2 de junho de 2023

Filosofia concreta


Para o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos a filosofia concreta é a filosofia capaz de unir ideias e fatos e, ao mesmo tempo, ser capaz de penetrar nos temas transcendentais. Para isso, a filosofia concreta tem de demonstrar suas teses e postulados com o mesmo rigor apodítico que a matemática a fim de que não se reduza a mera estética ou a um mero conjunto de afirmações. Por “concreto” entende-se não apenas o conhecimento sensível da coisa, mas trata-se de algo muito mais amplo: abrange também o logos (ou “lei de proporcionalidade intrínseca”) da coisa e as leis que orientam sua formação, perduração e terminação.

O que vou procurar fazer é comentar o que na obra contribui para meus estudos, para o que considero central para meu progresso intelectual. A obra, como em maior ou menor grau se comprova nas demais obras de Mário Ferreira, é intercortada com comentários, com divagações laterais, com sínteses por vezes enigmáticas.

O ponto de partida para uma filosofia concreta, aquilo que Mário Ferreira chama de ponto arquimédico, deve ser buscado através de caminhos interiores, e não no mundo empírico, exterior. Sobre esse ponto arquimédico se fundará todo o desenvolvimento posterior dos postulados filosóficos e tal ponto não pode ser demonstrado, mas apenas mostrado, dado seu caráter fundante. É necessário, portanto, alcançar uma certeza da qual ninguém, absolutamente ninguém, possa duvidar com seriedade.

O ponto arquimédico é: Alguma coisa há...

Não podemos afirmar que nada há, porque a própria dúvida afirma que há alguma coisa, a própria ilusão afirma que há alguma coisa, e não o nada absoluto. A proposição alguma coisa há impõe-se de forma necessária, por uma necessidade ontológica (não há como não ser assim) e uma decorrência ôntica (não há como deixar de ser assim).

Mário Ferreira ensina que Alguma coisa há é não apenas uma verdade lógica, mas uma verdade ontológica. Na verdade lógica há a conformidade entre o intelecto e a coisa, enquanto na verdade ontológica há conformidade da coisa com o intelecto. O conceito de “ser” é captado por nós na dialética ontológica de modo mais patente do que propriamente racional; o “ser” é o fundamento dos conceitos, dos esquemas. Como diz Suárez, ser é a aptidão para existir, mas observe que essa mesma frase não pode ser uma definição, pois definir é dar fins, dar limites, e o ser não tem limitações. Como entidade lógica, o ser é o sumum genus, ou seja, o gênero supremo ao qual se reduzem logicamente todas as coisas. Como entidade ontológica, o ser é a razão que dá o ser a tudo o que é.

Interessante notar que “haver”, para o filósofo, é diferente de “existir”. Em outras palavras, não se conclui por aceitar que, se alguma coisa há, consequentemente, alguma coisa existe, pois entende-se por “existir” a realidade  exercitada in re, o ser real, ser em si. Se alguma coisa que há não existe, não é exercitada em si, mas em outro. Assim, “existir” é um ex-sistere, um “sair para fora”, no sentido de que o ser exibe-se em sua forma para além de si mesmo, criando uma relação que “sai” de si e se encaminha para o mundo objetivo – o ex-sistere, “sair de si”.

Outra distinção fundamental é entre entendimento (Verstand) e razão (Vernunft), ou seja, entre o intellectus, que capta imediatamente a essência, e a ratio, que pensa discursivamente os conceitos. A razão per se não cria. Pelo contrário, a razão desempenha um papel sintetizador e, portanto, abstrato, cujo efeito é precisamente o de afastar da concreção. Diz Mário Ferreira: “A razão, por si só, não é suficiente sem a longa elaboração do entendimento e das fases mais fundamentais da intelectualidade humana. Fundada na intuição intelectual generalizadora, é a razão sintetizadora, e ademais lhe falta o mais profundo papel poiético, criador”. Nota-se que o raciocínio é algo a posteriori, que antes há de atuar a “intuição apofântica”, ou seja, uma intuição que afirme ou negue algo oferecido pela situação ontológica, pela realidade. Na intuição intelectiva, no intellectus,  “não há propriamente dedução nem indução; há revelação, desnudamento, desvelamento; a necessidade ontológica ressalta, exibe-se, e ela mesma inaugura a descoberta pelo espirito do homem”. Assim como na matemática, os postulados metafísicos se manifestam através das intuições humanas, aos homens bem dotados de l’esprit de finesse. Os homens mais dotados de l’esprit de géométrie, são aqueles que racionalizam posteriormente o que o intelecto detectou. Os grandes filósofos, assim como os grandes matemáticos, são homens dotados de intuições apofânticas, são os verdadeiros criadores (poiéticos), são aqueles capazes de captar as revelações ontológicas. O homem contemporâneo, roído e corroído pelo ceticismo, perdeu o estado feliz da “inocência infantil”.

A revelação ontológica a que me referi acima não é meramente uma construção da experiência. A partir da experiência somos capazes de construir conceitos lógicos, isso está claro. Abstraímos algo da experiência e, por um nexo de adequação, construímos conceitos lógicos. Mas os “conceitos ontológicos”, digamos, vêm da necessidade da existência. São conceitos independentes das mentes humanas; eles se nos impõem de maneira “in-cedível” (neologismo baseado na origem semântica de “necessária”). Construímos conceitos lógicos, captamos conceitos ontológicos. O juízo lógico é bivalente (ou A é B, ou A não é B), o juízo ontológico é monovalente (A é necessariamente A).

Veja-se a diferença entre o raciocínio lógico e o ontológico quando, por exemplo, estabelecemos a relação entre o possível e o necessário. Logicamente, o possível tem de conter o necessário, pois o necessário, quando se dá, revela que era possível. Ontologicamente, no entanto, o possível exige o necessário, sem o qual o possível não seria tal; portanto, é o necessário que dá o logos (razão) de ser do possível. O possível, como um ontos (ente), tem no necessário sua razão de ser. Observe que, na dialética ontológica, há apenas relações de simultaneidade, de concomitância, e não relações gênero-especie, como na dialética lógica. Primeiro há um entendimento, e apenas a posteriori criamos estruturas lógicas proporcionadas à intencionalidade do entendimento. Novamente, observe que recebemos um conhecimento primordialmente sintético, do qual o exame ontológico faz ressaltar o concreto, ou seja, o que se dá unitivamente em uma totalidade, isto é, concomitantemente. Claro que há implicâncias e complicâncias, exibidas pelos esquemas lógicos, mas tais esquemas estão antes fundados num nexo de necessidade ontológica.

Enquanto a verdade lógica está no juízo, a verdade ontológica está na essência da própria coisa. A certeza ontológica é firme, há uma evidencia intrínseca que a sustenta. Tal certeza provém de “motivos supremos”, os quais obedecem as seguintes condições: (1) ser primário na ordem cognoscitiva (portanto, algo indemonstrável); (2) ser universal; (3) ser necessário; (4) ser o último. Em suma, a evidência do raciocínio ontológico é objetiva, mas a certeza do raciocínio lógico é subjetiva.

Ensina ainda Mário Ferreira que o que ele chama de “esquemas eidético-noéticos” (as“ideias” de Mortimer Adler) constituem aquilo pelo qual (quo) é conhecido o objeto, não o que (quod) é conhecido. A ideia expressa o objeto como nós entendemos. Mas a validez de tais ideias-esquemas é dada pela validez dialético-ontológica. Veja que há um corolário impactante aí: podemos errar quando usamos a via lógica, mas não podemos errar quando usamos a via dialético-ontológica. Daí a filosofia de Mário Ferreira ser “concreta”, o que equivaleria dizer que é ontológica, ou seja, que se funda na realidade última da coisa.

Quanto às possíveis provas, Mário Ferreira as descreve uma a uma. Eis uma tabela que procura sintetizar as explicações do filósofo.

Sublinhadas estão as provas que Mário Ferreira julga serem as centrais para a filosofia concreta.

Ser absoluto e infinito

Segundo Mário Ferreira, é absoluto o que é ab-solutum, ou seja, o que é des-ligado, o que não provém de outro, o que não precisa de outro para ser. Ora, o que poderia limitar esse ser absoluto? O nada absoluto? Mas este não é; e mesmo que tivesse essa aptidão, seria ser. Portanto, o nada não poderia finitizar o ser absoluto porque ele é plenitude de ser, pois essência e existência nele se identificam, são a mesma coisa.

Ser e unidade

A água, por exemplo, é composta de elementos múltiplos, mas em si mesma a água é uma unidade. Todo ser tem unidade. A estrutura ontológica da unidade é inseparável da estrutura ontológica do um. Isso significa que a água forma uma unidade indivisa, distinta de suas partes componentes,  portanto apresenta uma unidade substancialmente outra. A estrutura da água transcende a simples associação dos seus componentes.

