27 de julho de 2010

Adultério


As paixões só podem ser vencidas com muito esforço. Os Santos Padres chamavam a paixão adúltera de "morte". Quando o adúltero se livra da paixão do adultério, é como se ele tivesse ressuscitado dos mortos. Para as pessoas que vivem no mundo, a paixão do adultério é instigada principalmente pela visão, enquanto que, para as pessoas que vivem reclusas, o adultério é instigado mais pelos pensamentos e pela imaginação.

A grande asceta Santa Sara foi torturada pela paixão insana do adultério ao longo de trinta anos. Ela sempre vencia essa paixão com orações. Certa vez, a insanidade asquerosa do adultério lhe apareceu em forma corporal, dizendo-lhe: "Sara, tu me derrotaste!" Sara humildemente respondeu: "Eu não te derrotei, mas o Senhor Cristo é quem te derrotou". Naquele instante, o pensamento do adultério a deixou para sempre.

Certa vez, perguntaram a São Pimen o que um homem teria de fazer para lutar contra a insanidade do adultério. Ele ensinou: "Se o homem conseguir sobrepujar seu estômago e sua língua, então ele será capaz de dominar a si próprio".

Santo Antônio ensinou que há três tipos de movimentos corporais: "Primeiramente, há o movimento natural; depois, a imoderação alimentar, e por último, o movimento que vem dos demônios".

Outros também ensinaram que o vício do adultério é reforçado pela raiva e pelo orgulho. Porém, todos concordam que, além do bom senso e do esforço pessoal, a ajuda de Deus é indispensável para que esta paixão repulsiva seja completamente destruída. E para mostrar que o homem pode, sim, perservar sua pureza, lembre-se, entre outros, de São Moisés da Hungria, o qual viveu cinqüenta anos no mundo e dez anos no mosteiro, em um total de sessenta anos de vida em total pureza virginal.

26 de julho de 2010

A vida não é um programa de TV


Com o advento das tecnologias eletrônicas, o mundo moderno criou o que podemos chamar de mundo virtual. O mundo virtual não é o mundo real, mas está cada vez mais parecido com ele, chegando ao ponto de ser vivido como se fosse o próprio mundo real. É fato que os homens têm acumulado uma enorme variedade de experiências ao longo dos séculos, mas esta última experiência, a do mundo virtual, talvez seja o caso mais exemplar das coisas que não são nem reais, nem verdadeiras. Nenhuma foto ou vídeo pode ser considerado como sendo apenas uma foto ou um vídeo. A tecnologia desenvolveu-se de tal forma que a fidedignidade destes fenômenos é praticamente nula. Será que estamos vendo o que a câmera capturou, ou será que estamos vendo uma versão digitalmente alterada da realidade?

De qualquer forma, toda e qualquer representação digital da realidade não é a mesma coisa que a realidade -- na melhor das hipóteses, não passa de uma representação digital. Ver um filme de um bicho na selva não é a mesma coisa que ver um bicho na selva. Mas as linhas que separam a realidade da representação da realidade estão se tornando cada vez mais tênues e indefinidas.

Contudo, este fenômeno não se restringe apenas ao mundo da computação eletrônica: trata-se do padrão de comportamento humano há muito tempo estabelecido. O Arquimandrita Melécio Webber disse algo muito interessante a respeito da diferença entre o verdadeiro eu humano e o ego humano artificialmente concebido:

"A mente é o sistema defensivo de que o homem precisa para processar todas as informações que recebe. Porém, ao realizar esta atividade, a mente acaba se tornando auto-centrada, julgamental e temerosa. Ela espera que somente o pior virá do mundo, das outras pessoas e, em última instância, de Deus. Todos os detalhes do universo são medidos e pesados pela mente de acordo com a utilidade que trouxerem para a história mental do eu, isto é, para o ego. A mente se esforça para substituir o verdadeiro centro do ser, o coração, por um centro artificialmente criado por ela".

Por conseguinte, segundo a descrição do Pe. Melécio -- que está plenamente de acordo com a descrição dos Padres --, há muito tempo o ego se encontra em um estado de realidade virtual, criando uma história e uma versão de si próprio que não é o verdadeiro eu, mas uma projeção da imaginação, uma distorção criativa.

O mundo digital elevou essa projeção da imaginação e essa distorção criativa de mera auto-ilusão pessoal a uma representação pública. Ele seduz as pessoas para uma realidade que não é de maneira alguma a verdadeira realidade, mas uma representação falsa do eu -- defendida e preservada pela versão digitalizada do eu.

Uma amostra dessa tentação é patente quando constatamos a ânsia que as pessoas têm em ganhar fama mediante as mais variadas formas de mídia moderna. Quem nunca ouviu falar de indivíduos ou famílias tentando entrar em um "reality show" fazendo alguma coisa bizarra? A expressão "reality show" é, obviamente, uma das maiores contradições em termos que existe. Esses "shows" não mostram realidade alguma: tudo o que neles há são falsas projeções e demonstrações de egos artificialmente concebidos.

Você não é um programa de TV.

Evidentemente, quanto mais tempo nosso mundo for impregnado de experiências virtuais, tanto mais propensos estaremos a confundir a verdadeira realidade com as realidades virtuais. Mesmo sem os atuais dispositivos tecnológicos, todos nós estamos imersos em uma espécie de realidade virtual formada pelas histórias, verdadeiras ou falsas, que contamos a nós mesmos e às outras pessoas, na tentativa de conceber, definir e defender a falsa realidade do ego humano.

