Estai em mim, e eu em vós; como a vara de si mesma não pode dar fruto, se não estiver na videira, assim também vós, se não estiverdes em mim. Eu sou a videira, vós as varas; quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer. Se alguém não estiver em mim, será lançado fora, como a vara, e secará; e os colhem e lançam no fogo, e ardem. Se vós estiverdes em mim, e as minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito. (João 15:4-7)
Um dos temas principais, ou talvez mesmo o
principal, de Gustavo Corção é a inversão hierárquica entre otium (ócio)
e negotium (negócio). Isso porque otium remete à gratuidade, à “inutilidade”
de atos ligados às virtudes teologais. Embora devessem receber prioridade por
sua iminente importância e, por conseguinte, as atividades ligadas ao negotium
a elas devessem se orientar, verifica-se no atual estágio civilizatório precisamente
o contrário. O ócio (atitude de contemplação e compreensão da gratuidade) está
ligado ao fim último do homem, à sua realização, à sua felicidade, ao seu
destino. Portanto, cabe ao homem entregar-se à ordem da graça calcada na experiência
de sua finitude, de seu acabamento, de seu, como diria Corção, desconcerto, “e
não tanto a conquista de uma competência ética, como queriam os estoicos e os fariseus
de todos os tempos”. O ócio seria “perda de tempo” porque não “produz” nada. Para
o homem contemporâneo, o homem do negotio, a força existencial da vida
contemplativa, o autoconhecimento, a excelência de vida, tudo isso é “inútil”.
Só aquilo que é lógico e “sério” é digno, o que é, curiosamente, rematada
loucura. Corção não deixa de denunciar que o sujeito da história, para o homem contemporâneo,
é o “homem exterior”, é a ideologia do progresso naturalista e liberal.
Já vimos essa ideia neste blog. É claro,
para a surpresa de ninguém, que Corção e a maioria dos católicos romanos
tradicionalistas culparão o nominalismo, a ausência de conteúdo ontológico, a
falta de “pertinência a um logos”. Mas é precisamente aí que reside o insight
mais interessante de Corção: pelo fato de pertencermos gratuitamente a
um fundamento metafísico, à ordem do Verbo, somente damos aquilo que recebemos.
Tal circularidade – como o filho que dá ao pai um presente comprado com o
dinheiro do próprio pai – é o senso de gratuidade ao qual Corção chama a
atenção, e eis que o “amor puro”, ou seja, o amor puramente humano, utópico,
gnóstico, nominalista, puramente agenciado pelo progresso “ao sabor do
pelagianismo moderno”, é falso.
Daí vem sua denúncia contra a moral dos pusilânimes
(“alma pequena”), que se contenta com virtudes fáceis e superficiais, com certo
comodismo ético, e aponta a necessária moral dos magnânimos (“alma grande”), a
moral dos que suportam a vocação humana à santidade. O homem contemporâneo foge
da monotonia da permanência, na qual encontra-se a liberdade espiritual e a
devida quebra do tempo produtivo, e vai ao encontro da monotonia da arte encomendada,
da monotonia funcional, maquinal, acelerada, da monotonia da indústria do
divertimento (eis a distinção que faz Roger Scruton entre arte e pseudoarte,
aquela ligada à imaginação livre e complacente, esta à fantasia para satisfazer
paixões).
Por fim, cabe citar a Chesterton, cuja
descrição da loucura talvez seja das mais sagazes:
Se alguns atos humanos podem ser considerados sem causa, são os pequeninos atos gratuitos e simples do homem normal: assobiar quando passeia, partir a grama com a ponta da bengala, bater com os calcanhares ou esfregar as mãos. É esse homem feliz que faz coisas inúteis; o doente não é bastante forte para esses desperdícios. São exatamente esses atos descuidados e sem motivos que o doido não pode compreender; porque o doido (como o determinista) vê geralmente causas demais em todas as coisas. Naquelas atividades gratuitas ele é capaz de descobrir urna significação conspiratória. Pensará que o vergastar a grama é um ataque à propriedade privada; e que o bater de calcanhares é um sinal transmitido a algum cúmplice escondido. Se o doido pudesse ficar um só instante descuidado ficaria curado. [A. Se um de nós quiser discutir com um doido, é extremamente provável que ele leve a melhor, porque em muitos pontos seu espírito é mais rápido do que o nosso, não estando preso a certas coisas que atrasam um bom julgamento. Ele não se embaraça com o senso de humour, com a caridade, ou com algumas certezas de experiência. Tornou-se mais lógico pela perda de certas fraquezas saudáveis. Realmente, a definição vulgar da insanidade mental é, nesse sentido, um equívoco. O doido é o homem que perdeu tudo, exceto a razão.
É por isso que Corção interpretava a infância,
aludida por Jesus Cristo em Mateus 18:1-4, com a integridade, não com inocência
ou castidade. É íntegra a pessoa que se abre a uma “sadia desorganização”, a
certo mistério ontológico, ao “ama e faze o que quiseres” de Santo Agostinho. O
menino humilde se submete ao mistério do “nascer da obra”, ao Logos. Ele
brinca, seus atos são gratuitos. É mais importante, portanto, chegar em casa do
que chegar no escritório, mais importante ouvir uma boa música e conversar com
amigos do que ser general do exército, engenheiro ou presidente da república. A
produtividade é uma blasfêmia contra o Logos.
Fonte:
Marcos Cotrim de Barcellos, Gustavo Corção: a crítica do amor puro,
Editora Permanência, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2020.