20 de julho de 2024

A verdade


Não se faz beber um asno que não tem sede

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O indiferentismo, em face da verdade, é um erro contra a natureza. Negar a necessidade da verdade é negar a própria inteligência, é rebaixar o homem ao plano do animal. Deixaremos, de bom grado, aos defensores dessa tese o cuidado de destruir o homem e povoar os zoológicos.

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Longe de ser uma marca de orgulho, a posse da verdade é a marca de certa humildade. É o sinal de que a inteligência soube deixar-se gravar e ser informada. [...] A inteligência não aborda a verdade como um superior.  Aproxima-se como um mendigo, um inferior. A inteligência está a serviço da verdade, e não o inverso. Serviço afetuoso, por certo, e entusiasmado, porém respeitoso.

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O subjetivismo: "A doutrina realista da verdade é sufocante. O homem nela não tem a parte criativa e extensora que lhe é devida. A verdade é uma construção".

O pai dessa maneira de ver é Kant. Lê-se no prefácio da 2a edição da Crítica da Razão Pura: "Admitiu-se, até aqui, que todos os nossos conhecimentos deveriam regular- se pelos objetos; mas, nessa hipótese, todos os nossos esforços para estabelecer, a respeito desses objetos, qualquer julgamento a priori pelo nosso conhecimento não conduziria a nada. Que se pesquise, então, uma vez, se não seríamos mais felizes, nos problemas metafísicos, supondo-se que os objetos se regulam pelo nosso conhecimento".

[...]

Conhecer uma coisa não é inventá-la, é descobri-la tal qual é.

A diferença profunda entre o subjetivismo e o realismo pode ser assim resumida: o realista é um livro, o livro do real. O subjetivista escreveu-o.

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Para nos estimular no trabalho, leiamos o comentário de Santo Tomás sobre as palavras do Senhor: "Eu sou a Verdade" ( Jo. 14, 16). Introduzindo-nos no próprio coração de Deus, que dita o seu Verbo eternamente, ele nos indica o cume da verdade, para o qual devem tender todos os nossos esforços. Deixa-nos, assim, imaginar como uma sã filosofia pode servir à fé tornando-a mais penetrante. Enfim, mostra-nos a disciplina a que deverá submeter-se aquele que queira atingir a verdade total: Aderir ao Verbo, entrar na escola de Jesus Verdade. Aos homens que têm sede de verdade, diz Jesus: "Eu sou a Verdade". A verdade lhe vem por ele mesmo, pelo fato de que ele próprio é o Verbo. A verdade não é nada mais do que a adequação da coisa com a inteligência, o que se realiza quando a inteligência concebe a coisa tal qual é. A verdade da nossa inteligência nos vem, pois, do nosso "verbo", que é a sua concepção (o "verbo" interior é o conceito que nasce na inteligência quando ela conhece. É a presença imaterial, como a proclamação, em nós, da coisa conhecida que nos torna a inteligência semelhante à coisa). Entretanto, mesmo que o nosso verbo seja verdadeiro, ele não é a própria verdade, dado que não é verdadeiro por si mesmo, mas pelo fato de que é adequado à coisa conhecida. Para a inteligência divina, a verdade volta ao Verbo de Deus. Mas o Verbo de Deus é verdadeiro por si mesmo, dado que não é medido pelas coisas, ao passo que, ao contrário, as coisas não são verdadeiras senão na medida em que alcançam certa similitude com o Verbo. E, pois, o Verbo de Deus é a própria Verdade. E, como ninguém pode conhecer a verdade se não adere à verdade, é necessário que quem deseje conhecer a verdade adira ao Verbo.

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É, pois, no contato inicial da inteligência com o ser que é preciso buscar a evidência, a certeza primeira anterior a todo raciocínio. Ela nasce dessa primeira abertura da inteligência à existência das coisas, na qual esta se entrega àquela, e na qual o sujeito vê, pelo fato mesmo de que conhece, sua aptidão de extrair o verdadeiro.

As evidências primeiras resumem-se nesta simples afirmação: "Eu conheço alguma coisa".

Afirmação que pressupõe uma tríplice evidência:

— a existência das coisas que me envolvem;

— a existência desse "eu" que conhece; e

— a aptidão da inteligência para conhecer, sua ordenação natural ao ser. Noutras palavras: a possibilidade e a existência da verdade.

Nesse contato inicial e imediato, o ser entrega à inteligência suas próprias leis. São os primeiros princípios do ser: o princípio de identidade e de não contradição (o ser é; o não ser não é; todo ser é o que é; não se pode ser e não ser ao mesmo tempo, e sob o mesmo aspecto); o princípio de causalidade (tudo aquilo que não é por si é por outro); o princípio de finalidade (todo agente age para um fim)...

São evidências que não se podem negar sem interditar todo conhecimento, e daí toda verdade, toda linguagem, toda vida.

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Poder-se-ia aplicar-lhe o que diz o Salmo 35, a respeito do ímpio: Noluit intelligere ut bene ageret (v. 2): Ele não quer refletir para agir bem. Não quer obedecer a uma regra externa. Aceita desconhecer a verdade. Aceita a eventualidade de estar em erro de preferência a curvar-se.

Essa mentalidade nos convida, ao contrário, a uma grande lealdade em face da verdade. Já que a entrevimos, tomemo-la como ao sol de nossa existência. Em face de tal ou qual vício, de tal ou qual hábito maléfico, de tal ou qual conivência com o mal, não fechemos os olhos, como quem não viu. Ao contrário, declaremos guerra, em nós, à ilusão, a fim de estabelecer, na nossa vida, o reino da verdade.

Fonte: Jean-Dominique, A verdade, Edições Santo Tomás, Formosa, GO, Brasil, 2023. Trechos selecionados.

19 de julho de 2024

Física-matemática e metafísica


A necessidade da metafísica

Jacques Maritain, mais especificamente sua obra The Degrees of Knowledge (que será alvo de estudo nosso em breve), é a influência capital no pensamento do filósofo venezuelano Carlos Casanova. Usando diversos livros de filosofia da ciência como pontos de apoio para tecer seus comentários, torna-se um tanto difícil detectar precisamente seu pensamento acerca dessa disciplina.

De toda forma, o que procura fazer Casanova é superar o entendimento nominalista e mecanicista prevalente na filosofia da ciência, a qual considera falha, e estabelecer bases mais lúcidas e convincentes. A partir de Descartes, as normas ou “leis” que regem a natureza deixam de ser causas formais dos entes, que perdem, portanto, sua natureza. As coisas se reduzem ao que Casanova chama de “monturos” (i.e. montes de esterco) de res extensa. Mas então onde foram parar as leis da natureza? Para Newton, na própria res extensa; para Hume, as leis são hábitos da mente; para Kant, as leis são um acasalamento entre as categorias/formas e nossas experiências. Casanova, com Maritain em punhos, discorda de todos eles.

