27 de dezembro de 2005

Fulton J. Sheen e o problema da liberdade

Na esteira de Leo Trese, um amigo recomendou-me os livros do Arcebispo de Rochester (Nova York), Fulton J. Sheen (1895-1979). Famoso pelos seus programas de TV nos anos 50 e começo dos 60 (Life is Worth Living e The Fulton Sheen Program), Sheen foi também autor de 96 livros, quase todos apologéticos, além de artigos e colunas em jornais. Seus livros são facilmente encontráveis em sebos, inclusive alguns títulos em português e espanhol. Algumas prédicas também estão disponíveis aqui.

Encontrei O Problema da Liberdade, cujo título original é Freedom Under God. Publicado nos EUA em 1940, a tradução brasileira foi lançada em 1945 pela Editora Agir e contou com diversas edições. A que encontrei é a 5ª edição, de 1956.

O objetivo de Sheen é estabelecer a relação entre religião, liberdade e os sistemas políticos e econômicos modernos. Sheen condena ferozmente o comunismo e o nazismo, considendo-os ideologias semelhantes. Quanto ao liberalismo free market, Sheen também reserva críticas duras, mas para isso faz uso de velhos mitos socialistas como, por exemplo, a idéia de que sob o liberalismo econômico os pobres ficam mais pobres porque os ricos ficam mais ricos; no início da Revolução Industrial os trabalhadores foram vilmente explorados, salvos mais tarde por sindicatos e leis trabalhistas; os trabalhadores deveriam participar nos lucros das empresas, e negar-lhes isto representa grave exploração por parte do capital.

Esses mitos influenciam o raciocínio do autor de maneira tão profunda que, infelizmente, comprometem muitas de suas análises. É triste ver um homem consciente dos males do comunismo preso às próprias doutrinas comunistas quando tenta prescrever-lhes uma cura.

Quanto à estrutura geral do livro, a divisão é a seguinte: (1) Expulsão da religião do espaço público, (2) Falsas liberdades e verdadeira liberdade e (3) Aplicações da verdadeira liberdade na ordem econômica e política.
* * *
Sheen inicia sua digressão sobre a liberdade lembrando que é a religião quem dá ordem e virtude à sociedade. Baní-la do espaço público, reduzindo-a a práticas e doutrinas meramente privadas, acaba engendrando na sociedade um espírito arreligioso que, por fim, se transformará em um espírito anti-religioso. Se o homem deseja ser verdadeiramente livre, então precisará redescobrir o que Sheen chama de "os direitos de Deus e da religião sobre a ordem pública", provavelmente uma alusão à Era Cristã.

Expulsada a Igreja da praça pública, duas falsas liberdades vêm preencher o vácuo, (1) a liberdade de indiferença, na qual o indivíduo age e pensa como quiser, à exemplo do que ocorre no ceticismo, no relativismo e no liberalismo e (2) a liberdade de necessidade, na qual o indivíduo é obrigado a obedecer à autoridade, como no comunismo e no nazismo.

Porém, segundo Sheen, a verdadeira liberdade é fazer o que se deve fazer. E quem sabe o que devemos fazer é nosso Criador, que diz que devemos conhecê-Lo, amá-Lo e servi-Lo. Em suma, o que teríamos de fazer para sermos verdadeiramente livres é desenvolver nossa personalidade a fim de sermos eternamente felizes com Deus, conhecendo-O, amando-O e servindo-O, e quem nos ensina o caminho das pedras de tal realização é o próprio Cristo, por meio de sua Igreja.

A partir desta premissa -- é Cristo, por meio da Igreja, quem ensina os homens como se organizarem política e economicamente de maneira agradável a Deus --, Sheen discorre sobre a liberdade e suas aplicações sociais, políticas e econômicas.

Assim como a base da liberdade interna do homem é a alma, externamente essa base é a propriedade privada. Isso ocorre porque não somos apenas feitos de espírito, mas também de corpo. Esse corpo precisa expressar-se no mundo em algo que lhe seja próprio: a propriedade privada. No entanto, engana-se quem pensa que, por isso, a Igreja defende o liberalismo econômico e político. Na verdade, a Igreja defende o que Sheen chama de difusão da propriedade, de maneira que os trabalhadores tenham participação nos lucros das empresas a fim de que desfrutem uma verdade propriedade. Ora, Sheen falha aqui ao não perceber que o salário já é a participação nos lucros desejada.

