Muitos
gostam de citar Jordan Peterson, sobretudo aqueles que professam ser
politicamente conservadores. Suas duas obras mais famosas, aquelas em que expõe
suas regras para viver, são largamente resenhadas não somente por profissionais
da psicologia, mas também por aqueles que se apresentam como conservadores ou
de direita.
No entanto,
há uma obra anterior a essas duas que fornece o pano de fundo de seu pensamento
e, portanto, deve necessariamente ser estudada por aqueles que se interessam
por Jordan Peterson. É uma obra pouco conhecida de seu público porque, além de
densa e extensa, é um tanto mal escrita. Peterson começou a escrevê-la aos 24
anos de idade, em 1986 e, durante treze anos, revisou-a e corrigiu-a inúmeras
vezes, motivado não somente por sua inclinação pessoal à precisão, mas também
em prol de seus alunos, já que passou a usá-la, mesmo sem ter sido formalmente
publicada, como um dos livros-texto de seu curso de psicologia na Harvard
University. Finalmente publicada em 1999 pela Routledge, Maps of Meaning
contém cinco longos capítulos cujo estilo entrecortado e repetitivo explicam em
parte a impopularidade da obra. Mas é a ela que seus maiores fãs, especialmente
os que se declaram conservadores, deveriam dedicar mais tempo e energia. É a
partir dela que entenderão o mal que o conservadorismo pode fazer à sociedade
e, originalmente, a si mesmos.
O objetivo
de Peterson é simples, mas ousado. Explicar algo que o afetou tão profundamente
a ponto de despertar-lhe pensamentos suicidas: por que existe o mal no mundo?
Não o mal do criminoso isolado, mas o mal do genocídio, o mal dos campos de
morte, o mal das armas nucleares, o mal da destruição em massa. E sua
explicação, como era de se esperar, não é de natureza político-ideológica, mas
psicológica. A fonte de sua explicação, a mesma fonte que o ajudou a livrar-se
de seus pesadelos mais terríveis, encontra-se sobretudo em Carl Jung, a quem
considera um dos maiores gênios da humanidade. Incompreendido, mas gênio.
Peterson
começa sua explicação apontando para um fato que frequentemente nos passa
despercebido. Quando exploramos o mundo, quando exploramos as pessoas, os
objetos, os movimentos, as transformações, o tempo, a disposição das coisas e
tudo o mais, o fazemos, como homens de nosso tempo, sob o ponto de vista
científico. Gostamos, porque assim nos impõe a cultura vigente, de explorar o
mundo, e, portanto, entendê-lo, tomando dados, informações e, por último,
relações lógicas entre elas. E isso está perfeitamente correto, segundo
Peterson. Ocorre que a abordagem científica não é a única possível. Ela responde
à pergunta “o que é?”, mas há outra pergunta que espreita a mente humana. É a
pergunta “como deveria ser?”. Em outras palavras, as coisas e pessoas, tal como
estão, devem continuar assim? Se sim, por quê? Se não, por quê? E como?
Observe que
o pensamento científico é mudo aqui. Atribuir significado às coisas não é
tarefa da ciência, explica Peterson, e nem poderia ser. A ciência enquanto tal
ocupa-se das propriedades sensoriais empíricas, mas não diz nada sobre o status
do objeto, ou seja, não diz nada acerca do que tal objeto implica para nosso comportamento.
A natureza objetiva de uma coisa não diz nada sobre seu significado, ou
seja, sobre o que o objeto implica para a ação, sobre o afeto do objeto
sobre nós, sobre as emoções que eventualmente nos desperta, não diz nada sobre
seu valor, sua relevância, sobre sua natureza moral. Ora,
e quem, se não a ciência, nos poderia transmitir o significado das coisas? O mito.
Sim, são nossas convenções mitológicas, ou seja, as narrações, os rituais
patrióticos, as histórias dos heróis ancestrais, os símbolos de identidade
cultural, são os mitos enfim que, quer queiramos ou não, guiam nossa capacidade
de entender o significado das coisas, do mundo. E mais: é impossível viver sem
crenças, ou seja, sem valorações, o que significa dizer que necessariamente
temos de depositar nossa fé em algo.
Aquilo que
é conhecido, aquilo que nos é familiar, é dado pelas narrações e mitos. Espere,
um momento. Nunca é demais lembrar que não se trata aqui de conhecimento
científico. Estamos tão acostumados com a ideia de que conhecemos algo
quando o conhecemos em suas propriedades intrínsecas que nos custa muito
aceitar a noção de que conhecer é não apenas o que é, mas o que deveria
ser. E isso, uma vez mais, a ciência não pode fornecer. Muito bem, dizíamos
que o que nos é familiar é dado pelas narrações e mitos. Mas também é verdade
que no transcurso da vida, seja pessoal, seja social, frequentemente nos
deparamos com situações nas quais nossas ações são inadequadas, ineficazes.
Mudamos nossas ações e nos adaptamos. Mas isso, adverte Peterson, pode não
bastar. A simples mudança comportamental, quando mais profunda, terá de ser
acompanhada de uma mudança naquilo que cremos que é importante.