Veja o caso da nutrição, por exemplo. Na visão nominalista/mecanicista contemporânea, a nutrição não passa de mero intercâmbio de interações químicas (é o que se pode vislumbrar neste artigo, por exemplo). Mas por que ocorre a enteléquia, isto é, por que ocorre a passagem da potência para o ato no caso da nutrição? A resposta não se encontra na própria dinâmica da nutrição. A enteléquia não é uma “força” que se soma às outras “forças” da nutrição, mas ela é precisamente o que dá unidade às partes, é o que faz com que a biologia não seja mera física matemática.

Similarmente, nem mesmo a física se resume à física matemática. Aliás, nem mesmo a matemática se reduz à matemática (!). Sim, porque alguns dos axiomas sobre os quais versa a matemática não podem ser provados por ela mesma. Veja o caso do princípio da não-contradição, por exemplo. É aqui que entra a metafísica. É ela, a metafísica, que detecta e defende os primeiros princípios.

Entes de razão e entes naturais

Maritain, como bom tomista, ordena os entes da seguinte forma:

  • Entes de razão. São os entes que têm existência mental. Maritain os dividem em escalões. O primeiro escalão são os entes de razão que respondem a observações experimentais (medições). O segundo escalão são os entes de razão que são apenas imagens simbólicas (átomos, elétrons, moléculas). O terceiro escalão são os entes de razão incapazes de existir enquanto tais (os tempos de Einstein, os modelos materiais de Kelvin).De maneira geral, são entes de razão os universais, proposições e juízos – aqui pouco importa que respondam a essências reais –, bem como negações, relações, conectores lógicos, quimeras (i.e. fantasias), metáforas etc. Estes entes, embora não sejam “reais”, são exigidos pela inteligência para que possa conhecer a realidade.
  • Entes naturais. São o que chamamos coloquialmente de “coisas”. São os entes que compõem o mundo real.

As teorias da física-matemática, que se encontram nos segundo e terceiro escalões dos entes de razão, são basicamente um conjunto de “mitos verossímeis” que não conhecem a natureza das coisas em si mesmas, mesmo que conheçam algo real. O que Maritain quer dizer, no entanto, é que as teorias físico-matemáticas são uteis, senão indispensáveis em muitos casos, para que entendamos a realidade, mas elas não encerram em si a própria realidade. Por estarem naturalmente distantes da realidade (lembre-se, são entes de segundo e terceiro escalões), é imprescindível que outra disciplina entre em ação para organizar o conhecimento que trazem. Eis o papel da física descritiva (ou “filosofia natural”). Em outras palavras, atribuir realidade a fórmulas algébricas é perder-se em erros. O esquecimento da metafísica é o que torna possível delírios como “viagem no tempo”, “campos de força”, “homúnculos” etc.

Um dos maiores enganos associados às teorias da física-matemática é atribuir-lhes realidade. A mente definitivamente não é um espelho do mundo. Talvez Platão, em sua teoria das ideias, tenha vacilado nesse sentido, mas Aristóteles mostrou claramente a diferença entre aquilo que conhecemos do aquilo pelo que conhecemos. Tenhamos em mente os entes de razão e os entes naturais: os entes de razão são aquilo pelo que (id quo) conhecemos aquilo que (id quod) é real. Já vimos isso inúmeras vezes nos estudos de Mortimer Adler, como, por exemplo, no verbete “ideia” de seu dicionário filosófico. Casanova evidentemente não nega que haja verdade na física, mas ela é muito menos dogmática do que muitos imaginam. A verdade na física se expressa de modo metafórico. E tal verdade está mais presente nas explicações que servem de contexto às formulas algébricas que nas próprias fórmulas algébricas. As fórmulas apenas captam inter-relações quantitativas e, como é óbvio, não as refletem como um espelho.

Por outro lado, negar os universais (conceitos, ideias) é negar que existe ciência, física ou matemática.

A origem das teorias científicas

É verdade que toda ciência se origina da experiência, e ela, em si, não é racional. Mas estas experiências tampouco são irracionais. Elas são, na verdade, intelectuais. A esta altura o leitor já deve estar habituado a diferenciar ‘intelectual” de “racional”. O intelecto é uma das potências superiores da alma (a outra é a vontade), enquanto a racionalidade (ou “raciocínio”, melhor dizendo) é um dos modos de operação do intelecto. Mas o ponto aqui é que a experiência inicial do intelecto, mais especificamente do intelecto agente, é de maneira espontânea extrair o conceito ou ideia do fantasma que lhe é apresentado pela parte sensível da alma. Portanto, a atividade intelectual inicial não é irracional, mas suprarracional. Einstein foi um dos cientistas que admitia o caráter intuitivo dessa experiência:

A suprema tarefa do físico é a busca dessas leis altamente universais [...] desde as quais se pode obter um retrato do mundo por pura dedução. Não há um caminho lógico que conduza a essas [...] leis. Elas só podem ser alcançadas por intuição, baseadas em algo como um amor [Einfühlung] intelectual dos objetos da experiência.

É claro que uma miríade de fenômenos psicológicos entra em jogo nessa intuição inventiva. Mas a visão que reconhece dentre as várias ideias qual a correta é algo que se explica pelo amor conatural à verdade; ou, como diria Tomás de Aquino, as “sementes da verdade”. Roger Penrose dizia em seu The Emperor’s New Mind (a ser estudado aqui futuramente) que a intelecção não é redutível a sistemas inteligentes porque a inteligência não é algorítmica nem se conforma a regras conscientes (muito menos inconscientes).

E há mais. A invenção não é o único aspecto no qual a intuição intelectual se aplica. Mesmo quando são detectados os axiomas de uma teoria qualquer, seu desenvolvimento demonstrativo também exige a participação da intuição intelectual. Demonstrar uma teoria qualquer não é um processo retilíneo e puramente lógico porque há valores suprarracionais envolvidos na descoberta científica como a capacidade preditiva, a consistência, a ampla aplicabilidade, a simplicidade e a fecundidade para produzir novos resultados. Nada disso é “racional”. Observe que é fantasioso supor que a ciência, seja a física-matemática ou qualquer outra, parta de axiomas bem estabelecidos e daí deduza uma teoria. Pelo contrário, o que ocorre é que um sistema axiomático é produto de reflexões que reforçam o edifício científico existente. Não se trata de “conspiração” ou qualquer coisa do gênero, mas sim de um conjunto de observações empíricas que esperam o surgimento de um gênio que proponha hipóteses que organizem essas observações em uma teoria.

