30 de dezembro de 2022

A autoestima é a psicologia do Anticristo


Viveu então, entre os poucos que ainda acreditavam no espiritismo, um homem de dons excepcionais - muitos o chamavam de super-homem - que estava longe de ser uma criança tanto na mente quanto no coração. Ele ainda era jovem, mas, graças ao seu gênio extraordinário, aos trinta e três anos conquistou a reputação de excepcional pensador, escritor e reformador social. Ciente de seu grande poder espiritual, sempre foi um espírita convicto e sua inteligência límpida sempre lhe apontava a verdade daquilo em que deveria crer: o bem, Deus, o Messias.

Ele acreditava nisso, mas amava apenas a si mesmo. Ele acreditava em Deus, mas no fundo de sua alma, inconscientemente e involuntariamente, preferia a si mesmo. Ele acreditava no Bem, mas o olho da Eternidade que tudo vê, sabia que este homem se ajoelharia diante do poder do mal assim que o vencesse; não com o engano de sentimentos ou paixões baixas, nem com a sedução de um poder superior, mas apenas estimulando sua excessiva auto-estima.

Fonte: Vladimir Soloviev, Tale of the Anti-Christ, HijezGlobal Press, Alemanha, 2017, grifos meus.

29 de dezembro de 2022

A personalidade neurótica


O que é um neurótico? Segundo Karen Horney, neurótico é aquele que apresenta alguns comportamentos que não coincidem com o das outras pessoas de sua mesma época e lugar. Uma definição arriscada, sem dúvida, porque supõe à primeira vista que exista uma "psicologia normal", ou seja, uma normalidade extensível a toda a raça humana. Por outro lado, também é verdade que nossos sentimentos e condutas são moldados pelas condições sob as quais vivemos. Isso tudo significa dizer que embora não haja uma normalidade rígida, precisa, monolítica, há, sim, uma faixa ou conjunto de limites -- um "âmbito" -- dentro do qual se estabelece uma normalidade de condutas e, por conseguinte, de pensamentos e sentimentos. As neuroses são portanto aqueles comportamentos que escapam a essa faixa, a esse âmbito.

Talvez seja mais fácil entender o que é uma neurose se apontarmos as duas caracteristicas gerais que a identificam em um indivíduo: (1) a rigidez nas reações e (2) a discrepância entre capacidade potencial e realização. Essas características são manifestas, ou seja, são algo que se pode detectar a olho nu, digamos. Mas se pudéssemos ilustrar um pouco mais essas caracerísticas, como elas se manifestam na vida do indivíduo? Em outras palavras, quais são as principais atitudes que denotam os conflitos que o indivíduo enfrenta que correspondem à sua rigidez de reações e a subutilização de suas capacidades? São 4 atitudes principais: (1) excessiva dependência de aprovação ou carinho, (2) demonstrar sentimentos de inferioridade ou de inadequação (ideia de incompetência, estupidez, feiúra etc.), (3) inibições manifestas que vão de encontro a seu próprio interesse, como expressar desejos, pedir algo, expressar opiniões ou críticas, dar ordens, selecionar pessoas com quem deseja relacionar-se, estabelecer conexão com outras pessoas etc., (4) agressividade (ataque, ofensa, intromissão, hostilidade, propensão à dominação, exigência etc.), (5) disfunção sexual, seja um desejo compulsivo por sexo ou, ao contrário, uma inibição em fazê-lo (dificudades em aproximar-se do sexo oposto, em galantear, em fazer sexo, em disfrutar das relações sexuais etc.).

Mas há um fator dinâmico (ou seja, subconsciente) que intervém na produção dessas características: trata-se da angústia. É a angústia que desencadeia o pocesso neurótico e o mantém ativo. O neurótico, portanto, não sofre apenas os temores objetivos comuns aos indivíduos de sua cultura e sociedade, mas acrescenta seus próprios temores subjetivos (angústias) que correspondem às suas codições de vida vinculadas à cultura geral. O indivíduo neurótico sofre mais que o indivíduo normal, pois tem de pagar um preço desorbitado para poder sustentar suas angústias.

A angústia é um temor. Mas não um simples temor. É um temr crônico, desmedido, irracional, desproporcional ao perigo real, imaginário, insidioso, que começa na infância e afeta setores mais ou menos amplos da personalidade. Ocorre que há angústias que a maioria dos indivíduos de uma cultura apresenta e outros indivíduos de outra cultura não, o que nos força a concluir que as angústias não são parte da "natureza humana". E aqui cabe comentar algo fudamental: o grau de consciência que o indivíduo tem de sua angústia não indica de forma alguma a magnitude de sua força ou importância. Ou seja, podemos estar angustiados sem saber ou mesmo estarmos ativos e combativos ante nossos problemas mas nos encontrarmos completamente inermes (desarmados) em um estado de angústia. Ademais, diz Horney:

"Outro elemento próprio da angústia é seu manifesto caráter irracional. Deixar-se governar por qualquer fator irracional lhes resulta mais insuportável a alguns indivíduos do que a outros, em especial àqueles que, no fundo, percebem o perigo secreto de serem presas de seus conflitos irracionais e que aprenderam a exercer sempre, de forma automática, um estrito domínio intelectual sobre si mesmos. Portanto, não tolerarão conscientemente nenhum elemento irracional; reação que, além de seus motivos idividuais, entranha um fator cultural, pois nossa cultura outorga máximo valor ao pensamento e às condutas racionais, estimando inferior a irracionalidade ou qualquer aspecto de irracionalidade enquanto tal".

A irracionalidade serve, portanto, de advertência, de alarme, de que algo não funciona bem, de que algo precisa mudar. Se o indivíduo recusa esse convite à mudança, os mecanismos de defesa da angústia se acentuarão, fazendo com que a pessoa se aferre com ainda mais energia à ideia de que está certa, de que é perfeita.

Para fugir da angústia nossa cultura oferece 4 (falsas) saídas: (1) racionalização, ou seja, inventar alguma explicação que tenha verniz de razoabilidade para que a pessoa possa eludir toda responsabilidade sobre sua angústia e atribuí-la ao mundo exterior, (2) negação, ou seja, por meio da aplicação da "força de vontade" a pessoa crê que eliminará a angústia; ocorre que as manifestações externas obviamente permanecerão (insônia, urinar com frequência, náuseas, sudorese noturna etc.) e o sofrimento não cessará; ou ainda a pessoa tentará "ser forte" e enfrentar sua angústia, porém a dinâmica essencial de sua personalidade permanecerá inalterada e a janela de oportunidade que o transtorno lhe dá será desperdiçado, (3) narcotização (álcool, drogas, precipitar-se em atividades sociais, afogar-se no trabalho, dormir em demasia, fazer sexo em demasia, comer em demasia), (4) fuga, ou seja, o indivíduo evita as situações, ideias e sentimentos que podem desencadear o estado de angústia, ou inibição, mas essa fuga surge de maneira automática, inconsciente, como nas inibições funcionais da histeria: cegueira, mutismo, paralisia de um membro, frigidez, impotência, incapacidade de concentração, de formação e expressão de opiniões, de relacionar-se com os outros etc.

Segundo Horney, os fatores que desencadeiam a maioria das angústia não têm a ver com os impulsos sexuais -- é um dos aspectos em que ela marcadamente diverge do Dr. Freud --, mas com impulsos hostis das mais diversas fontes, sociais e/ou culturais. Os impulsos hostis são "hostis" precisamente porque agem de maneira contrária aos interesses do sujeito. Daí a angústia que se segue a tais impulsos logicamente também ser hostil, ou seja, contrária aos interesses do sujeito.

E eis que aqui reside a raiz do problema. A hostilidade dos impulsos não seria um problema importante não fosse por uma tendência, ou reação, que surge na maioria dos neuróticos: a tendência em reprimir a hostilidade. E por que o sujeito reprime a hostilidade, ou seja, por que o suejeito sente que sustentá-la na consciência é algo intolerável? Porque lhe é intolerável a realidade de que pode amar ou necessitar de uma pessoa que ao mesmo tempo odeia. Observe que, ao reprimir a hostilidade, o sujeito carece da noção de que ele mesmo está sendo hostil. Parece que subtrair da consciência a hostilidade não significa que a hostilidade tenha sido abolida. Pelo contrário, ela se agita no indivíduo e se manifesta como um afeto muito intenso, muito explosivo, prestes a entrar em erupção.

Ao tomar consciência da animosidade que a hostilidade lhe despertou, o sujeito restringe sua expansão e explosão em duas etapas: (1) repressão da raiva (o que ocasionará novas reações de raiva), (2) projeção dos impulsos hostis ao mundo exterior (a repressão causa a projeção, ou seja, o sujeito finge que os impulsos destrutivos não surgem de seu interior, mas da outra pessoa ou de coisas exteriores; o sujeito se encontra inerme e portanto o perigo lhe parecerá muito maior do que é realmente).

Mas de onde surgem tais hostilidades? Qual é a estrutura geral das angústias? Examinando a história infantil de muitos neuróticos, Horney conclui que o fator nocivo básico é, sem dúvida, a falta de autêntico afeto e carinho, seja a permanente interferência com os desejos legítimos da criança, seja intrometendo-se em suas amizades, ridicularizando suas ideias, malogrando interesse por suas atividades artísticas, atléticas ou mecânicas. Em suma, em toda tentativa paternal de romper a vontade da criança. Evidentemente, os ciúmes também são um impulso hostil que poderá engendrar angústias futuras. De maneira geral, os pais neuróticos criam uma atmosfera espiritual nociva pelo fato de eles mesmos carecerem de relações afetivas e sexuais satisfatórias e, portanto, tendem a descarregar seu "amor" nos filhos. O amor aos filhos deixa de ser uma consequência da relação dos pais e passa a ser um objetivo, um alvo, de um ou ambos os pais. As expressões desse afeto sempre têm elevada carga emocional. A carga emocional desse "amor", que nada mais é do que um conjunto de críticas, reclamações e acusações, despertará na criança uma tendência a assumir toda a culpa e a sentir-se indigna de ser amada.

Ora, quais serão os sentimentos subjacentes a esta situação? "Tenho que reprimir minha hostilidade porque necessito de vocês", "Tenho que reprimir minha hostilidade porque tenho medo de vocês", "Tenho que reprimir minha hostilidade para não perder o amor de vocês", "Teho que reprimir minha hostilidade senão serei uma criança má" etc. Se a criança tiver a sorte de ser criada por avós e/ou tutores carinhosos é possível que cresça sem esperar encontrar maldade por toda parte. De qualquer forma, como dissemos acima quanto à questão da repressão/projeção, a criança vítima de pais "amorosos" desenvolverá uma evidente má-vontade contra sua família, mas se adaptará (reprimirá seus sentimentos) a ela, o que causará a projeção de sua angústia no mundo eterior, convencendo-se de que o mundo é perigoso e terrível.

Estabelece-se aqui a angústia básica que fundamenta a neurose de caráter, ou seja, aquela angústia que persistirá ao longo da vida do indivíduo e que constituirá o fundamento de todas suas relações adultas, mesmo na ausência de estímulos particulares em situações específicas. Tal angústia é muito pareceida, senão idêntica, em todos os neuróticos: um sentimento de ser pequeno e insignificante, de estar inerme, abandonado e em perigo, solto em um mundo disposto a abusar, enganar, agredir, humilhar, trair e invejar; um sentimento de ser ameaçado por tormentas, convulsões políticas, micróbios, acidentes, alimentos em decomposição, de estar condenado ao destino, de sentir-se isolado emocionalmente, de lançar toda responsabilidade sobre os demais, de ser protegido e amparado.