O ego, na medida em que é definido por si próprio, não é o verdadeiro eu, e jamais poderia ser: afinal, não somos auto-concebidos. A realidade de quem somos -- o sentido e o propósito de nossa existência -- é algo concebido por Deus, pois é Ele quem nos dá existência e propósito. O esforço em nos livrarmos da dependência de Deus é apenas um sintoma do pecado -- não é propriamente um problema existencial.

São Paulo ensinou:

Pensai nas coisas que são de cima, e não nas que são da terra; porque já estais mortos, e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então também vós vos manifestareis com ele em glória (Colossenses 3:2-4).

Acho que o exercício mais fundamental da vida cristã encontra-se cristalizado nesta exortação de São Paulo. É uma diretriz que nos exorta à autenticidade. O eu implicitamente aludido por São Paulo não é o mesmo ego artificialmente concebido por nós. Não sou definido pelas minhas histórias de abuso ou pela maneira como o público me percebe. Não sou definido por minhas escolhas ou por minha herança genética.

A vida que está "escondida com Cristo em Deus" é a vida que São Paulo descreve em Gálatas 2:20:

Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim.

As falsas concepções do ego -- a realidade virtual definida pelo pecado e pela imaginação -- estão mortas. Elas foram crucificadas com Cristo. A vida que agora vivemos, que é a única vida autêntica, é a vida vivida na fé do Filho de Deus. Quem eu sou é uma questão escondida, uma questão a ser constantemente descoberta na minha vida em Cristo.

Há muito tempo que nutro uma profunda aversão pelas representações do Cristo e das coisas santas no cinema. O poder da imagem virtual facilmente constrói sua própria realidade. Não adoramos o Cristo de Zeffirelli ou as falsas representações da mídia. James Caviezel não é o Cristo. Max von Sydow não é o Cristo.

A Ortodoxia não proíbe imagens -- porém, as imagens da Igreja apontam para seus protótipos. Até hoje, as imagens do cinema raramente apontam para alguma coisa além de si próprias -- freqüentemente apontam para imagens do contexto cultural vigente e contribuem para a contínua e endêmica distorção da fé cristã empreendida pela modernidade.

Conhecer a Deus é uma luta diária. Conhecer o nosso próprio eu também é uma luta diária -- pois somente o encontraremos em Cristo nosso Deus. O verdadeiro eu não é concebido por mim mesmo, mas é um novo homem, concebido à imagem do Cristo. Jamais conhecerei o meu próprio eu a menos que eu conheça a mim mesmo em Cristo.

Eu não sou um programa de TV, e também não sou as falsas versões do meu ego, sejam aquelas que digo a mim mesmo ou aquelas que ouço dos lábios de outras pessoas. Serei conhecido somente em Cristo. Portanto, só conhecerei os outros na realidade de seus seres na medida em que conheço-os em Cristo.

É uma grande bondade em Deus.

Fonte: Pe. Stephen Freeman, da Igreja Ortodoxa de Santa Ana (OCA), Oak Ridge, TN, EUA

24 de julho de 2010

Como pensar


Henry Hazlitt, em Thinking As a Science, escrito em 1913, quando o autor contava com apenas 18 anos de idade, procura ensinar ao leitor alguns princípios e dicas da arte do pensamento. Aflito com a popularização da leitura de passatempo – vê-se que as coisas não mudaram muito de lá para cá –, Hazlitt deseja que o leitor ocupe seu tempo com pensamentos produtivos. Pensar não é pensar na vida, lembrar-se de coisas do passado, fantasiar etc., mas pensar com propósito, com o objetivo de resolver um problema específico. Assim como um relojoeiro, para fazer um excelente relógio, precisa de excelentes instrumentos, o pensador, para "fazer" um excelente pensamento, precisa de “instrumentos” também excelentes. Tais instrumentos são os métodos para se pensar corretamente.

Os princípios do raciocínio: problema, classificação e método

Pensamento significa, portanto, raciocínio. E o raciocínio exige um propósito que seja muito bem definido, a fim de que possamos delimitar com a máxima exatidão possível qual é o problema a ser atacado. Lembre-se: um problema bem delineado é um problema parcialmente resolvido.

O próximo passo é a classificação. Todo e qualquer raciocínio exige que os elementos do problema sejam adequadamente classificados. Não se preocupe muito em encontrar uma classificação absolutamente exaustiva e essencial, mas cuide apenas para que a classificação seja correta e precisa. Por exemplo, o papel pode ser um material combustível, uma superfície plana, um hidrocarboneto, uma coisa de 24 cm de comprimento, uma coisa americana etc. O importante é que a classificação seja lógica e útil ao problema.

Em seguida, devemos encontrar um método adequado para a solução do problema. Vejamos brevemente alguns deles:

• Método dedutivo. É aplicável à maioria dos problemas, e consiste em chegar a uma conclusão sem a ajuda de observações e experiências. A idéia é raciocinar a partir de experiências pregressas ou de princípios já estabelecidos.

• Método comparativo. A idéia é atacar o problema fazendo uso das várias ciências. Por exemplo, o método da psicologia animal compara a ação dos animais com as ações humanas; o método histórico obtém conhecimento de alguma coisa a partir de seus registros históricos.

• Método da sugestão. A idéia é considerar as sugestões que lhe ocorrerem mediante observação, memória e/ou experiência e testá-las mentalmente a fim de verificar se fazem sentido.

• Método da oposição. Inverter o problema, perguntando pelo seu oposto. Isso auxilia a solução do problema por meio da mudança de perspectiva.