Cumpre-se portanto o velho adágio aristotélico: “Toda doutrina e toda disciplina procedem de um conhecimento prévio”. Esse conhecimento intelectual “bruto”, digamos, é infalível porque inicialmente é feito de todos, ou seja, de compostos. Perceber “homem” é infalível porque se percebe num ato único. Posteriormente, claro, se decomporá esta percepção em elementos simples, e esta passagem do uno ao múltiplo é onde residirão os erros.

A depuração dos erros é possível voltando-se à síntese, ou seja, a uma nova síntese. Eis o processo científico: ele jamais descreverá com precisão a essência dos entes, mas é capaz sim de nos aproximar das causas verdadeiras mediante a transpassagem das fórmulas matemáticas em direção às realidades físicas que essas fórmulas apontam. Eis o papel da física-matemática: uma ponte para a realidade. Não é a realidade, mas uma ponte para ela.

Causalidade como princípio suprarracional

Muitos filósofos, entre os quais se encontra Kant e a maioria dos materialistas/fisicalistas, sustentam que o princípio da causalidade é irracional porque não é dedutivamente explicável pelos métodos científicos. Isso ocorre, segundo Casanova, porque a causalidade é modernamente confundida com determinismo eficiente. Causa é causa eficiente. Como não se detectam causas eficientes pelo método científico então a causa eficiente não existe e, portanto, a causa não existe.

O problema reside na dificuldade moderna em entender que a causa eficiente subordina-se à causa final. É a finalidade que traz inteligibilidade ao mundo (e à ciência, por óbvio), e é ela também que explica adequadamente a mecânica quântica. O fato de haver acaso não significa que haja irracionalidade, pois, a ausência de causa é apenas ausência (ainda) de finalidade. Uma vez que entendemos que a base das ciências são os poderes (aka potências) que constituem a materialidade, postular o acaso não implica que estejamos nos afastando da racionalidade. O acaso não exclui a existência de uma materialidade junto à formalidade das tendências, nem a causalidade per accidens nem o livre arbítrio humano.

Fonte: Carlos Casanova, Física e realidade, Vide Editorial, Campinas, SP, Brasil, 2013.

14 de julho de 2024

O único evento da minha vida


Pombas brancas voam sobre meu lago azul, como anjos brancos sobre o céu azul.  As pombas não seriam brancas nem o lago seria azul, se o grande sol não abrisse os olhos sobre elas.

Ó minha Mãe celestial, abre Teu olho em minha alma, para que eu possa ver o que é o quê - para que eu possa ver quem está habitando em minha alma e que tipo de frutos estão crescendo nela.

Sem o Teu olhar, vagueio desesperadamente pela minha alma como um viajante, na escuridão indistinguível da noite. E o viajante cai e se levanta, e o que encontra ao longo do caminho ele chama de “eventos”.

Tu és o único evento da minha vida, ó lâmpada da minha alma. Quando uma criança corre para os braços da mãe, os eventos não existem para ela. Quando uma noiva corre ao encontro do noivo, ela não vê as flores na campina, nem ouve o estrondo da tempestade, nem sente o cheiro da fragrância dos ciprestes ou sente o humor dos animais selvagens – ela vê apenas  o rosto do seu noivo; ela ouve apenas a música dos lábios dele; ela cheira apenas a alma dele. Quando o amor vai ao encontro do amor, nenhum evento acontece. O tempo e o espaço abrem caminho para o amor.

Andarilhos sem rumo e pessoas sem amor têm eventos e têm história. O amor não tem história e a história não tem amor.

Quando alguém desce ou sobe uma montanha sem saber para onde vai, os eventos lhe são impostos como se fossem o objetivo de sua jornada. Na verdade, os eventos são o objetivo dos que não têm objetivo e a história dos que não têm caminho.

Portanto, os sem objetivo e sem caminho são bloqueados pelos eventos e brigam com os eventos. Mas eu tranqüilamente corro até Ti, tanto subindo quanto descendo a montanha, e eventos desprezíveis furiosamente se afastam dos meus passos.

Se eu fosse uma pedra e estivesse rolando montanha abaixo, não pensaria nas pedras contra as quais estou batendo, mas no abismo no fundo da encosta íngreme.

Se eu fosse um riacho de montanha, não estaria pensando no meu percurso irregular, mas no lago que me esperava.

Verdadeiramente assustador é o abismo daqueles que estão apaixonados pelos eventos que os arrastam para baixo.

Ó Mãe celestial, meu único amor, liberta-me da escravidão dos eventos e faze-me teu escravo.

Ó dia esplendoroso, nasce em minha alma, para que eu possa ver o objetivo do meu tortuoso caminho.

Ó Sol dos sóis, único evento no universo que atrai meu coração, ilumina meu eu interior, para que eu veja quem ousou habitar ali além de Ti - para que eu possa erradicar dele todos os frutos que parecem doces por fora, mas cheiram podre por dentro.

Fonte: São Nicolau Velimirovich, Prayers by the lake, Oração XV

Leia também: Orações às margens do Lago Ohrid

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Embora belíssimo, é inegável que o poema traz elementos gnósticos ligados ao Eterno Feminino. Deve ser lido, portanto, com a devida precaução.

3 de julho de 2024

A causalidade vertical e o colapso do vetor de estado


Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. (1 Coríntios 13:11-12)

O “enigma quântico” que Wolfgang Smith afirma desvendar é o colapso do vetor de estado. Para tanto, Smith parte da ideia de que a manifestação de um objeto é apenas uma parte do que ele plenamente é. A percepção, portanto, é incapaz de “esgotar” o objeto. Se o objeto fosse capaz de manifestar-se plenamente, então não seria um objeto corpóreo, da mesma forma que um círculo sem o traço que o delimita deixaria de ser um círculo. A redução do intelecto e sua intuição (ou “abstração”, como provavelmente diriam os escolásticos) ao raciocínio é um dos vilões da falta de cosmovisão da física matemática moderna. O raciocínio analisa, i.e., dissocia, enquanto o intelecto capta de um só golpe aquilo que o próprio Deus dispôs como já unido. Afinal, não foi o próprio Tomás de Aquino quem disse que o raciocínio é algo defeituoso em nós?