Na cultura contemporânea encontramos 4 formas de nos proteger e nos tranquilizarmos da angústia básica: (1) carinho ("Se você me ama então não me faça mal"), (2) submissão ("Se eu ceder nisso então não me farão mal"), (3) poder ("Se sou poderoso então ninguém poderá me fazer mal"), (4) isolamento ("Se eu me isolar então ninguém poderá me fazer mal"). Diz Horney:

"Se alguém requer o afeto de outro para assegurar-se contra sua angústia, quase nunca o notará conscientemente, pois ignora que se encontra dominado pela ansiedade e que, em consequência, busca de forma desesperada qualquer forma de carinho a fim de recobrar a segurança perdida. Unicamente sabe que se encontra ante uma pessoa que gosta, em quem confia, ou por quem sente atração. No entanto, o que percebe em qualidade de amor espontâneo pode não ser senão uma reação de gratidão por alguma amabilidade ou por uma emoção de esperança ou afeto que alguém ou algo lhe suscitou. A pessoa que de uma maneira explícita ou implícita infunde esperanças dessa natureza será automaticamente revestida de grande importância".

Muitas dessas relações transcorrem sob o disfarce do "amor", ou seja, com a convicção subjetiva do carinho, quando esse "amor" na verdade consiste apenas em apego a alguém para satisfazer suas próprias necessidades psíquicas. É como um sujeito que está se afogando e se aferra a um nadador para se salvar. Não há real consideração pela personalidade, pelas peculiaridades, pelos defeitos, necessidades, desejos ou pelo desenvolvimento do outro. Os neuróticos são incapazes de amar: sua dependência do outro é confundida com uma suposta disposição a amar. Quem sente verdadeiro carinho pelo próximo não duvida que ele, o próximo, também seja capaz de idêntico carinho. Do contrário, todo afeto será encarado com desconfiança, como se o outro obedecesse a interesses ocultos. A dependência afetiva promove na pessoa uma luta desesperada contra quem a ama. Essa luta o neurótico chama de "amor": a própria situação que configura sua necessidade afetiva a impede de satisfazê-la.

Horney se extende sobre os tipos principais de manifestação da necessidade neurótica de afeto: (1) compulsividade (carêcia de espontaneidade e flexibilidade; neste caso o carinho não é uma forma de obter energia ou prazer adicionais, mas há uma "urgência vital" em sua obtenção, uma submissão, uma dependência emocional; é como um sujeito morto de fome, ele aceita comer qualquer coisa imediatamente), (2) insaciabilidade (necesidade de sentir-se querido mediante mostras constantes; se não a obtém de fonte humana se manifesta na forma de "cobiça", ou seja, voracidade por compras, sexo, dinheiro, sucesso, prestígio, masturbação, gula), (3) desconfiança (quando o sujeito se sente tão profundamente e precocemente ferido que chega ao ponto de rejeitar conscientemente toda e qualquer forma de afeto). De qualquer forma, a despeito dos três tipos citados, há duas características marcantes dos neuróticos de afeito: (a) ciúmes (um ciúme simples é normal, mas o do neurótico é desproporcional, inexplicável; "Você só pode amar a mim e a ninguém mais", "Reconheço que você me trata com amabilidade, mas como muito provavelmete também trata os outros assim, então suas deferências para comigo não valem nada"), (b) amor incondicional (trata-se de uma forma extrema de desejo, algo impossível de satisfazer, um afã de ser amado a qualquer custo; não há reciprocidade, não há qualquer vantagem na relação para o outro, exige-se sarifícios como "prova de amor", seja dinheiro, renúncia a convicções pessoais, renúncia à integridade pessoal; o sujeito se transforma num vampiro, em alguém que quer o sacrifício alheio sem a menor compensação).

Como dizíamos, uma das saídas que o neurótico encontra caso não obtenha a atenção e o carinho que exige é isolar-se. "Se as pessoas não me querem então é melhor que eu fique sozinho, no meu canto, a salvo de toda e qualquer rejeição". Forma-se um círculo vicioso: as "rejeições" pelas quais passa retroalimentam a angústia, e assim por diante. Para contornar a rejeição e romper o isolamento, o neurótico pode apelar (1) ao suborno ("Eu te amo terrivelmente, então você deve abandonar tudo e me amar também"), (2) à piedade ("Você tem que me amar porque estou sofrendo"), (3) à justiça ("Fiz isso e aquilo por você, então o que você vai fazer por mim?!").

A sexualidade, como não poderia deixar de ser, desempenha importante papel no desenvlvimento das neuroses. Ao contrário de Freud, que conferia à sexualidade um caráter quase inamovível, Horney acredita que a diversidade cultural, a vitalidade e o próprio temperamento sexual do indivíduo têm certa influência aqui. Assim, alguns estabelecem com o próximo uma relação de tinte sexual mais ou menos intenso, mas sempre compulsivo, em outros a excitabilidade ou as ativiaddes sexuais se mantêm dentro dos limites normais do sentimento e do comportamento. No primeiro grupo verificamos que se sentem inseguras, desprovidas e descentradas quando não têm relações eróticas ou enquanto não veem a imediata possibilidade de entabulá-las. Desse mesmo grupo, mas mais inibidas, são as qe possuem escasas relações, mas criam entre si e os demais uma atmosfera de intenso erotismo, estejam ou não atraídos por eles. Por fim, cabe considerar aqui um terceiro grupo de pessoas, nas quais se observam ainda maiores inibições sexuais, mas que se excitam sexualmente com facilidade e se encontram dominadas pela compulsão de ver em todo homem (ou mulher) uma possível presa de seus desejos. Neste último subgrupo, a masturbação compulsiva pode substituir as relações sexuais, embora não seja obrigatório que deva ocorrer assim. De qualquer forma, a despeito do caso, a ausência pronunciada de discriminação ao escolher seus objetos amorosos é a característica que lhes é comum. Não apenas o amor lhes parece algo quimérico, mas na realidade são suscetíveis de chegar a sentirem-se intensamente perturbados -- até impotentes, se se trata de homem -- quando lhes é oferecido amor. As relações sexuais não são apenas meios de liberação da tensão sexual, mas o único modo de entabular conexões humanas. Em algumas pessoas a ausência de discriminação se reflete na busca ativa por relações com ambos sexos, enquanto outras cedem ter relações sexuais com o mesmo sexo ou com o sexo oposto. Assim como "nem tudo o que reluz é ouro", assim também "nem tudo o que parece é sexo", ou seja, grande parte do que se apresenta como sexualidade tem muito pouco a ver com ela, mas é apenas uma expressão de anseio por segurança.

Para assegurar-se contra a angústia, outro recurso é o afã de poder, fama e posses. Conquistar carinho significa obter segurança mediante um contato mais estreito com os outros, enquanto que o anseio de poder, fama e posses implica no fortalecimento através de certa perda de contato e de certo reafirmação da própria posição. O afã por poder serve, em primeiro lugar, de resguardo contra a indefesa, que é, como já vimos, um dos elementos básicos da angústia. Em segundo lugar, tal afã também funciona contra o risco de sentir-se, ou de ser, estimado insignificante.

Outro afã típico da personalidade neurótica é a competição. Ele se apresenta em três traços: (1) o neurótico sempre se valora a si mesmo em comparação aos demais, inclusive em circustâncias inadequadas, (2) ele não apenas tem de ter mais sucesso, mas também tem de ser único e excepcional e (3) a hostilidade lhe será característica ("Só eu sou belo, capaz e triunfante"). Assim que tal afã leva o neurótico a fugir de toda situação que apresente o perigo de competição, ou seja,fugir precisamente daquilo que intimamente mais lhe atrái. Essa fuga se explica por um impulso duplo: por um lado, ele quer estar acima de todos e, por outro, quer ser amado por todos. A solução desse conflito é a fuga. O neurótico se retrái, sua vida se empobrece. Qualquer sucesso, por mais tímido que seja, terá seu valor reduzido pelo neurótico.

A culpa é mais um recurso utilizado frequentemente pelos neuróticos. Dizem que seus sofrimentos se devem ao fato de não merecerem destino melhor. Em qualquer conflito, mesmo naqueles em que evidentemente foram mal-tratados, se inclinam a aceitar que o outro tem razão. Não é incomum que o neurótico se sinta mais cômodo quando algum revés o acometa, mesmo que seja um acidente ou evento fortuito. O fator capital do temor à reprovação é a profunda discrepância entre a fachada que o neurótico exibe como própria ao mundo e todas as tendências reprimidas que se encontram sob tal fachada. Apesar de sofrer pelas simulações que deve manter a todo custo, o neurótico precisa resguardá-las com todas as suas energias, pois representam as únicas defesas que o protegem contra sua ameaçante angústia. O neurótico tenta disfarçar toda sua "agressividade", ou seja, sua raiva, desejos de vingança, inveja, impulsos a humilhar etc. Em segundo lugar, exibe uma fachada de aparente energia: as autoacusações não apenas o protegem do medo e da rejeição, mas também incitam a reconfortar o sujeito, pois os demais se sentem obrigados a disuadir-lo de sua culpabilidade fingida. Em terceiro lugar, tentará refugiar-se na ignorância, na doença, no desamparo, em sua presunção de ser débil mental. Por fim, desenvolverá um sentimento de vítima, o qual representa uma dupla vantagem, pois ao mesmo tempo que rejeitará qualquer exigência de responsabilidade ainda por cima culpará os outros pelo que lhe acomete.

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Horney se refere à personalidade neurótica "de nosso tempo". Mas afinal o que há em "nosso tempo" que difere dos demais? Quais fatores estão presentes em "nosso tempo" que explicam o surgimento da personalidade neurótica? Horney menciona três grandes contradições da modernidade sob as quais se produz no indivíduo certa ambiguidade e incerteza a partir das quais o indivíduo normal, já previamente acometido do isolamento emocional típico de nossa existência, tenderá a desenvolver uma angústia (temor irracional, desproporcional) e, por conseguinte, comportamentos neuróticos e uma correspondente personalidade neurótica. São elas: (1) a pressão social pelo sucesso (financeiro, profissional, prestígio etc) vs. a pressão cristã pela mansidão, discrição, para dar "a outra face", (2) o estímulo a mais e novas necessidades vs. a frustraçao em não cumpri-las, (3) a pretensa liberdade individual vs. as restrições reais (é verdade que não escolhemos nossos pais, mas a sociedade atual se esquece de informar a seus cidadãos que tampouco escolhemos a imensa maioria dos fatores que nos rodeiam).

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De maneira muito resumida, podemos delinear alguns passos genéricos no desenvolvimento da personalidade neurótica:

1) A relação dos pais carece de intimidade, afeto e cariho mútuos. É uma relação postiça, fingida. A relação sexual é deficiente e igualmente artificial.

2) A ausência de amor genuíno no casal será compensada pela produção de um amor igualmente falso pelos filhos. O amor é falso porque se traduzirá não em um ambiente de liberdade e respeito, mas precisamente o contrário, num ambiente geralmente tolhedor, repressivo. Não é amor, mas mero controle. A ideia subjacente é que a vida exterior do filho seja uma criação grotesca e farsesca daquilo que deveria ser a verdadeira vida interior do casal.A vontade legítima da criança será podada, suas capacidades subvalorizadas, seu comportamento reprovado.

