-- Sabemos que [a Redenção] não se trata de um conto de fadas normal. Sabemos que é um conto de fadas real.
-- O que o senhor quer dizer é que se parece com os contos de fadas? É isso? --perguntou intrigada.
-- Não, claro que não. A Redenção não se parece nem um pouco com os contos de fadas, senhorita Prim. São os contos de fadas e as velhas lendas que se parecem com a Redenção. Nunca tinha percebido? É como quando você copia uma árvore do jardim no papel. A árvore do jardim não se parece com o desenho, certo? É o desenho que se parece um pouco, só um pouquinho, com a árvore de verdade.
* * *
-- Os homens? Deixemos que os homens se ocupem de si mesmos. Já temos muito com o que nos ocupar, não acha? A senhorita é muito jovem e inexperiente, Prudência, mas vou te dizer uma coisa. O dia em que grande parte dos jantares entre homens e mulheres deixar de se dividir em dois guetos (um masculino, no qual se fala sobre política e economia, e outro feminino, onde triunfam as piadinhas e fofocas), esse dia vamos ter autoridade para dizer algo sobre a formação dos homens. O que vou te dizer agora vai te deixar escandalizada, sem dúvida, mas vou dizer assim mesmo: a maioria das mulheres não conversa. E não conversam, eis o mais grave, não porque não podem, mas porque não se dão ao trabalho de tentar.
* * *
-- Escute bem. Lhe chamei de tonta porque me parece que perturbar-se dessa forma pelo que me contou é comportar-se como uma tonta. Sou um homem franco, com certeza franco demais, e a senhorita tem razão: não sou delicado. Mas acredito que a estas alturas a senhorita já deveria saber o suficiente sobre mim para entender que, embora não seja um exemplo de delicadeza, sou uma pessoa decente. Se lhe digo que me conte algo é porque me interessa ajudar-lhe. Então deixe-me falar e escute o que tenho a dizer.
-- Não escutarei nada a não ser que retire seu insulto --disse ela com secura.
-- Está bem, retiro o que disse. Mas que conste que não era um insulto; eu qualifiquei sua forma de se comportar, não qualifiquei você.
-- Não comece outra vez com suas distinções teológicas, não vai me ludibriar de novo.
[...]
-- Ora, você não é tonta, Prudência, apenas se comporta como tonta. Não chore, por favor, já que sabe que indivíduos como eu não sabem lidar com as lágrimas, não temos esse dom. Escute bem: ocorre que há algumas coisas que lhe fazem sofrer, e lhe fazem sofrer porque não as compreende bem, simplesmente. Em primeiro lugar, não existe isso de vitória definitiva de si mesmo sobre os próprios defeitos, Prudência, não é um campo em que funcione a mera força de vontade. Temos uma natureza defeituosa, uma espécie de velha locomotiva ferida e como consequência disso, por muito que nos empenhemos, tendemos sempre a falhar. Angustiar-se por isso é absurdo e, mesmo que você fique com raiva ao ouvir isso, soberbo também. O que temos que fazer é pedir ajuda a quem fez a máquina cada vez que falhamos. E em todo caso deixar que a melhore aos poucos injetando-lhe de vez em quando uma boa dose de óleo.
-- Essa é uma explicação religiosa e eu não sou religiosa. Não utilize esse argumento comigo, por favor, não serve. --disse ela com o nariz vermelho pelo frio e pelo choro.
-- Essa resposta não é digna de uma mente lúcida, Prudência. E é um dos frutos dessa educação antitomista da qual está tão orgulhosa. A questão aqui, ou em qualquer outra discussão, não é se minha resposta é ou não é religiosa, mas se é ou não é verdadeira. Será que você não vê a diferença? Contraargumente, Prudência, diga-me que não é verdade o que eu digo, explique-me por que não é verdade, mas não me responsa que meu argumento não serve porque é religioso. A única razão pela qual meu argumento pode não servir aqui ou no fim do mundo é simplesmente porque resulte falso.
-- Está bem, pois lhe digo que não serve porque é falso.
-- É mesmo? Isso quer dizer que a senhorita acredita que o ser humano é capaz de alcançar a perfeição e manter-se nesse nível de excelência moral por suas próprias forças. Não acredita que errar é humano? Acredita que o homem não falha?
-- É claro que não acredito nisso, sei perfeitamente que errar é humano e que ninguém é perfeito.
-- Quer dizer que, no fundo, acredita que boa parte do que eu disse é verdade. O que acontece é que a senhorita apenas reconhece a verdade quando ela vem vestida com roupa secular.
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-- É ela que se culpa a si mesma, mas não pode reconhecê-lo. É mais fácil projetar a culpa nos olhos dos outros e defender-se dela do que encontrá-la no interior de si mesmo, onde não há defesa possível.
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-- A sensibilidade é um dom, Prudência, sou perfeitamente consciente disso. Mas a sensibilidade não é o instrumento adequado para pensar, e quando se utiliza para pensar, não somente não traz à fruição, mas conduz ao desastre. O mesmo acontece com as orelhas e a comida. Um órgão admirável, a orelha; uma maravilha de desenho pensada até a última de suas tramas para facilitar a audição. Ah, mas experimente usá-la para comer e verá que resultado obterá. Detesto o sentimentalismo, mas isso não me converte em uma pessoa fria. Uma coisa é o sentimentalismo e outra o sentimento, Prudência. O sentimentalismo é uma patologia dos sentimentos, que crescem, se exccedem, ocupam um lugar que não lhes corresponde, se tornam loucos, escurecem o juízo. Não ser sentimental não significa carecer de sentimentos, mas unicamente saber canalizá-los. O ideal é possuir uma cabeça temperada e um coração sensivel.
Fonte: Natalia Sanmartín Fenollera, El despertar de la señorita Prim, Editorial Planeta, Barcelona, Espanha, 2013.