Não é a primeira vez que Smith diferencia o que é corpóreo do que é físico. Já o vimos fazer isso com a proverbial maçã: a maçã corpórea e a maçã molecular. A maçã é o objeto corpóreo X, enquanto a maçã molecular é o objeto físico associado SX. Ambas não são a mesma coisa. Aliás, os dois são tão diferentes a ponto de, a rigor, ninguém nunca jamais ter visto uma maçã molecular pela frente. A maçã molecular depende do ato de presentificação, ou seja, X é a presentificação de SX. Ambos, X e SX, ocupam a mesma região do espaço, isto é, têm como que uma “continuidade geométrica” entre si. Isso é importante salientar porque o que o físico quer, afinal, não é tanto a maçã molecular, mas a apreensão intelectual da maçã. Ele quer, antes de mais nada, por meio de uma série de medidas e leituras contingentes da maçã molecular (SX), entender o que é necessário da maçã corpórea (X). O físico aplica um modelo ao objeto físico para, a partir daí, extrair/medir/ler o que quer que o modelo lhe diga. O modelo mecanicista, que triunfou a partir sobretudo de Newton, foi usado para desvelar praticamente todos os fenômenos físicos: acústica, termodinâmica, óptica, química etc. Mas o surgimento do eletromagnetismo representou uma novidade: por mais que o próprio Maxwell tenha feito uso do velho conceito de “éter”, o modelo então vigente mostrou-se incapaz de explicar os fenômenos eletromagnéticos, e uma estrutura puramente matemática suplantou o mecanicismo newtoniano. No entanto, o emprego de representações ingênuas permanece de certa forma no eletromagnetismo: os vetores são indício disso. No caso da física quântica, o emprego de “partículas”. Tudo isso, defende Smith, deveria ser definitivamente abandonado em favor de uma postura rigorosamente simbolista. As “partículas” são a tentativa pictórica de tampar o fosso ontológico entre os domínios físico e corpóreo.

No caso específico da física quântica, Smith se pergunta se haveria um subconjunto especificável de observáveis, ou seja, se haveria alguns observáveis que poderiam ser medidos e, a partir daí, determinar os valores de todos os demais observáveis. Não é por acaso: os sistemas “macroscópicos” funcionam assim. Por exemplo, se medimos alguns observáveis, digamos, de um carro ou de um edifício, pode-se determinar com segurança o comportamento dos demais observáveis, dentro de um sistema física específico. No entanto, no que tange à teoria quântica, a redução do sistema a seus observáveis é algo que sabemos não ser possível. O caso do elétron é típico: dizemos que o elétron tem tal posição e tal momento, quando na verdade estes atributos clássicos nem mesmo existem. É por isso que dizemos que o elétron ora parece uma partícula, ora uma onda, ora “salta”, quando na verdade seus atributos são logicamente incompatíveis. Mas será que as leis da lógica não valem para o “mundo microscópico”? Sem querer fazer trocadilho, é lógico que valem. O que não vale são as premissas metafísicas adotadas pela física moderna que, além de não se aplicarem à física quântica, tampouco se aplicam à física “mecânica”.

O elétron não tem posição nem momento. O que ele “tem”, tecnicamente falando, é um vetor de estado, ou seja, um valor médio e o desvio padrão em relação ao valor esperado do observável. O vetor de estado não determina medições individuais, mas é uma mera distribuição estatística dos resultados possíveis. Mas o que há de “incerto” nisso? Por acaso é “incerto” o valor esperado ao lançarmos uma moeda, que pode dar cara ou coroa? Ocorre que o estado inicial de um sistema isolado determina os estados futuros desse sistema, mas não seus observáveis. Por um lado, as equações de Schrödinger garantem o determinismo, enquanto o princípio de Heisenberg garante a indeterminação. Sim, é verdade que uma medição num sistema físico causará uma destruição do determinismo e, portanto, o colapso do vetor de estado (quando o vetor se reduz a um único autovetor do observável i.e. uma probabilidade que saltou agora para o valor 1, o que indica certeza, muito embora os demais observáveis permaneçam uma síntese de possibilidades). Mas, enquanto perdura, é um sistema que se comporta de modo determinista. Novamente, sim, o determinismo quântico está longe de ser um determinismo clássico. Mas e daí? O que se perdeu no mundo quântico não foi o determinismo, mas o reducionismo, ou seja, a ideia tola de que o mundo corpóreo (a maçã) é apenas um mundo físico (a maçã molecular). Em outras palavras, os sistemas físicos microscópicos constituem um tipo de potência aristotélica com relação ao mundo real.

Em suma, o vetor de estado é um espectro de possibilidades (potência), que por sua vez colapsa em função da medição (ato). A passagem da potência ao ato é a passagem da potência para o mundo real corpóreo. Portanto – e isto é importantíssimo – para Smith não existe isso de “mundo físico microscópico” e “mundo corpóreo macroscópico”, mas “mundo potencial microscópico” e “mundo atual macroscópico”. Em outras palavras, SX existe como potência e X existe como ato (ou como diria Heisenberg, “coisa ou fato”).

As investigações no campo quântico levantam a suspeita de que há uma espécie de “terceiro substrato ontológico” para além do mundo corpóreo e o mundo físico microscópico. Um nível ontológico que contenha a “totalidade indivisa”, nas palavras de Smith. Veja-se, por exemplo, o teorema do entrelaçamento de Bell, no qual uma observação efetuada no fóton A afeta o fóton B instantaneamente (ora, cadê a “velocidade da luz” de Einstein?). Tais partículas não parecem ser partes que existam separadamente. Smith entende que um objeto físico nada mais é que uma manifestação particular de uma realidade total. Claro, o objeto existe no espaço e no tempo e exibe certa identidade fenomênica. No entanto, em si mesmo ele excede os limites dessa aparente identidade, mergulhado numa potência ainda indiferenciada sobre a qual nada de específico pode ser dito. A predileção de Smith pelo modelo hilemórfico é óbvia.

Há, no entanto, uma adaptação da teoria clássica que procura englobar, ou seja, tornar determinística, a mecânica quântica. Trata-se da teoria de variáveis ocultas, exposta por De Broglie e David Bohm. Será então que a questão do universo ser determinístico ou indeterminístico é meramente de gosto? Smith entende que a questão não deve ser resolvida no âmbito técnico-científico, mas metafísico: não é necessário que ambas as posições sejam mutuamente excludente; a indeterminação é como que “inserida” dentro da determinação, convivendo com ela (lado Yin da moeda).