3) Está estabelecido o impulso hostil básico.

4) A criança com o tempo tenderá a reprimir os impulsos hostis porque é intolerável precisar de quem a odeia, e a projetá-los no mundo exterior, como se a hostilidade viesse de lá e não de dentro de si mesma.

5) O mundo, a sociedade, os "outros", se tornam um ambiente perigoso, um ambiente pelo qual se desenvolve um temor. Eis a angústia.

6) A angústia se desenvolverá numa personalidade neurótica no jovem e adulto, cujas características principais serão a dependência emcional, os sentimentos de inferioridade, as inibições, a agressividade e as disfunções sexuais.

7) Assim como os impulsos hostis foram reprimidos, o indivíduo reprimirá também sua angústia mediante alguns subterfúgios socialmente disponíveis: racionalização, negação, narcotização, fuga, busca desmedida por carinho, submissão, poder e isolamento.

Fonte: Karen Horney, La personalidad neurótica de nuestro tiempo, Paidós Editorial, Barcelona, Espanha, 1981.

24 de dezembro de 2022

Morrer é despertar


Comecei a contar a história e comecei mal. Deveria começar pelo princípio, pelo dia em que [minha mãe] me disse que ela estava doente e que não iria ficar muito mais tempo conosco. Aquele dia lhe perguntei se ela iria morrer, e ela me sentou em seus joelhos, porque eu ainda era pequeno, e me disse muito baixinho que sim. Perguntei-lhe também se eu iria esquecê-la, e me disse que não. E então me contou algo que ninguém me havia contado antes. Me disse que morrer não é como dormir e também não é como sonhar. Morrer, me disse, é como despertar. "Se você der seu coração a Deus, meu bem, morrer é apenas despertar".

Fonte: Natalia Sanmartin Fenollera, Un cuento de Navidad para Le Barroux, Editorial Planeta, Barcelona, Espanha, 2020.

19 de dezembro de 2022

Girard em três parágrafos


Os desejos não surgem espontaneamente no interior do homem, mas vêm do mundo exterior mediante a imitação dos desejos alheios. É o desejo mimético ou, como Girard às vezes o chama, desejo triangular. Ele ocorre quando o sujeito (pessoa A) admira e deseja ser como o modelo (pessoa B), embora superficialmente pense que deseja apenas um objeto que pertença ao modelo. O desejo do sujeito na verdade não tem a ver com o objeto, mas tem a ver com criar uma fantasia de que o modelo está em posse de algo que pode completá-lo, torná-lo diferente, melhor. O desejo do sujeito provoca por sua vez um desejo no modelo por esse objeto. A gravidade do desejo mimético depende da altura do triângulo, ou seja, se o modelo alvo do desejo de cópia do sujeito está muito além, muito distante, então estamos diantes de uma mediação externa; se está dentro de seu alcance, então trata-se de uma mediação interna, e é aqui que surge a crise mimética: a rivalidade leva ao ressentimento, que leva à violência. A interrupção do ciclo de violencia é feita mediante o recurso ao mecanismo do bode expiatório, ou seja, os membros de uma comunidade se unem como em uma gangue e escolhem uma vítima em estado vulnerável (estrangeiros, deficientes físicos, pessoas esquisitas) para culpá-la da crise. O efeito que se busca aqui é, ao perseguir a vítima, a união dos demais membros para encerrar a crise.

A vítima sacrificada trouxe paz e união ao grupo, e a comunidade passa a vê-la como um deus poderoso. Seu sacrifício é encenado uma e outra vez mediante rituais em torno dos quais se acrescentam pouco a pouco regras complexas como tabus sobre comida, sexo e status. O recontar das histórias sobre o que aconteceu tem o poderoso efeito de relaxar a ansiedade e o desconforto emocional da sociedade. As histórias sobre os bodes expiatórios são quase tão boas quanto os rituais em si: são os mitos. Os mitos reforçam a identiddade da comunidade. Com o tempo, os mitos se sofisticaram ainda mais, e se transformaram em tragédias, como as da Grécia Antiga.

Mas há alguns poucos mitos que são contados de maneira inversa, ou seja, os culpados são a comunidade e a vítima é o bode expiatório: são os anti-mitos. Há tragédias gregas nesse sentido, mas as histórias mais famosas são as do Velho Testamento e a história de Jesus Cristo, em torno da qual foi criada uma cultura religiosa que denuncia o mecanismo do bode expiaório: o Cristianismo. Girard vê no apocalipse não uma manifestação da ira divina, mas a violência humana em escala mundial, ou seja, todo o mundo se torna uma zona de guerra.

Fonte: Carly  Osborn, The Theory of René Girard, Girard Seminar, Adelaide, Austrália, 2016.

18 de dezembro de 2022

A sexualidade atlética e as neuroses na cama


Sexaulidade atlética, segundo a psicóloga espanhola Montserrat Calvo Artés, é a sexualidade preocupada em cumprir metas, em impressionar, em demonstrar performance. É uma sexualidade menos orientada a favorecer prazeres e mais orientada a superar marcas. É uma sexualidade fingida, inautêntica, desprovida de humildade, curiosidade e, acima de tudo, desprovida de autoconhecimento. Daí seu nome, "atlética", porque, como sugere essa palavra de origem grega, é uma sexualidade marcada pela luta entre egos, pela batalha entre personalidades que, ao invés de se conhecerem em meio à sinceridade, ao respeito e à confiança, se escondem sob máscaras e fingimentos. Em contraposição à sexualidade atlética existe o erotismo, o verdadeiro erotismo, aquele no qual se fala do que se faz e se faz aquilo do que se fala. No erotismo a sexualidade está presidida pelas preferências eróticas, nunca pelas exigênias atléticas. A comunicação entre os amantes e as sensações prazerosas cedem espaço ao mero desempenho orientado ao "final", ao orgasmo, ao prazer de pico. O orgasmo deixa de ser uma consequência do erotismo e passa a ser um objetivo, uma exigência, uma meta.

Sim, claro, uma vida sexual saudável não exclui a existência de problemas. Mas a mente humana precisa de problemas para poder desenvolver-se. Muitas pessoas preferem postergar a solução de um problema sexual durante anos, outras preferem dramatizar a respeito. Ambas posturas são profundamente imaturas. Dar as costas a um problema nos tornará pessoas mais rígidas e menos tolerantes às frustrações. A primeira coisa que temos de entender, a despeito de qual problema na cama se esteja enfrentando, é que nenhum dos amantes é um pior ser humano por causa disso. Nossa essência como indivíduos não tem preço nem medida. Nosso valor não depende de tirar boas notas na cama, nem ter a "aprovação" de nossa acompanhante. Temos de nos tratar a nós mesmos como nosso melhor amigo. Temos de lembrar que somos valiosos, não por algum capricho, mas porque estamos vivos, somos irrepetíveis, únicos, diferentes. A atividade sexual parece ser um reflexo das condutas e atitudes de nossa vida diária. A experiência psicológica acumulada indica que o comportamento que adotamos na cama reflete a maneira como nos comportamos fora dela. 

A sexualidade humana tem três funções: (1) reprodução, (2) prazer e (3) autoconhecimento. As relações sexuais -- os acoplamentos entre duas mentes e dois corpos -- são experiências em si mesmas bondosas, saudáveis, limpas. Uma sexualidade que leve em conta outros objetivos é uma sexuualidade adulterada, descafeinada, na qual os fins justificam os meios. Não há "fim" no sexo: o que há é uma atividade cujas cosequências ao longo do tempo poderão ser a reprodução, o prazer e o autoconhecimento. O erotismo autêntico mostra de maneira clara, a homens e mulheres, se sua satisfação é ou não real. Podemos fingir interesse? Sim. Podemos fingir prazer? Sim. Mas não podemos fingir a nós mesmos. É ali, na cama, que se encontra o melhor espelho de nossa personalidade. Pode haver engano, mas nunca autoengano.

Um aspecto que transparece na cama é o diálogo interior, ou monólogo interor, ou solilóquio. A despeito do nome que se queira dar, é na cama que as coisas que dizemos a nós mesmos sobre nós e sobre os outros, em segredo, nos recônditos de nossa imaginação, nos devaneios e delírios de nossas fantasias, transparecem com maior força e impacto. São nessas frases taquigráficas, rápidas como um relâmpago, que verdadeiramente acreditamos, que acreditamos sem questioná-las, sem discutí-las. É na cama que melhor detectamos o que é real, para sentir com a máxima intensidade aquilo que efetivamente nos toca, aquilo que efetivamente nos é importante. Devemos portanto entronar os sentimentos e emoções, dar-lhes papel central em nossas vidas? Claro que não. A ideia é nos autoconhecermos, é nos aceitarmos exatamente como somos, mas isso não quer dizer que não podamos superar as emoções e sentimentos destrutivos e insanos e substituí-los por outros melhores e sanos. Não conseguimos escolher os pensamentos do solilóquio, mas podemos acreditar neles ou não. Os pensamentos destrutivos do solilóquio são fruto do hábito consagrado por anos de "prática", de reforço. Mudá-los exige disciplina, responsabilidade mas, antes de tudo isso, autoconhecimento. O poder do pensamento é muito maior do que imaginamos. É uma faca de dois gumes: podemos usá-lo racionalmente ou neuroticamente.

Sim, podemos enganar nossa parceira, mas podemos sentir por obrigação? Podemos desejar por decreto? Podemos querer nossa parceira por "força de vontade"? É claro que não. E é claro que tais exigências idiotas despertarão resistências cada vez mais fortes que não apenas não aumentarão o desejo, mas terminarão por aniquilá-lo. Como diz Montserrat Calvo:

"O que não nos ensinam é que existe no ser humano uma dimensão natural que é de escutar-se e conduzir-se a si mesmo, para a qual é imprescindível detectar as ideias pré-concebidas e os juízos de valor. Uma vez introduzido o disco com a informação no computador da memória, nunca mais questionamos as coisas aprendidas e nossas reações se manifestam de forma automática, à margem de nossa vontade.

Crescemos sem discutir o que não discute quem nos rodeia. É fato que demonstramos uma grande inércia a pensar o que sempre temos pensado e feito; somos fruto de reações automatizadas pela força do hábito, pela atração ao familiar e pelo temor ao desconhecido. Tendemos a repetir as mesmas reações e a nos convertermos em herdeiros obedientes de nós mesmos.

A verdade é que aprendemos a pensar de uma forma racional e irracional ao mesmo tempo. Em nosso lado biológico insano -- do qual não se livra nenhum ser humano -- as exigências se esgueiram por toda parte, os desejos se confundem com necessidades, existe a tendência a nos julgarmos e destroçarmos, a ter baixa tolerância à frustração, a cobrir com tóxicos a incomodidade, a tratar nosso corpo de maneira ditatorial, em permanente pressão e sobreesforço, a relegar às estrelas e ao destino a responsabilidade e o poder sobre nossa própria felicidade, a pensar com dualidade: luz ou escuridão, fraco ou forte, você ou eu, ao invés de luz e escuridão -- pois não existiria uma sem a outra -- fraco e forte, você e eu".

Não custa relembrar que responsabilidade não tem nada a ver com culpa. A culpa é um sentimento neurótico que nos paraliza e cria sofrimento, enquanto a responsabilidade nos dá autonomia, competência e liberdade.

