28 de maio de 2025

O homem virtuoso não é bonzinho


Você é uma pessoa boa ou uma pessoa boazinha? Suas virtudes são conquistas pessoais ou são mera expressão de temperamentos inatos? Quando age com valor o faz somente em momentos pontuais ou o faz habitualmente? Você demonstra inteligência prática no trabalho, mas em casa assume outro caráter?

Antes de versarmos sobre as virtudes humanas (dentre as quais se incluem as famosas virtudes cardeais), vejamos algo sobre as virtudes teologais, pouco discutidas no ambiente psicológico porque não são adquiridas pelo homem, mas infundidas por Deus (embora tenham que ser exercitadas mesmo assim, ao contrário dos “dons do Espírito”, que são apenas recebidos com docilidade, tal como a metáfora do remo e da vela):

(a) : ver tudo com os olhos de Jesus Cristo, que tudo encaminha para nosso bem (Romanos 8:28), abraçando renúncias e abnegações em nome da santidade.

(b) esperança: a convicção de que nos espera o abraço eterno de Deus após a morte e, por isso, nos faz crescer a magnanimidade, a audácia e a humildade.

(c) caridade: é a fusão de amor de Deus com o amor ao próximo, fazendo-nos dar a nossa vida pelos nossos irmãos (1 João 3:16).

Quanto às virtudes em geral (aqui inclusas as cardeais), eis as 4 etapas de sua formação:

(1) olhos (sentidos): é quando guardamos a imagem das pessoas virtuosas que, com sua existência concreta, nos servem de exemplos vivos.

(2) coração (apetência sensível): ao ver as virtudes autênticas, o coração arde em desejo e admiração.

(3) cabeça (contemplação intelectual): a beleza do bem contemplado nos impele a refletir sobre as virtudes, a conhecê-las e aprofundá-las.

(4) vontade (apetência inteligível): é a decisão de viver, na prática, no dia a dia, as virtudes.

Observe a passagem dos sentidos para as paixões, destas para a inteligência, que capta o bem que há na ação virtuosa e, por fim, a vontade, que se apetece por este bem e o persegue. Eis, portanto, a diferença entre o bom e o bonzinho: no bom há uma deliberação, uma decisão consciente e voluntária de perseguir a virtude; no bonzinho há meros atos mecânicos, rotineiros, costumes, habituações, reações ao instinto de “ficar bem” perante os outros.

E como cumprir esse passo (4)? Eis as posturas necessárias:

(a) ter mente que a mortificação (esforço, sacrifício, “matar um mal”) é fundamental para combater a moleza, a gula, a sensualidade descontrolada, o mau-humor etc.

(b) fazer esforços cotidianos em pontos concretos.

(c) o que quer que seja feito tem de ser feito por amor, não por costume ou “voluntarismo”, ou seja, não por um desejo de provar a mim mesmo que sou capaz de fazer o que me proponho.

(d) acompanhar o processo, ou seja, não deixar o desenvolvimento das virtudes ao sabor da improvisação, mas fazer um exame constante para que a espontaneidade não desperte e, “de repente”, voltemos ao padrão anterior de pensamento e comportamento.

As virtudes cardeais

Prudência

Ser prudente significa apenas e tão-somente agir de modo pensado, racional. Como dizia o imperador bizantino Miguel II Paleólogo: “Não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus”. Ou como dizia Tomás de Aquino: “O homem prudente é lento na reflexão e rápido na execução”. É típico do prudente vencer o comodismo e o medo de que não dê certo e, por isso mesmo, não cair na “cautela medrosa”.

Justiça

Inicialmente, a virtude da justiça exige que tenhamos imenso respeito por todo e qualquer ser humano por ser ele imagem de Deus e, ademais, porque foi por ele que Jesus Cristo morreu e que está destinado à bem-aventurança eterna. Mas o fato é que desprezamos e zombamos das deficiências alheias e, pior ainda, de sua falta de categoria intelectual, profissional e social. Mas Deus não despreza ninguém.

Urge que vejamos os nossos defeitos, que não sem frequência são do mesmo tipo que nos incomodam ver nos outros. Condenar alguém com ódio e agressividade é anticristão. O justo é, quando possível ajudar e, se for o caso, corrigir. Lembre-se: há ladrões de carros, casas etc., mas o pior ladrão é aquele que rouba a reputação, a fama, a honra, o bom nome. As motivações vão desde o orgulho (“sou superior ao outro”) até a inveja (refúgio dos infecundos). As únicas razões objetivas para falar sobre o próximo são o bem público, o bem de uma pessoa inocente ou o bem próprio (como legítima defesa).