No entanto, o hilomorfismo em si, ou seja, apenas a forma e a matéria, não podem explicar tudo. Há ainda duas outras causas, a final e a eficiente, que devem ser levadas em conta. Não sem surpresa, Smith repete o velho artifício de aglutinar as quatro causas em causa material e formal (vimos tal expediente em Émile Boutroux, por exemplo), mas neste caso ele mantém a causa eficiente (como também o fazem os tomistas, que ensinam repetidas vezes que é necessário um agente em ato para provocar em um ente a passagem da potência ao ato), aludindo ao nome de natura naturans (o “naturante”, digamos) em contraste ao natura naturata (o “naturado”, digamos). O naturado, portanto, pressupõe o naturante; em outras palavras, o natural pressupõe o sobrenatural (o “doador de formas”). Nota-se aqui uma clara diferença entre a descontinuidade mecânica clássica e a descontinuidade quântica: na mecânica clássica, a descontinuidade (por exemplo, a consumação de um resultado no lançamento de um dado com probabilidades anteriormente calculadas) dá-se no tempo e, em verdade, não é propriamente uma descontinuidade; na mecânica quântica, a descontinuidade (por exemplo, no colapso do vetor de estado uma vez que se faça a medição de um observável) dá-se instantaneamente, e eis que aqui há uma descontinuidade real autêntica.

É no nível quântico que observamos uma ordem de causalidade diferente da causalidade temporal que verificamos em objetos compostos de grande quantidade de partículas. É uma causalidade que não é deste mundo. Trata-se de uma causalidade primária que atua em cada aqui e agora, sem exceção. Daí se depreende que os objetos corpóreos não são realmente compostos de “partículas subatômicas”, mas, pelo contrário, o fato mesmo de serem corpóreos implica que já não há nada “subatômico” ali. As “partículas subatômicas” são partes genuínas de um todo ontológico. Segundo Smith, “pode-se dizer que toda medição de um sistema quântico constitui um ato cosmogênico que ‘participa’ do Ato único da criação”. Trata-se da causalidade vertical.

Fonte: Wolfgang Smith, O enigma quântico, Vide Editorial, Campinas, SP, Brasil, 2019.

27 de junho de 2024

Filosofia da mente


Dualismo vs. materialismo

Embora o materialismo (mais precisamente, “fisicalismo”) seja atualmente a filosofia dominante entre cientistas, foi apenas a partir da década de 1960 que isso efetivamente aconteceu. Até então, o materialismo era uma filosofia marginal. No entanto, a despeito de qual doutrina seja a hegemônica, filosofia não é uma questão de “estar na moda”.

Hipóteses como a do cérebro em uma cuba e a dos espíritos malignos são na verdade mais, e não menos, complicadas que a crença em um mundo físico externo. Todas essas hipóteses dependem de partida da ideia da existência do mundo do senso comum. É preciso, por exemplo, supor que exista o mundo real para supor que o demônio está nos enganando. Pelo princípio da navalha de Ockham, essa hipótese tem de ser rejeitada.

Há alguns aspectos em torno dos quais a filosofia da mente se debruça: (1) os qualia, ou seja, as sensações das coisas (visual, cheiro, gosto etc.), que exibem claramente um aspecto de privacidade, algo que os aparta da realidade; os objetos e suas propriedades físicos parecem ser “públicos”, enquanto os qualia denotam privacidade; (2) os pensamentos racionais que formamos a respeito da imagem coerente e unificada do mundo, (3) a intencionalidade, ou seja, o fato de tais pensamentos serem dirigidos a algo ou sobre algo, (4) a consciência, isto é, a percepção unificada. Tudo isso compõe o domínio do sujeito do pensamento; em outras palavras, do eu.

Ora, o hiato entre o que a mente parece ser e o que a ciência diz que ela é constitui o famoso problema mente-corpo. A pergunta fundamental aqui é: afinal de contas, a aparência corresponde à realidade?

Da parte do dualismo, Feser enumera algumas características interessantes: (a) a mente é indivisível, ou seja, não pode decomposta em partes como a matéria (os casos de TPM são meras esquisitices, carência de coordenação ou mau funcionamento geral), (b) a mente é imortal porque, precisamente pelo fato de ser simples e não poder ser decomposta, não pode morrer, (c) a mente é concebível, ou seja, se a mente fosse idêntica ao cérebro então ela seria inconcebível não apenas fisicamente, mas metafisicamente (não envolveria contradição, como em 2+2=5); no entanto, com a mente é pelo menos metafisicamente concebível, então a mente não pode ser idêntica ao cérebro (ou seja, a mente pode até não existir, mas se existisse não poderia ser idêntica ao cérebro, assim como 2+2 pode até existir, mas não pode ser idêntico a 5).

Ainda sobre o dualismo, há o “problema da interação”: como mente e cérebro interagem? Uma explicação é o ocasionalismo, ou seja, Deus é o elo entre ambos. Outra é o paralelismo, isto é, mente e cérebro são construídos de tal forma que os eventos que ocorrem em um são sempre exatamente apropriados para os eventos que ocorrem no outro. Há também o epifenomenalismo, que é a ideia de que os eventos no cérebro e no corpo produzem eventos na mente, mas não vice-versa: suas ações são apenas processos inconscientes e puramente materiais do cérebro, constituindo assim uma espécie de “meio-dualismo”; ora, isso não faz sentido porque, se a mante não influencia o corpo, então como o corpo (no caso, especificamente a língua) pode falar sobre a mente?

Da parte do materialismo/fisicalismo, é compreensível que ele exiba tanta plausibilidade: a neurociência, a biologia moderna, a teoria da relatividade e o sucesso da ciência moderna em geral lhe dão grande respaldo. As descobertas no âmbito da causalidade física e das relações causais entre mente e corpo são inegáveis e efetivamente espantosas. Mas há problemas, como, por exemplo, explicar em termos materialistas os artefatos culturais.

Esses problemas que afetam o fisicalismo levaram à noção de superveniência (algo como “subsequência”): o metal é superveniente (ou seja, se segue) ao material, no sentido de que tudo o que acontece no plano das mesas, rochas, mentes etc. acontece porque algo aconteceu no nível das partículas subatômicas fundamentais. A noção de naturalismo contém o mesmo conceito de superveniência, apenas acrescentando a ideia de que não somente as partículas subatômicas, mas os fenômenos naturais em geral, constituem a realidade.

Uma das teorias materialistas mais antigas é o behaviorismo, isto é, a ideia de que os comportamentos (outputs) são produto de estímulos (inputs) do meio circundante. Sentir medo, portanto, seria apenas uma tendência a tremer e/ou correr na presença de animais selvagens, por exemplo. Mas é óbvio que essa explicação é fraca. Veja, por exemplo, o caso de eu ver que está chovendo lá fora e, por conseguinte, vestir uma capa de chuva. É necessária uma intermediação nesse comportamento: vou vestir uma capa de chuva porque tenho o desejo de não me molhar? E tenho desejo de não me molhar porque tenho medo de pegar um resfriado? Desejo, medo, tudo isso são estados mentais. Ademais, cadê a subjetividade no behaviorismo? Um ator que se comporta como se estivesse sentindo dor a está realmente sentindo? E, ao contrário, um ator que esteja sofrendo dores terríveis pode atuar sem demonstrar as estar sentindo. E, por fim, a causação está completamente comprometida no behaviorismo. Ora, se o estado mental é idêntico ao comportamento, então vestir minha capa de chuva não pode ser um efeito cuja causa é ver a chiva lá fora; afinal, vestir a capa de chuva é a própria crença de que chove lá fora. Novamente, não há elemento intermediário entre a chuva lá fora e vestir a capa de chuva.