Muitas pessoas sentem vergonha (outro sentimento neurótico, aliás) ao falar de sexo. A outras é um verdadeiro sacrifício mencionar suas genitálias. Outras ainda falam de sua sexualidade como se fosse um cachecol: é o sexo desprovido de qualquer emoção, algo superficial e sem conteúdo. Outras falam orgulhosas de "estar acima" das "questões sexuais". O orgulho mostra-se especialmente presente na linguagem obscena. Todas essas manifestações verbais formam parte da sexualidade atlética porque revelam exigências subjacentes, mostram um trato sexual despersonalizado, objetificado, que omite toda e qualquer alusão a desejos, emoções e sentimentos, em especial aos homens, os quais a sexualidade atlético os rebaixa de sedutores a meros predadores sexuais.

A cama é o lugar para nos aceitarmos como somos, com nossas misérias e glórias, como seres em contínua adaptação, em contínua aprendizagem de nossos erros, conflitos e temores. Cada encontro erótico serve, ou deveria servir, como polimento, como algo que nos vai tornando mais compassivos e menos egocêntricos, menos competitivos, menos fingidos. A escravidão à imagem sexual é a rejeição dos sentimentos, um autoabandono, uma crescente hostilidade entre sexualidade e afeto, amor, ternura e carinho. Na comunicação sexual não se devem filtrar emoções não assumidas (ciúmes, medo de rejeição, ressentimentos, desconfiança etc) sob pena de que o fluxo de energia entre os amantes acabe sendo bloqueado e a experiência prazerosa acabe sendo neutralizada. Escolher "não sentir" uma coisa desagradável tem um preço: não sentir coisas agradáveis. Sim, a desconexão de uma emoção ou sentimento implica em desconctar-se de outras emoções e sentimentos. A ansiedade cedo ou tarde imperará porque "não sentir" significa não realizar mudanças em sua conduta: a irritação e o ressentimento logo se somarão à ansiedade. 

Os sentimentos são uma espécie de "bússula" que nos ajuda a navegar. Claro, a bússula não é infalível, mas tampouco podemos fingir que ela não existe e que não exerce nenhuma influêcia em nossos pensamentos e condutas. Nos abrir ao que sentimos implica na honestidade de estarmos dispostos a mudar ideias, porque talvez nós tenhamos mudado nossas preferências, e em adotar outras ideias que podem até ser arriscadas. Mas arriscada é a vida.

A autoexigência é uma bobagem que não tem nada a ver com "força de caráter" ou com "ser implacável com os sentimentos". É apenas uma tola prepotência de alguém que se considera superespecial, superperfeito e super-homem. As ideias irracionais, derivadas da autoexigência, captam a atenção e consequentemente as emoções prazerosas desaparecem. A ereção e o orgasmo são uma consequência, não vêm por decreto. Se decretamos que vamos dormir, não dormimos. Se decretamos que não vamos ficar vermelhos de vergonha, ficamos. Se decretamos que vamos ter uma ereção e um orgasmo, não temos. 

Escrever essas e outras exigências em pedra parece uma tolice. Pois bem, essa tolice a praticamos todos os dias. Sim, a praticamos em forma de "busca pela autoestima". Se a autoestima está "alta" a pessoa se sente valiosa, mas dada a falibilidade humana, haverá um momento em que as coisas não sairão como deveriam e sempre haverá alguém que nos desaprove. De modo que, dadas as condições sobrehumanas que exige a autoestima, sempre acaba provocando uma má relação e uma luta do indivíduo contra ele mesmo. Em resumo, a busca pela autoestima sempre termina em baixa autoestima.

Aceitar-se a si mesmo é o caminho. No terreno sexual, a cama é o espelho mais fiel de nosso verdadeiro rosto, muito além das maquiagens e autoenganos que aplicamos. O prazer sexual é resultado, em primeiro lugar, da autoaceitação e do companheirismo que o indivíduo trata a si mesmo.

E aceitar a parceira é igualmente mandatório. O afã de dominar conduz à desconfiança, ao receio e à alienação, já que a parceira deixa de ser uma pessoa, digna de ser aceita como é, e passa a ser um objeto a ser possuído, a ser manipulado, a ser "melhorado". Ela nunca sabe se está na cama por medo ou porque realmente deseja.

É necessário que nos desnudemos não apenas da roupa, o que é muito fácil, mas de nossos egos, nossas autoimagens, nossos delírios e devaneios, nossas exigências e "necessidades". Assim, e somente assim, podemos conhecer a parceira, somente assim imperará um clima de confiança, sinceridade e igualdade, sem domínio nem submissão. O erotismo requer pessoas livres e conscientes já que mostrar nosso lado mais terno e vulnerável requer confiança, respeito, lucidez e sinceridade.

Nossa moral está baseada no trabalho duro e no sobreesforço, e nossa autovalorização sexual acaba dependendo de nosso produtividade em coitos, orgasmos ou ereções. Essa moral de seriedade que, inclusive, nos obriga a nos divertir em dias festivos, pouco a pouco vai carcomendo o espírito lúdico. Levar-se muito a sério é tolice.

Fonte: Montserrat Calvo Artés, Sexualidad atlética o erotismo, Icaria Editorial, Barcelona, Espanha, 2008.

14 de dezembro de 2022

O sistema egoico e o cultivo do coração


Em um mundo moldado pelo humanismo do Iluminismo, o eu humano tornou-se central. Para a metafísica tradicional, no entanto, a verdadeira natureza da individualidade humana é revelada apenas na posição circunferencial do ego pessoal circulando em torno do axis mundi, que é o seu mistério. O caminho da progressão espiritual é um retorno ao Centro longe do eu, e a busca pelas raízes de nossa existência periférica com Deus no Centro.

A psicologia moderna enfatiza que, para viver, devemos ter um senso adequado de valor próprio e uma correspondente estabilidade do ego. No contexto do desenvolvimento humano, isso está correto, pelo menos por um período de tempo. Por outro lado, parece que a literatura espiritual, tanto antiga quanto moderna, apresenta o ego simplesmente como o vilão. Embora a nomenclatura varie ao longo da Sagrada Tradição, o roteiro é notavelmente consistente. Existe claramente alguém ou algo em nós que se opõe inerentemente ao nosso progresso espiritual, e o avanço para a transformação só pode ocorrer com a exposição e o desmantelamento desse impostor. Em uma reviravolta interessante dessa percepção tradicional, um manual popular da Nova Era afirma dramaticamente: “O ego quer que você morra”.

A dupla dificuldade em recuperar uma hermenêutica metafísica adequada, porém, é que devemos enfrentar não apenas as interpretações errôneas contemporâneas do ego, mas também uma outra camada de dificuldade introduzida pelas metáforas militaristas por meio das quais essas percepções têm sido tão freqüentemente expressas. Lidas com cuidado, as tradições esotéricas parecem exigir algo bem diferente das noções populares transmitidas em termos como “vontade própria pecaminosa”, “Maya”, “ilusão”, “nafs”, “o falso eu” e “pensamento dualista”. Eles exigem algo que segue de perto a “estabilidade do ego”, uma forma de “morte egóica” que não leva à destruição violenta do ego, mas à sua transformação total. [1] O desdobramento do verdadeiro Centro da individualidade não é realizado por meio de alguma forma de violência imposta ao ego ou por meio de uma subjugação militarista. A verdadeira conquista do coração só pode ser realizada através da entrega em amor. Todas as tradições sabem disso, inclusive as que fazem uso de metáforas militaristas.

Mas à luz dessa realidade simples e vivida que nenhum nó interno desata sem amor, há motivos para suspeitar da guerra espiritual como paradigma de transformação, particularmente em nossa própria era sensível à mídia em que, em um grau sem precedentes, “O meio é a mensagem". Dado tanto os excessos de nosso passado religioso quanto a pobreza do mundo contemporâneo, precisamos de uma maneira menos opositiva e mais produtiva de descrever o processo egoico - uma maneira que também nos aproxime mais de um conhecimento metafísico adequado da dimensão unitiva da Sagrada Tradição e sua compreensão do processo espiritual.

O ego como sistema energético

Neste artigo, então, o termo “ego” (ou estabilidade do ego) tem um significado limitado e observável. Ele descreve um loop de retroalimentação, ou seja, um tipo específico de sistema de processamento humano projetado para extrair um nutriente essencial à vida do ambiente: algo que podemos chamar de energia vital. [2]

Junto com a comida física que ingerimos e o ar que respiramos, a energia vital é crucial para nossa sobrevivência humana. A ausência de qualquer um desses três “alimentos” resulta em morte: no primeiro caso, por inanição; no segundo por sufocamento, e no terceiro por desgaste: o esgotamento da energia vital, ou vontade de viver. Embora não estejamos acostumados a pensar nesses termos, a maioria de nós está muito familiarizada com a própria síndrome: a crescente apatia ou incapacidade de prosperar quando a psique não consegue mais extrair qualquer entusiasmo ou propósito da vida por meio do Espírito.

Como um circuito de energia destinado a manter os reservatórios de bem-estar psíquico, o sistema egoico faz uso dessa característica única (tanto quanto sabemos) da mente humana: a consciência autorreflexiva, ou a capacidade de ficar fora de si mesmo e perceber na terceira pessoa. A partir desse ponto de vista da “terceira pessoa”, o senso de identidade de uma pessoa se apresenta em termos de uma individualidade única, uma personalidade definida por características e necessidades específicas.

Entre esses dois pólos, a energia pode começar a fluir, e essa polaridade sujeito-objeto torna-se o eixo motor do sistema egoico. A impressão de “ter” uma identidade discreta, informada por certos atributos e imbuída de certos dons e talentos que precisam se tornar totalmente expressivos para que a personalidade de alguém seja completa, estabelece um ciclo de retroalimentação pelo qual o eu reflexivo se projeta no mundo em termos de seus desejos, necessidades e expectativas; e, em seguida, apresenta seus programas e objetivos para implementá-los. Na medida em que somos bem-sucedidos, experimentamos a animação, a sensação de que nossa vida é significativa e valiosa. Na medida em que somos frustrados, experimentamos diminuição e desânimo. Em vez de ser aprimorada, nossa energia vital é esgotada.

É significativo que em seu texto Light on the Ancient World Schuon também se refira ao ego como um sistema através do qual nos engajamos em nossos “projetos” individuais e use uma linguagem vívida para descrever suas tendências autorreflexivas semelhantes a miragens: O ego é ao mesmo tempo um sistema de imagens e um ciclo; é algo como um museu, e uma viagem única e irreversível por esse museu.

"O ego é um tecido móvel feito de imagens e tendências; as tendências vêm de nossa própria substância e as imagens são fornecidas pelo ambiente. Nós nos colocamos nelas, enquanto nosso verdadeiro ser é independente delas."

Da perspectiva da transformação, o ponto que os professores espirituais estão constantemente nos lembrando (embora em linguagem muitas vezes ininteligível nesses termos) é que esse sistema de energia funciona essencialmente com base no princípio dor/prazer. O eu gerado egoicamente busca o prazer - experimentado como a ampliação ou afirmação de sua individualidade; e evita a dor - experimentada como a diminuição da individualidade e o esgotamento de seu élan vital. A busca pela realização espiritual com base nesse ciclo de retroalimentação é conhecida na tradição cristã como “a paz que vem da carne”, e os anciãos da tradição cenobítica do deserto alertaram os buscadores espirituais sérios para tomarem cuidado com isso. [3] Na nossa era psicologicamente sofisticada, porém, a paz que vem da carne (rebatizada de “bem-estar”) surgiu como princípio fundamental da saúde mental. É considerado uma verdade evidente que a experiência de animação, vitalidade e serenidade é um sinal de que se está vivendo a vida corretamente, enquanto o surgimento de depressão, frustração, mal-estar emocional ou físico é um aviso de que algo está errado interiormente. O que geralmente não se vê é que esse tipo de autodirecionamento interior é normativo apenas dentro do sistema egóico, que sempre julgará a exatidão de seu direcionamento psíquico pela qualidade e quantidade de bem-estar que é produzido.