• Método da analogia. Procura-se notar as semelhanças entre as coisas, assumindo assim que possuem algumas qualidades em comum. Por exemplo, estudar o planeta Marte comparando-o com a Terra etc.

• Método da observação empírica. É o método mais útil, pois se aplica nos casos em que os experimentos são impossíveis de serem realizados. É o caso de problemas sociológicos, astronômicos etc.

• Método da observação experimental. É o método utilizado quando é possível criar e conduzir experimentos. O método empírico nos força a admitir certos resultados como “dados”, o que equivale, em verdade, a admitir chutes. O método experimental consiste precisamente em encontrar os chutes e excluí-los do experimento.

Os problemas freqüentemente admitem, e exigem, a aplicação de mais de um método. Você deve se esforçar para aplicar a maior quantidade possível de métodos para a solução de um problema, pois um método poderá produzir resultados distintos de outro método, o que permitirá que eles se fiscalizem e se corrijam mutuamente. Em suma: saiba o método que está utilizando, de maneira que possa utilizá-lo mais consistentemente, corretamente e profundamente. E não se esqueça: dificilmente o problema é único, isolado, singular. Normalmente, o problema embute em si inúmeros outros problemas, que deverão, por sua vez, ser resolvidos. Descobrir quais são esses problemas representa um esforço intelectual próprio. Além disso, você terá de saber também em qual ordem os problemas deverão ser resolvidos.

A solução de problemas depende, em última instância, da capacidade mental do indivíduo. A formação escolar, o ambiente em que é criado, as condições culturais locais, tudo isso são influências que poderão ou não despertar as qualidades mentais que já se encontram no indivíduo. O verdadeiro objetivo dos métodos é, portanto, despertar as associações e pensamentos que já se encontram de alguma forma na mente do indivíduo.

Os erros mais comuns

Quanto à classificação, os erros mais comuns são:

(1) Criar classes que não sejam mutuamente excludentes, ou seja, criar classes que não se sobreponham. Por exemplo, as classes dos métodos construtivos – comparação, observação e experimentação – não são mutuamente excludentes, ou seja, as classes se sobrepõem. Afinal, tanto comparação quanto experimentação envolvem observação, e assim por diante. Embora pareça “lógico” que as classes não se sobreponham, essa divisão perfeita é impraticável.

(2) Criar classes que não englobem todos os objetos ou fenômenos que devam ser classificados. Por exemplo, os socialistas dividem as pessoas em duas classes: capitalistas e trabalhadores; mas há uma infinidade de pessoas que não se enquadram em nenhuma dessas classes ou que se enquadram em ambas (agricultores, professores particulares etc.).

(3) Apegar-se demasiadamente à classificação. Se algum fato ou observação exigir que a classificação seja totalmente revista, não pense duas vezes em fazê-lo.

Muitas pessoas adotam a tática de substituir mentalmente um termo difícil por sua definição, a fim de não perder de vista a compreensão do texto ou de um problema como um todo. Mas atenção: essa prática, embora útil nas primeiras vezes, não deve ser levada adiante por muito tempo, uma vez que ela agirá precisamente da maneira contrária, desviando a atenção e retardando a compreensão e a apreensão do problema e da solução.

Quanto à analogia, não se esqueça de que ela serve apenas para estimular-lhe o processo de sugestão. Isso significa que ela não deve ser levada às últimas conseqüências, como se todos os seus aspectos e relações pudessem ser transplantados para o problema original. Toda analogia é falha, toda analogia é absurda. Use-a com muita cautela, sempre desconfiando dos resultados que ela lhe despertar.

No que tange a comparação das conclusões obtidas pelos diversos métodos, certifique-se de que essa comparação seja feita apenas e tão-somente após todos os métodos terem sido aplicados, por mais difícil que seja essa tarefa. Não se apresse.

Quanto às pesquisas e experiências, critique sempre os resultados apresentados. Não se esqueça de que as pesquisas são quase sempre imperfeitas, pois as premissas das quais partem freqüentemente não são sólidas. A diferença entre observação empírica e observação experimental é apenas de grau, e não de tipo.

Há momentos em que a solução de um determinado problema é defendida por correntes de pensamento opostas, e cada corrente possui um número parecido de adeptos e de argumentos razoáveis. Neste caso, a melhor atitude é procurar uma solução que esteja fora e acima dos dois lados, pois é muito provável que os dois (ou mais) lados estejam apreendendo apenas parte do problema, e que a solução deva abrangê-las todas.

Em suma, não deixe que alguma sugestão não seja devidamente testada, seja pela memória, pela observação e/ou pela experimentação e pela pesquisa. Sair rapidamente do estado de dúvida é uma tentação, pois a dúvida desperta uma certa tensão na pessoa, podendo tornar-se extremamente desconfortável e intolerável. Mas resista: você não deve se contentar com soluções superficiais, mas deve querer o conhecimento mais profundo e completo possível do problema e de sua solução.

Por fim, a arte de pensar deve ser complementada por um bom estudo de lógica. Hazlitt recomenda Elementary Lessons in Logic, de William Stanley Jevons.

Concentração

Praticamente todas as pessoas “sonham acordadas”, ou seja, todos nós passamos boa parte do tempo pensando e imaginando coisas cuja utilidade é pouca ou nenhuma. Mas o que devemos fazer para manter a mente concentrada em um determinado problema?

Dissemos acima que as sugestões “ocorrem”. A psicologia explica tais “ocorrências” mediante o princípio da associação, que se classificam em quatro tipos:

1. Associação por sucessão. Quando duas idéias ou objetos entram na mente em sucessão, a segunda surge imediatamente após a primeira.