E eis que algo
aparentemente simplório se mostra complexo, trágico mesmo. Mudar aquilo que
cremos que é importante implica entrar no território do desconhecido, ou, para
usar uma expressão largamente empregado por Peterson, implica entrar no
território do caos. E o caos tem uma natureza própria, que se nos
apresenta com valência afetiva, não objetiva. Ou seja, nossa reação natural é a
surpresa, o medo, o pânico. E é aqui, caro leitor, que começam os problemas.
***
Peterson
ensina que o domínio do conhecido e o domínio do desconhecido são os elementos
constitutivos permanentes da experiência humana. O domínio do conhecido é o que
genericamente chamamos de cultura, embora tal palavra deva ser empregada de
maneira meramente aproximativa. De qualquer forma, nós, seres humanos, embora
sejamos obrigados a nos adaptar à cultura vigente, estamos permanentemente em
contato com a insuficiência dessa cultura. A exploração criativa do
desconhecido, e a geração de conhecimento que advém dessa exploração, é a
construção e a atualização de padrões de comportamento e representação. Ora, a
capacidade para esse tipo de exploração criativa é o terceiro e último elemento
constitutivo permanente da experiência humana.
As
representações mitológicas do mundo costumam atribuir um caráter afetivamente feminino
(“mãe”, “devoradora” de tudo e todos), enquanto o eterno masculino se considera
como sendo tipicamente masculino. E, por fim, o eternamente conhecedor é o
cavaleiro que mata o dragão do caos, é o herói que substitui a desordem e a
confusão por claridade e certeza.
Expliquemos
um pouco mais isso. Em nossos planos, em nossos cursos de vida, surgem
inconvenientes com os quais evitamos tratar. Quando tais inconvenientes se
acumulam em uma quantidade suficiente é gerada uma catástrofe. A catástrofe
tanto pode servir para rejuvenescer como para destruir. Quanto mais se ignore
os inconvenientes de uma catástrofe tanto mais provável será que cause uma
destruição.
Peterson
traça um curioso paralelo com as funções neuropsicológicas do cérebro. Se
dividirmos o cérebro em dois hemisférios comprovaremos, de maneira muito geral,
que o hemisfério direito é o que está a cargo de representar o desconhecido com
esquemas, hipóteses, metáforas, enquanto o hemisfério esquerdo transforma tais
esquemas em descrições verbais detalhadas. Quando o curso de nossas vidas
prossegue conforme planejado o hemisfério esquerdo prevalece e as emoções aí
geradas são de baixa intensidade. Quando o desconhecido se apresenta o hemisfério
direto “se incomoda” e a necessidade de transformar o desconhecido em conhecido
pode gerar emoções intensas que são frequentemente (mal) interpretadas como
emoções negativas.
Dissemos há
pouco que as mitologias do mundo apresentam estruturalmente três elementos da
experiência: o conhecido, o desconhecido e conhecedor. Na realidade há um
quarto elemento, que é anterior a esses três: o caos precosmogônico. Trata-se
da fonte última de todas as coisas, frequentemente representado pelo uróboro, a
serpente que se come a si mesma. Peterson faz uso do mito mesopotâmico da
criação (Enûma Elish) e seus quatro personagens para explicar as
experiências fundamentais: (a) Tiamat (que representa simultaneamente o uróboro
e a Grande Mãe), (b) Apsu (consorte de Tiamat), (c) os deuses maiores (filhos
de Tiamat e Apsu) e (d) Marduk (herói mítico). Em suma, os deuses maiores matam
Apsu, e Tiamat, cheia de vingança, decide destruir tudo o que criou. Seus
filhos enviam vários voluntários para derrotá-la, mas acabam vencidos. Marduk
por fim é declarado rei e se voluntaria para matá-la. Não só a mata como a
corta em pedaços a partir dos quais cria o cosmo. O imperador da Mesopotâmia, a
encarnação de Marduk, encena uma batalha na qual o Ano Novo renova o “velho
mundo”, ou seja, é a cultura sendo heroicamente renovada. A “moral da história”
é que o reino da ordem é insuficiente porque a ordem mesma se converte em algo
dominante, sufocante, mortífero, caso a ordem permaneça inalterada. As ações do
herói são, portanto, o antídoto do caos contra a tirania da ordem.
***
Aqui cabe
introduzir o tema da ideologia. As ideologias são como mitos incompletos. Elas
têm alguma relevância porque macaqueiam os mitos. Peterson explica as
ideologias como se elas fossem a consequência natural do crescimento. Conforme
crescemos nos filiamos a um grupo que nos protegerá, mediante um conjunto de
tradições, doutrinas e crenças, da sociedade ameaçadora e desconhecida. À
medida que se alcança certa disciplina, a proteção deixa de ser necessária e
estamos maduros para a verdadeira liberdade. Preparar o indivíduo para essa
liberdade é o serviço que toda religião autêntica deveria prestar. No entanto,
as falsas religiões e as ideologias transformam a couraça protetora em uma
redoma de vidro limitante e tirânica, cuja única função será esmagar o
indivíduo e mantê-lo eternamente adolescente.