Os logoi das coisas criadas

As coisas reais da nossa experiência estão a nos afirmar que não têm em si mesmas sua razão de ser. Não é possível (pois não há fundamento nenhum, para nós; e é, ainda, fundamentalmente falso) afirmar que alguma coisa finita do mundo que nos cerca independe de qualquer outra, e existe aqui e agora sem depender do que quer que seja. Ainda mais: não podemos admitir, por falta total de fundamentos, que qualquer ser finito se dê em absoluta solidão, totalmente desligado dos outros, com absolutuidade (ab solutum), solto de tudo o mais, afirmando a si mesmo. Sabemos que perpassam por todas as coisas, ou melhor, que há entre todas as coisas que constituem o mundo da nossa experiéncia uma lei, um logos, que as analoga umas às outras, que é o mesmo em muitas, e um logos que é o mesmo em todas. Há, assim, um nexo que conexiona, que coordena todas as coisas, um nexo geral, totalizante, que as une numa “ronda de verdadeiro amor”, na frase poética de Goethe. Uma visão atomística de entidades completamente soltas umas das outras também não poderia deixar de reconhecer que há entre tantas mônadas isoladas algo em comum que as conexiona, que dá lugar ao surgimento do que é o cosmos, a ordem. A realidade é o nexo que reúne, coordena as coisas reais. Ora, tais nexos coordenadores, coordenados por sua vez num nexo universalizaste, são algo. Portanto, têm um sentido, um ser e, como tais, uma esséncia, uma forma. Há, assim, um logos do logos, uma ratio que os distingue uns de outros. E essas formas, a que os gregos chamavam também de ideai, ideias, têm um nexo, que se chama idealidade. Assim, na realidade (que é o nexo das coisas reais), há uma idealidade (que é o nexo das coisas ideais, os logoi). Há, pois, uma idealidade na realidade. E como esses logoi têm uma sistência, não podemos, porém, afirmar que tenham ex-sisténcia; ou seja. que se deem fora de suas causas como seres subsistentes em si mesmos. Como todo ser é ser na proporção em que tem uma sistência, e como tal tem uma realidade, há, portanto, um nexo de realidade na idealidade, como há um nexo de idealidade na realidade.

Por essas razões, vê-se que, à proporção que captamos os logoi, perscrutados por nós na experiência que temos das coisas, experiencia não só no sentido restrito de Kant, mas também no sentido amplo em que é comumente considerada, podemos afirmar, sem temor de erro e com plena adesão de nossa mente, que são eles reais desde que correspondam ao nexo da realidade, como deste nexo podemos captar o nexo de idealidade. Se nossos conceitos não possuem conteúdos suficientes para corresponderem exaustivamente ao que se dá na realidade, eles porém correspondem, intencionalmente, ao que é fundamentalmente nas coisas.

Kant, pela influência do abstratismo racionalista de sua época, pelos exageros do Idealismo e da metafísica racionalista, que conhecia, cujos defeitos são imensos e cuja fraqueza é inegável, não podia compreender essa conexão, e negava objetividade ao que a nossa mente eidetieamente constrói com segurança, duvidando da validez de nossos juízos quanto a uma correspondência à realidade fora de nós. Foi ele, por sua vez, uma vítima desse abstratismo, mesmo quando o combatia, porque não se libertou da sua influência, e o eu criticismo não foi capaz de alcançar a posição concreta que só hoje o pensamento humano está apto a obter.

A metafísica como abstração de terceiro grau

Há duas grandes divisoes na metafísica: a ontologia, que lida com o ser imaterial de maneira geral, e a teologia, que lida com um ser imaterial de maneira especial. Para entender onde se situa a metafísica, cabe identificar três possíveis graus de abstração da existência: 1º grau (abstrair aspectos da matéria, como a cor de um pêssego), 2º grau (abstrair a quantidade da matéria, como a linha, o ponto, o número etc.), 3º grau (abstrair seres sem matéria, como o ser, o existir, a lei, a forma, Ser Supremo, Deus etc.). Esse terceiro grau de abstração é o que chamamos de metafísica.

Conceitos universais vs. juízos universais (a metafísica geral)

Um conceito universal é aquilo que aponta intencionalmente ao que há fundamentalmente na coisa. Ora, aquilo que existe fisicamente na coisa é um, mas o que existe formalmente (como uma lei ou logos de proporcionalidade intrínseca) está em muitos. No entanto os conceitos universais se referem a algo que tem matéria e que, portanto, não transcendema experiência. Por exemplo, dos homens e dos triângulos podemos abstrair os conceitos de homem e triângulo, mas ambos situam-se, ou apontam, algo ainda dentro da esfera material. Os conceitos em si são, obviamente, imateriais, mas não são transcendentais à experiência.

Um juízo universal surge de comparações realizadas entre conceitos universais. Por exemplo, os conceitos de humanidade e triangularidade não tem nenhuma materialidade, não apontam a nenhum singular. Um triângulo não é trinagularidade, mas tem triangularidade. Um homem não é humanidade, mas tem humanidade. Os homens e os triângulos não são (ser) seus juízos (ou “perfeições”), mas participam (haver) dessas perfeições.

O Ser Supremo e as perfeições (a metafísica especial)

A partir de nossa experiência, ou seja, a partir da intuição sensivel, alcançamos a totalidade coordenada do cosmos mediante a mutabilidade e contingência dos seres finitos. Eis o limite que nos é imposto pela nossa esquemática. No entanto, alcançar o limite é ao mesmo tempo ultrapassá-lo, pelo menos palidamente. Ora, se sabemos o limite então sabemos que há além um “algo outro” (aliquid aliud), que não pode evidentemente ser um puro nada.

Ademais, a partir da mesma intuição sensivel observamos o que há de imperfeito nas coisas e, mediante abstrações, alcançamos as perfeições. É claro que as perfeições só podem ser atribuídas de maneira analógica às coisas da nossa experiência, pois se fosse de maneira unívoca entao o Ser Supremo e as coisas seriam o mesmo, e se fosse equivocamente o Ser Supremo permaneceria totalmente desconhecido, o que contradiz o que dissemos no parágrafo anterior. Assim, o Ser Supremo “existe”, mas não existe como eu e você existimos.

Uma resposta ao ceticismo de Kant quanto à validez da metafísica

[Segundo Kant], é lícito duvidar metodicamente da possibilidade de uma ciência na qual não há nenhum consenso universal. Ora, a metafísica revela não haver nela nenhum consenso universal em face da variedade de opiniões, muitas vezes contrárias, que nela se revelam. Consequentemente, é lícito duvidar da possibilidade da metafísica. Mário Ferreira responde a essa objeção kantiana afirmando que a premissa maior seria válida se o consenso exigido não se desse quanto ao objeto da ciência nem quanto aos seus primeiros princípios. Ora, não é esse o caso quanto à metafísica. Pode não haver consenso universal quanto a todos, não, porém, quanto a alguns princípios e conclusões fundamentais.

Ver a explicação de Xavier Zubiri sobre a objeção de Kant.

Intellectus, ratio e os princípios das essências

A partir da experiência abstraimos as essências, mas as relações necessárias (princípios) entre essas essências não é resultado de um discurso da ratio (raciocínio), mas uma inteligência simples e imediata empreendida pelo intellelctus (entendimento). Eis o intellectus principiorum (entendimento dos princípios) dos escolásticos, o noûs de Aristóteles. O princípio, portanto, não se funda na experiência, mas ultrapassa a experiência. Para os escolásticos, o juízo explicativo é o juízo contido no conceito da coisa (obtido pela experiência), enquanto o juízo extensivo é o juízo acrescentado à coisa (obtido pelo entendimento/inteleccção).

A mente humana obedece a leis, a modelos

Há leis da nossa mente que atuam na operação abstrativa para formação de conceitos. A diferenciação, a nidade, a simultaneidade, a sucessividade, a correlatividade, eis alguns elementos que atuam e modelam a atividade cognoscitiva desde seus primórdios até asuas mais altas funções. A percepção da quanitdade, da qualidade, da relação, da modalidade, nada disso são objetos da intuição sensível. Trata-se, segundo Mário Ferreira, de estruturas noético-eidéticas que estavam confusas nas coisas sensíveis e que somente a inteligência (o intelecto) pode captar e distinguir. Por exemplo, a quantidade é a propriedade que separa o ser corpóreo dos outros. É por meio dela que um corpo pode dividir-se em partes indivíduas, independentes da natureza do todo. Implica a extensão, a tensão que se ex-tende, que tende para fora de si mesma, como a qualidade é a in-tensão, a tensão que tende para si mesma. Se a extensão brota da cruatura corpórea, não se identifica com ela, como o queria Descartes; é apeas uma propriedade da sua essência. Em outras palavras, a ideia de que a coisa criada seja res extensa é absurda.

As três apoditicidades (evidências necessárias)

(1) Apoditicidade lógica. Trata-se do rigor advindo da necessidade lógica. Por exemplo, se dissermos “Deus existe”, trata-se de um juízo que se segue logicamente à ideia de Deus, que subsume a existência incedível (necessária) de Deus. Mas é claro que essa existência não tem apoditicidade ontologica.