2. Associação por contigüidade. Quando duas idéias ou objetos entram na mente conjuntamente, as duas sugerem-se mutuamente.

3. Associação por similaridade. Quando duas idéias ou objetos se parecem, uma sugere a outra.

4. Associação por contraste. Quando duas idéias ou objetos opostos sugerem-se mutuamente.

O importante aqui é notar que, sem as associações, o pensamento é impossível. Isso significa dizer que as associações não são fenômenos mentais indesejáveis, como poderíamos supor a princípio, mas, pelo contrário, são desejáveis e necessários. O objetivo do raciocínio não é eliminar as associações, mas apenas eliminar as associações que não têm relação com o problema em questão. É por isso que a noção popular de concentração está errada: concentração não é atenção focada, mas é direcionar o fluxo das associações a fim de que convirjam para o propósito ou problema em vista. Mesmo quando “sonhamos acordados” estamos atentos e focados. A diferença entre sonhar acordado e concentrar-se é que sonhar acordado é atenção dispersa, enquanto concentração é atenção sustentada. Lembre-se: o importante é manter as associações atreladas a um determinado fim, mas jamais interromper as associações.

Mas então por que sonhamos acordados? Por que temos tanta dificuldade em nos concentrar? Por um motivo muito simples: o problema no qual estamos tentando nos concentrar não é realmente importante para nós. Grande parte de nosso “sonhar acordado” se deve ao fato de que as idéias e imagens que pensamos durante esse processo são mais importantes do que o problema no qual tentamos nos concentrar. É por isso que a regra principal da concentração é que, antes de qualquer coisa, temos de ter certeza que o problema é realmente importante, que vale a pena nos dedicarmos a ele a ponto de eliminarmos as sugestões irrelevantes e mesmo as imagens e sons exteriores que possam nos distrair.

Mais algumas dicas interessantes. Dizem que escrever os pensamentos é útil para que nos concentremos no problema. Sim, é verdade. Escrever significa traduzirmos os pensamentos em símbolos tangíveis, o qual são mais concretos do que o pensamento em si. Além disso, o ato de escrever permite que vislumbremos a cadeia de pensamentos de maneira mais sucinta. Mas lembre-se: nem sempre escrever é vantajoso. O ato da escrita é necessariamente um ato lento, ou pelo menos mais lento do que o pensamento, e muitos pensamentos úteis poderão ficar pelo caminho enquanto você escreve – escrever implica em concentrar-se no ato físico da escrita, ou seja, implica em desconcentrar-se pelo menos um pouco do problema em si.

Em vez de escrever, que tal falar? Pouca gente pensa nisso, mas o fato é que falar é mais proveitoso para a concentração do que escrever. Falar tem todas as vantagens da escrita: se o pensamento se dispersar, notaremos imediatamente. Falar torna o pensamento menos vago do que apenas pensar em silêncio. Isso acontece porque, enquanto pensamos em silêncio, não utilizamos apenas palavras, mas imagens, idéias e associações que permanecem anônimas, desconexas do raciocínio central, e a maneira mais fácil de detectarmos tal desconexão é pela fala. Não é incomum que os raciocínios terminem em becos sem saída, e, se falarmos, fica fácil percebermos esses becos: simplesmente paramos de falar. No entanto, falar possui uma desvantagem: temos de encontrar um lugar relativamente distante, afastado, isolado, para que nos sintamos a vontade em falar sem sermos confundidos com pessoas malucas. Hazlitt recomenda: “Jamais deixe que alguém lhe veja falando sozinho. Se lhe pegarem falando sozinho, é provável que algum asno idiota o confunda com um”. Bem, há ocasiões, no entanto, que até mesmo o ato de falar pode se tornar uma distração, mesmo que infinitesimal. Isso acontece quando o pensamento ainda é tão informe, tão embrionário, que o melhor é pensar em silêncio até que ele amadureça a ponto de poder ser falado. Não há uma regra pronta que lhe diga quando deve falar e quando deve pensar em silêncio. É você que encontrará o ponto de equilibro, mas o importante é que se esforce em encontrar qual é esse ponto para você.

A dica para interromper o processo de “sonhar acordado” é simples: assim que detectá-lo, interrompa-o. Lembre-se: toda vez que for capaz de fazer isso, a próxima lhe será mais fácil, até que, por fim, sua mente será capaz de concentrar-se com pouco esforço e muita eficácia. Os pensamentos frívolos se tornarão cada vez mais intoleráveis para você.

A diferença entre um pensador sério e um amador não é a capacidade de pensar: ambos pensam. A diferença é que o amador abandona o pensamento tão logo se vê envolto em dificuldades e obstáculos. Não deixe que isso aconteça com você.

Preconceitos e incertezas

Uma das características marcantes do pensador sério é a ausência de preconceitos. A pessoa que detém preconceitos jamais os expõem publicamente, ou seja, a pessoa nunca defende sua opinião deixando claro as verdadeiras razões que se escondem por trás dela. Não é incomum que as pessoas não saibam que estão agindo motivadas por preconceitos.

Os preconceitos em geral são sustentados por motivos emocionais. Vejamos as causas mais comuns:

1. A pessoa deseja que determinada opinião esteja certa porque se beneficia pessoalmente disso.

2. A pessoa deseja que determinada opinião esteja certa porque ela já a defendeu no passado, e a acusação de inconsistência intelectual lhe seria intolerável caso confessasse que errou, ou a opinião já está tão enraizada em sua psique (“hábito mental”) que ela se vê praticamente incapaz de se livrar de tal opinião.