Essa
paralisia na adolescência grupal se explica pela maneira como alguns indivíduos
reagem ao que Peterson chama de “anomalia”, ou seja, como eles reagem ao
desconhecido, às ideias estranhas, aos indivíduos criativos. O temor que
sentem, a agressão que se lhes desperta, pode ser mais bem compreendido quando
entendemos que para esses indivíduos a anomalia é percebida como uma espécie de
desastre natural, como um tsunami, um incêndio de grandes proporções ou algo
assim. No entanto, o que esses indivíduos não notam, ou não admitem, é que a
anomalia é não apenas a fonte vital de interesse, de significado e de força
individual, mas também é aquilo que nos torna capaz de mudar, de despertar o
aspecto intrínseco e “divino” da psique humana. Em outras palavras, de despertar
parte do “Verbo” seminal. É precisamente o Verbo que pode criar novos mundos,
que pode destruir velhos mundos, que pode ameaçar culturas aparentemente
estáveis, que pode redimir aqueles que chegaram à velhice, à inflexibilidade, à
paralisia. No entanto, o Verbo, para aqueles que venderam sua alma ao grupo, é
nada mais nada menos que “o” Inimigo.
E qual é a
anomalia mais “anômala”? Qual a anomalia mais espinhosa de todas? Certamente é
a morte. Para nós, seres humanos, que somos capazes de imaginar nossa própria
morte e a de nossos entes queridos, o desconhecido está irremediavelmente
contaminado pela morte. E não por acaso os “adolescentes grupais” sentem tanta
repulsa pelo Verbo: em última instância, a anomalia que ele traz está
contaminada pelo aspecto mais desconhecido, e temido, de todos, ou seja, pela
morte.
À medida
que a autoconsciência se desenvolve ao longo da história e a anomalia da ameaça
da morte, ou seja, do fim da existência, se torna cada vez mais presente, o
desconhecido ganha dimensões literalmente insuportáveis. Aqui Peterson
desenvolve uma interessante descrição dos padrões de comportamento transpessoais,
ou esquemas de representação, que se encarnaram na mitologia como os “irmãos hostis”
ou os “filhos eternos de Deus”:
(1) O
herói mitológico. É aquele que enfrenta o desconhecido de maneira aberta,
ou seja, com uma atitude esperançosa ante a renovação e a redenção que resultará
de tal contato. Aqui há uma união criativa com a Grande Mãe. O herói organiza
as exigências do ser social e as responsabilidades de sua própria alma em uma
unidade coerente e disposta hierarquicamente. Em outras palavras, o herói aceita
placidamente sacrificar a segurança em favor do significado. A
existência não deixa de ser trágica, mas é aceitável.
(2) O
adversário eterno. É o espírito da racionalidade que, horrorizado por seu
medo das condições da existência, evita o contato com tudo o que não compreende.
Esse comportamento esquivo debilita sua personalidade, que já não se alimenta
da “água da vida” e o converte em alguém rígido e autoritário e que se apega
tenazmente ao familiar, ao “racional”, ao estável. Aqui podemos distinguir dois
grupos: (a) o fascista, que sacrifica sua alma em prol do grupo, que por sua
vez promete protegê-lo do desconhecido; (b) o decadente, que, ao contrário do
fascista, é indisciplinado e se nega a unir-se a um grupo social e se aferra
rigidamente às suas próprias ideias.
O
verdadeiro crente é aquele que verdadeiramente almeja imitar o Cristo, ou seja,
é aquele que se propõe a realizar a alma do herói, aquele que encarna essa alma
em todos os aspectos de sua vida cotidiana. E para explicar esse processo de identificação
com o herói Peterson lança mão da análise da alquimia de Jung. Segundo explica
Peterson, a matéria alquímica é uma substância como o Tao, ou seja, uma substância
“que produzia ou constituía o fluxo do ser”, algo mais parecido ao que
modernamente chamamos “informação”. É, em outras palavras, a matriz do ser, o
desconhecido. Não é difícil concluir o que os alquimistas diziam daqueles que
assimilavam completamente o “espírito do desconhecido”: eram eles equivalentes
ao próprio Cristo.
Portanto, em
hipótese alguma o pensamento de Peterson pode ser considerado como um apego à ordem,
muito menos um apego ao conservadorismo político, seja ele americano, europeu ou
qualquer outro. O que Peterson ensina é precisamente o oposto: o indivíduo deve
assumir plena responsabilidade por seus sentimentos, pensamentos e
comportamentos e, motivado pelo interesse no desenvolvimento de sua
individualidade, deve buscar identificar-se com o herói. Somente atendendo ao
chamado da anomalia, que vive na fronteira entre o caos e a ordem, e pondo em risco
sua própria segurança e enfrentando o desconhecido poderá o individuo
identificar-se com o herói, ou seja, o Cristo, o Tao. Deixe de mentir a ti mesmo,
faça com que seu coração te diga o que deve sinceramente fazer. Você não apenas
será melhor, mas o mundo também o será. Que não tenhamos medo da
responsabilidade a qual a anomalia nos chama.
Fonte: Jordan B. Peterson, Mapas de Sentidos, Editorial
Planeta, Barcelona, Espanha, 2020.