(2) Apoditicidade ontológica. Trata-se captar a partir da existência mesma certas verdades incontestes. “Deus existe” é um juízo ontológico, Ele tem de necessariamente existir. “Alguma coisa há”, o famoso ponto arquimédico da filosofia concreta de Mário Ferreira, também é um juízo de apoditicidade ontológica. O nada absoluto não pode ter antecedido a alguma coisa. O haver (a participação) do ser é ontologicamente necessário.

(3) Apoditicidade öntica. Trata-se de captar a partir da existência que algo se recusa a não existir. Uma necessidade ôntica, por exemplo, é aquela em que Deus não pode deixar de existir. “Alguma coisa há” é um juízo eivado de apoditicidade öntica porque é absolutamente improcedente afirmar que “nenhuma coisa há”.

Das três apoditicidades, no que tange o ponto arquimédico, concluímos que há necessariamente alguma coisa e necessariamente é impossível não haver alguma coisa.

Ordem ontológica e ordem física

Há uma curiosa inversão quando contrastamos a ordem ontológica com a física. Na ordem ontológica, o mais precede o menos, mas na ordem física o menos antecede o mais. Por exemplo, se na ordem ontológica o Ser Supremo precede os conceitos e juízos universais (veracidade, bondade, sabedoria, justiça, humanidade etc.), na ordem física os elementos atômicos antecedem os elementos químicos, as matérias-primas, os objetos singulares etc.

Tal inversão não as exclui, mas, pelo contrário, apenas mostra a harmonia que há entre elas.

O mal

O mal é uma privação de uma perfeição, ou seja, a ausência de um bem. Ignorância é ausência de sabedoria, neste ou naquele ponto. Portanto, a ignorância é um mal. O Ser Supremo, Absoluto e Infinito, não está privado de perfeições, nem é deficiente delas. Consequentemente, não podemos atribuir o mal ao Ser Supremo.

As formas não estão no Ser Supremo

Não faz sentido afirmar que as formas estão no Ser Supremo porque, se estivessem, existiriam singular ou universalmente nele. E tampouco faz sentido afirmar que as formas estão nas coisas porque, se estivessem, existiriam singular e topicamente nelas.

O correto é afirmar que as formas nas coisas (in re) são “apenas” proporcionalidades intrínsecas dessas coisas que imitam potências do ser. Em outras palavras, as formas in re fundam-se analogicamente no ser eminentíssimo do Ser Supremo (veja a eminencia do Ser Supremo na ordem ontológica explicada acima). No Ser Supremo está o fundamento da imutabilidade (ou seja, o logos, a forma universal) das formas, está a razão ontológica das formas, que estão in re.

Portanto, se diz que a forma da maçã não está singularmente ou universalmente no Ser Supremo, mas o fundamento (logos, forma universal) da forma da maçã está eminentemente e virtualmente no Ser Supremo. Da mesma maneira, a forma da maçã não está nas maçãs singulares, mas está virtualmente nas maçãs singulares.

Os princípios da demonstração na filosofia concreta

(1) Princípio da identidade: A é A necessariamente.

(2) Princípio da contradição: é impossível que algo simultaneamente seja e não seja sob o mesmo aspecto.

(3) Princípio do terceiro excluído (ou princípio de disjunção): ou algo é, ou algo não-é.

Segundo Mário Ferreira, adquirimos esss princípios por impulso nativo da inteligência, por simples cognição dos termos, por força da intelectualidade.

O princípio da causalidade eficiente

O que é produzido não tem em si a força para produzir a si mesmo, mas é produzido por outro que está em ato e que lhe é realmente distinto.

O princípio de razão suficiente

Se o ente não tivesse razão suficiente para o ser o que é, e nada requeresse para ser o que é, tanto para ser como para não-ser, evidentemente não seria o que é, o que é contraditório.

O princípio da inteligibilidade

Todo ser é inteligível. Na filosofia concreta, se se predica a ininteligibilidade ao nada absoluto, predica-se a inteligibilidade ao ser. Essea inteligibilidade total do ser só a pode ter o Ser Supremo.

O princípio da finitude nas causas

Repugna o processo in infinitum nas causas eficientes pois, sendo toda a série produzida, ela seria ao mesmo tempo produzida e não prduzida, e terminaríamos por afirmar que ela seria produzida por si mesma, o que ofenderia a tese de que nenhum ser é produto de sua própria emergência.

O princípio de finalidade

Todo agente atua segundo o fim. Sem o fim não poderia haver uma operação, porque a operação tende para algo. Os seres atuam proporcionadamente à sua natureza; isto é, por motivos intrínsecos e também por motivos extrínsecos.

A formação de um novo todo a partir de partes

Mário Ferreira procura explicar como se dá, em termos metafísicos, o processo de criação, primeiramente da “criação” de novos elementos físicos, e em seguida da criação do mundo propriamente.

Segundo explica, as coisas não podem unir-se apenas pela sua diversidade, já que por meio destas elas têm vetores diferentes, quando se trata de totalidades substanciais. O que é possível ao hidrogênio e ao oxigênio é, em certas circunstâncias, combinarem-se no arithmós da água que, como tal, tem uma forma tensional especificamente diferente das partes componentes. Há, portanto, uma completação de um esquema, que não é latente nem em um nem em outro dos elementos. Esse esqueda é da ordem ontológica, que ultrapassa de certo modo a das partes componentes. Remotamente, as coisas diversas convêm em algo que é o ser.

O que une, portanto, os diversos é o grau de conveniência, de adequação, que revelam entre si, em face de uma forma pssível. Esse aspecto unitivo justifica-se pelo infinito poder unitivo do ser, no qual não há separações senão espcíficas.

O processo criativo propriamente

Os seres finitos têm de surgir de uma operação do Ser Infinito, senão proviriam do nada absoluto, o que é absurdo. Portanto, a estrutura ontológica dessa operação implica o dar existência ao que é possível. E dar existência, para o Ser Supremo, significa uma operação ad extra, ou seja, para fora, e não in intra. Há uma operação in intra, que está associada à vontade que delibera dar ser a outro, à intelectualidade (Logos, Verbum) que escolhe entre possíveis e ao amor que une mutuamente a vontade e a intelectualidade. É óbvio que Mário Ferreira se refere à expressão cristã da Trindade. São esses três papéis (personas, ou seja, per sonare, soar através, máscaras, “pessoas”) desempenhados pelo Ser Supremo em sua operação in intra de criação.

Mas é a operação ad extra do Ser Supremo que realiza a criação. A intelectualidade (Logos) opera a criação, e o operado (o criado) depende do operante (o Logos) e, portanto, será forçosamente finito. É o momento em que se produz o que Mário Ferreira chama propriamente de crise entre operado e operante, entre criatura e criador. Esta criatura é proporcionada ao agente e ao material que daquele recebeu a nova forma. Nenhum ente deixa de ter semelhança com o Ser Supremo, pois, para que nenhuma semelhança tivesse com ele, deveria não ser portador de nenhuma perfeição, o que o identificaria com o nada, o que é absurdo. Nenhum ente pode dar-se absolutamente fora do Ser Supremo. Se pudesse, haveria rupturas no ser e o abismo estaria traçado, o que é absurdo. Consequentemente, toda ação do Ser Supremo não se dá nunca à distância, em sentido absoluto, mas só relativamente.

O Meon

Sabemos que o nada absoluto é ontologicamente absurdo. Mas resta examinar outro nada, o não-ser, o me on (do grego = não e on = ente), o outro. Trata-se, numa interpretação livre, do não-ser “dentro” do Ser Supremo, trata-se da infinita potência passiva, ou seja, tudo aquilo que ainda não é mas pode ser. Não é em si mesmo, mas é no poder do Ser Supremo. Em outras palavras, essa infinita potência é outro que o Ser Supremo, e é portanto não-ser, Meon.

Quando dizemos que Deus criou o mundo ex nihilo, esse “nihilo” não é o nada absoluto, um absurdo ontológico, mas é o Meon, “o que ainda não é”, o nada da infinita possibilidade passiva. Antes da criação a criatura era ainda “nada” e é desse “nada” que ela provém. Ser e Nada (On e Meon) são inseparáveis: o Não-Ser-Ainda pertence ao Ser-Sempre. O Não-Ser de Platão era o Meon, o que significa dizer que atribuir um caráter dualista à metafísica platônica é ignorar a profundidade de sua doutrina.

As razões ontológicas

Mário Ferreira explica que há duas esferas ou âmbitos de logos (razões ontológicas): (1) os logoi ontologikoi ou arkhétypois, as razões ontológicas do Ser Supremo, que são da glória (Kleos) do Ser Supremo e (2) os logoi spermatikoi, as razões seminais dos seres finitos, as formas dos seres finitos, as eídola, que são proporcionadas às razões ontológicas do Ser Supremo, que dependem das razões ontológicas do Ser Supremo.