3. A pessoa deseja que determinada opinião esteja certa porque, se estivesse errada, ela se recusaria a re-acomodar suas demais opiniões para que se tornassem compatíveis com aquela. Este é o preconceito mais comum. Há dois tipos de opiniões que as pessoas temem se livrar: (a) opiniões emprestadas, sobretudo as que foram marteladas desde muito tempo ou de origem dogmática; (b) opiniões que se recusam a aceitar evidências, sobretudo as opiniões “científicas”.

4. A pessoa imita a opinião alheia. Assim como tememos nos vestir de maneira diferente das demais pessoas, muita gente teme sustentar opiniões diferentes da maioria. É o medo de estar “fora de moda”, de parecer “antiquado”, de pensar como um “velho”. Este é o tipo de preconceito mais difícil de se livrar, pois exige coragem moral. Às vezes, coragem moral implica em parecer ridículo ou em ser desprezado, mas quem tem interesse na verdade não se deixa deter por estas coisas menores.

Se um pensamento lhe sugerir que uma de suas opiniões possa ser inconsistente, não descarte de imediato essa opinião. Procure expandir e testar o novo pensamento em todas as suas nuances e implicações, e faça o mesmo com a opinião original. Com tempo e esforço, uma dos dois se revelará falso, ou os aspectos verdadeiros e falsos de cada um lhe serão mais evidentes. Lembre-se: seja sincero em todas as opiniões que emitir. A verdade é sempre superior ao preconceito, mesmo que o preconceito possa posteriormente mostrar-se correto. Admitir que o preconceito é um preconceito é meio caminho andado para se livrar dele. Mais vale ter razão do que parecer “consistente” ou nutrir “carinho” por suas opiniões.

No entanto, o ímpeto em se livrar de todos os preconceitos pode engendrar outro tipo de pecado intelectual: a perpétua incerteza. Nem sempre vale a pena insistir na dúvida. Às vezes, somos chamados a agir. E a ação implica necessariamente em ter opiniões. Lembre-se: somos mortais, e chega um determinado momento em que não vale mais a pena buscar por mais evidências, mais demonstrações, mais raciocínios. Cada hora empregada em um assunto implica em uma hora a menos empregada em outro assunto, tão ou mais importante quanto o primeiro. Não deixe que o medo do preconceito o paralise.

Se você realmente e sinceramente acredita que “isto é assim”, diga “isto é assim”. Não diga “acho que isto é assim” ou “parece-me que isto é assim” ou “creio que isto é assim”. Se você sinceramente eliminou os preconceitos e considerou todos os aspectos da questão, diga “isto é assim” e pronto. Se depois você perceber que estava errado, e daí? Assuma que errou, assuma que muitos antes de você também erraram, e siga em frente. A maioria das pessoas lhe apontará o dedo e o incriminará. E daí? Você está interessado no seu crescimento intelectual, e não em aplausos.

Quando termina a dúvida e começa a certeza? Isto é você quem decidirá. Cada problema e cada proposição têm o seu timing adequado. Você terá de encontrá-lo, mas lembre-se: não pense com preconceitos nem deixe paralisar-se pela dúvida perpétua. Aprenda a detectar o momento certo. Pratique. Erre e cresça.

Uma última dica: não se deixe levar pelos debates, pois em geral os debatedores tentam “ganhar o jogo”, e não ter razão. Raramente o debatedor, após o debate, leva em consideração os argumentos do adversário, sobretudo se o adversário “perdeu” o debate. As conversas francas são quase sempre mais proveitosas do que os debates.

Como ler

A leitura jamais deve servir de substituta ao raciocínio. Este é um dos erros mais comuns entre candidatos a intelectuais: eles acham que um intelectual se forma acumulando um histórico invejável de livros lidos. Falso. O que se formará aí é um literato, um erudito talvez, mas não um intelectual.

Schopenhauer ensinava que a leitura é o recurso que o intelectual deve lançar mão somente quando seus pensamentos estagnarem. O intelectual nunca lê por ler. Ele não faz da leitura, por mais elevada e sublime que seja, um passatempo.

O candidato a intelectual tem de entender que parte de seu dia deve ser dedicado exclusivamente ao pensamento. Sem livros. Sem anotações. Sem conversas. Esta prática é tão rara, tão inusitada, que as pessoas acham que um homem que esteja lendo um grande livro está se “educando”, enquanto um homem que esteja refletindo, por mais inteligente que seja, estará apenas pensando, e não se “educando”. As pessoas acham que “pensar” significa recordar e reorganizar o que se sabe; na verdade, o verdadeiro pensar significa adicionar conhecimento ao que se sabe. Se tudo o que você quer é ler para não ter de pensar, então é melhor começar a fumar. O cigarro lhe será menos prejudicial à saúde intelectual do que os livros.

Isso não quer dizer que não devamos ler. Pelo contrário, devemos ler, e muito. O que Hazlitt recomenda é que não apenas leiamos, mas que nos esforcemos em tentar pensar sobre o assunto por nós mesmos. É claro que as leituras irão pouco a pouco guiar nosso pensamento, mas isso não quer dizer que estamos dispensados de pensar.

Mas como devemos ler? Hazlitt delineia cinco etapas:

1. Pense antes de começar a ler. Eis as palavras de Schopenhauer a respeito: “Digamos que um homem descubra algumas verdades após se dedicar à reflexão; e digamos que, mais tarde, aconteça de ele topar com um livro que teria lhe poupado todo o esforço reflexivo que empreendeu. Porém, mesmo assim, é mil vezes melhor que ele adquira o conhecimento pensando por si próprio. Pois é assim, quando o conhecimento é adquirido desta forma, como um organismo vivo engendrado no interior de seu sistema mental, que o conhecimento se mostrará completamente integrado e conectado com aquilo que já conhece, que será plenamente entendido com tudo aquilo que o subsume e que dele se conclui, que portará as cores, formas e características de seu próprio raciocínio, que virá no tempo certo, exatamente quando precisar dele; que ele se impregnará em sua mente e dele jamais se esquecerá”.