Sheen ensina que o trabalho está relacionado a 3 entidades, estabelecendo com elas uma relação:
  1. Deus. O homem reconduz a natureza a Ele, por meio da razão e da vontade. Por causa dessa relação, a Igreja defende um salário vital, para que a alma do homem esteja livre para atingir o fim que foi criada.
  2. Homens. O trabalho intensifica a solidariedade entre os homens. Por isso a Igreja não acredita na luta de classes.
  3. Natureza. O trabalho coopera com a natureza. Eis por que a Igreja é contra o desemprego, já que ele afasta o homem da natureza e, por conseguinte, da civilização, já que aquela é base desta.
No entanto, tanto comunismo quanto capitalismo concordam que o trabalho não passa de mercadoria, esvaziando-o do componente humano descrito nos três itens acima. Segundo Sheen, a diferença entre capitalismo e comunismo é apenas quem deverá ficar com o os lucros: o capital ou o trabalho. A Igreja rejeita tal dicotomia, afirmando que ambos devem deter os lucros. Para isso, a Igreja deseja modificar o sistema salarial, introduzindo-lhe componentes sociais, e não apenas individuais, da seguinte forma: (1) O trabalhador deve participar nos lucros, (2) O trabalhador deve participar na administração da empresa, por meio de conselhos que reúnam empregadores e empregados e (3) O trabalhador deve participar na propriedade.
E como o Estado deve atuar para a realização de tais metas? O homem é um ser pessoal e social, isto é, ao mesmo tempo dependente e independente da sociedade. O Estado, portanto, deve buscar o equilíbrio, promovendo o bem comum, seja de brancos, pretos, trabalhadores, empregadores etc. É o Estado refletindo o lado social do homem. No entanto, em casos extremos, o bem comum deve ser sacrificado em favor dos pobres e necessitados. É o Estado refletindo o lado pessoal do homem.
Como o Estado e a sociedade devem estar organizados? Segundo Sheen, a democracia, estruturalmente falando, é um mal. Sua tendência é transformar-se na tirania da maioria. É a república, por meio dos representantes que governam pelo povo (e não o governo direto do povo, como na democracia) com sistemas de pesos e contrapesos, que representa um sistema mais equilibrado e justo. A maioria não é fonte de direitos, por isso não pode exercer direitos sobre a minoria. A origem dos direitos é Deus e, só depois, os homens. O que a constituição americana faz é reafirmar essa doutrina, e não propriamente estabelecê-la. A tal reafirmação da origem divina dos direitos por parte da constituição Sheen atribui a essência do que chama de americanismo. Assim, o Estado não deve anular esses direitos, mas apenas reafirmá-los. Eis por que a educação religiosa (católica, protestante e judaica) é tão importante: a religião e os direitos humanos andam de mãos dadas.
Sheen ensina que a Revolução Francesa bem que tentou eliminar a desigualdade, procurando eliminar a desigualdade política por meio da abolição de privilégios hierárquicos. Como eliminar as hierarquias mostrou-se ineficaz na tentativa de eliminar as desigualdades, passsou-se à apologia da eliminação das desigualdades econômicas. Foi a Revolução Comunista. Sheen afirma que todas essas tentativas foram e são necessariamente infrutíferas porque a única igualdade possível é a espiritual, já que (1) todos são iguais substancialmente (todos têm alma e corpo, todos têm o mesmo fim que é a união com Deus, todos foram redimidos por Jesus Cristo etc.) e (2) todos são desiguais acidentalmente (todos têm inteligência, talento, saúde, caráter, virtude, força física etc. desiguais). A sociedade cristã terá, portanto, categorias e hierarquias, cada qual com sua função, a exemplo dos órgãos do corpo humano. Nem todas as desigualdades são más.
Finalmente, Sheen conclui sua obra identificando dois tipos de liberdade:
  1. Liberdade de escolha, que se refere a bens particulares como saúde, poder, sucesso etc.
  2. Liberdade de perfeição, que se refere ao último bem, isto é, adquirir a Verdade para o intelecto, Amor para nossa vontade e Vida para nossa existência.
Assim, a liberdade de escolha deve ser o meio para o fim, qual seja, a liberdade de perfeição. O liberalismo perverte a liberdade de escolha, entronizando-a como fim em si mesma. O comunismo e o nazismo destroem tanto a liberdade de escolha quanto a liberdade de perfeição, transformando a perfeição num ditador e obrigando a todos a adorá-lo e segui-lo.
A Igreja rejeita todas essas ideologias porque elas rejeitam aquilo que Deus uniu: a escolha e a perfeição. Não somos nós, no fim das contas, que devemos trazer a perfeição à Terra, mas, sim, nós é que devemos ascender, com liberdade de escolha, à perfeição. Não é Deus que deve descer até nós; nós é que devemos nos elevar até Ele.