A analogia: semelhança/diferença + subordinação

No raciocínio silogístico, nada se pode concluir de duas premissas menores. No entanto, na dialetica platônica, desde que haja uma proporção entre ambas as premissas, é possível extrair uma conclusão. Trata-se da analogia, ou seja, segundo o Logos (aná logos). Logos, como vimos, é uma relação, lei ou princípio. Para que surja um ente, impõe-se a obediência de uma lei de proporcionalidade intrínseca, ou seja, a forma desse ente.

O fator dominante da analogia é a semelhança, ou seja, uma igualdade parcial quantitativa,  qualitativa e ontológica. A analogia estabelece uma lei que os entes “copiam” ou “imitam” sem serem a própria lei. Por exemplo, todos os corpos que caem “copiam” ou “imitam” essa relação ou lei de queda, sem serem a própria queda. Essas relações ou leis (logoi) são estruturas ontológicas porque não têm subjetividade, ou seja, não têm um sujeito que as represente. O fator menor, mas que compõe necessariamente a analogia, é a diferença. A analogia sintetiza ambas as operações.

É evidente, também, que a subordinação (sub-ordinis: ordem dependente de outro) compõe a analogia,  pois ambas as premissas particulares subordinam-se ao logos analogante: há aí uma relação de subalternação.

“O leão é o rei da selva” e “Dom Manuel é o rei de Portugal”, embora não se possa concluir logicamente nada dessas afirmações, guardam entre si uma proporção, uma lei, que rege a ambas. Por analogia (semelhança/diferença e subordinação), chegamos ao logos de domínio que rege ambas as afirmações: “o agente atua porporcionadamente à sua natureza e proporcionadamente ao campo de sua atividade”.

O que é o bem

O que é apetecido por outro é um bem para este: tudo o que aperfeiçoa alguma coisa é um bem para este. Se algo me apetece é porque me aperfeiçoa. Esse algo, em ato, é per factum, pois antes era só potência.

Ausência: carência vs. privação

Carência é quando uma coisa não possui, ou nela não existe, um estado ou propriedade. Privação é quando existe esse estado ou propriedade na coisa, mas não se atualiza. A árvore carece de visão. O cego está privado de visão. Ambos os conceitos estão inclusos no conceito de ausência. A privação do bem chama-se mal. Quando um ente está privado de algum estado ou propriedade adquire outros. Porde acontecer de um ente, ante a inconsecução de seuas perfeições, se corrompa, ou seja, que se transforme em outro ser. De qualquer forma,o mal em si mesmo não é um ser, pois não há o mal subjetivametne sendo, não há o ontos subjetivo do mal. Diz-se que é mal o que é devido, o que tem de haver para a plenitude de um ser em sua especificidade. O mal não é, pois, da natureza de uma coisa, mas o que lhe acontece, o que é, portanto acidental (relacional).

Sofrer e conhecer

Um ser sofre:

1. por perder algo que lhe convém;

2. por lhe tirarem algo;

3. por receber um ato, sem nada lhe tirarem.

Compreender é sofrer do terceiro modo acima porque os homens estão em potência para compreender. Esse intelecto passivo os escolásticos chamavam de intellectus passibilis. No entanto, ao receber o ato, o intelecto humano necessita abstrair, ou seja, extrair a forma das coisas. Eis o intellectus activus. Portanto, o processo intelectivo exige sempre uma atividade e uma passividade contemporâneas e silmultâneas.

Os esquemas e a tensão

Tomemos um singular qualquer, uma maçã, por exemplo. Esta maçã porta um esquema concreto, ou seja, o arithmós, a heceidade (i.e. a “istidade”) da singularidade desta maçã. Mas esse esquema concreto desta maçã é composto do, ou se refere ao, esquema eidético, ou seja, o modo do ser da maçã que não é nem singular nem universal, mas apenas formal (eidos) na odem do ser. A maçã copia, ou imita sinteticamente, em seu relacionamento intrínseco a proporcionalidade intrínseca da maçã infinita, que é um logos no Ser Supremo. Porém nós, homens, captamos a maçã proporcionadamente à nossa intencionalidade psicológica: o esquema concreto pela intuição sensível da coisa, o esquema eidético pela abstração intelectual, e formamos um esquema eidético-noético, porque já traz a marca do nosso intelecto (noûs, espírito).

Em suma: há o esquema concreto in re, no ente individua, há o esquema eidético na odem o ser e há o esquema eidético-noético post rem, posterior, na mente humana.

A tensão, ou seja, aquilo que no elemento confere aptidão para ser um todo “maior” que as partes, advém do esquema eidético, pois do contrário teris vindo do nada, o que é absurdo. Temos aqui um salto importante, que uma visão puramente mecanicista não pode explicar, pois o ente novo é assumido por uma forma que não é a os componentes, uma possibilidade do corelacionamento, e não dos corelacionantes, algo novo que vai repetir, por imitação, um possível da ordem do ser, ou seja, do esquema eidético.

Fonte: Mário Ferreira dos Santos, Filosofia Concreta, Editora Filocalia, São Paulo, Brasil, 2020.

8 de maio de 2023

Amar-se


Para Lacerda, conforme envelhecemos acumulamos experiências e papéis cujo desempenho nos afasta do que ele chama de “nós mesmos”, “verdadeiro eu” ou “eu profundo”. Fica claro ao longo da leitura que esse “eu profundo” é apenas o bom e velho eu narrativo, que é a causa mesma da identidade débil da qual Lacerda procura ajudar o leitor a se livrar. Embora a lógica que Lacerda usa para tratar o problema seja a mesma que causa o problema – a autoestima –, é útil aprendermos técnicas que nos ajudem a pelo menos moldar a autoestima de maneira que não bloqueie o que realmente importa: o desenvolvimento da consciência.

O autor explica que a dependência natural que a criança desenvolve para com os pais acaba impregnando-se em alguns indivíduos a ponto de acreditarem, quando adultos, que são inerentemente incapazes, incompetentes, desinteressantes e, por fim, sentem-se profundamente infelizes. O sucesso que alcançaram, seja qual for e em que extensão for, é tipicamente atribuído a outras pessoas, à sorte, ao acaso.

O indivíduo cria e aceita uma série de crenças limitantes em torno da crença fundamental de sua incompetência e incapacidade inatas. A elas devem ser opostas crenças potencializadoras que promoverão uma nova máscara (o “eu profundo”) confiante, poderosa, altiva. Ademais, escutar sua intuição, sem moderá-la mediante pensamentos racionais ou preconceitos, é mister para despertar a motivação para a mudança: sentir o sentimento e esperar pela resposta a seu significado. Ao ouvir seus sentimentos e intuições, o indivíduo aprende que o melhor para si vem de seu mundo interior, de sua “bússola interior”, e não do mundo exterior.

A autoestima é o valor que o indivíduo percebe que tem. Tê-la baixa é criar novos e inúteis sofrimentos, e deixá-la a cargo de amigos, escola, paqueras, colegas de trabalho etc. é deixar que seu valor (estima) seja determinado a parti de fora. O segredo, portanto, é não identificar-se com os insucessos da vida, é não fazer a ligação entre fracassar e ser o fracasso, e não aceitar que o julgamento alheio o condene dessa forma. As pessoas mais bonitas, mais inteligentes, mais ricas, são uma circunstância da vida, não dizem nada sobre quem você é.

Alguns passos para aumentar a autoestima: (1) culpar os pais é ainda responsabilizá-los por quem você é agora; trate de entender que você é filho da criança ferida e que ambos, você adulto e você criança, são problema seu; (2) autoestima não se resolve com relacionamentos, mas, pelo contrário, os relacionamentos reforçam a dependência afetiva causada pela baixa autoestima; (3) entenda que o perfeccionismo vem de um senso de depreciação, uma vez que o perfeccionista nunca se satisfaz com seus feitos; (4) se recusar a dizer “não” não é sinal de delicadeza ou de altruísmo, mas apenas medo de rejeição; dizer “não” é sinal de que passar por cima de você mesmo não é uma opção para agradar o outro.

Quanto aos “outros”, essa miríade de línguas fofoqueiras que povoam não tento a Terra mas sim sua cabeça, há uma corrente da vingança que tem de ser quebrada. Entenda que o critério de julgamento que aplica aos outros é exatamente o mesmo que aplica a si mesmo, embora à primeira vista não se dê conta disso. O julgamento alheio tem mais a ver com você do que com o outro. Portanto não conclua que você tem de ser um reflexo da forma como a sociedade se estrutura, nem vice-versa. Sua imagem é algo que deve partir de você, da exposição de suas opiniões e valores, e não algo que venha de fora. Romper a corrente da vingança é, na verdade, reverter a corrente elétrica que passa por ela: a energia sai primordialmente de você.

As pessoas são atraídas por quem tem orgulho de si mesmo e vão gostar de estar ao seu lado exatamente pela segurança interna que você transmitir.