2. Selecione os livros e os autores que sejam sumidades no assunto, que cubram o assunto da maneira mais ampla e abrangente possível. É a melhor maneira de se começar a investigar um assunto, pois você tomará contato com os principais fatos e linhas de pensamento acerca dele. Evite confusões embrenhando-se inicialmente em leituras menores e parciais ou com livros excessivamente introdutórios. Assim como é difícil aprender a nadar exercitando um tipo de nado por dia, também será difícil aprender sobre determinado assunto se você se dedicar inicialmente às suas particularidades.

3. Resista à tentação de se deixar levar pelas opiniões expressas no livro. Antes de aceitar prontamente as idéias do autor, procure e examine as evidências. Faça uma leitura maximamente crítica, página por página, parágrafo por parágrafo, frase por frase. A diferença entre a leitura crítica e a leitura normal é que na leitura crítica você se esforça para encontrar objeções, enquanto na leitura normal você aguarda até que as objeções lhe ocorram. Uma das peculiaridades da mente humana é que ela aceita facilmente as afirmações que estejam desacompanhadas de evidências que as sustentem; se não houver evidências explícitas contra elas, a mente se entregará com facilidade. Muitas pessoas dizem da boca para fora que seguem esta recomendação, mas na prática não o fazem. Estão se enganando: se acham que é perda de tempo tentar entender uma idéia, é mais perda de tempo ainda lê-la sem entendê-la. E lembre-se: sempre que estiver confuso ou sempre que julgar necessário, largue o livro – feche-o se quiser – e deixe o raciocínio seguir seu caminho. Afinal, o objetivo não é “ler o livro”, mas usá-lo em prol da sua concentração em um determinado assunto.

4. Tome nota dos problemas que não foram adequadamente abordados ou resolvidos pelo autor. São sobre estes problemas que você terá de pensar.

5. Leia os próximos livros de maneira hop, skip and jump, ou seja, leia somente aquilo que neles seja importante, exclusivo, singular. A lei do retorno decrescente aplica-se à leitura também: quanto mais você lê sobre um assunto, cada vez menos os livros lhe dirão algo sobre ele. Procure descobrir o momento em que ler os livros integralmente será pura perda de tempo. Não é seu dever lê-los todos de cabo a rabo. Não caia na tentação tola de ler um livro só para dizer aos outros que o leu. Não tenha vergonha de dizer que o leu parcialmente ou que deu apenas uma olhada. Se o seu objetivo é impressionar os amigos e ganhar fama de intelectual, leia-os de capa a contracapa. Se o seu objetivo é adquirir conhecimento genuíno, leia-os parcialmente, concentrando-se no que neles houver de importante. Use o índice, leia alguns parágrafos aqui e ali, e tente descobrir o que é realmente necessário ser lido e o que pode ser desprezado.

Dicas finais

Não espere que a leitura deste livro (ou deste resumo) seja o bastante para fazê-lo começar a raciocinar. Nenhum hábito surgirá em você até que de fato você comece a praticá-lo. Dedique inicialmente 30 minutos do seu dia para o pensamento. Isso exigirá que você deixe de fazer o que costumeiramente faria nestes 30 minutos. Fique atento, esforce-se, procure registrar o que pensou de várias maneiras diferentes, assim como uma cidade se conhece por várias fotografias diferentes.

12 de julho de 2010

Santa Eufêmia, a Megalomártir


A grande mártir Santa Eufêmia (comemorada em 16/29 de setembro) sofreu o martírio na cidade de Calcedônia, no ano 304, sob a perseguição movida contra os cristãos pelo imperador Diocleciano (284-305), e um século e meio depois sua intervenção miraculosa se fez sentir no IV Concílio Ecumênico de Calcedônia, em 16 de julho de 451. As reuniões deste Concílio se realizaram na igreja em que repousavam as relíquias da santa, e a questão tratada era a heresia monofisita, que afirmava haver uma só natureza em Jesus Cristo, a divina, contra o ensino da doutrina ortodoxa, que afirmava a dupla natureza, humana e divina, do Senhor. Após longos debates não se chegou a um consenso. O santo Patriarca de Constantinopla, Anatólio, propôs, então, que se recorresse à intercessão da santa mártir, cujas relíquias ali estavam. Cada grupo escreveu sua confissão de fé e, aberto o túmulo de Santa Eufêmia, as depositaram sobre os restos mortais da santa, que foi lacrado e guardado por ordem do imperador Marciano, e durante três dias todos se dedicaram à oração e ao jejum. Findo esse período de tempo o túmulo foi reaberto na presença do Patriarca e do imperador e de membros do seu conselho, e encontraram o texto com a profissão de fé ortodoxa (das duas naturezas) na mão direita de Santa Eufêmia, o outro texto (da heresia monofisita) estava a seus pés. Após esse milagre muitos passaram a crer na dupla natureza de Cristo, e os que permaneceram na heresia foram excomungados. As relíquias da santa foram, posteriormente, trasladadas para Constantinopla, para uma igreja recém construída e a ela dedicada.