15 de dezembro de 2005

Não vos preocupeis

Em Não vos preocupeis -- uma obra apologética --, Leo J. Trese nos lembra que uma vida sem Deus é uma vida sem propósitos e, portanto, angustiosa e vazia. O sentido da vida nos é dado como uma resposta ao amor de Deus e, quando isso acontece, nossas posturas e atitudes diante das situações mudam radicalmente. Pois em cada capítulo, Trese analisa essas situações, apontando como o verdadeiro cristão se comportaria. Façamos então uma breve descrição do que nos ensina Leo Trese.


Assim como tudo o que fazemos tem um propósito, Deus também tem um propósito para a vida e, mais especificamente, para a nossa vida. Ora, a partir desta curta reflexão, podemos concluir que as preocupações vêm de nossa falta de confiança em Deus. Temos de fazer nosso melhor e deixar o resto para Deus. E uma das grandes preocupações que afligem os cristãos é: Amo a Deus o bastante? Meu amor a Deus é forte o suficiente? Quem assim se indaga esquece que o amor não é um sentimento, mas algo que radica na vontade; isso quer dizer que o amor a Deus se reflete em pensarmos e fazermos tudo com a convicção de que fazemos por Deus. Não se trata, portanto, de chorar ou gemer durante nossas orações ou a cada vez que louvarmos a Deus, na tentativa de demonstrarmos que realmente nos comovemos em estarmos na presença dEle. Embora as emoções podem, claro, estar presentes em nosso amor a Deus, elas não são absolutamente necessárias pois, como disse, a raiz do amor é a vontade (espírito), e não sentimentos e emoções (corpo).
Neste ponto, Trese lembra a importância das 4 virtudes (bons hábitos) cardeais: justiça, prudência, temperança e fortaleza. A prudência é a virtude principal, uma vez que é ela que nos faz escolher o melhor, o certo. Ela retifica nossos juízos. A fortaleza, por sua vez, age posteriormente à escolha, nos encorajando a fazer o que é bom, custe o que custar. Ambas são chamadas virtudes sobrenaturais, adquiridas no batismo pela graça de Deus, e se desenvolvem sobre as virtudes naturais, moldadas durante a formação do caráter do indivíduo (notadamente na infância). Se praticadas, as virtudes recompensam o homem com serenidade e paz de consciência.
Outra virtude a qual Trese deposita grande importância é a humildade. Humilde é aquele que conhece a si mesmo e sua posição na ordem da criação. Ele sabe que é apenas um pouco inferior aos anjos e, não obstante, sem nada de que possa orgulhar-se pessoalmente. Mesmo os mais humildes possuem defeitos e falhas de personalidade. O que se deve fazer é admiti-los desde já, pedindo a Deus que torne seus efeitos mínimos, e desenvolver os talentos dados por Ele.
E quanto à maldade? Como entendê-la? Trese explica que a maldade existe porque a "maldade original" existiu. Eliminar a maldade do mundo, portanto, implicaria em eliminar a todos nós, dado que todos somos maus em função do pecado original. Eis que temos de nos perguntar: A quem aborreci inutilmente hoje? Nos momentos de ira, lembremos que Jesus que nem ao menos a deixemos aflorar, e não que a represemos simplesmente. Mas de que maneira? Odiando o pecado e não o pecador. Esta é a ira boa, mais ou menos como um pai se zanga com o filho. A diferença é que a ira boa se insurge por amor ao próximo, enquanto a ira ruim se insurge por amor próprio.
E como o sexo deve ser encarado pelo cristão? O autor ensina que as partes genitais são cobertas assim como qualquer coisa santa deve ser coberta. Assim como a procriação é algo sumamente importante, o sexo e os órgãos genitais também são sumamente importantes. Daí conclui-se que fazer sexo indistintamente, fora do tempo e do espaço certos, constitui uma profanação. Observe que mesmo no casamento, o sexo não pode ser interposto (os chamados métodos contraceptivos) porque Deus é positivamente (no sentido de ativamente) excluído. E o sexo não deve ser visto apenas como o prazer imediato para a geração de uma nova vida, mas inserido no amplo contexto da criação do filho como um todo. Isso quer dizer que não se deve fazer sexo simplesmente para satisfação do desejo imediato, mas, além disso, compreender que se trata de uma nova vida, uma nova criação.
Ainda no ambiente familiar, Trese afirma que o segredo para a boa vida matrimonial é o casal reparar apenas no que há de bom no outro, suportando as faltas de ambos sabendo que a personalidade dificilmente é manipulável. Nas crises (Trese usa o termo "depressões"), antes de achar que a grama do quintal vizinho é mais verde, lembre-se que a vida de solteiro é muito mais solitária e, por isso, sofrida.
Trese também dá dicas sobre o trabalho. Devemos lembrar que todo trabalho é partícipe da obra criadora de Deus, exceto, claro, aqueles trabalhos que são positivamente destrutivos. O autor também alerta para a premência de alimentarmos nossas mentes com leituras formativas, que cultivem a inteligência, não perdendo muito tempo com TV, revistas, jornais etc.