Por estas dificuldades os materialistas se afastaram do behaviorismo e, nos anos 1950 e 1960, passaram a adotar a teoria da identidade. Chama-se assim porque acredita-se que a mente é idêntica ao cérebro e ao sistema nervoso. Aqui não há propriamente uma causalidade em nível mental, ou seja, o pensamento não é causado pelos disparos dos neurônios, mas o pensamento é o disparo dos neurônios. Esta teoria faz parte da chamada psicologia popular porque opera em um nível simples de reações causais, não lógicas. Em outras palavras, o grau de generalização e simplificação da teoria permite que se acredite, por exemplo, que o desejo por uma pizza causa a ingestão da pizza, que a sensação de dor causa os gemidos e queixas, que o perigo próximo causa a fuga etc. Novamente, não há intermediação lógico-mental, mas mera causação neuro-cerebral. A teoria da identidade é fraca porque é evidente que há uma série de relações lógicas entre os diversos disparos neuronais que, por definição, não se encontram neles mesmos. “Neurônios e secreções hormonais têm relações causais entre si; mas relações lógicas [...] não são causais. Não parece haver nenhuma forma de combinar conjuntos de estados mentais logicamente inter-relacionados com conjuntos de estados cerebrais inter-relacionados apenas de modo causal, e, portanto, não há como reduzir o mental ao físico”. Por fim, a teoria da identidade mente-cérebro obviamente não pode explicar como seres divinos, anjos, extraterrestres e androides com cérebros artificiais possa ter mentes: ora, se o cérebro é a mente, então como podem eles, que não têm cérebro, ter mentes?

Essa dificuldade levou muitos materialistas a adotarem o funcionalismo. Segundo essa teoria, as coisas não são descritas pelas coisas que são feitas, mas pelas funções que desempenham. Assim, qualquer material pode servir como mente, desde que apresente a estrutura certa para desempenhar as funções necessárias. A ideia é que o “cérebro” (um robô, um ET, um cérebro, um computador) é um hardware e a mente é um software.

A despeito de qual teoria materialista se adote, a questão de fundo é que os materialistas precisam solucionar não as questões técnico-científicas, mas as questões metafísicas acerca da mente que circulam na filosofia há pelo menos 2500 anos. Estas questões passam pelo tratamento adequado dos quatro aspectos que enumeramos acima. Vejamos um por um.

Qualia

A teoria do conhecimento, de Franck Jackson, afirma que se aprende algo essencialmente distinto quando nos damos conta, por exemplo, da vermelhidão de um objeto. Não se trata das características físicas do objeto e de sua cor, mas uma percepção adicional não redutível ao mundo físico. A subjetividade parece, assim, ser o núcleo essencial para o conceito de qualia, e a característica que é mais plausivelmente inexplicável em termos físicos.

A inefabilidade dos qualia é um aspecto que se deduz da subjetividade. Usamos palavras e gestos para falar de fenômenos objetivos e públicos, mas comunicar pensamentos sobre fenômenos privados e subjetivos é difícil, senão impossível. Outro aspecto é a intrinsicalidade dos qualia, ou seja, eles não são analisáveis nas relações com outras coisas, ou seja, com fenômenos objetivos, em terceira pessoa. Por exemplo, não há uma relação entre a vermelhidão e o disparo de um determinado conjunto de neurônios.

Curiosamente, a maioria dos filósofos que critica o materialismo mainstream não é composta por dualistas de substância, ou seja, por dualistas do tipo cartesiano que acreditam que mente e corpo são duas substâncias fundamentalmente distintas. A maioria adota o materialismo de propriedade, ou seja, a substância é a mesma, apenas suas propriedades são distintas. Diz-se que os qualia são propriedades não-físicas inerentes à substância física, como epifenômenos (versamos sobre eles acima). Isso é um absurdo: se as minhas crenças são estados físicos do meu cérebro e os qualia não podem ter nenhum efeito sobre nenhuma coisa física, então como eu posso dizer que creio ter qualia? É bizarro: existem qualia não-físicos, mas segundo os dualistas de propriedade nunca posso vir a saber que esses qualia existem; então por que estou pensando e escrevendo sobre eles agora mesmo? Afinal, que história é essa de propriedades não-físicas serem inerentes a uma substância física?

Consciência

A estratégia dos materialistas para explicar a consciência é reduzir os estados qualitativos (qualia) a estados intencionais (intencionalidade) para, em seguida, reduzir esses estados intencionais a estados materiais cerebrais.

Os estados intencionais são aqueles que representam algo além deles memos. Os qualia, por um lado, não parecem apresentar intencionalidade. Uma dor de dente não “representa” nada, apenas dói. A partir deste entendimento, Daniel Dennett propõe uma visão eliminativista: não há qualia a serem explicados em função da própria natureza complicada deles. Mas trata-se de uma bobagem: para que haja a comunicação intersubjetiva é necessária que haja algo subjetivo, ou seja, os qualia.

Esta dificuldade dá abertura para uma visão representacionalista: os qualia são, na verdade, propriedades representacionais (ou seja, intencionais) de experiências conscientes. No entanto, nem todo estado representacional é consciente. Minha crença de que 2+2=4 existe mesmo quando não estou consciente dela. Portanto, a consciência não se explica pelos qualia: um estado é consciente quando há outro estado de ordem superior que o representa.

Aqui cabe introduzir uma terceira visão da filosofia da mente que, aparentemente, não é nem materialista, nem dualista. Trata-se do monismo neutro, normalmente associada a Bertrand Russell. Em termos gerais, ensina o monismo que a estrutura causal que “encarna” o mundo material é desconhecida: não sabemos qual é a natureza interna da relação causa-efeito do mundo. No entanto, Russell entende que a percepção e a pesquisa científica não são as únicas fontes de conhecimento. Há também a introspecção que, segundo Russell, nos garante que o mundo mental é o que conhecemos mais direta e intimamente e o mundo físico é aquilo que compreendemos apenas em termos de sua estrutura causal. Por isso, para entendermos o cérebro-mente, basta nos concentrarmos nos qualia que estamos experimentando agora: a brancura, a escuridão, as cores, o cheiro, o calor, as sensações. Os qualia são o único tipo de coisa (“monismo”), e não são nem mentais, nem não-mentais (“neutro”). Nós é que lhe atribuímos mentalidade quando os escaramos sob um ponto de vista neurocientífico ou materialidade quando os encaramos sob um ponto de vista causal (rochas, árvores, galáxias etc.). É claro que tudo isso é um tipo de teoria de identidade, um idealismo do tipo pampsiquista. David Chalmers chegou a propor que no nível subatômico estão presentes as “protoqualia”, que se agregam em protomentes e protoexperiências, que, por conseguinte, dão origem às mentes complexas como as nossas. Mas como protoqualia se agregam? Como se originam? A teoria é evidentemente bizarra.