Fonte: Boletim litúrgico de 11 de julho de 2010 da Catedral Ortodoxa Antioquina de São Paulo

6 de julho de 2010

A antropologia escolástica


Há mais de um ano que tenho armazenado no meu computador um arquivo em formato pdf com a transcrição de uma aula do Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto sobre antropologia escolástica. Eis um breve resumo dessa aula, que nunca mais encontrei na internet.

* * *

1) A potência do sentido comum

O homem, assim como parte dos animais, possui cinco sentidos físicos: visão, audição, olfato, tato e paladar. Para captar a diferença entre o verde e o vermelho, basta a visão. Similarmente, para captar a diferença entre o amargo e o doce, basta o paladar. Mas qual o sentido que distingue entre o verde e o amargo, por exemplo? Os olhos não vêem o doce, nem a língua sente o azul, mas de alguma forma jamais confundimos o doce e o azul. Portanto, é necessário que haja um sentido que seja capaz de captar todos os sentidos. Trata-se do sentido comum.

Por intuição, sabemos que o cérebro não é o órgão do sentido comum porque a propriedade daquilo que vemos julgamos estar na coisa, e não no cérebro. O cérebro recebe apenas o significado, e não o signo. Por exemplo, a cor da mesa é bege, mas o que chega ao cérebro é um sinal do sistema nervoso, e não a luz da mesa propriamente. “Bege” se refere ao ser da mesa, e não ao ser do cérebro. O cérebro não capta o sinal da mesa, mas o sinal do sinal, ou seja, o signo do signo. Portanto, o cérebro não pode ser o órgão do sentido comum porque o cérebro não consegue comparar o significado, mas apenas um signo recebido; o cérebro não sabe a que se referem os signos. Há alguma coisa, uma intuição, que permite que saibamos que os sinais captados não são a coisa, mas apenas signos da coisa.

Os escolásticos concluíram que o órgão do sentido comum tem de ser espiritual, ou seja, ele está ao mesmo tempo no mesmo lugar que os órgãos dos sentidos orgânicos e no cérebro, que desempenham apenas um papel instrumental. Os escolásticos não possuíam, portanto, nenhum tipo de preconceito anti-intuicionista: para eles, era evidente que a cor da mesa era da mesa, e não do cérebro ou de outra coisa. Mais tarde, filósofos como Kant, motivados pela idéia de que tudo deveria ser demonstrado, tentaram provar se a cor da mesa era mesmo da mesa ou de outra coisa. Kant concluiu que não era possível saber a resposta, o que equivale a dizer que Kant provocou em si uma automutilação da intuição. Aristóteles ensinava que o preconceito contra a intuição só pode ser corrigido com punição, e nunca com instrução, pois negar a intuição é algo que pode ser falado, mas ninguém consegue realmente viver com base nessa crença. O homem que nega a intuição deve ser enjaulado, e só poderá comer caso admita que a comida é real, e não uma propriedade eletroquímica do cérebro.

A potência do sentido comum é responsável por três operações:

a) Percepção sensorial: o sentido comum é responsável pela integração dos dados dos sentidos básicos, conforme vimos acima.

b) Imaginação memorativa: o sentido comum é capaz de reter na mente as imagens que percebe.

c) Imaginação colaborativa (ou fantasia): o sentido comum é capaz de combinar imagens previamente percebidas com imagens inventadas pela própria mente.

2) A potência da estimativa

Quando um passarinho vê um graveto, ele vê nesse graveto uma tensão, uma possibilidade, de que ele se torne parte de seu ninho. Similarmente, quando uma ovelha vê um lobo, ela percebe nele uma tensão hostil, uma possibilidade hostil. O passarinho nunca viu aquele graveto antes na vida, e a ovelha nunca viu aquele lobo antes na vida. Mas ambos perceberam que uma possibilidade se destacou nesses objetos, uma possibilidade que virtualizou as demais possibilidades. Isso significa que os animais são capazes de perceber relações particulares entre as possibilidades de dois entes, de dois objetos, ou seja, são capazes de perceber como os objetos tendem a se relacionar. Chamamos esta potência de potência estimativa, porque, diferentemente do sentido comum, ela capta possibilidades inerentes aos objetos, mas não as percebe sensorialmente. É uma etapa anterior à percepção sensorial, ou seja, primeiro o passarinho detecta a intenção do graveto, e depois efetivamente o transforma em parte de seu ninho.

Os dados da estimativa podem ser retidos na memória exatamente como as imagens da percepção. A intenção de um cão específico fica retida na memória. Similarmente, a mente é capaz de combinar intenções. A intenção de um coco ficar coeso e a intenção de uma pedra em cortar podem ser combinadas para abrir o coco com a pedra. Verifica-se, portanto, que a potência estimativa é responsável por três operações, que são as operações equivalentes às operações da potência perceptiva do sentido comum.

3) A potência da concupiscibilidade (“o desejo”)

As qualidades dos objetos despertam nas pessoas uma inclinação, um desejo, para gostar ou desgostar deles, para ter simpatia ou antipatia por eles. Essa inclinação, que desta vez está na pessoa e não no objeto, é chamada de potência da concupiscibilidade. A função desta potência não é perceber, mas mover. São, portanto, duas operações:

a) Gosto/desgosto (ou simpatia/antipatia): é a inclinação pessoal pelo objeto.

b) Fruição/aversão: é o resultado do movimento, o fruto da experiência.