Quanto à propriedade, somos informados de que ela é boa; caso contrário, Deus não teria feito o voto de pobreza algo penoso. Mas como freqüentemente somos desmedidos nas coisas, em função do pecado original -- a razão perdeu o domínio sobre as paixões --, temos de levar uma vida desprendida, juntando somente aquilo que é necessário para nosso sustento. Trese lembra muito apropriadamente que a vida secular tende a reduzir tudo ao utilitarismo imediatista, tornando difícil ao cristão seguir a Igreja e a Cristo, preferindo seguir a si próprio.
Levanta-se então uma questão muito pertinente: Como amar o próximo se esse próximo não nos parece digno de ser amado? A resposta é simples: Exercendo a virtude da caridade, infundida em nós pelo batismo. É ela que torna possível o amor além do amor natural; não custa lembrar, conforme dissemos acima, que o amor reside na vontade, e não nas emoções. Na prática, o que ocorre é que distinguimos entre a malícia e o malicioso, amando este e não aquele. Eis que urge sermos apóstolos da caridade em Cristo, perdoando falhas alheias, louvando o que há de bom nos outros etc.
Porém, fazer coisas boas não limitar-se a evitar pecados e rezar, mas também fazer coisas boas para os outros. Sermos afáveis, corteses, pacientes etc. robustecerá ainda mais nossa mente e nossa alma.
Trese chama a atenção dos leitores para a importância da oração. A oração é a elevação da mente e do coração para Deus. No entanto, ao contrário da definição, ainda tendemos a depositar a nossa confiança nas palavras, na multidão infindável das palavras. Ora, instruindo seus discípulos na prática da oração, Jesus disse-lhes: Quando orardes, não multipliqueis as palavras, como fazem os pagãos. Eles pensam que, por falarem muito, serão ouvidos; mas vosso Pai sabe de que coisas necessitais, antes de que lhe peçais (Mateus 6:7-8). Um único momento que dediquemos exclusivamente a Deus em pensamento, em que pensemos nEle com amor, com gratidão, submetendo-nos aos seus desejos ou arrependendo-nos dos nossos pecados -- um único momento desses pode agradar mais a Deus do que uma oração de muitas palavras. São esses momentos que indicam um espírito permanente de oração, um amor a Deus duradouro. Na oração, além do mero palavreado, pode incrustar-nos nos nossos hábitos um outro defeito: o do egocentrismo. Na oração mais perfeita de todas, o Pai Nosso, somente uma curta frase intermédia é dedicada a um pedido de ordem material: "O pão nosso de cada dia nos dai hoje".
O maior problema com que a maioria de nós tropeça na oração é o das distrações. Mas quando dispomos a visitar a Deus, podemos consumir uma boa parte do tempo da oração -- talvez a maior parte -- correndo atrás dos nossos buliçosos e errantes pensamentos. De qualquer modo, Deus alegra-se com os nossos esforços, sente-se satisfeito com as nossas patentes intenções de falar com Ele.
Para encerrar, Trese lembra que no batismo, Deus nos deu uma vida sobrenatural, elevou-nos até o seu próprio nível. Optou por partilhar conosco a sua própria vida eterna. Unindo nossa alma a Ele, deu-nos um novo gênero de vida que chamamos graça santificante. Mas a nossa alma acha-se limitada nas suas atividades divinas por ter que desenvolver-se através de um corpo físico. Para que essa vida divina seja verdadeiramente completa na nossa alma, devemos aguardar o ato final pelo qual a glória divina chegará também a nós. E isso acontecerá quando Deus nos conferir aquilo que os teólogos chamam luz da glória. É um poder especial que, acrescentando à vida sobrenatural que já existe em nós, nos permitirá no Céu ver a Deus tal como é.
A ajuda que Deus nos concede dia a dia, momento a momento, é o que chamamos graça atual. Deus pode tratar que leiamos um livro que tenha um significado especial para nós, ou que ouçamos um sermão cuja mensagem nos seja especialmente necessária. A pessoa de boa vontade que, fortalecida pela graça santificante, se esforça mediante a oração por tomar as suas decisões e resolver os seus problemas da melhor maneira possível, está recebendo a todo momento as graças atuais. Com um pequeno empurrãozinho aqui e uma suave cotovelada acolá, Deus vai guiando-a continuamente para o Céu.
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Publicado originalmente em 1956 como More than many sparrows, tanto o título americano quanto o brasileiro foram inspirados em Mateus 10:29-31: "Porventura não se vendem dois passarinhos por um asse [antiga moeda romana de cobre]? E todavia nem um só deles cairá sobre a terra sem a permissão de vosso Pai. Até os próprios cabelos da vossa cabeça estão todos contados. Não vos preocupeis, pois; vós valeis mais do que muitos pássaros".