A figura acima mostra o conceito de espaço psíquico. Há graus de intimidade em torno de sua alma, e o desrespeito acontece no momento em que alguém avança uma camada, ou seja, cruza uma linha de relação, sem sua permissão. O fato de a pessoa ter cruzado de boa ou má, ou nenhuma, intenção pouco importa aqui. O importante é você comunicar, de maneira clara e inequívoca, que o desrespeito ocorreu.

Com o desrespeito vem o perdão, ou melhor, a dificuldade em perdoar quem lhe desrespeitou. Aqui há duas vias possíveis: (1) via da justiça, ou seja, algum tipo de justiça precisa ser feito para que consigamos perdoar; o problema aqui é que, novamente, exigir justiça (vingança, na verdade) resultará em aplicar a mesma justiça a si mesmo; não perdoar o outro é ao fim e ao cabo não perdoar você mesmo (autovingança), (2) via das imperfeições, ou seja, entender que as imperfeições nos aperfeiçoam, perceber que somos feitos da mesma matéria, são carentes, imperfeitos, humanos (tolerância).

Por fim, o autor transmite conselhos pontuais, como falar de forma confiante, expressar-se com uma linguagem corporal marcante, ouvir atentamente o outro, cultivar o bom-humor etc.

Fonte: Marcos Lacerda, Amar-se, VR Editora, Cotia, Brasil, 2021.

* * *

A família de propaganda de margarina é uma fantasia. A grande tragédia nos relacionamentos é quando ambos exigem que se cumpra a fantasia de margarina de que o outro tem de ser sua alma gêmea e que tudo tem de ser feliz, perfeito, limpo, organizado e bom. Para uma relação madura, robusta, duradoura, é preciso aceitar a realidade do mundo interior do outro sem julgar, sem escandalizar-se, sem medo de revelar fraquezas secretas, sem medo de parecer ridículo, e jogar fora a fantasia de margarina.  Alguns passos importantes:

(1) O outro não é sua mamãe, papai, psicólogo etc. As feridas do seu passado não são responsabilidade do outro.

(2) O silêncio começa a imperar no casal quando um ou ambos se julgam ou se ignoram. Entenda que o outro não quer tanto que você resolva seu problema, mas que apenas e tão-somente o compreenda.

(3) Faça-se presente na vida do outro (bilhetes, flores, fotos etc.).

As relações amorosas passam por três etapas:

(1) Fusão (1+1=1). Atração intensa, só o existe o nós na relação. Com o tempo se torna sufocante.

(2) Diferenciação (1+1=2). Rotina, o casal descobre as diferenças, a realidade da intimidade. Etapa importante porque você “ressurge” com sua personalidade, seus planos, seus projetos, suas ideias. O casal aprende a viver sem a ideia de unidade, sem a ideia de que “um pertence ao outro”.

(3) Harmonização (1+1=3). O casal aprende a viver com suas diferenças. Há projetos em comum e projetos individuais.

Quanto ao sexo, cabe lembrar que a atração que sentimos no inicio em geral se baseia numa fantasia sobre o outro. É uma espécie de projeção. Com o tempo, a realidade destrói a fantasia. A capacidade de fantasias enfraquece e o sexo deixa de ser a coisa mais importante para o casal. Entra em cena o sexo burocrático, sem olho no olho, cego, focado exclusivamente nos genitais, no orgasmo, sexo de filme pornô.

Quanto ao ciúme, o desejo subjacente é o poder. Controlar a vida alheia não tem nada a ver com amor, mas a intenção de tratar o outro como objeto. O amor tem a ver com amar a liberdade do outro; o único controle que você tem é estar ou não estar na relação. Há uma fantasia que fundamenta o ciúme, que é a ideia de que o amor nasce pronto, que não demanda esforço, paciência e tempo. Ademais, a inveja é um componente comum no sentimento de ciúme, pois encontrar-se ou sentir-se numa posição inferior pode ser uma situação difícil de lidar.

Quanto à traição, as regras de convivência estavam bem estabelecidas? A mentira acaba se tornando a régua com a qual o traído mede o traidor, e é difícil recuperar uma relação ferida dessa forma. O perdão não é esquecer o que o outro fez, mas ser capaz de lembrar-se do fato sem despertar os sentimentos negativos associados a esse fato. A traição nunca é culpa do traído, mas sempre do traidor. Se surgiu a oportunidade para trair e o traidor a aproveitou, o fez por livre e espontânea vontade. Se não quis romper o relacionamento antes da traição, foi decisão sua, a despeito dos obstáculos, reais ou imaginários, que se interpunham à comunicação.

Quanto aos familiares e amigos, a ideia é aprender a desapegar-se psicologicamente deles, sobretudo dos pais, o que é mais difícil. A maturidade do casal não pode ser alcançada quando os pais, família e/ou amigos são chamados a debater e opinar a respeito da vida do casal. As amizades de qualidade surgirão a partir de uma vida conjugal de qualidade.

Quanto ao cônjuge imaturo e tóxico, entenda que o amor não move montanhas, o bem não vence o mal. Seu amor não vai mudar o outro, ao vai tornar o abusador uma pessoa melhor, nem vai fazer com que ele descubra seu valor. O abuso físico ou psicológico é típico de pessoas doentes e infelizes. Para livrar-se de uma pessoa tóxica implica em armar uma estratégia em que uma estrutura paralela exista para acolhê-lo.

Fonte: Marcos Lacerda, Amar, desamar, amar de novo, VR Editora, Cotia, Brasil, 2019.

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O antônimo de “amor” é “poder”. Portanto, quanto mais poder se exerce sobre o outro se conclui que menos amor existe no casal. Amar o próximo é amar a liberdade desse próximo. Eis algumas armadilhas típicas nas quais os casais caem: (1) moldar o comportamento do outro (queixar-se da relação ou de você mesmo está bem, criticar o outro enquanto indivíduo está mal); (2) ter razão (debater está bem, esmagar o outro por orgulho e ameaçar a harmonia do casal está mal); (3) discutir (falar como você se sente está bem, falar mal do outro está mal); (4) incompreender a infância do outro (esperar maturidade geral está bem, ignorar que possa haver feridas infantis remanescentes está mal).

Por outro lado, há determinadas posturas que você pode assumir que ajudam a blindar sua liberdade: (1) ocupar-se de você (lutar pelo seu bem-estar não é egoísmo, além de estar mais disponível para o outro sem vê-lo como uma tábua de salvação); (2) questionar-se (habituar-se a fazer perguntas profundas e abrangentes a si mesmo); (3) perdoar-se (desde bebê erramos para aprender, agora não é diferente); (4) cogitar a solidão (suportar a própria presença, se fazer companhia).

O ator sugere o teste de níveis de consciência de Clare Graves.

Fonte: Marcos Lacerda, Amar e ser livre é possível, VR Editora, Cotia, Brasil, 2022.

28 de abril de 2023

Ócio: a nobre arte de não fazer nada


A maioria das pessoas acha que estar ocupado consiste em fazer algum tipo de trabalho, seja para ganhar a vida ou para algum outro propósito. O tempo que elas passam quando não estão trabalhando ou ocupadas acabam dedicando a alguma forma de diversão. Também usamos palavras como "recreação" e "lazer" para as atividades que ocupam o tempo que as pessoas não estão ocupadas ou trabalhando.

O que resta do tempo de nossas vidas (as horas de cada dia ao longo de toda a nossa vida não ocupada por trabalho, diversão e lazer) é ocupado em parte pelo sono e outras atividades biologicamente necessárias, como comer, beber, tomar banho, atividades físicas e ir ao banheiro, ou é preenchido com mera ociosidade.

O que chamo de "ócio" não é o que geralmente se entende por ociosidade - tempo vazio ou meros passatempos para matar o tempo. O ócio é uma forma muito útil de atividade que deve fazer parte da vida de todos. Para torná-lo parte da vida de alguém, não é necessário tentar estar sempre ocupado enquanto acordado, ou mesmo se entregar às atividades de diversão e lazer.

Existem, na minha opinião, seis partes da vida: sono, trabalho, brincadeira, lazer, ócio e descanso. São atividades que podem ocupar o tempo de nossas vidas. Nenhum é mera ociosidade - tempo vazio ou passatempos. Para explicar as duas partes da vida que geralmente não são reconhecidas e adequadamente compreendidas - o ócio e o descanso - é necessário primeiro distinguir o trabalho de brincadeira e depois distinguir duas formas de trabalho. Não é preciso explicar as atividades biologicamente necessárias, para as quais uso a palavra "sono".

Trabalho e brincadeira

O trabalho consiste em todas as atividades sérias que realizamos para algum propósito – para algum fim ao qual o trabalho serve como meio de alcançá-lo. O objetivo pode ser ganhar a vida. Nesse caso, o trabalho é economicamente necessário, assim como o sono é biologicamente necessário. O propósito pode ser alguma forma de autoaperfeiçoamento. Nesse caso, o trabalho é moralmente necessário, pois somos obrigados a fazer o que pudermos na direção do autodesenvolvimento. Mas em ambos os casos, o trabalho nunca é feito por si mesmo, mas sempre em prol de algum bem para o qual o trabalho serve como meio de obtenção.