O ego iluminado

Na medida em que a autoimagem de uma pessoa está em contato com a realidade e relativamente livre da dominação por programas neuróticos inconscientes, podemos falar em ter um “ego saudável”. [4] O ego saudável é tipicamente descrito como aquele capaz de mover-se com confiança e sensibilidade para satisfazer suas necessidades de significado e animação, respeitando os direitos de outras pessoas de fazer o mesmo. É um sistema que funciona com eficiência máxima e, como afirmado acima, praticamente todos os nossos modelos psicoterapêuticos de bem-estar (e cada vez mais também os religiosos) visam esse objetivo. Thomas Keating, um conhecido monge beneditino, em seu ensinamento popular sobre o “sistema do falso eu”, faz uso desse modelo ao mostrar aos praticantes como identificar e bloquear os vazamentos de energia causados por “emoções aflitivas”, ou seja, pelas perda de energia vital que acompanha a frustração dos “programas emocionais para a felicidade”. Entretanto, se o falso eu for igualado a esses programas inconscientes e neuróticos, é muito fácil inferir que o oposto disso – isto é, o ego saudável – deve ser “o verdadeiro eu” [5]. Esse erro obscurece a possibilidade de uma consciência metafísica mais profunda de nossa verdadeira Identidade Suprema, e também distorce a prática espiritual tradicional.

Como o budismo observou há muito tempo, a dor e o prazer são apenas duas pontas do velho “bastão egóico”. Enquanto alguém estiver extraindo sua energia vital da auto-estima, auto-afirmação e auto-expressão, mesmo a serviço da mais pura e nobre das causas, ele ainda estará orbitando dentro do ciclo da retroalimentação egoica. Enquanto a felicidade e um senso pessoal de valor pessoal ainda forem as medidas pelas quais alguém se relaciona com a vida e ajusta seu rumo; enquanto a vitalidade for a medida do bem-estar espiritual, a pessoa fica presa no sistema de feedback egoico. Esses não são julgamentos morais; são critérios descritivos. E por esses critérios, é deprimentemente claro que noventa e nove por cento do que está sendo divulgado como espiritualidade ocidental contemporânea é apenas um ajuste fino do ego.

Em contraste, eu me referiria ao ensinamento perene expresso por Schuon em Echoes of Perennial Wisdom: “Santidade é o sono do ego e o despertar da alma imortal – do ego alimentado por impressões sensoriais e cheio de desejos, e da alma livre e cristalizada em Deus. A superfície móvel do nosso ser deve dormir e deve, portanto, retirar-se das imagens e dos instintos, enquanto as profundezas do nosso ser devem estar despertas na consciência do Divino, iluminando assim, como uma chama móvel, o silêncio do sono sagrado.” [6]

Pão do Céu

Em suas "Meditações sobre o Tarô", o hermetista Valentin Tomberg distingue dois tipos de energia vital, que ele chama de bios e Zoe. Embora inter-relacionados, bios é definido como a energia vital natural que flui horizontalmente de geração em geração, e Zoe é a energia vivificante do alto “que preenche o indivíduo em oração e meditação, em atos de sacrifício e participação nos sacramentos sagrados”. [7] No sentido bíblico clássico, Zoe é “pão do céu” — alimento da alma de uma ordem muito superior. Usando os termos de Tomberg, pode-se dizer que o ego está perfeitamente adaptado para sua função na vida: extrair a energia do bios para manter a vitalidade do organismo humano. Mas, como tal, seu limite é a morte física. Uma vez que a alma se separou do corpo, o papel do ego como sede funcional da identidade humana termina. Ele perece, junto com todo senso de individualidade ligado a ele.

Existe dentro de nós, no entanto, uma faculdade latente, um outro ciclo de feedback capaz de extrair a energia diretamente de Zoe, “o amor que move as estrelas e o sol”, sem ter que baixá-lo do ciclo egoico dor-prazer. Ele se move sem levar em conta a dor e o prazer; o prazer não a anima e a dor não a diminui.

Não é uma hipervitalização, uma experiência de pico. Na verdade, não é uma experiência, pois está além do dualismo experiência/experimentador – e, portanto, na tradição espiritual é frequentemente percebido como um “nada”. Não possui reservatório inerente de vitalidade; não pode alimentar-se ou manter-se à parte da infusão direta do sagrado. Sua sede permanente de individualidade está no reino da contemplação, o coração unitivo. Quando um eu ativo é necessário para “fazer”, ele se move para fora desse centro, usando seu sistema egóico da mesma forma que um mestre de caratê usa uma mão treinada para desferir o golpe apropriado. Quando não está em movimento, não tem autopropulsão independente; a esse respeito, é muito mais parecido com uma planta do que com um animal. Conforto ou desconforto não significam nada para ele, felicidade ou infelicidade, vida ou morte; ele vive além dos opostos. Seu alimento, como diz Jesus no evangelho de São João, “é fazer a vontade de meu Pai”.

Se isso soa como uma bênção duvidosa, é compreensível por que um punhado tão pequeno de buscadores espirituais realmente aceitou o chamado para se aventurar além da rede de segurança egoica. Até mesmo as palavras classicamente usadas para descrever esse outro ciclo de feedback – “rendição”, “verdadeira resignação” – não combinam com o temperamento moderno. Elas soam mais como entregar as rédeas da individualidade autônoma e do bem-estar pessoal - o que, é claro, é exatamente o que está sendo solicitado. A única maneira pela qual o ego pode imaginar tal comportamento é em termos de “gratificação adiada” – uma renúncia ao prazer nesta vida a fim de obter sua recompensa na próxima. Mas não é assim, de jeito nenhum. A “recompensa”, se tal termo deve ser usado, é participar aqui e agora “do amor que move as estrelas e o sol". Uma vez que o coração tenha experimentado esse amor, toda auto-alimentação egoica parecerá fast food. Pois o reino para o qual o ego é chamado e através do qual é transformado é o mundo do Espírito como princípio manifesto. Só Ele pode moldar e dar uma nova definição a esta “criatura”, o ego. [8]

O nascimento do coração

O ego não é um inimigo; é um estágio de desenvolvimento necessário na jornada rumo à plena personalidade humana. Quando um bebê começa a engatinhar, é um grande marco, mas se ele ainda estiver engatinhando aos cinco anos, falamos de desenvolvimento interrompido. O mesmo se aplica, creio eu, à jornada em direção à personalidade. O sistema egoico é necessário para que possamos exercer nosso verdadeiro destino humano, pelo menos como é entendido na tradição espiritual ocidental: magnificar a glória de Deus através das lentes da particularidade individual. “Você é o espelho no qual Deus se reconhece”, como diz a tradição sufi de forma expressiva. Nos caminhos espirituais ocidentais, o sistema egoico não é um erro, ou uma ilusão [9], mas potencialmente, pelo menos, o veículo expressivo da maravilha e do espantoso dinamismo de Deus. Enquanto estivermos no corpo humano, precisaremos fazer uso dele e manejá-lo bem.

Tal uso do ego, no entanto, só pode ocorrer num lugar mais interior do ser humano, num lugar mais profundo do que o próprio ego – o que a tradição chama de “o nível do coração” – que se conhece ilimitado e indivisível, uma parte da Divindade. [10]  “Conhece-te a ti mesmo”, entretanto, não significa que esse conhecimento seja um novo fato ou crença sobre si mesmo; isso seria pensamento egoico. Em vez disso, é uma maneira de “saber de”, uma coincidência com essa fonte mais profunda dentro do coração.

Leva muito tempo até que esse coração iluminado esteja realmente pronto para emergir como a sede permanente da identidade. Em parte, isso ocorre porque o coração não é apenas uma metáfora para o ser mais íntimo de alguém, mas está de fato incorporado: um músculo para a percepção espiritual e para “digerir” a energia muito mais concentrada de Zoe. A tradição ortodoxa oriental localiza esse coração espiritual dentro do coração carnal, mas boa parte da tradição interior o situa na região do plexo solar ou diafragma e, portanto, às vezes fala do trabalho espiritual como um “fortalecimento do sistema nervoso". Uma vez ativado, seu atributo particular é a capacidade de “atenção redobrada” – não no nível de manter a mente em duas coisas ao mesmo tempo, mas no nível de ser mantido, magnetizado, na presença de Deus e, ao mesmo tempo, completamente presente às demandas externas da situação em questão.

Praticamos com consistência e paciência. A meditação, considerada em praticamente todas as tradições espirituais como a porta de entrada para a transformação, nos ensina como separar nosso senso de pessoalidade do ciclo de feedback egoico e nos abrir diretamente para a infusão da vida divina. Particularmente em uma prática como a Oração Centrante, onde a ênfase não está tanto na concentração da mente quanto na entrega da vontade, há uma nutrição direta e até palpável dessa atenção do coração; pode-se literalmente sentir esse coração magnetizado ganhando vida por dentro. E à medida que a capacidade de “atenção redobrada” cresce dentro de nós de acordo com este coração, somos capazes de aplicá-la cada vez mais consistentemente nas circunstâncias externas de nossas vidas, aprendendo como extrair a energia vital do ser divino de tudo o que aparece em nosso caminho, mesmo em meio à contrariedades e diminuições. [11]

A princípio, parece “um lugar para onde vamos”, esse coração de Deus, o ponto imóvel no mundo giratório do nosso ser. Mas cada vez mais torna-se “o lugar de onde viemos”, a luz de Deus dentro da qual reabastece nosso ser de sua própria fonte infinita. E quando esse coração espiritual atinge um ponto de desenvolvimento que pode sustentar-se fora do útero egoico, então, como um bebê plenamente desenvolvido, estamos prontos para nascer no milagre da plena personalidade humana.

Transformando pedras em pão

A libertação do ciclo de feedback é simbolicamente descrita nos relatos evangélicos das tentações de Cristo no deserto, particularmente na primeira tentação, a recusa de “transformar pedras em pão” ou alimentar-se por suas próprias capacidades egóicas. [12] O que muitas vezes é negligenciado em discussões dessas narrativas, no entanto, é que o encontro de Jesus com a tentação ocorre somente após seu batismo, onde ele recebe pela primeira vez a revelação de sua verdadeira identidade: “Este é o meu filho amado, em quem me comprazo” (Lucas 3:22). Primeiro vem o desdobramento da verdadeira identidade; então vem a rejeição de tudo o que não é essencial para ela.