10 de dezembro de 2005

A minha consciência e eu

Há tempos tenho desfrutado dos livretos de Leo J. Trese (1902-1970). Este padre americano tem o dom de ensinar eternas verdades em pequenas lições. Em Vaso de Argila (Vessel of Clay), Trese narra um dia típico de um pároco de uma pequena cidade americana. Cada capítulo corresponde a uma hora, meia-hora ou quarto-de-hora, nos quais as angústias, dúvidas e fraquezas do sacerdote são confidenciadas ao leitor. Na verdade, percebe-se que o "típico pároco" é o próprio Leo Trese, transformando a obra numa autobiografia.
Mas um dos capítulos chamou muito minha atenção. Às 10h45min (pág. 65), Trese trava um "diálogo" com sua consciência sobre o vício do fumo, algo que certamente o perturbava. Embora eu mesmo não seja fumante, não foi difícil transpor a lição de Trese aos meus próprios desvios morais (por exemplo, a gula). Em suma, Trese conclui que novos e saudáveis hábitos não devem se seguir a meras resoluções moralistas do tipo "tenho que parar de comer muito" ou "tenho que parar de assistir muita TV". Na verdade, os velhos vícios só serão genuinamente abandonados quando antes ocorrer uma mortificação interior, ou, na linguagem evangélica, um quebrantamento. É no arrependimento e no amor a Deus o início da verdadeira mudança. Caso contrário, o abandono do vício servirá apenas para reforçar o orgulho e a egolatria existentes.
* * *
Terminada a Hora Média [uma das partes de que se compõe a Liturgia das Horas, também chamado de Breviário ou Opus Dei, que todos os padres devem rezar diariamente], puxo de um cigarro com um movimento quase instintivo. Não admira: é um movimento que repito mais ou menos trinta vezes por dia. De cada vez que o faço, a consciência repreende-me com um aviso, já completamente familiar. E aqui estamos outra vez - penso amargamente - com outro cigarro na boca e um fósforo na mão; aqui estamos outra vez, a minha consciência e eu, às voltas com o mesmo assunto.

CONSCIÊNCIA: Por que não deixas de fumar?

Eu: Acho que deveria.

CONSCIÊNCIA: Pois claro! É a única coisa da tua vida que não te deixa livre. Como podes falar de mortificação se fumas maço e meio de cigarros por dia?

Eu: Mas eu gosto de fumar e sabes perfeitamente que o Dr. Fitzgerald disse que não me fazia mal. Além disso, não me esqueço de dar graças a Deus por esta pequena satisfação. Não faço bem?

CONSCIÊNCIA: É claro que não. Fazer as coisas somente por prazer parece-me um pecado. Uma ação que não tenha um fim sobrenatural não tem valor.

Eu: Estás então querendo dizer que faço mal porque gosto de ver o nascer do sol da janela do meu quarto? Ou porque gosto de respirar o perfume dos lilases na primavera, ou das folhas secas no outono? Ou porque..