Observe aqui que a base da justiça é a veracidade, isto é, a virtude de ser verdadeiro no agir e no falar. Trata-se de um dever porque o homem deve a outro a manifestação da verdade. No entanto, isso não significa que devemos sempre dizer a verdade. Por quê? Porque ninguém é obrigado a revelar a verdade a quem não tem o direito de conhecê-la, ou seja, a quem faria um uso injusto e daninho da verdade e em quem provocaria uma dor ou um dano desnecessário.

Ademais, não há mentira quando não existe intenção de enganar, como as mentiras jocosas (brincadeiras, piadas) e as mentiras sociais (expressões inexatas que já não enganam ninguém). Note que dizer a verdade pode ferir gravemente a caridade, dependendo da intenção e do modo como é dita. Isso é comum entre aqueles que se consideram “muito sinceros”, que apenas o são para usar a verdade como arma para ferir.

Por fim, cabe mencionar que a verdade deve ser omitida para respeitar o direito à intimidade porque a intimidade, com deixa claro a palavra, é algo que não nos pertence.

Fortaleza

Entre as inúmeras fraquezas que podemos enfrentar, incluem-se: (1) fugir de ideais, tarefas e deveres porque são difíceis, (2) encolher-nos ante obstáculos, (3) medo do sacrifício, (4) medo do sofrimento, (5) acomodar-nos para não complicar a vida, (6) ser do tipo mole e frívolo, (7) achar que fez muito e cansar.

Combater essas fraquezas exige a conquista de três forças: (a) a força do ideal (motivo poderoso pelo qual valha a pena viver e morrer; o Amor, eis o grande ideal), (b) a segurança da fé (Mas Cristo disse-me: Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que a minha força se revela totalmente (2 Cor 12:8-9), (c) a têmpera do sacrifício (é a mortificação da moleza sobre a qual versamos acima).

Não desprezes as pequenas coisas, porque, através do contínuo exercício de negar e negares-te a ti próprio, nessas coisas, fortalecerás, virilizarás, com a graça de Deus, a tua vontade, para seres, em primeiro lugar, inteiro senhor de ti mesmo.

[...]

Quer dizer que toda impaciência tem como causa a falta de amor, de amor a Deus ou de amor ao próximo, ou de ambos. É lógico, portanto, que a causa das nossas impaciências seja o contrário do amor, isto é, o amor-próprio egoísta.

Temperança

A temperança mantém a harmonia entre a dimensão espiritual e a dimensão corporal do homem. Há três modos de intemperança: (a) usar o bem como instrumento para o mal (transformar comida e bebida para perder a saúde física e psíquica), (b) tiranizar-se a ponto de se escravizar (crack, álcool, cocaína, sexo obsessivo-compulsivo), (c) os meios se tornam fins (o sentido da vida é sentir prazer).

O Abade Cassiano, no século V, escrevia no seu manual de espiritualidade intitulado Collationes: “O primeiro combate que devemos empreender é contra o espírito de gula, contra a concupiscência da excessiva comida e bebida. É preciso frisar que a abstinência corporal não tem outra razão de ser senão conduzir-nos à pureza do coração”. Os excessos na comida, e sobretudo na bebida, insensibilizam a alma, fazem com que a dimensão corporal abafe a espiritual. A idolatria do prazer material do homem, através dos excessos no comer e no beber puxa para a tirania do sexo.

Além do aspecto concupiscível, há evidentemente a temperança do aspecto irascível, ou seja, moderar a paixão da ira (ou “indignação”). Diz São Gregório Magno: “A razão enfrenta o mal com grande combatividade, e a ira contribui para isso”. Diz São João Crisóstomo: “Quem não se indigna, quando há motivo, peca. [...] A falta de indignação ante o mal semeia vícios, alimenta a negligência e facilita que não só os maus, como também os bons, pratiquem o mal”. No entanto, quando a ira não é contra o mal, mas contra a pessoa que fez ou propagou o mal, torna-se ódio. Como dizia Santo Agostinho: “Detestar o erro, mas amar o que erra”. A mansidão, vejam só, não é a virtude dos fracos, mas dos fortes.

Fonte: Franscisco Faus, A conquista das virtudes, Cultor de Livros, São Paulo, SP, Brasil, 2021.