Para explicar a consciência, Feser invoca, sem surpresa, ao eu. É você que está ciente dos qualia, não uma miríade de eventos neurais. Aqui, claro, apresenta-se o problema da ligação, isto é, o problema de explicar como processos cerebrais discretos comporiam uma experiência unificada e com sentido.

Pensamento

Feser entende pensamento como racionalidade. A ser a causa de B é um tipo de relação impessoal de forças materiais sem sentido: A ser um motivo para B é um tipo de relação pessoal que envolve deliberação racional.

Uma das teorias que defende o pensamento como uma computação análoga ao cálculo dos computadores digitais é conhecido pela sigla CRTT (Computational-Representational Theory of Thought), segundo a qual os elementos eletrônicos de um computador equivalem ao elementos neuronais de um cérebro humano. O conteúdo dos pensamentos não tem nenhuma influência causal sobre outros pensamentos. O fato de um pensamento ter o conteúdo de que “Sócrates é homem” e de que “todos os homens são mortais” não tem influência sobre a produção do pensamento “Sócrates é mortal”. A CRTT não consegue explicar essa ligação, ou seja, não consegue explicar a racionalidade, ou seja, não consegue explicar a própria capacidade racional que pretende explicar. Afinal, quem realmente calcula não é a calculadora, mas o usuário da calculadora. A calculadora não “sabe” o que faz, não tem “noção” das marcações que exibe em seu display, mas é o usuário da calculadora quem realmente confere sentido e racionalidade a tudo aquilo. A computação é um fenômeno relativo ao observador: é ele, o observador, que pensa de acordo com as leis da lógica.

Intencionalidade

O que torna os fenômenos mentais irredutíveis a fenômenos físicos é a intencionalidade.

John Searle postula que toda a “rede” de estados mentais intencionais repousa sobre o que ele chama de background de capacidades não-intencionais para interagir com o mundo que nos rodeia.

Outras teorias propõem relações causais regulares. Mas como elas explica nossa capacidade de ter pensamentos sobre coisas sem conexão causal aparenta (objetos inexistentes, objetos futuros, eventos futuros etc.)? Mesmo que aceitemos que um estado mental particular signifique isso e não aquilo, isso nem de longe explica por que ele tem algum significado, qualquer que fosse. Ademais, por que escolhemos determinados eventos como iniciais e finais em detrimento de uma miríade de tantos outros? É óbvio que o status deles como inícios e fins é relativo a determinados propósitos e interesses pessoais; nenhum apelo a cadeia causas pode realmente explicar a intencionalidade.

Outra teoria é a teoria biossemântica do significado, segundo a qual o significado é dado pela função biológica. A despeito da fraqueza intrínseca da teoria, ela tampouco explica por que os estados mentais têm algum significado, seja ele qual for. “Conquanto um coração sirva para a função de bombear sangue, o coração não significa ou representa coisa alguma. É apenas um músculo. Palavras, frases e figuras significam coisas, mas músculos certamente não, não mais que pedras na vesícula ou unhas”.

Daniel Dennett propõe a decomposição homuncular. A ideia é que a mente é composta de subsistemas que desempenham várias funções mentais. Cada subsistema é um “homúnculo”. As funções podem ser consideradas como compostas de funções ainda mais elementares. Cada um dos homúnculos pode ser pensado como abrangendo homúnculos menores. Para Dennett a ignorância de um homúnculo básico e a ignorância de uma máquina são a mesma. Mas isso não é verdade: os homúnculos básicos têm inteligência extremamente baixa, mas têm. A máquina é ignorante porque não tem absolutamente nenhuma inteligência.

Feser refuta o materialismo da intencionalidade em três vertentes (representação, conceito e raciocínio):

[D]e modo geral, o que torna algo uma representação material de X em oposição a uma representação material de uma representação material de um X não tem nada que ver com as propriedades físicas de uma representação material.

[...]

Dado que não há nada em uma representação material per se que pudesse torná-la uma representação determinada de X em vez de uma representação de uma representação de X, se o seu pensamento fosse inteiramente material, então não existiria nenhum fato objetivo com respeito a se seu pensamento representava a sua mãe ou uma representação de sua mãe. O seu pensamento é determinado; representações puramente materiais não o são; logo, o seu pensamento não é puramente material.

[...]

Os conceitos são inerentemente abstratos e universais, enquanto os fenômenos materiais são concretos e particulares. Por consequência, um conceito não pode ser identificado com nada concreto, particular ou material e, portanto, não pode ser identificado com nenhum símbolo físico no cérebro ou no sistema nervoso. [...] Há claramente uma noção de que o conceito ou a proposição está na mente, mas, se essas coisas estão na mente e ainda assim não podem estar no cérebro, parece que a mente não pode ser identificada com o cérebro, ou com nenhuma coisa material.

[...]

Quando fazemos juízos de tipo matemático ou lógico [raciocínio formal], nossos juízos têm uma forma determinada. [...] Mas, como argumentou James F. Ross, nenhum processo físico tem uma forma tão determinada quanto estes processos mentais. [...]

O dualista poderia responder que o objetivo não é explicar a intencionalidade, mas sim demonstrar que, seja lá o que a intencionalidade for, ela não é física. [...] A abordagem apropriada ao estudo da mente, na visão dualista, é a via metafísica, e não física, e via filosofia, não via ciência natural.

Fonte: Edward Feser, Filosofia da mente, Edições Santo Tomás, Formosa, GO, Brasil, 2019.

5 de junho de 2024

Entre capelas e tabernas


Como forçar a linguagem humana, esse pobre instrumento de cera - plástico mas limitado -, a espichar-se até o infinito, para nele imprimir a harmonia das esferas ou então a compactar-se até que vire um átomo, até que desapareça do universo visível, de modo que consiga captar a intensidade de uma paixão, de um susto ou da aparente eternidade de uma dor de dente? Como decalcar no papel sem relevo a densidade multidimensional de um arbusto, de um pé sujo ou do cansaço? Infinitos Homeros cairiam prostrados, exânimes, derrotados pela absoluta realidade de um soluço.