Em nítido contraste, a brincadeira é uma atividade na qual nos engajamos por si mesma – apenas pelo prazer que desfrutamos no próprio ato de brincar. Se, por exemplo, nadarmos, corrermos ou nos envolvermos em outras formas de exercício para o bem de nossa saúde, e talvez mesmo sem gostar da atividade em si, então não é brincadeira. Pertence ao sono e demais atividades biologicamente úteis.

Aqueles que se dedicam profissionalmente aos diversos esportes, como futebol, basquete, beisebol e tênis, e ganham dinheiro com isso, podem estar jogando e trabalhando ao mesmo tempo, mas apenas se extraírem algum prazer em executá-lo. Quando seu único interesse no esporte que praticam é o dinheiro que ganham, então é puramente trabalho e não brincadeira.

A pura brincadeira é algo que fazemos pelo prazer inerente à atividade e por nenhum outro motivo. Quando a brincadeira é recreativa no sentido literal de servir para relaxar da fadiga, das tensões e do estresse do trabalho e para recriar a energia de que precisamos para continuar trabalhando, então é como o esporte que praticamos por causa de nossa saúde. É uma brincadeira utilitária, não uma brincadeira pura, porque além do prazer inerente à própria atividade, que a torna lúdica, há também algum propósito ulterior em ação – algum fim a ser servido além do prazer desfrutado.

As duas formas de trabalho

Existem alguns empregos que as pessoas aceitam apenas com o propósito de ganhar a vida. Como não possuem meios independentes e precisam de um meio de subsistência, devem trabalhar para obtê-lo. Mas esse trabalho é realizado apenas por causa do sustento que tem de ganhar. Se pudessem ganhar a vida de outra maneira, desistiriam desses empregos. Se, por sorte, elas herdassem riquezas suficientes para isentá-las da necessidade de ganhar a vida, elas nunca mais passariam um instante sequer realizando esse trabalho.

Esse tipo de trabalho deveria ser chamado de "labuta". A labuta é o tipo de trabalho que ninguém faria, exceto pela compensação extrínseca - o pagamento ou salário obtidos por fazê-lo. Isento da necessidade de ganhar a vida ou tendo a oportunidade de ganhar a vida com alguma outra forma de trabalho, ninguém em sã consciência continuaria labutando.

Como chamaremos essa outra forma de trabalho, trabalho que não é labuta? A única palavra que conheço que serve para designá-lo adequadamente é a palavra “lazer”. Para explicar por que tenho essa estranha visão, devo lidar com o atual uso indevido da palavra “lazer” e também com sua etimologia e seu histórico na tradição do pensamento ocidental.

De todas as palavras do nosso vocabulário diário, a palavra “lazer” está entre as mais mal utilizadas. Em primeiro lugar, é usada como sinônimo de “tempo livre” -- tempo que não é ocupado pelo trabalho. Quando, nesse sentido, falamos de nosso tempo de lazer, estamos usando a palavra como adjetivo. Mas a palavra deve ser usada como verbo, como as outras palavras que nomeiam atividades. Brincadeira consiste em brincar, labuta em labutar, sono em dormir. Assim, também, lazer (substantivo) consiste em lazer (verbo).

Em segundo lugar, usamos mal a palavra “lazer” quando identificamos o lazer com a bricadeira. A maioria das pessoas, quando questionada sobre como gasta seu tempo livre, o tempo não ocupado com trabalho e sono, responde que o gasta em atividades recreativas ou lúdicas que consideram como atividades de lazer. Passeios de barco, pesca, caminhadas, montanhismo, todos os tipos de brincadeiras e jogos, atléticos ou não, são, para eles, atividades de lazer. Dado que cometeram o primeiro erro de identificar lazer com tempo livre, elas são levadas a cometer o segundo erro de identificar o lazer com qualquer atividade que ocupe seu tempo livre. Já que não é trabalho, então deve ser brincadeira.

Os antigos distinguiam brincadeira de trabalho e lazer de labuta. A palavra grega que traduzimos pela palavra “lazer” foi a palavra skole, da qual derivamos a palavra “escola”. Uma nota essencial na conotação de skole era o aprendizado - tudo o que resultava no desenvolvimento humano, mental, moral ou espiritual. A palavra inglesa leisure deriva do latim licere e do francês loisir, significando o que é permitido ou o que não é obrigatório. No sentido em que o sono é biologicamente necessário e a labuta é economicamente necessária para aqueles que não podem obter seu sustento de outra forma, o lazer é opcional ou permissível. No entanto, como veremos, também é moralmente necessário para aqueles que reconhecem sua obrigação de fazer o máximo possível de si mesmos – aprimorar a si mesmos, alcançar o autodesenvolvimento.

Muitas pessoas ganham a vida ensinando, educando, pesquisando cientificamente, escrevendo livros, compondo ou tocando música, pintando quadros ou esculpindo, e assim por diante. Se elas continuassem a se envolver em tais atividades mesmo que não tivessem necessidade de ganhar a vida, então tais atividades teriam o aspecto de lazer. Se elas interrompessem tais atividades no momento em que sua necessidade de ganhar a vida cessasse para elas, então o que estão fazendo é pura labuta para elas, sem nenhum aspecto de lazer.

O trabalho é muitas vezes uma mistura de labuta e lazer. O trabalho também pode ser puro lazer, mesmo quando compensado por alguma forma de pagamento, se for feito em prol do autoaperfeiçoamento ou em benefício da sociedade. E quando tal trabalho é feito apenas para autoaperfeiçoamento ou para o benefício da sociedade, é puro lazer desprovido de qualquer compensação monetária extrínseca. Nós nos dedicamos a esse lazer quando lemos para aprender, quando cumprimos os deveres de cidadania, quando nos envolvemos em atos de amizade ou amor, ou quando empregamos nossas habilidades criativamente em qualquer forma de produção artística.

Um livro famoso escrito por um economista americano, Thorstein Veblen, recebeu o título incorreto de The Theory of the Leisure Class. O que Veblen escreveu foi sobre os ricos desocupados, aqueles com riqueza suficiente para passar toda o seu estado de vigília em brincadeiras ou ociosidade, com pouco ou nenhum lazer.

Ócio não é ociosidade

Eu disse que há seis partes da vida. Além das quatro partes da vida já discutidas – sono, brincadeira, trabalho e lazer – há ainda o ócio e o descanso. Descanso ou descansar não é o mesmo que dormir. A maioria das pessoas que diz “Vá descansar” quer dizer “Vá deitar e dormir”. Mas isso dificilmente pode ser entendido por aqueles que entendem o que a Bíblia quer dizer quando diz que, depois de criar o universo, Deus descansou no sétimo dia; ou por aqueles que falam de descanso celestial; ou por aqueles que observam o sábado como um dia de descanso, isento de trabalho, brincadeira e até mesmo de lazer.

A maneira como os membros das religiões ortodoxas observam o sábado como dia de descanso indica o significado desse termo. Passam o dia na sinagoga ou na igreja, rezando e contemplando a Deus. Esse descanso os eleva acima das ocupações comuns da vida diária. Ele transcende as exigências de todas as outras atividades mundanas. Para os não-religiosos, uma experiência análoga, que tem aspecto de descanso, ocorre na contemplação da beleza, seja na natureza ou nas obras de arte.

Finalmente, chegamos ao ócio e seus benefícios. Todos nós entendemos o que significa dizer que um automóvel está em ponto-morto. Seu motor está funcionando, mas não há nenhuma marcha engatada e, portanto, o carro não irá a parte alguma. Da mesma forma, estamos ociosos quando, enquanto acordados, paramos de trabalhar, de nos divertir e de brincar, e deixamos nossa mente funcionar sem usá-la intencionalmente em uma direção ou outra. O que quase sempre acontece, então, é que surgem em nossas mentes coisas que valem a pena considerar - coisas que não teriam ocorrido a nós se persistíssemos em nos manter ocupados com labuta ou lazer, ou nos divertindo.

Por que isso costuma acontecer? A resposta é que, durante as horas de trabalho, seja labuta ou lazer, muitas coisas entram em nossas mentes que deixamos de lado ou as reprimimos porque não servem diretamente ao propósito em questão. Embora sejam afastadas ou reprimidas, não são totalmente descartadas ou aniquiladas. Elas permanecem em nosso subconsciente esperando pelo tempo de ócio, quando podem aparecer em nossas mentes despertas, mas sem propósito. Falar de mentes que estão despertas, mas sem propósito, é fazer uma analogia delas com os automóveis que estão com seus motores funcionando, mas sem nenhuma marcha engatada e, portanto, indo a lugar nenhum. Se insistirmos em estar ocupados o tempo todo, seja no trabalho ou nas brincadeiras, perdemos a criatividade espontânea que vem do ócio.