CONSCIÊNCIA: Alto lá! Estávamos falando de cigarros. És capaz de dizer-me o nome de um santo que tivesse o hábito de fumar?

Eu: Muito bem, se preferes argumentos ad hominem, permite-me uma pergunta: és capaz de dizer o nome de um santo cuja canonização tenha sido recusada por fumar, mascar tabaco ou aspirar rapé? Acho que a nossa questão não é de santidade, mas de pecado; se for de santidade, talvez estejamos de acordo. Mas explica-me em que consiste o pecado de fumar, e eu deixarei de cometê-lo agora mesmo.

CONSCIÊNCIA: Bem, talvez não seja pecado, mas seria melhor deixares de fumar imediatamente.

Eu: Não, imediatamente não. Sabes o que aconteceria se deixasse de fumar imediatamente? Ficaria orgulhoso como o demônio da minha força de vontade; desprezaria os meus amigos que não fossem capazes de fazer como eu; estaria tão ocupado em pavonear o meu auto-domínio que esqueceria as mortificações mais importantes.

CONSCIÊNCIA: Mais importantes? Quais, por exemplo?

Eu: Não me digas que não sabes que a mortificação interior é mais importante que a exterior. Olha por exemplo o que acontece nas sextas-feiras à noite: batem as nove, hora em que terminam oficialmente as confissões; se eu fosse zeloso como devia, não iria correndo fechar a porta da igreja para evitar a entrada de um retardatário, mas daria uma rápida olhada pela rua para o caso de estar chegando algum filho pródigo. Ou, senão, olha para este outro exemplo: é um dia qualquer, e eu me encontro no meu escritório, com o plano de trabalho já estabelecido, quando chega alguém querendo sentar-se e falar-me de alguma bobagem. Se eu me mortificasse interiormente, descobriria nessa pessoa a vontade de Deus e não teria tanta pressa em vê-la pelas costas. Repara, finalmente, no que aconteceu no último domingo: preparava-me tranqüilamante para descansar, quando me vieram dizer que a velha sra. Ebers precisava de que a levassem de carro ao hospital, a uns oitenta quilômetros, para visitar o marido. Se fosse interiormente mortificado, não teria demorado quinze minutos a ir ao telefone e oferecer-me para levá-la. Como vês, são alguns exemplos daquilo que penso serem as mortificações mais importantes. Podia deixar de fumar e continuar a ser um terrível egoísta, negligente e insuportável. Se me abstivesse da nicotina, não conseguiria nem a metade das vantagens que meia -hora de oração me oferece todos os dias. Se amasse mais a Deus...

CONSCIÊNCIA: Sim, já sei aonde queres chegar. Se amasses mais a Deus, seria mais fácil que te mortificasses. Uma renúncia heróica é mais o resultado do que a causa da virtude. Se progredisses no amor a Deus, o teu egoísmo se desfaria como uma cebola, casca por casca, até não restar nada. Pensas que chegará um dia em que te há de parecer natural e até inevitável deixar de fumar, um dia em que encontrarás maior gosto em não fumar do que em agarrar-te a esse costume. Enfim! O melhor seria aceitarmos um empate nesta disputa e eu variar a minha linha de ataque. Quanto tempo achas que precisarias para deixar de fumar segundo o teu método?

Eu: Só Deus sabe. Há momentos em que penso que o próprio Deus desanima tentando ensinar-me a cortar o mal pela raiz. Talvez o meu aço não esteja suficientemente temperado. Mas, consciência, não me abandones; se o conseguir, há de ser com a tua ajuda. A graça faz milagres e é possível que chegue um dia em que eu encontre verdadeira alegria em jogar cinza na comida e dormir sobre uma tábua. Entretanto, continuarei a saborear uma boa refeição, com toda a gratidão que devo a Deus e com o maior respeito pela virtude da temperança. Em nome da fraternidade e com o devido respeito pela virtude da sobriedade, continuarei a tomar um aperitivo com os meus irmãos sacerdotes antes do jantar. Parece-me ser uma sã doutrina pensar que tudo o que Deus fez é bom. Com toda a certeza, a alegria de um prazer inocente é obra das suas mãos e não se pode considerar um erro. Por isso, até que...

CONSCIÊNCIA: Cuidado! Esse fósforo vai-te queimar os dedos! Vamos, acende o cigarro e deixa de filosofar. Espero que não te convertas num racionalista. De qualquer modo, agora tenho mais que fazer. Preciso afiar a ponta da próxima seta.