A metafísica tradicional expressa esta transição dizendo: “O caminho para Deus envolve uma inversão: da exterioridade é preciso passar à interioridade, da multiplicidade à unidade, da dispersão à concentração, do egoísmo ao desapego, da paixão à serenidade. O mundo nos dispersa e o ego nos comprime; Deus nos dá recolhimento e nos dilata; Ele nos dá paz e nos livra.” [13]

Tudo isso, claro, no devido tempo. Embora grande parte da linguagem da tradição espiritual tenha sido lançada em imagens de violência - de tomar o céu de assalto e um ascetismo atlético com a intenção de superar o ego - isso geralmente é virado de cabeça para baixo pela maneira retrógrada usual do ego de confundir meios com fins. O ascetismo não produzirá o coração; é apenas uma imagem dos novos hábitos alimentares da alma que aprendeu a alimentar-se diretamente de Deus. Mas o verdadeiro ponto que trabalha a nosso favor é que esta evolução é algo intencionado: ou seja, a glória de Deus é o ser humano emergir completamente em seu próprio terreno e ser capaz de liberar a energia anteriormente ligada à automanutenção egóica para a puro dança da abundância divina. Essa transformação vai contra a corrente, mas é intencional. Quando o coração está pronto, não pode deixar de emergir. Nosso verdadeiro objetivo no trabalho espiritual, portanto, não é desmantelar o ego — que desaparecerá em seu próprio tempo, quando o fruto estiver maduro —, mas simplesmente, calma e pacientemente, nutrir o coração.

Notas:

[1] A prática contemplativa nas tradições sagradas visa, em última análise, a retirada da atividade do ego. Jesus disse: “Aquele que quiser salvar sua vida (psiche—psyche) deve perdê-la". A tradição islâmica aconselha aqueles que estão no caminho espiritual a “morrer antes de morrer”. Em um texto recente Kabir Helminski, mestre sufi da ordem Mevlevi, diz: “O ego é o inimigo de nossa verdadeira existência. Felizmente o ego pode ser domado pelo amor, não desvalorizado ou aniquilado, mas domado e colocado a serviço do eu essencial. Se aprendermos a fazer um apelo claro à Fonte do amor, como poderia essa Fonte não responder ao nosso chamado?" (The nowing Heart, Shambhala, 1999, 52.) João da Cruz em seu próprio século também argumentou que “Aquele que sabe morrer em todas as coisas, terá vida em todas as coisas”. O Tao te Ching, pelo menos mil anos antes dele, sabia que “morrer sem afundar significa presença eterna”. Todas essas abordagens não sugerem violência nesse caminho para a experiência da unidade e do amor, mas um caminho de entrega, um morrer para viver verdadeiramente.

[2] Este termo pode ser equiparado talvez à energia prana, ou ao nafs al-amara, que são formas de energia vital ainda não transformadas pela força do Espírito. Veja também as distinções de Tomberg entre bios e Zoe, adiante.

[3] Veja, por exemplo, Santo Antônio: “Você deve odiar toda a paz que vem da carne. Renuncie a esta vida para que você possa estar vivo para Deus”. The Desert Christian: The Sayings of the Desert Fathers, ed. Benedicta Ward (Nova York: Macmillan, 1980, 3-4). Normalmente visto de nossos pontos de referência culturais contemporâneos como “ascetismo que odeia o corpo e nega o mundo”, a declaração de Antonio na verdade aponta para uma maneira muito mais vibrante e sutil de estar desperto no mundo, de extrair energia vital diretamente de sua fonte imperecível. Sobre esse ponto, veja meu artigo anterior, Fingers of Flame: Christianity and the Spiritualization of the Body, Gnosis, 29 (outono de 1993), 42-48.

[4] O termo, é claro, é da safra moderna pós-freudiana e seria incompreensível para as antigas tradições da psicologia espiritual, de cuja perspectiva pareceria um oxímoro. As psicologias tradicionais distinguem entre um Eu inferior e um Eu superior, mas se esse eu inferior pode ser equiparado ao ego é uma questão de considerável desacordo entre as escolas contemporâneas de pensamento psicológico. Para uma tentativa lúcida de resolver a confusão, veja Rama P. Coomaraswamy, Psychological Integration and the Religious Outlook, Sacred Web, 3 (verão de 1999), 37-48.

[5] A falta de um mecanismo para identificar e liberar as “emoções agradáveis” causadas pelo apaziguamento dos programas do falso eu é uma curiosa fraqueza do ensino do Pe. Keating.

[6] Frithjof Schuon, Echoes of Perennial Wisdom (Bloomington, IN: World Wisdom Books, 1992), 11.

[7] Valentin Tomberg, Meditations on the Tarot (Rockport, MA: Element, 1993), 277-8.

[8] Pois, como diz Schuon, “Entre o microcosmo humano e o Metacosmo Divino existe o macrocosmo que, em relação ao sujeito humano, representa ‘o Princípio manifestado’ ou ‘a manifestação do Princípio’. Não há medida comum entre o homem e Deus, entre o ‘eu’ e o ‘Eu’. Para tornar-se consciente do 'Eu', o 'eu' precisa do intelecto, que no homem é sua manifestação direta. De maneira análoga, o que necessariamente se coloca entre a criação formal e o Incriado é a criação supraformal ou informe, o mundo do Espírito”. Spiritual Perspectives and Human Facts (Pates Manor, Bedfront, Middlesex: Perennial Books, Ltd., 1987), 174.

[9] Na verdade, eu a chamaria de miragem, usando a útil distinção de Tomberg: “Uma miragem não é a mesma coisa que uma ilusão pura e simples – uma miragem sendo um reflexo ‘flutuante’ da realidade – mas ela é ‘flutuante’ — ou seja, fora do contexto da realidade objetiva com suas dimensões moral, causal, temporal e espacial”. (Meditations on the Tarot, 630).

[10] Para uma descrição sucinta desse “nível do coração”, veja, por exemplo, Kabir Helminski: “Além do reino analítico limitado existe um vasto reino da mente que inclui habilidades psíquicas e extra-sensoriais; intuição; sabedoria; um senso de unidade; capacidades estéticas, qualitativas e criativas; e capacidades simbólicas e formadoras de imagens. Embora essas faculdades sejam muitas, damos a elas um único nome com alguma justificativa, porque elas funcionam melhor quando estão em harmonia. Eles compreendem uma mente, além disso, em conexão espontânea com a Mente Cósmica. Essa mente total chamamos de “coração”. Despertar o coração, ou a mente espiritualizada, é um processo ilimitado de tornar a mente mais sensível, energizada, sutil e refinada, de uni-la ao seu meio cósmico, o infinito do amor.” Living Presence (Nova York: Jeremy Tarcher/ Putnam, 1992), 157-8.

[11] Sem essa fase ativa da prática, a meditação por si só é amplamente ineficaz como veículo de transformação – “um tranquilizante de alta classe”, como Pe. Keating coloca.

[12] Para uma explicação brilhante das narrativas da Tentação nesse sentido, veja Maurice Nicoll, The New Man (Nova York: Penguin Books, 1967), 23-7.

[13] Schuon, Echoes of Perennial Wisdom, 3.

Fonte: Cynthia Bourgeault, The Egoic System and the Nurture of the Heart, Sacred Web.

12 de dezembro de 2022

O filósofo-místico de Eric Voegelin - II


Parte I

Em seu livro autobiográfico, o filósofo Eric Voegelin relata como de repente se viu obrigado a abandonar um longo e trabalhoso projeto intelectual quando se convenceu, em definitivo, de que "não haveria ideias se antes não houvesse símbolos e experiências imediatas. Ademais, era impossível tratar como 'ideias' fenômenos como um ritual egípcio de coroação ou a recitação do Enuma Elish nas celebrações do ano-novo sumério [...]; [Assim, seria preciso] recuperar as experiências em que as ideias têm origem". Na elucidação desse ponto, Voegelin não quis afirmar a impossibilidade de escrever uma "história das ideias", mas sim a inadequação de tratar as ideias religiosas como realidades fundantes, principalmente quando se estudam as instituições religioso-políticas em contextos arcaicos. Muito antes que se organizassem determinadas ideias (religiosas e/ou políticas), Voegelin percebeu que teria de haver experiências cujo impacto seria determinante na atriuição dos sinais fundantes dessas ideias. Todavia, ainda que Voegelin estivesse certo na aposta que fez de uma anterioridade estrutural de certas experiências e eventos fundadores, ele jamais conseguiu se libertar do fascínio intelectual que tinha pelas simbologias do sagrado; portanto, embora percebsse a necessidade de desintelectualizar as experiências fundantes, que se expressariam como experiências de ordem (seu objetivo era conseguir compreendê-las com maior acuidade histórica), suas análises nunca abandonaram o mundo das ideias. Os sistemas de Voegelin simplesmente não encontram o necans [que mata], o implantador dos mais variados sistemas de ordem. A meu ver, esse filósofo germânico, ainda que intelectualmente brilhante e de inegável erudição, foi incapaz de rompero véu de seu reconhecido platonismo e ver Caim matar seu irmão.

Como ocorre com parte expressiva dos "filósofos esotéricos", havia um comprometimento inegociável com a autoridade primeira das ideias e dos conceitos, mesmo quando se afirmava o contrário em nome de um suposto rastreamento histórico das experiências fundantes em seus ordenamentos simbólicos, em cuja base as mais diersas cosmologias teriam tomado forma.

Àqueles que se escandalizarão por conta da atrbuição de esoterismo a Voegelin (o presumível campeão de uma cruzada intelectual contra o perigo gnóstico dos revolucionários modernos),deixo-lhes as palavras de Gregor Sebba, colega e amigo íntimo de Voegelin: "Para mim Eric Voegelin sempre fora um representante exemplar do racionalismo, em seu sentido grego. Todavia, ao defender essa posição contra afirmações que lhe chamavam de filósofo místico, ele me escreveu: 'Isso lhe causará um choque, mas sou um filósofo místico'". Não se engane o leitor, o misticismo de Voegelin nõ se alicerçava na fé, na oração e no arrependimento, mas numa via negativa sustentada pelo pretenso distanciamento reflexivo do filósofo, "uma forma de autoasserção e a expressão de um desejo de estar certo quando tutdo e todos estariam comprovadamente equivocados". Semelhante aos gnósticos que tanto denunciava, Voegelin também fundou uma crítica social fundamentalista, baseada na dimâmica entre opostos, e que em seu caso expressava numa pretensa validade insuperável de sua via negativa versus o que via como engano da obstrução gnóstica: "A insistência de Voegelin no mistério fundamental da Realidade e de seu campo cognitivo não reflete o 'acesso humilde' da prece meditativa, mas a imposição de um sistema portador de um paradoxo em seu centro".

Na pena de Voegelin, o filósofo "esotérico", um hino dedicado a Hórus tornar-se mera idealização indumentária de um poder excelso. Como disse John Ranieri com prcisão: "Esse é um problema que a filosofia não consegue olhar; fascinada pela aparente profundidade de sua própria cortina de fumaça".

"Para Voegelin, a crise [de ordem] era sempre e exclusivamente um fenômeno social, e a imunidade pessoal [do filósofo] era uma possibiidade distinta ou mesmo uma obrigação. O orgulho ao qual nos referimos neste contexto corresponde à indisposição ou incapacidade do filósofo de contemplar a possibilidade de que o seu pensamento seja um sintoma da própria doença que ele tão bem diagnosticou em seu meio social".

Fonte: Maurício Righi, Pré-História & História, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2017.

Algumas observações girardianas


René Girard faz uma crítica à circularidade viciosa do raciocínio-padrão do evolucionismo social.