O ócio mais proveitoso é aquele que ocorre nas horas de vigília após o término do trabalho, especialmente se esse trabalho tiver um grande componente de lazer e não for mera labuta. Podemos ficar parados enquanto voltamos do trabalho para casa, dirigindo ou usando algum outro meio de transporte. Mas se nesse processo lemos jornais ou revistas, ouvimos música ou assistimos à televisão, evitaremos o ócio.

O mesmo vale para o tempo passado em casa depois do trabalho e antes do jantar. Se, no momento em que deixamos o trabalho para trás e não temos nada para fazer até nos sentarmos para jantar, nos mantemos ocupados lendo, assistindo televisão ou até mesmo batendo papo, então nos privamos das vantagens que derivam do ócio.

A vida será mais pobre por conta desta privação, assim como será mais pobre se não for enriquecida pelo prazer da brincadeira, pelo proveito derivado do lazer e pela alegria do descanso. Uma vida pobre é aquela consumida pela labuta e pelo sono, com pouca ou nenhuma brincadeira e pouco ou nenhum lazer, sem falar no ócio e no descanso. Uma vida rica é aquela que tem pouca ou nenhuma labuta, muito lazer (compensado e não compensado), uma quantidade moderada de brincadeira e momentos suficientes de ócio e descanso para aproveitar os benefícios que podem ser extraídos dessas partes muito especiais da vida humana.

Fonte: Mortimer J. Adler, Idling: Why It Is So Important Not to Be Busy All the Time

26 de abril de 2023

Viktor Frankl e a logoterapia - II


Parte I

A logoterapia se parece a uma psicoterapia convencional, mas procura diferenciar-se desta mediante o tratamento a partir do lado “especificamente humano”, como dizia Frankl, ou seja, tratar as questões que surgem, ou se manifestam, no espírito humano, e não meramente no corpo humano ou na psique humano. Daí tais questões serem chamadas de “noogênicas”, ou seja, engendradas no noûs (espírito).

Frankl apela para duas capacidades humanas no âmbito da logoterapia: a autotranscedência (capacidade para apontar para algo/alguém/sentido que está fora do próprio ser humano) e o autodistanciamento (capacidade para observar seu corpo e psique com certa impessoalidade). Ambas as capacidades surgem, ou se pronunciam, em meio ao sofrimento. Assim como me dou conta melhor da capacidade da visão quando tenho um glaucoma, assim também me dou conta melhor da capacidade da autotranscedência e do autodistanciamento quando tenho um problema existencial. Ao contrário dos animais, os instintos e pulsões não nos dizem o que temos de fazer.  Ou seguimos a manada (conformismo), ou seguimos o líder ou grupo (totalitarismo), ou encontramos um sentido que preencha nosso vazio existencial. Esse sentido nunca é dado pelo terapeuta: é o próprio paciente o responsável por encontrá-lo.

O sentido é encontrado quando, nos “bastidores da realidade”, entrevemos uma possibilidade para mudá-la. Não importa se o sujeito é “simples” ou “sofisticado”: graças à sua autocompreensão ontológica pré-reflexiva (compreensão intuitiva de sua humanidade), o homem é capaz de ajustar sua postura e sua atitude ante os inevitáveis golpes do destino, ante os incontornáveis fatos da vida, e a partir deles criar uma axiologia (escala de valores).

As duas principais técnicas da logoterapia para tratar as neuroses psicogênicas são a intenção paradoxal (mobilização do autodistanciamento mediante desejar aquilo que teme ou fazer aquilo que teme; humor é a essência da técnica) e a derreflexão (mobilização da autotranscedência).

Na intenção paradoxal, o paciente aprende a permitir a intenção (paradoxal) irônica no lugar do medo, o que resulta no corte do combustível que move seus temores.


Enquanto a intenção paradoxal faz com que o paciente fique apto a ironizar as neuroses, com a ajuda da derreflexão ele é capaz de ignorar os sintomas. O paciente ignora a si mesmo. O neurótico quer “fazer” tudo com conhecimento e vontade.  Uma educação para a confiança em relação ao inconsciente seria necessária nos casos de neurose obsessiva, uma confiança em relação à espiritualidade inconsciente, à superioridade cognitiva e determinante das coisas do ânimo e do sentimento no ser humano em relação às coisas da razão e do conhecimento. Resumindo: aquilo que temos de ensinar ao neurótico obsessivo, devolver-lhe, deixar que ele reencontre, é sua confiança na espiritualidade irrefletida.

O psicoterapeuta só deve alcançar uma conscientização total de maneira temporária. Ele deve tornar o inconsciente (e também o inconsciente espiritual) consciente para depois permitir que ele se torne inconsciente de novo: ele deve conduzir uma potentia inconsciente a um actus consciente, com o único objetivo de criar novamente um habitus inconsciente. O psicoterapeuta precisa restabelecer o caráter espontâneo de operações inconscientes.

Por sua vez, há três padrões de reações patogênicos: (1) neuroses de angústia (agorafobia, medo de sentir medo, “ansiedade antecipatória”, fuga da situação), (2) neuroses obsessivas (medo de si mesmo, luta contra ideias obsessivas), (3) neuroses sexuais (medo da impotência, hiperintenção do prazer, hiper-reflexão, incapacidade de se entregar, de se esquecer).

* * *

A tabela acima mostra a causa (corpórea ou anímica) e o efeito (no corpo ou na psique) das psicopatologias. Alguns dados: a psicose tem origem somática, as neuroses podem ter efeito na psique (neurose) ou no corpo (neurose orgânica). As “doenças comuns” são aquelas tratadas pela medicina convencional, de causa e efeito corpóreos.

Evidentemente a etiologia nem sempre é rígida e tão bem delineada como sugere a tabela. Eis um gráfico que ilustra bem a proporcionalidade da primariedade da etiologia das patogêneses.


Há outra interessante maneira, muitíssimo utilizada por Frankl em seus livros, de classificar as patologias de acordo com seu efeito. Veja:


No eixo vertical encontram-se as três partes do composto humano e no eixo horizontal o tipo sintomatológico: simples efeito psicogênico ou noogênico, desencadeamento psicossomático cerebral-neurológico (ou seja, como um “gatilho” psíquico de uma doença corpórea, tal como nas psicoses), doença funcional somática (do tipo vegetativo ou endócrino) ou efeito retroativo (iatrogênica, ou seja, causada por erros médicos, ou outras reações).

Psicoses

Embora ditas “psicossomáticas”, as psicoses endógenas são claramente somatogênicas, embora haja uma psicogênese parcial. Em função de sua somatogênese, as psicoses são frequentemente racionalizadas, ou seja, os traumas, complexos e conflitos sofridos pelos psicóticos são tratados como patogênicos, e eis a confusão: são, na verdade, patognomônicos, ou seja, fazem parte da sintomatologia e denotam a presença da psicose, mas não são eles mesmos a causa da psicose. Como diz Frankl, assim como a maré vazante não é causada pelo recife que surge, a psicose também não é causada por um trauma psíquico, um complexo ou um conflito. Ademais, como já disse acima, a psicose é desencadeada (gatilho, condição) por fatores psíquicos, mas não é causada por eles.

Quanto à patoplástica (a maneira como se apresenta a patologia) temática e individual das psicoses, nota-se claramente a presença de ideias delirantes que se repetem “como a agulha que fica presa no sulco de um disco”. Assim, é mérito da psicanálise investigar a temática desses pensamentos delirantes, perseguindo-os até a infância. Em termos coletivos, pode-se falar de uma sociogênese, ou seja, o espírito da época também desempenha papel importante na temática do delírio. Ademais, em termos de patoplástica pessoal (humana), não devemos nos esquecer que o indivíduo acometido por essa patologia não é um simples animal selvagem ferido, mas um ser humano. Isso parece óbvio, mas não é: o paciente vivencia sua insuficiência como culpa perante sua consciência e/ou a Deus, e a pessoa, que é espírito, está além de ser saudável ou doente. Ora a análise existencial deve entrar aqui como um elemento que evidenciará o aspecto pessoal da psicose e eventualmente evidenciará algum elemento de religiosidade inconsciente. Quanto a isso, diz Frankl muito acertadamente:

No geral, porém, continua tão evidente quanto antes que um organismo psicofísico de bom funcionamento seja a condição para que a espiritualidade humana se desenvolva. Não podemos esquecer que o psicofísico, independentemente de quanto possa condicionar o espiritual, não tem qualquer efeito, não consegue criar tal espiritualidade. Também não deveríamos esquecer que é sempre unicamente o organismo psicofísico que é afetado – por exemplo, no sentido da doença psicótica. De qualquer maneira, um distúrbio funcional psicofísico pode fazer com que a pessoa espiritual que está por trás desse organismo psicofísico (e de alguma maneira também acima dele) não consiga mais se expressar, se manifestar: é esse – e não mais nem menos – o significado da psicose para a pessoa. A doença impede a pessoa em sua automanifestação. O espírito humano está condicionado à funcionalidade de seu corpo.

