19 de agosto de 2024

Cândido e o "melhor dos mundos possíveis"


Um dia, Cunegundes, ao passear junto do castelo no pequeno bosque que chamavam parque, viu entre moitas o doutor Pangloss, que dava uma aula de física experimental à camareira de sua mãe, moreninha bem bonita e dócil. Como a senhorita Cunegundes tinha muita disposição para as ciências, observou, sem fôlego, as experiências reiteradas de que foi testemunha; viu claramente a razão suficiente do doutor, os efeitos e as causas, e voltou para casa agitadíssima, pensativa, cheia do desejo de ser sábia, sonhando que ela bem que podia ser a razão suficiente do jovem Cândido, que podia também ser a dela.

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Após o terremoto que destruíra três quartos de Lisboa, os sábios do país não encontraram meio mais eficaz para prevenir a ruína total senão dar ao povo um belo auto de fé. Foi decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas em fogo lento, com grande solenidade, é um segredo infalível para impedir a terra de tremer.

[Nota: Os atos de fé são espetáculos públicos, promovidos pela Inquisição, no qual se queimavam em fogueiras os supostos hereges e os acusados de “prática de judaísmo”. O auto de fé descrito por Voltaire realmente aconteceu em 20 de junho de 1756.]

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À medida que cada um contava sua história, o barco avançava. Aportou-se em Buenos Aires. Cunegundes, o capitão Cândido e a velha foram à casa do governador Don Fernando de Ibarra y Figueroa y Mascareñas y Lampurdos y Souza. Este senhor tinha um orgulho compatível com um homem que carrega tantos nomes. Falava aos homens com o desdém mais nobre, levantando tão alto o nariz, elevando tão impiedosamente a voz, assumindo um tom tão imponente, afetando uma postura tão altaneira, que todos os que o saudavam ficavam tentados a surrá-lo. Amava furiosamente as mulheres. Cunegundes pareceu-lhe o que ele jamais vira de mais belo. A primeira coisa que fez foi perguntar se ela por acaso não era a mulher do capitão. O ar com que fez essa pergunta alarmou Cândido: não ousou dizer que era sua mulher, porque de fato não era; não ousava dizer que era sua irmã, porque tampouco o era; e, embora essa mentira oficiosa tivesse estado outrora muito na moda entre os antigos e pudesse ser útil aos modernos, sua alma era demasiado pura para trair a verdade.

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Finalmente, avistaram-se as costas da França.

– O senhor já esteve na França, senhor Martinho? – perguntou Cândido.

– Sim – respondeu Martinho –, percorri várias províncias. Há umas onde a metade dos habitantes é louca, algumas onde são espertos demais, outras onde são normalmente bastante meigos e imbecis, outras onde se fingem de espirituosos; e em todas a principal ocupação é o amor; a segunda, a maledicência; e a terceira, dizer bobagens.

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O jantar foi como a maioria dos jantares de Paris; primeiro, silêncio; em seguida, um barulho de palavras que ninguém distingue; depois, brincadeiras das quais a maior parte é insípida, falsas novidades, más reflexões, um pouco de política e muita maledicência. Falou-se até de livros novos.

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– O senhor é muito duro – disse Cândido.

– É porque vivi – disse Martinho.

– Mas olhe só estes gondoleiros – disse Cândido –, não estão sempre a cantar?

– O senhor não os está vendo em seus lares, com suas mulheres e seus fedelhos – disse Martinho. – O doge tem suas mágoas, os gondoleiros têm as deles. É verdade que, tudo pesado, a sorte de um gondoleiro é preferível à de um doge; mas acho a diferença tão medíocre, que nem vale a pena ser examinada.

[Nota: Doge é o chefe ou primeiro magistrado das antigas repúblicas de Veneza e de Gênova.]

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Depois que se despediram de Sua Excelência.

– Ora, ora – disse Cândido a Martinho –, o senhor há de convir que ali está o mais feliz de todos os homens, pois está acima de tudo o que possui.

– O senhor não vê – disse Martinho – que ele se entedia com tudo quanto possui? Platão disse, há muito tempo, que os melhores estômagos não são aqueles que rejeitam todos os alimentos.

– Mas – disse Cândido – não há prazer em criticar tudo, em sentir os defeitos onde os outros homens acham ver belezas?

– Ou seja – retomou Martinho –, que existe prazer em não ter prazer?

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– E então, meu caro Pangloss – perguntou-lhe Cândido –, quando foi enforcado, dissecado, moído de pancadas e teve de remar nas galeras, o senhor continuou pensando que tudo ia no melhor dos mundos?

– Trago ainda o meu primeiro sentimento – respondeu Pangloss –, pois afinal sou filósofo: não me convém desmentir-me, Leibnitz não podia estar errado, e, por outro lado, a harmonia preestabelecida é a coisa mais bela do mundo, assim como o pleno e a matéria sutil.

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E Pangloss dizia às vezes a Cândido:

– Todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, enfim, se o senhor não tivesse sido expulso de um belo castelo a grandes pontapés no traseiro pelo amor da senhorita Cunegundes, se não tivesse tido apanhado pela Inquisição, se não tivesse corrido a América a pé, se não tivesse dado um bom golpe de espada no barão, se não tivesse perdido todos os seus carneiros do bom país de Eldorado, não estaria aqui comendo cidras em conserva e pistaches,

– Muito bem dito – respondeu Cândido –, mas temos de cultivar nosso jardim.

Fonte: Voltaire, Cândido, Editora Abril, São Paulo, SP, Brasil, 2010.