13 de fevereiro de 2014

Arte e pseudoarte


Numa impressionante obra publicada um século atrás, o filósofo italiano Benedetto Croce se referiu à distinção, para ele radical, entre a arte propriamente dita e a pseudoarte, cujo objetivo era entreter, atiçar ou distrair. Essa distinção foi adotada pelo filósofo inglês R. G. Collingwood, discípulo de Croce, que raciocinou da seguinte forma: quando me deparo com uma obra de arte verdadeira, não são as minhas reações o que interessa, e sim o significado e conteúdo daquele objeto. É a experiência o que a mim se apresenta, a qual se incorpora de modo singular naquela forma sensorial específica. Quando, porém, o que busco é entretenimento, não estou interessado na causa, mas no efeito. Tudo aquilo que tenha o efeito certo me parece bom, não existindo qualquer espaço para o juízo, seja ele estético ou não.

A questão que Croce e Collingwood levantam é exagerada: por que não posso me interessar por uma obra de arte e, ao mesmo tempo, sentir-me entretido por ela? Não nos distraímos por causa da distração, e sim da graça. A distração não se opõe ao interesse estético, visto já representar uma forma dele. Assim, não surpreenderá perceber que, ao desprezarem com tamanho exagero as artes que buscam o entretenimento, tanto Croce como Collingwood esboçaram mais uma teoria estética implausível na história da literatura.

Não obstante, ambos estavam corretos ao achar que há uma grande diferença entre o tratamento artístico de um tema e a mera promoção do efeito. Em certa medida, a imagem fotográfica nos insensibilizou para este contraste. Se, a exemplo da moldura de um quadro, o palco teatral impede a entrada do mundo, a câmera deixa o mundo entrar – espalhando a mesma ratificação serena sobre o ator que finge morrer sobre a calçada e o balão que acidentalmente paira por sobre a rua, em segundo plano. Além disso, vemo-nos tentados a fazer desse defeito um encanto, encorajando uma espécie de “vício pela realidade” no observador. Trata-se da tentação de concentrarmo-nos nos aspectos da realidade que nos chamam a atenção ou instigam, independentemente de seu significado dramático. A arte genuína também nos entretém; no entanto, ela o faz ao nos afastar das cenas que retrata, distanciando-nos o bastante para engendrar uma simpatia desinteressada pelos personagens, e não emoções vicárias de nossa parte.

[...]

Essa distinção [entre o interesse estético e o efeito puro e simples] pode ser reformulada como a distinção entre imaginação e fantasia. A verdadeira arte encanta a imaginação, ao passo que os efeitos instigam a fantasia. As coisas imaginárias são ponderadas; as fantasias, desempenhadas. Tanto a fantasia como a imaginação dizem respeito a irrealidades; no entanto, enquanto as irrealidades da fantasia penetram e poluem nosso mundo, as irrealidades da imaginação existem num mundo que lhes é próprio e no qual vagueamos livremente com um complacente desapego.

A sociedade moderna está repleta de objetos fantasiosos, visto que as imagens realistas da fotografia, do cinema e da TV oferecem uma satisfação substituta a nossos desejos proibidos, legitimando-os, portanto, dessa forma. Um desejo fantasioso não busca nem uma descrição literária, nem a pintura delicada de um objeto, e sim um simulacro – uma imagem em que todos os véus da hesitação foram rasgados. Esse desejo se abstém do estilo e da convenção porque ambos impedem a formação do substituto e o submetem a um julgamento. A fantasia ideal é perfeitamente realizada e perfeitamente irreal – um objeto imaginário que nada deixa a cargo da imaginação. As propagandas comercializam tais objetos, os quais pairam no pano de fundo da vida moderna e a todo momento nos instigam a realizar nossos sonhos em vez de buscar as realidades.

As cenas imaginadas, por sua vez, não são realizadas, mas representadas; elas se apresentam imbuídas de pensamento e estão longe de serem substitutos colocados no lugar do inalcançável. Antes, são deliberadamente postas à distância, num mundo próprio. A convenção, o enquadramento e a coibição são partes integrantes do processo imaginativo. Nós só adentramos uma pintura por meio da moldura que afasta dela o mundo em que vivemos. A convenção e o estilo são mais importantes que a realização; e, quando os pintores adornam suas imagens com um trompe-l´oeil realista, muitas vezes questionamos o resultado, declarando-os insípidos ou kitsch.

Fonte: Roger Scruton, Beleza, É Realizações, São Paulo, 2013, p. 111-115.

Imagem: Sandro Botticelli, O Nascimento de Vênus, c. 1485, Galleria degli Uffizi, Florença.