A logoterapia só é adequado no caso de psicoses leves a moderadas. Mais grave que isso, torna-se contraproducente.

A análise existencial almeja descobrir e despertar a humanidade intacta e invulnerável do indivíduo. São três “existenciais” a serem descobertos: a espiritualidade, a liberdade e a responsabilidade. Para a logoterapia, um fato biológico como a psicose está longe de ser, apesar dos pesares, um fato biográfico. Em suma, o paciente deve aprender a enfrentar e rir na cara de coisas como a angústia e a obsessão (método da intenção paradoxal). Em outras palavras, temos de garantir que os debates entre o humano na doença e o doentio no homem aconteçam. Temos de nos lembrar que um animal não tem alternativa, ou seja, ele se rende à afetividade patológica; o homem, por outro lado, pode se ocupar com tudo isso: não estou falando de reações psíquicas, mas de atos espirituais. Mas esse feito não acontece de maneira reflexiva, acontece de maneira muito mais implícita, sutil, silenciosa.

Doenças psicossomáticas

Como disse acima, são as doenças desencadeadas, e não causadas, pelo anímico. O fato de um asmático ou de alguém que sofre de crises de angina só ter ataques quando está nervoso é uma trivialidade e apresenta nada de novo. No mais, isso não quer dizer que a asma ou a angina como tais, em seu todo – ou seja, não no episódio singular da crise, mas como doenças de base –, sejam psicossomáticas ou psicogênicas. A angina ou asma podem acontecer por meio de um resfriado, mas também pode ser causada por uma excitação, ou seja, desencadeada pelo psíquico. Em suma, o nível de imunidade depende, entre outros, do estado afetivo.

Doenças funcionais

Elas são “funcionais” porque não há uma alteração estrutural em órgãos ou sistemas orgânicos, e sim meros distúrbios de suas funções, motivo pelo qual podemos classificar essas doenças como funcionais. Estamos falando dos sistemas vegetativo (respiração, circulação sanguínea, controle de temperatura, digestão etc.) e endócrino (produção de hormônios). São, portanto, na opinião de Frankl, “pseudoneuroses” enquanto as psicoses são cerebrais e neurológicas.

Neuroses reativas

Os efeitos psíquicos de causas somáticas das doenças funcionais (pseudoneuroses) produzem, por sua vez, efeitos psíquicos reativos, ou seja, reações neuróticas (neuroses reativas). O denominador comum dessas reações é a ansiedade antecipatória (medo do medo, como a colapsofobia, a infartofobia e a insultofobia). O círculo vicioso tem de ser quebrado em ambos os polos (somático e psíquico). O medo do medo é um medo secundário que tem um motivo (ou seja, motivo psíquico, que se acopla ao primário), enquanto o primário tem uma causa (ou seja, causa somática, a disposição vegetativa de angústia).

Há tipicamente dois padrões de neuroses reativas: (a) neurose obsessiva: o medo de si mesmo se expressa em ocorrências obsessivas e a partir daí o paciente exerce uma pressão contra elas, o que naturalmente reforça a pressão original; em particular, a obsessão de repetição é causada por uma insuficiência da sensação de evidência, enquanto a obsessão de checagem se deve a uma insuficiência de segurança dos instintos; há uma vontade pelos cem por cento, pelo absoluto, pela totalidade do conhecimento; o tratamento passa pela condução do paciente do mundo do absoluto para o mundo do pseudoabsoluto, convencendo-o que o mais razoável e não querer ser razoável; (b) neurose sexual: a ansiedade antecipatória se estabelece a partir da promoção do fracasso sexual único como sendo o primeiro; o caráter de exigência de potência tem um efeito patogênico e o paciente se sente inferiorizado, foge de situações em que a potência sexual poderá apresentar-se, como motéis, encontros de fim-de-semana etc. e foca muito no prazer em si (carpe horam, e não carpe diem) e acaba se perdendo; o prazer não é um efeito que pode ser agarrado, exatamente como o sono, e não pode ser colocado como intenção; a sexualidade não pode ser considerada um simples meio para um fim (prazer, orgasmo), mas uma expressão da aspiração amorosa (a emoção do sexo sem amor é inferior, como apontam inúmeras pesquisas); a sexualidade tem de desenvolver-se em três estágios: (1) mera masturbação (com ou sem parceiro, tanto faz), (2) o parceiro é abarcado em sua humanidade, (3) o amor vivenciado também envolve singularidade e unicidade.

Neuroses iatrogênicas

O médico é o fator patogênico mediante sua incompetência para uma anamnese minimamente aceitável (não deixa o paciente falar, por exemplo) e uma diagnose minimamente detalhada (banalizar o que diz o paciente e realizar um diagnóstico a todo custo para mostrar que algo foi feito, por exemplo).

Neuroses psicogênicas

Diz Frankl que o fato de um trauma anímico, ou seja, uma experiência grave, ter sobre alguém um efeito danoso e prejudicial a longo prazo, depende da pessoa, de toda a estrutura do seu caráter, e não da vivência em si pela qual ela teve de passar. A imensa maioria das vidas humanas passa por traumas e, curiosamente, essas situações são acompanhadas por uma diminuição de doenças neuróticas e uma melhora na saúde mental. Por isso uma liberação de uma carga psicológica longa e intensa são perigosas do ponto de vista da higiene mental, exigindo-se assim uma espécie de “ortopedia psíquica”. De qualquer forma, as neuroses psicogênicas orbitam em torno de dois polos: medo e culpa, cujas origens encontram-se respectivamente em duas condições ontológicas: liberdade e responsabilidade.

Doenças noogênicas

Refere-se a doenças da terceira dimensão humana, ou seja, a espiritual. É a dimensão verdadeiramente humana, e precisamente aquela que o psicologismo não quer aceitar. Caracteriza-se pelas chamadas “crises existenciais”, isto é, crises engendradas pela tensão de um conflito de consciência ou pela pressão de um problema espiritual. Nota-se claramente a necessidade metafísica, ou seja, a necessidade do ser humano de perguntar-se sobre o sentido de sua existência. O médico e psicólogo, que hoje é levado a assumir a função que anteriormente cabia ao sacerdote e ao filósofo, podem chegar a um diagnóstico errôneo de uma doença mental, julgando-a psicogênica quando a noogênese já está aí instalado muito antes.

As neuroses noogênicas exigem uma terapia que comece onde a neurose está enraizada: uma logoterapia. Trata-se de uma terapia essencialmente orientada à educação para a responsabilidade. O paciente precisa avançar de maneira autônoma a partir dessa responsabilidade e alcançar o sentido concreto de sua existência pessoal. Enquanto a psicanálise deu voz à vontade de prazer, a psicologia individual apresentou a vontade de poder e a logoterapia evidencia a vontade de sentido.

Enquanto o somatologismo ignora o espiritual, o psicologismo projeta o noético no puramente psíquico, procurando apenas pelos motivos emocionais do desespero, tentando “desmascará-los”. Os problemas e conflitos em si não são doentios. Mesmo conflitos insolúveis. Segundo Frankl, “assim como há verdade apesar da doença, há sofrimento apesar da saúde”.  O desespero humano em relação à sua falta de sentido não tem nada de patológico, nem necessariamente patogênico. Nem mesmo o suicídio é patológico.

Não existe “doença espiritual”, mas apenas um engate da afecção somática à frustração existencial. Falamos, portanto, de neuroses noogênicas, mas nunca de neuroses noéticas. E, evidentemente, há o erro do noologismo, ou seja, afirmar que toda neurose é noogênica. Dessa maneira, a logoterapia representa uma complementação noética da terapia somatopsíquica.

Neuroses coletivas

Frankl entende que não há propriamente um aumento das doenças neuróticas, mas um aumento da necessidade de tratamento psicoterápico. Isso está claro na velocidade aumentada da vida moderna, que em si representa uma tentativa de autocura, de autoentorpecimento: a pessoa está fugindo da monotonia interior e, nessa fuga, acaba caindo num turbilhão. O homem de hoje mal sabe de onde veio – muito menos para onde vai. E seria possível acrescentar: quanto menos ele conhecer seu objetivo, mais vai aumentar sua velocidade ao percorrer esse caminho.

Quando a vontade de sentido permanece insatisfeita, a vontade do prazer serve para anestesiar a insatisfação existencial do ser humano, ao menos para sua consciência. A líbio sexual prolifera, populariza-se o entorpecimento sexual. Similarmente, entre os executivos, a vontade de poder (e sua versão mais banal, a “vontade de dinheiro”) reprime a vontade de sentido. O homem existencialmente frustrado não sabe como ele pode preencher esse tempo livre. O tédio se tornou causa de primeira ordem da doença mental, ainda mais nos locais onde as questões sociais estão resolvidas.

Fonte: Viktor Frankl, Teoria e Terapia das Neuroses, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2016.