4) A potência da irascibilidade

Alguns eventos colocam o homem em situações contraditórias. Por exemplo, o homem movido por um grande desejo de saciar sua sede encontra um leão faminto próximo a um rio. Os desejos são contraditórios: fugir do leão e saciar a sede. Como a avaliação estimativa é limitada, um outro processo decisório tem de entrar em ação. O homem, movido pela esperança, pelo desespero, pela ira, pela audácia, pela calma etc., toma uma decisão que, se confiasse apenas nas avaliações estimativas, o paralisariam num impasse. Em suma, a irascibilidade existe porque entre o homem e o objeto de desejo existem obstáculos.

5) e 6) A potência da inteligência

Os animais, mediante a potência estimativa, são capazes de detectar as intenções (tendências) particulares dos objetos. Quando uma ovelha foge do lobo, ela estimou que o lobo quer lhe comer. No entanto, a ovelha é incapaz de perceber no lobo uma série de intenções e compará-las com as intenções de outros objetos. Assim, o homem percebe a coerência interna do ser do lobo e, por exemplo, do fogo, e compara-os: ele pode usar o fogo para afugentar o lobo.

Isso significa que o objeto da estimativa animal são as intenções particulares, mas o homem é, além disso, capaz de perceber a intenção universal dos objetos. Essa intenção universal, essa tensão permanente, essa estrutura que está sempre presente no objeto, é captada pela inteligência, mas não pela estimativa.

Vê-se, portanto, que há na inteligência, em verdade, duas potências.

a) O intelecto agente: é o que ativamente coleta notas sobre os objetos e compara-os.

b) O intelecto paciente: é o que passivamente recebe as intenções universais, cuja separação das intenções particulares já foi previamente realizada pelo intelecto agente, para entendê-los e reuni-los; é ele quem efetivamente toca o conceito.

Então:

a) Senso comum: relaciona-se com fatos.

b) Estimativa: relaciona-se com os fatos e com as possibilidades dos fatos.

c) Inteligência: relaciona-se com os fatos, com as possibilidades dos fatos e com as estruturas (relações constantes) que organizam as possibilidades.

7) A potência da vontade

A percepção das intenções universais leva a um tipo de apetite que também tem caráter universal. A vontade é um apetite determinado ou criado pelo objeto da inteligência. Se o desejo do apetite concupiscível foi gerado pelo sentido comum, se o apetite irascível foi gerado pela estimativa, a vontade foi gerada pela inteligência. A vontade estabelece normas porque ela percebe que certas relações são permanentes, a despeito do que está se sentindo no momento ou não. O homem come não apenas quando sente fome – embora possa fazê-lo também por isso –, mas porque é capaz de perceber intenções universais nos alimentos e em si próprios e compará-los. Ele come por vontade, não apenas por desejo.

A vontade, embora posterior à inteligência, exige menos esforço do que a intelecção. Depois que o homem coleta e compara as intenções universais dos objetos, resta pouco para a vontade decidir-se a favor ou contra aqueles objetos.

As operações da vontade são:

a) Volição (ou “querer”): uma vez que uma relação universal é entendida como boa, a vontade se sente empenhada a ter aquela intenção universal.

b) Intenção: é a inclinação despertada pela volição; é a inclinação que desperta as demais potências para cumprir a volição.

c) Escolha: antes da volição e da intenção, o homem é livre para escolher se atende ou não atende a vontade.

Às vezes, o desejo predomina sobre a vontade, muito embora a vontade seja estruturalmente superior ao desejo. Isso pode ocorrer por dois motivos:

a) Não está claro por que satisfazer aquele desejo não é bom.

b) O desejo corresponde a uma necessidade subjetiva desconhecida.

O apetite concupiscível funciona por analogia, ou seja, o objeto do desejo é parecido com alguma necessidade que ainda é desconhecida. Quando surge a necessidade, surge junto o desejo pelo objeto análogo à necessidade. Porém, a satisfação do desejo leva à frustração porque, no final das contas, a necessidade original não foi satisfeita. Às vezes, a pessoa demora anos, décadas, ou mesmo uma vida inteira, para descobrir qual era essa necessidade. Não raro, essa necessidade permanecerá oculta ao homem até a morte.

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A descrição matemática newtoniana sobre a posição orbital dos planetas não é um exercício da inteligência: Newton não reuniu as notas essenciais e acidentais sobre os planetas e as órbitas, nem chegou a uma intenção universal a respeito desses objetos, mas apenas apresentou uma formulação matemática que supõe que haja forças que atuem daquela forma. Mesmo que a fórmula esteja “certa”, ou seja, mesmo que ela efetivamente preveja a posição dos planetas, ela não é em si uma explicação total do movimento daqueles planetas. No final das contas, Newton tomou uma série de relações entre as posições dos planetas e as comparou com relações matemáticas ou fórmulas, criando fórmulas que têm uma relação estruturalmente semelhante com a posição dos planetas. Ele criou um símbolo matemático do movimento planetário. Mas isso é apenas um símbolo, não é um conceito. O símbolo não diz nada acerca do ser dos planetas. O simbolizado não é o símbolo. O símbolo implica em recortes baseados nos interesses do simbolista. O físico recorta o movimento planetário de acordo com interesses matemáticos. O astrólogo e o poeta também. Mas eles não são o ser do céu, mas apenas dizem alguma coisa sobre o céu: são notícias organizadas acerca do céu. Nem o físico, nem o astrólogo, nem o poeta estão autorizados a reduzir os demais recortes a produtos da fantasia. Em suma: para saber o que é céu, é preciso saber o recorte que o astrólogo faz, o recorte que Newton faz, o recorte que o poeta faz, o recorte que o casal de namorados faz, os recortes de todos eles. Porque, então, por trás desses recortes, há um objeto capaz de causar todos essas possibilidades.