"Não se pode pressupor que os domesticadores tivessem sido motivados pelos resultados futuros do processo, que não tinham como prever. Não pode ter havido nenhum incentivo para domesticá-los [animais e plantas] diretamente ligado à domesticação e suas vantagens, pois tais consequências eram naturalmente desconhecidas! Além disso, em seus primeiros estágios, a domesticação era antieconômica [grifo do autor] [...] A domesticação não pode ter sido prevista, nem mesmo planejada."

O desfecho de um longo processo histórico não se antecipa em sua origem, ao menos não para nós; logo, um período da história não adivinhará o próximo.

* * *

A intuição/criação de reinos espirituais via estados alterados de consciência ou, melhor dizendo, via percepção aguçada, foi uma prerrogativa do sapiens, a marca inconfundível de sua superioridade simbólico-imaginativa. A religião passaria a ser vista como a "invenção" mais original de nossa espécie, em torno da qual se fundamentou o traço tipicamente humano de erigir constructos simbólicos, narrativas de gênese e procedimentos religiosos coletivamente hierarquzados e socialmente distribuídos.

[...]

Apreende-se que por trás das variações mitológicas dos povos há três instituições (e três ideias) universalmente presentes: sacrifício, sepultamente e xamanismo. 

No templo-palácio, sacrifício, sepultamento e xamanismo foram finalmente domesticados, e esquemas mais acrisolados de racionalização e controle puderam ser concebidos e implantados, o que levou, muito provavelmente, a um dinamismo intelectual fomentador de procedimentos mais complexos e hierarquizados de ordenamento coletivo.

Surgiu, de bases xamânicas, uma classe especialmente talhada para pensar a religio: o estamento sacerdotal. Esse ambiente social acabou por criar modos de vida sobremaneira intelectulizados.

* * *

Girard: "Em seus sonhos [e devaneios] solitários, o orgulho se vê como um, mas no fracasso ele se divide entre um ser desprezível e um observador que despreza. Ele se torna Outro para si próprio. O fracasso o obriga a tomar, contra si mesmo, o partido desse Outro que lhe revela o seu próprio nada".

* * *

O que faz de uma pessoa um psicopata é sua incapacidade de relaxar diante das adversidades que se contrapõem ao seu desejo, já que este jamais aceitará uma derrota. Ele vive a tirania de um desejo que não admite ser contrariado, que se ressente de tudo e todos que lhe antagonizem a vontade. Os outros, os que lhe cruzam o caminho, são vistos como realidades potencialmente hostis e, mais cedo ou mais tarde, precisrão ser vencidos ou descartados. Nesse universo de violência psíquica (e física), o companheiro hoje será amanhã o inimigo, um adversário que precisará ser enganado ou eliminado. Trata-se de um ambiente privado de perdão, mas que, ao mesmo tempo, abarrota-se de retaliações, uma atmosfera que podemos chamar de subterrânea, em que o desejo (de si) é ao mesmo tempo sagrado e violento.

* * *

Em sua base, a intuição de Girard é mínima e largamente assistêmica: não sabemos o que desejar e precisamos que os outros nos indiquem; ou seja, precisamos de modelos cujos desejos imitamos. Logo, "entre o eu e os outros sempre se estabelece uma comparação" que busca apropriar-se não só de objetos e substâncias, mas, pricipalmente, do que essas coisas representam. Por conseguinte, essa tendência à imaterialidade do que se busca abre um espectro absolutamente infinito de significados (e justificativas) possíveis de conflito. O "caminho da rivalidade" gera doses crescentes de fascínio entre elementos polarizados, levando seus participantes às dimensões "metafísicas" (imateriais) do desejo, que se afastam progressivamente de ojetos e coisas, intensificando as subjetividades desencadeadas entre os desejantes.

Fonte: Maurício Righi, Pré-História & História, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2017.

7 de dezembro de 2022

O despertar da senhorita Prim


-- Sabemos que [a Redenção] não se trata de um conto de fadas normal. Sabemos que é um conto de fadas real.

-- O que o senhor quer dizer é que se parece com os contos de fadas? É isso? --perguntou intrigada.

-- Não, claro que não. A Redenção não se parece nem um pouco com os contos de fadas, senhorita Prim. São os contos de fadas e as velhas lendas que se parecem com a Redenção. Nunca tinha percebido? É como quando você copia uma árvore do jardim no papel. A árvore do jardim não se parece com o desenho, certo? É o desenho que se parece um pouco, só um pouquinho, com a árvore de verdade.

* * *

-- Os homens? Deixemos que os homens se ocupem de si mesmos. Já temos muito com o que nos ocupar, não acha? A senhorita é muito jovem e inexperiente, Prudência, mas vou te dizer uma coisa. O dia em que grande parte dos jantares entre homens e mulheres deixar de se dividir em dois guetos (um masculino, no qual se fala sobre política e economia, e outro feminino, onde triunfam as piadinhas e fofocas), esse dia vamos ter autoridade para dizer algo sobre a formação dos homens. O que vou te dizer agora vai te deixar escandalizada, sem dúvida, mas vou dizer assim mesmo: a maioria das mulheres não conversa. E não conversam, eis o mais grave, não porque não podem, mas porque não se dão ao trabalho de tentar.

* * *

-- Escute bem. Lhe chamei de tonta porque me parece que perturbar-se dessa forma pelo que me contou é comportar-se como uma tonta. Sou um homem franco, com certeza franco demais, e a senhorita tem razão: não sou delicado. Mas acredito que a estas alturas a senhorita já deveria saber o suficiente sobre mim para entender que, embora não seja um exemplo de delicadeza, sou uma pessoa decente. Se lhe digo que me conte algo é porque me interessa ajudar-lhe. Então deixe-me falar e escute o que tenho a dizer.

-- Não escutarei nada a não ser que retire seu insulto --disse ela com secura.

-- Está bem, retiro o que disse. Mas que conste que não era um insulto; eu qualifiquei sua forma de se comportar, não qualifiquei você.

-- Não comece outra vez com suas distinções teológicas, não vai me ludibriar de novo.

[...]

-- Ora, você não é tonta, Prudência, apenas se comporta como tonta. Não chore, por favor, já que sabe que indivíduos como eu não sabem lidar com as lágrimas, não temos esse dom. Escute bem: ocorre que há algumas coisas que lhe fazem sofrer, e lhe fazem sofrer porque não as compreende bem, simplesmente. Em primeiro lugar, não existe isso de vitória definitiva de si mesmo sobre os próprios defeitos, Prudência, não é um campo em que funcione a mera força de vontade. Temos uma natureza defeituosa, uma espécie de velha locomotiva ferida e como consequência disso, por muito que nos empenhemos, tendemos sempre a falhar. Angustiar-se por isso é absurdo e, mesmo que você fique com raiva ao ouvir isso, soberbo também. O que temos que fazer é pedir ajuda a quem fez a máquina cada vez que falhamos. E em todo caso deixar que a melhore aos poucos injetando-lhe de vez em quando uma boa dose de óleo.

-- Essa é uma explicação religiosa e eu não sou religiosa. Não utilize esse argumento comigo, por favor, não serve. --disse ela com o nariz vermelho pelo frio e pelo choro.

-- Essa resposta não é digna de uma mente lúcida, Prudência. E é um dos frutos dessa educação antitomista da qual está tão orgulhosa. A questão aqui, ou em qualquer outra discussão, não é se minha resposta é ou não é religiosa, mas se é ou não é verdadeira. Será que você não vê a diferença? Contraargumente, Prudência, diga-me que não é verdade o que eu digo, explique-me por que não é verdade, mas não me responsa que meu argumento não serve porque é religioso. A única razão pela qual meu argumento pode não servir aqui ou no fim do mundo é simplesmente porque resulte falso.

-- Está bem, pois lhe digo que não serve porque é falso.

-- É mesmo? Isso quer dizer que a senhorita acredita que o ser humano é capaz de alcançar a perfeição e manter-se nesse nível de excelência moral por suas próprias forças. Não acredita que errar é humano? Acredita que o homem não falha?

-- É claro que não acredito nisso, sei perfeitamente que errar é humano e que ninguém é perfeito.

-- Quer dizer que, no fundo, acredita que boa parte do que eu disse é verdade. O que acontece é que a senhorita apenas reconhece a verdade quando ela vem vestida com roupa secular.

* * *

-- É ela que se culpa a si mesma, mas não pode reconhecê-lo. É mais fácil projetar a culpa nos olhos dos outros e defender-se dela do que encontrá-la no interior de si mesmo, onde não há defesa possível.

* * *

-- A sensibilidade é um dom, Prudência, sou perfeitamente consciente disso. Mas a sensibilidade não é o instrumento adequado para pensar, e quando se utiliza para pensar, não somente não traz à fruição, mas conduz ao desastre. O mesmo acontece com as orelhas e a comida. Um órgão admirável, a orelha; uma maravilha de desenho pensada até a última de suas tramas para facilitar a audição. Ah, mas experimente usá-la para comer e verá que resultado obterá. Detesto o sentimentalismo, mas isso não me converte em uma pessoa fria. Uma coisa é o sentimentalismo e outra o sentimento, Prudência. O sentimentalismo é uma patologia dos sentimentos, que crescem, se exccedem, ocupam um lugar que não lhes corresponde, se tornam loucos, escurecem o juízo. Não ser sentimental não significa carecer de sentimentos, mas unicamente saber canalizá-los. O ideal é possuir uma cabeça temperada e um coração sensivel.

Fonte: Natalia Sanmartín Fenollera, El despertar de la señorita Prim, Editorial Planeta, Barcelona, Espanha, 2013.

5 de dezembro de 2022

Amor e sexo


O corpo de uma pessoa -- não somente suas formas mas também seu gesto e porte -- oferece uma informação extensa e intensa acerca da vida dessa pessoa; frases como "ter o coração na mão", "ficar de cabelo em pé", "fazer das tripas coração", "ficar sem ar",...escondem uma riqueza intuitiva nada desdenhável e mesmo assim continuamos a estabelecer grandes distâncias entre nosso corpo e nossa mente, nosso corpo e nossa vida e consequentemente continuamos a nos guiar exclusivamente por nossas crenças e desprezando as mensagens corporais.

Esse dualismo de longínqua origem antropológica -- amplamente reforçado pelo dualismo religioso amor/sexualidade -- é uma das fisuras de nosso mundo ocidental e seu preço é caro: a substituição do conhecimento pelo controle.

Os efeitos dessa substituição têm sido traduzidos por um conflito interno contínuo, por uma luta pelo controle, mas não um controle saudável de nossas emoções, mas um domínio permanente e intolerante de quase todas as manifestações de nosso corpo, e como consequência dessa luta, nosso domínio egoísta do entorno, do que como organismos vivos formamos parte inseparável e sem a qual não poderíamos sobreviver. Costumamos entender por personalidade o caráter e o temperamento de um indivíduo, assim como suas convicções e a escala de valores que vai formando ao longo de sua vida. Ou seja, é a expressão particular de cada ser humano: tal como aparece diante de nós e tal como se vê a si mesmo. Etimologimente o conceito deriva da "máscara" que utilizavam os atores para que os escutassem melhor. Se aproveitamos o símbolo que isso representa podemos afirmar que a "autoconsciência" se reduz habitualmente à "ideia que temos de nós mesmos" e mais concrectamente à soma de nosso status e papéis sociais. Mas talvez isso tenha pouco a ver com o que somos em realidade, já que em nossa consciência habitual não costumamos incluir, por exemplo, a percepção de nossas funções vitais, essenciais para a sobrevivência, nem uma ideia coerente da mencionada relação simbiótica com o entorno.

