puramente "natural" - aos seus impulsos irracionais. A Natureza controla os Manipuladores, vencendo-os, em vez deles a vencerem.

Todas as coisas estarão reduzidas à mera condição de Natureza com o propósito, vejam vocês, de "conquistá-las". Isso tudo porque, estando fora do Tao, nossos valores resumem-se a impulsos e gostos. Lewis nos explica que "quando compreendemos uma coisa analiticamente e a dominamos e usamos para a nossa própria conveniência, nós a reduzimos à condição de 'Natureza'...e a tratamos quantitativamente. Realiza-se a supressão de certos elementos, impedindo que tenhamos uma percepção completa do objeto. As estrelas perderam seu aspecto divino conforme a astronomia se desenvolveu, e o Deus Morto não tem nenhuma função na agricultura da era química. As grandes mentes sabem muito bem que o objeto, tratado dessa forma [analítica], não passa de uma abstração artificial, e que com esse processo algo da sua realidade foi perdido".

A esse processo no qual o Homem cede cada vez mais objetos e, finalmente, a si próprio, em busca de poder, Lewis chamada de "oferta de bruxo". Uma expressão certamente surpreendente, uma vez que a nós parece que ciência aplicada e bruxaria situam-se em pólos opostos. Lewis explica, porém, que "Existe algo que une a bruxaria e a ciência aplicada ao mesmo tempo que se separa da 'sabedoria' dos tempos antigos. Para os sábios da antiguidade, o problema principal era como conformar a alma à realidade, e a solução encontrada foi o conhecimento, a autodisciplina e a virtude. Tanto para a bruxaria quanto para a ciência aplicada, o problema é como subjugar a realidade aos desejos dos homens, e a solução encontrada foi uma técnica; e ambas, ao praticarem essa técnica, se põem a fazer coisas até então consideradas repulsivas e impiedosas - tais como desenterrar e retalhar cadáveres".

A solução para esse terrível problema? Lewis até mesmo imagina e cogita uma "ciência regenerada", uma ciência que, ao tentar explicar algo, não abolisse esse algo, adquirindo o conhecimento por um preço mais módico do que a vida. Mas a tarefa de efetivamente propor um plano que reverta ou neutralize a ciência moderna parece estar acima da capacidade de Lewis, que admite nem mesmo saber exatamente o quê está pedindo com essa "ciência regenerada".