26 de junho de 2025

A crítica do amor puro


Estai em mim, e eu em vós; como a vara de si mesma não pode dar fruto, se não estiver na videira, assim também vós, se não estiverdes em mim. Eu sou a videira, vós as varas; quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer. Se alguém não estiver em mim, será lançado fora, como a vara, e secará; e os colhem e lançam no fogo, e ardem. Se vós estiverdes em mim, e as minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito. (João 15:4-7)

Um dos temas principais, ou talvez mesmo o principal, de Gustavo Corção é a inversão hierárquica entre otium (ócio) e negotium (negócio). Isso porque otium remete à gratuidade, à “inutilidade” de atos ligados às virtudes teologais. Embora devessem receber prioridade por sua iminente importância e, por conseguinte, as atividades ligadas ao negotium a elas devessem se orientar, verifica-se no atual estágio civilizatório precisamente o contrário. O ócio (atitude de contemplação e compreensão da gratuidade) está ligado ao fim último do homem, à sua realização, à sua felicidade, ao seu destino. Portanto, cabe ao homem entregar-se à ordem da graça calcada na experiência de sua finitude, de seu acabamento, de seu, como diria Corção, desconcerto, “e não tanto a conquista de uma competência ética, como queriam os estoicos e os fariseus de todos os tempos”. O ócio seria “perda de tempo” porque não “produz” nada. Para o homem contemporâneo, o homem do negotio, a força existencial da vida contemplativa, o autoconhecimento, a excelência de vida, tudo isso é “inútil”. Só aquilo que é lógico e “sério” é digno, o que é, curiosamente, rematada loucura. Corção não deixa de denunciar que o sujeito da história, para o homem contemporâneo, é o “homem exterior”, é a ideologia do progresso naturalista e liberal.

Já vimos essa ideia neste blog. É claro, para a surpresa de ninguém, que Corção e a maioria dos católicos romanos tradicionalistas culparão o nominalismo, a ausência de conteúdo ontológico, a falta de “pertinência a um logos”. Mas é precisamente aí que reside o insight mais interessante de Corção: pelo fato de pertencermos gratuitamente a um fundamento metafísico, à ordem do Verbo, somente damos aquilo que recebemos. Tal circularidade – como o filho que dá ao pai um presente comprado com o dinheiro do próprio pai – é o senso de gratuidade ao qual Corção chama a atenção, e eis que o “amor puro”, ou seja, o amor puramente humano, utópico, gnóstico, nominalista, puramente agenciado pelo progresso “ao sabor do pelagianismo moderno”, é falso.

Daí vem sua denúncia contra a moral dos pusilânimes (“alma pequena”), que se contenta com virtudes fáceis e superficiais, com certo comodismo ético, e aponta a necessária moral dos magnânimos (“alma grande”), a moral dos que suportam a vocação humana à santidade. O homem contemporâneo foge da monotonia da permanência, na qual encontra-se a liberdade espiritual e a devida quebra do tempo produtivo, e vai ao encontro da monotonia da arte encomendada, da monotonia funcional, maquinal, acelerada, da monotonia da indústria do divertimento (eis a distinção que faz Roger Scruton entre arte e pseudoarte, aquela ligada à imaginação livre e complacente, esta à fantasia para satisfazer paixões).

Por fim, cabe citar a Chesterton, cuja descrição da loucura talvez seja das mais sagazes:

Se alguns atos humanos podem ser considerados sem causa, são os pequeninos atos gratuitos e simples do homem normal: assobiar quando passeia, partir a grama com a ponta da bengala, bater com os calcanhares ou esfregar as mãos. É esse homem feliz que faz coisas inúteis; o doente não é bastante forte para esses desperdícios. São exatamente esses atos descuidados e sem motivos que o doido não pode compreender; porque o doido (como o determinista) vê geralmente causas demais em todas as coisas. Naquelas atividades gratuitas ele é capaz de descobrir urna significação conspiratória. Pensará que o vergastar a grama é um ataque à propriedade privada; e que o bater de calcanhares é um sinal transmitido a algum cúmplice escondido. Se o doido pudesse ficar um só instante descuidado ficaria curado. [A. Se um de nós quiser discutir com um doido, é extremamente provável que ele leve a melhor, porque em muitos pontos seu espírito é mais rápido do que o nosso, não estando preso a certas coisas que atrasam um bom julgamento. Ele não se embaraça com o senso de humour, com a caridade, ou com algumas certezas de experiência. Tornou-se mais lógico pela perda de certas fraquezas saudáveis. Realmente, a definição vulgar da insanidade mental é, nesse sentido, um equívoco. O doido é o homem que perdeu tudo, exceto a razão.

É por isso que Corção interpretava a infância, aludida por Jesus Cristo em Mateus 18:1-4, com a integridade, não com inocência ou castidade. É íntegra a pessoa que se abre a uma “sadia desorganização”, a certo mistério ontológico, ao “ama e faze o que quiseres” de Santo Agostinho. O menino humilde se submete ao mistério do “nascer da obra”, ao Logos. Ele brinca, seus atos são gratuitos. É mais importante, portanto, chegar em casa do que chegar no escritório, mais importante ouvir uma boa música e conversar com amigos do que ser general do exército, engenheiro ou presidente da república. A produtividade é uma blasfêmia contra o Logos.

Fonte: Marcos Cotrim de Barcellos, Gustavo Corção: a crítica do amor puro, Editora Permanência, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2020.