Nos guiar unicamente por nossas suposições e crenças, sem nos darmos a possibilidade de escutar nossas intuições e percepções sensoriais, implica em nos guiar por uma informação muito parcial de toda a informação que temos a nosso alcance; parcial e deformada. Perigosamente confundidos pelo mais simples e evidente, acreditamos ter uma pele, quando somos uma pele, acreditamos ter um órgão genital, quando somos um órgão genital, acreditamos ter um corpo, quando somos um corpo. Costumamos perseguir objetivos que são "símbolos" culturais como o poder, o controle, a fama, a honra, a glória...e desprezamos os prazeres cotidianos acessíveis e reais, os quais não precisamos procurar, mas simplesmente nos colocar em atitude de encontrá-los, como passear, mastigar, acariciar, contemplar, respirar... Vemos, pois, como a maior confusão entre símbolo e realidade se encarniça com a autoconsciência, e consequentemente com essa parcela das relações humanas que é a sexualidade.

Em consequência podemos nos perguntar se nossa "ideia de satisfação sexual" corresponde com a satisfação que realmente se pode obter da sexualidade. A ideia de satisfação sexual baseada na alimentação da personalidade (máscara) e da autoimagem, assim como em todas as crenças irracionais que estamos comentando, sempre dará menos jogo que quando nos baseamos no conhecimento -- racional e emocional --, e não no domínio, do corpo e suas sensações. 

Podemos decidir, portanto, que da mesma forma que não existe "plena" autoconsciência a partir do domínio e do controle, mas somente a partir do conhecimento, a ideia de satisfação sexual baseada em nossos símbolos de sucesso e de domínio não apenas não corresponderá à satisfação "real", mas a dificultará consideravelmente: a anestesia gerada na qual, escravos da ideia de satisfação e de "satisfação cumprida", deixamos de escutar o próprio corpo, pode ser e constuma ser um germe de insatisfação sexual e vital. De fato, é o germe e a essência da ansiedade desnecessária, a qua já definimos como "esperar o que não chega, desprezando ou ignorando o mais estrito presente".

Felizmente, ha antídotos contra tal anestesia, entre eles o conhecer, tal como propomos, a ansiedade; o descobrir o prazer do cotidiano, que por ser cotidiano está constantemente presente, e a humildade suficiente para deixar de contemplar o corpo como se fosse uma casca que devemos suportar ou como se fosse um automóvel do qual acreditamos não ser o motorista, e começar a contemplá-lo como nosso mais leal e seguro mestre; alimentando seu conhecimento em substituição do domínio e do controle.


* * *


1. O amor


Não pretendemos definir uma vivência que, talvez, não tenha tradução verbal; apenas tentaremos expor uma concepção pessoal do amor.

Diz-se, com razão, que a base do amor é a entrega, mas essa entrega se confunde com a concessão e o sacrifício, quando se necessita pouca lógica para observar que nunca podemos entregar e oferecer aquilo que não possuímos previamente. É por esse pequeno e grande matiz que descreveríamos o amor como a autoaceitação incondicional e consequentemente de seu entorno: é difícil copreender, aceitar e conhecer os outros mais do que a medida em que nos compreendemos, aceitamos e conhecemos a nós mesmos. Se tivéssemos que dar um exemplo a respeito, diríamos que apenas os mafiosos conhecem a linguagem verbal e gestual de outro mafioso, assim como a generosidade ou a honestidade são reconhecidas por aqueles que são honestos e generosos. Da mesma forma, somente na medida em que fujamos do autoengano deixaremos de enganar mais ou menos conscientemente os outros.

Essa aceitação de si mesmo e do entorno, do que gostamos e não gostamos, não apenas não implica mas se opõe à resignação e ao conformismo.

Por um lado, somente o que aceitamos permite ser conhecido sem preconceitos e juízos de valor (por exemplo, no terreno sexual, somente as fantasias aceitadas permitem o jogo erótico de sua verbalização); por outro lado, somente o deixar de projetar a autoaceitação no futuro, ou seja, na forma como gostaríamos de ser, ao invés de nos conhecermos tal como somos em realidade no momento presente, possibilita fugir do autoengano. Finalmente, quanto mais informação tenhamos de nós mesmos mais informação podemos captar dos outros.

O conhecimento de nossa "totalidade", longe de conduzir à resignação (submissão voluntária), facilita aprender a pilotar nossas frustraões, carências e limitações. Somente a ignorância facilita e permite o conformismo ou a subsmissão.

Somente o desamor é cego, louco e gera sofrimento, porque somente o desamor permite o autoengano, o desconhecimento e a manipulação de nossos semelhantes.

Talvez somente deixaremos de tentar mudar os outros a fim de que sejam como gostaríamos que fossem, e manter assim o autoengano e o desconhecimento, quando começarmos a relacionar o amor com conceitos como verdade, clareza, saúde,conhecimento, criatividade e corpo.


2. O namoro


Dado que "namoro" signfica "em amor", os mesmos flagelos que pesam sobre o amor pesam consequentemente sobre o namoro.

Quando descobrimos alguém que sentimos atração nosso primeiro desejo é de "conhecer" a pessoa descoberta; uns vão querer conhecer preferencialmente seus ideais, outros sua conta bancária, mas o sentimento que sempre acompanha a flechada é o desejo de conhecimento.

Para nós, a paixão é acompanhada de um desejo de conhecer o outro e mostrar-lhe o que sabemos de nós mesmos. Mas apesar do desejo fundamental de ser querido "em nossa totalidade", a "personalidade" que autofabricamos nos força imediatamente a ocultar o que não gostamos de nós mesmos.

Isso costuma ser um autoengano e consequentemente um engano para o outro. Se além disso acresentamos a interpretação que fazemos do Cupido, isto é, concebemos o namoro como algo que não requer maiores cuidados mais do que o mero desenrolar do que o destino proporciona, e acresentamos ainda a supervalorização da pessoa amada, da qual irracionalmente se espera a solução definitiva de nossos problemas, entenderemos a facilidade com que responsabiizamos o namoro de suas típicas consequências trágicas.

Vivido dessa forma, o namoro não deixa de ser um episódio temporário de alienação no qual o ser amado é amo e senhor de nossos pensamentos, para deixar de ser quando na convivência, geralmente incultivada, vai surgindo tudo aquilo que havíamos escondido de nós mesmos e a evidência de que "o outro" não é a solução definitiva de nossos problemas.

Mas se esse primeiro "desejo de conhecer" a pessoa que nos atrai por qualquer motivo, longe de bloqueá-lo com o resto de nossos desejos, soubéssemos mantê-lo -- com os altos e baixos que todo intercâmbo de informações supõe -- o namoro poderia ser renovado constantemente, sem acabar no frequente triste amor-resignação.


3. Da sexualidade ao amor e do amor à sexualidade


Aliado ao amor "sem paixão" que costuma suceder o processo de namoro, costuma aparecer também a monotonia e o aborrecimento sexual.

Consequentemente existe a ideia popular, rígida e idealizada de que somente a "novidade sexual" é excitante ou sistematicamente exitante, ou garantia de excitação, esquecendo a possibilidade de permanente descobrimento quando existe um cultivo da relação.

O prazer sexual mais global e/ou intenso costuma ser encontrado quando existe o afeto e o desejo de conhecimento entre os membros da relação. Dito de outro modo, o amor costuma ser o melhor afrodisíaco.

A diferença fundamental que introduz a presença do componente amoroso é a confiança para nos desnudarmos completamente não apenas da roupa mas também da "personalidade".

Quando mantemos relações sexuais com "personalidade", o seja, com nosso orgulho, nossos títulos, nossas diversas máscaras...estamos nos relacionando com a ideia que temos de nós mesmos; consequentemente, nossas atitudes sexuais vão tender a ser um meio para alimentar essa ideia, que pouco tem a ver com nossa autêntica realidade de seres humanos limitados a um ínfimo espaço e tempo. As possibilidades de nos aceitarmos com nossas fraquezas e limitações ficam minguadas e o oferecimento que, em consequência, costumamos fazer de nós mesmos será parcial.

Dado que ninguém pode se sentir realmente querido por sua personalidade e suas diversas máscaras e dado que o intercâmbio de informação nunca é unilateral, nos sentimos queridos e desejados na mesma medida proporcional que nos mostramos sem autoengano e, em conquência, somos aceitos em nossa autenticidade.

Numa primeira relação é importante guardar o desejo e a atitude aberta às possibilidades de confiança e conhecimento.

Essa atitude requer contemplar os obstáculos a tal confiança como parte do jogo saudável; requer também certa disposição à desilusão, mas não só: requer uma disposição à ruptura ou separação de acordo com o tipo de desilusão; requer finalmente honestidade consigo mesmo e com os outros, descartando por completo a manipulação.

Podemos dizer que a manipulação consiste em possuir e usar o outro para nosso prazer, isto é, conduzi-lo a um objetivo pré-fixado que o outro não conhece e que, consequentemente, não consentiu.

Alimentar, portanto, o desconhecimento não poderá resultar em outra coisa que não dificultar o mútuo intercâmbio de informações.

Sem dúvida nem todas as relações sexuais se realizam entre as pessoas que se amam com esse amor entendido como aceitação de si mesmo e em consequencia dos outros. Inclusive podem funcionar satisfatoriamente sem que seus membros tenham proposto nunca tais níveis de relação, mas "todas" as relações francas nas quais estejamos atentos aos próprios desejos e preferências e fujamos da posse e da manipulação, não somente oferecem a posibilidade de uma confiança "plena" mas que constituem em si mesmas um exemplo de ternura e amor.

Embora nos pareça útil mostrar as vantagens das relações duradouras (à margem do modelo de relação de que se trate), em nenhum momento tentamos erigir a confiança e a aceitação plenas como requisito imprescindível do prazer sexual, já que essa confiança e aceitação também provêm da atvidade e do prazer sexual.

Com respeito a isso, se o amor implica em conhecimento e se somente amamos, gostamos ou desejamos aquilo que conhecemos, então qual conhecimento da outra pessoa poderia ser mais completo do que não somente através de nossos ideias mas também através de todo nosso corpo e nossa percepção sesorial?

No entanto, existe ou uma idealização ou uma infravalorização da ternura e do próprio amor, aos quais se costuma conceber como algo pouco carnal ou excessivamente transcendente, quando não há nada mais real, constante e cotidiano que aquilo com que convivemos permanentemente: nosso corpo com seus pensamentos e sua percepção sensorial.

O erotismo seria talvez o mais completo e intenso intercâmbio de informação com nós mesmos e com nossos semelhantes se entendêssemos que não existe desejo nem atração sexual sem um mínimo de informação e conhecimento, e se entendêssemos que o amor se transmite e recebe com o próprio corpo.

Mostrar portanto a semelhança entre o amor e a sexualidade é a única e autêntica intenção, a fim de que posasmos nos aproximar em "toda" relação sexual (estável ou promíscua) a essa elegância, criatividade e savoir faire autênticos, baseados no respeito a si mesmo e no respeito aos outros. A fim de que entendamos que esse "respeito" não somente atenta diretamente contra a monotonia nas relações mais estabilizadas, mas que é imprescindível para uma certa qualidede no prazer sexual.

Fonte: Montserrat Calvo Artés, Trampas y Claves Sexuales, Icaria Editorial, Barcelona, Espanha, 1987.