* * *

Realmente, quando estamos atrapalhados, a melhor coisa - ou pelo menos a primeira; a mais urgente - que podemos fazer é contar uma história. A história de uma confusão é já um princípio de ordem.

* * *

"Mas há mistérios e mistérios, meu filho. Há mistérios que não são para nós." Ele [o Padre Marrone] falava de modo muito calmo. "O que posso dizer com certeza é o seguinte: a vida do espírito não é algo que merecemos, ou conquistamos; é algo que recebemos de graça, como um presente. Não é como recordar algo; é como ganhar algo. O caminho é pedir a Deus essa graça; e não agir como se já a tivéssemos por direito próprio, e apenas a tivéssemos esquecido; como se ela não viesse de Deus, mas de nós - o que, na verdade, implica dispensá-la. Que tragédia: recusar um presente por achar que já o temos. Que engano terrível!"

Fonte: Daniel Scherer, Entre capelas e tabernas, Edições Santo Tomás, Formosa, Brasil, 2023.

3 de junho de 2024

Poética: arte para propensão ao verdadeiro e ao bom


Ciência é conhecimento perfeito, ou seja, conhecimento do necessário. O que é contingente não é passível de conhecimento. Portanto, conhecer algo é conhecer acima de tudo sua essência (ou “quididade”) e, por extensão, suas partes e suas propriedades, seus efeitos e suas causas. Segundo a filosofia aristotélico-tomista, somente as substâncias (as coisas que subsistem por si, como a pedra, a grama, a árvore, o tigre, o homem) têm essência simpliciter (absolutamente; pura e simplesmente), enquanto os acidentes (o tamanho, a cor, as formas artificiais ou artísticas) têm essência secundum quid (segundo algo; sob certo aspecto). Somente se considerarmos os acidentes como se fossem substâncias é que poderíamos dizer que têm essência.

Quanto às substâncias, para conhecermos suas essências partimos do gênero máximo até alcançarmos sua determinação mais ínfima. Homem, por exemplo, é a substância vivente sensível racional, que por conveniência reduzimos a animal racional. A ciência, no caso das substâncias, considerando a diferença específica da espécie (no caso, racional).

Quanto aos acidentes, não há de outra: por serem desprovidos de essência, temos de promovê-los a substâncias com a condição, claro, de que em sua definição haja uma referência às substâncias de que são acidentes. No caso das formas artísticas, a dificuldade é ainda maior porque elas não estão “penduradas” em uma substância natural, mas na mente do artista. Uma bicicleta, por exemplo, não se subordina apenas a uma substância, mas a um enorme conjunto de substâncias em que se plasma com forma artificial; portanto, a ciência da bicicleta subordina-se a várias ciências paralelas cujo ser encontra-se na mente do projetista da bicicleta.

Como é sabido (cf. Todos odeiam Tomás), as artes se subdividem em servis, liberais e prudência. Mas a arte liberal se subdivide em Lógica (e suas partes: Dialética, Retórica e Poética) e em Arte Significativa (e suas partes: Arte Linguística (Linguagem e Gramática) e Poética. Como é possível a Poética fazer parte tanto da Lógica quanto da Arte Significativa? Simples: a Poética faz parte da Lógica enquanto fim último e faz parte das Artes Significativas enquanto fim médio.

A Lógica busca o que é e o que não é, a Dialética leva à Lógica pelo verossímil e pelo inverossímil, a Retórica leva à Dialética pelo bom e pelo mau, a Poética leva à Retórica pelo belo e pelo feio. Como em todas as coisas se acha o ser, a verdade, a bondade e a beleza, todas estas artes tratam universalmente de todas as coisas. ‘Ambas’ – a Retórica e a Dialética, diz Aristóteles, mas vale também para a Lógica e para a Poética – ‘tratam daquelas questões que permitem ter conhecimento de certo modo comum a todos e não pertencem a nenhuma ciência determinada’.

Versamos sobre a essência da Poética. Listemos algumas de suas propriedades principais:

  • Comunicabilidade mimético-significante. Enquanto as palavras comunicam concepções, a Poética comunica, ao imitar ações, paixões e caracteres, um análogo de concepções que quer significar.
  • Deleitabilidade séria. Faz o destinatário propender ao bem e à verdade mediante a beleza intelectual imanente a uma beleza material. A seriedade não está na compaixão (riso, choro ou o que seja), mas na propensão.
  • Raptância. O destinatário é arroubado e, a partir daí, retirado do mundo real a um mundo verossímil inventado.
  • Indutibilidade de sentimento catártica. Induz um sentimento ou estimação no destinatário para purgar-lhe precisamente desse sentimento.
  • Verossimilitude mimético-significante. O mundo à parte que a Poética cria tem de guardar uma ascendência causal dela para a Retórica e desta à Dialética e desta à Lógica.
  • Ser análoga à virtude. Característica central à propensão ao bem.

Eis pois como Carlos Nougué define a Poética (ou “Arte do Belo”, como prefere):

A Poética é a arte significativa de plasmar formas mimético-significantes e belas sobre determinada matéria, para fazer, mediante indução de sentimento e purgação das emoções, que o homem propenda ao verdadeiro e ao bom, e se afaste do falso e do mau. (p. 194)

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Para o grego em geral, e particularmente para Platão, a Idéa não era o pensamento, e sim, ao contrário, o objeto do pensamento, o objeto para o qual se dirige o pensamento. Note-se ademais que idéa e eidos provêm de ideîn, que significa “ver”, e indicam o objeto da visão. Por isso é que antes de Patão idéa e eidos se empregavam especialmente para expressar a forma visível das coisas, a figura ou configuração externa das coisas, o que se apreende com os olhos.

A partir de Platão, todavia, passam a empregar-se para exprimir a forma, digamos, íntima das coisas, sua essência. Em decorrência da “Segunda navegação” platônica, isto é, da descoberta do mundo inteligível, a forma alça-se do plano físico ao transfísico. [...] Na antiga linguagem dos homens do mar, chamava-se “segunda navegação” àquela que se dava quando, pela cessação do vento, se recorria aos remos. [...] A “Primeira navegação” perdera a rota, sem conseguir explicar o sensível pelo próprio sensível. Já a “Segunda navegação” encontra a rota da verdade, que conduz à descoberta do suprassensível, do inteligível.

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A beleza, para Platão, tem algo mais que todas as outras Formas inteligíveis: é a única que pode ser vista também pelos olhos do corpo, além de sê-lo pelos “olhos” da alma.

Fonte: Carlos Nougué, Da Arte do Belo, Edições Santo Tomás, Formosa, Brasil, 2021.