3 de julho de 2024

A causalidade vertical e o colapso do vetor de estado


Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido. (1 Coríntios 13:11-12)

O “enigma quântico” que Wolfgang Smith afirma desvendar é o colapso do vetor de estado. Para tanto, Smith parte da ideia de que a manifestação de um objeto é apenas uma parte do que ele plenamente é. A percepção, portanto, é incapaz de “esgotar” o objeto. Se o objeto fosse capaz de manifestar-se plenamente, então não seria um objeto corpóreo, da mesma forma que um círculo sem o traço que o delimita deixaria de ser um círculo. A redução do intelecto e sua intuição (ou “abstração”, como provavelmente diriam os escolásticos) ao raciocínio é um dos vilões da falta de cosmovisão da física matemática moderna. O raciocínio analisa, i.e., dissocia, enquanto o intelecto capta de um só golpe aquilo que o próprio Deus dispôs como já unido. Afinal, não foi o próprio Tomás de Aquino quem disse que o raciocínio é algo defeituoso em nós?

Não é a primeira vez que Smith diferencia o que é corpóreo do que é físico. Já o vimos fazer isso com a proverbial maçã: a maçã corpórea e a maçã molecular. A maçã é o objeto corpóreo X, enquanto a maçã molecular é o objeto físico associado SX. Ambas não são a mesma coisa. Aliás, os dois são tão diferentes a ponto de, a rigor, ninguém nunca jamais ter visto uma maçã molecular pela frente. A maçã molecular depende do ato de presentificação, ou seja, X é a presentificação de SX. Ambos, X e SX, ocupam a mesma região do espaço, isto é, têm como que uma “continuidade geométrica” entre si. Isso é importante salientar porque o que o físico quer, afinal, não é tanto a maçã molecular, mas a apreensão intelectual da maçã. Ele quer, antes de mais nada, por meio de uma série de medidas e leituras contingentes da maçã molecular (SX), entender o que é necessário da maçã corpórea (X). O físico aplica um modelo ao objeto físico para, a partir daí, extrair/medir/ler o que quer que o modelo lhe diga. O modelo mecanicista, que triunfou a partir sobretudo de Newton, foi usado para desvelar praticamente todos os fenômenos físicos: acústica, termodinâmica, óptica, química etc. Mas o surgimento do eletromagnetismo representou uma novidade: por mais que o próprio Maxwell tenha feito uso do velho conceito de “éter”, o modelo então vigente mostrou-se incapaz de explicar os fenômenos eletromagnéticos, e uma estrutura puramente matemática suplantou o mecanicismo newtoniano. No entanto, o emprego de representações ingênuas permanece de certa forma no eletromagnetismo: os vetores são indício disso. No caso da física quântica, o emprego de “partículas”. Tudo isso, defende Smith, deveria ser definitivamente abandonado em favor de uma postura rigorosamente simbolista. As “partículas” são a tentativa pictórica de tampar o fosso ontológico entre os domínios físico e corpóreo.

No caso específico da física quântica, Smith se pergunta se haveria um subconjunto especificável de observáveis, ou seja, se haveria alguns observáveis que poderiam ser medidos e, a partir daí, determinar os valores de todos os demais observáveis. Não é por acaso: os sistemas “macroscópicos” funcionam assim. Por exemplo, se medimos alguns observáveis, digamos, de um carro ou de um edifício, pode-se determinar com segurança o comportamento dos demais observáveis, dentro de um sistema física específico. No entanto, no que tange à teoria quântica, a redução do sistema a seus observáveis é algo que sabemos não ser possível. O caso do elétron é típico: dizemos que o elétron tem tal posição e tal momento, quando na verdade estes atributos clássicos nem mesmo existem. É por isso que dizemos que o elétron ora parece uma partícula, ora uma onda, ora “salta”, quando na verdade seus atributos são logicamente incompatíveis. Mas será que as leis da lógica não valem para o “mundo microscópico”? Sem querer fazer trocadilho, é lógico que valem. O que não vale são as premissas metafísicas adotadas pela física moderna que, além de não se aplicarem à física quântica, tampouco se aplicam à física “mecânica”.

O elétron não tem posição nem momento. O que ele “tem”, tecnicamente falando, é um vetor de estado, ou seja, um valor médio e o desvio padrão em relação ao valor esperado do observável. O vetor de estado não determina medições individuais, mas é uma mera distribuição estatística dos resultados possíveis. Mas o que há de “incerto” nisso? Por acaso é “incerto” o valor esperado ao lançarmos uma moeda, que pode dar cara ou coroa? Ocorre que o estado inicial de um sistema isolado determina os estados futuros desse sistema, mas não seus observáveis. Por um lado, as equações de Schrödinger garantem o determinismo, enquanto o princípio de Heisenberg garante a indeterminação. Sim, é verdade que uma medição num sistema físico causará uma destruição do determinismo e, portanto, o colapso do vetor de estado (quando o vetor se reduz a um único autovetor do observável i.e. uma probabilidade que saltou agora para o valor 1, o que indica certeza, muito embora os demais observáveis permaneçam uma síntese de possibilidades). Mas, enquanto perdura, é um sistema que se comporta de modo determinista. Novamente, sim, o determinismo quântico está longe de ser um determinismo clássico. Mas e daí? O que se perdeu no mundo quântico não foi o determinismo, mas o reducionismo, ou seja, a ideia tola de que o mundo corpóreo (a maçã) é apenas um mundo físico (a maçã molecular). Em outras palavras, os sistemas físicos microscópicos constituem um tipo de potência aristotélica com relação ao mundo real.

Em suma, o vetor de estado é um espectro de possibilidades (potência), que por sua vez colapsa em função da medição (ato). A passagem da potência ao ato é a passagem da potência para o mundo real corpóreo. Portanto – e isto é importantíssimo – para Smith não existe isso de “mundo físico microscópico” e “mundo corpóreo macroscópico”, mas “mundo potencial microscópico” e “mundo atual macroscópico”. Em outras palavras, SX existe como potência e X existe como ato (ou como diria Heisenberg, “coisa ou fato”).

As investigações no campo quântico levantam a suspeita de que há uma espécie de “terceiro substrato ontológico” para além do mundo corpóreo e o mundo físico microscópico. Um nível ontológico que contenha a “totalidade indivisa”, nas palavras de Smith. Veja-se, por exemplo, o teorema do entrelaçamento de Bell, no qual uma observação efetuada no fóton A afeta o fóton B instantaneamente (ora, cadê a “velocidade da luz” de Einstein?). Tais partículas não parecem ser partes que existam separadamente. Smith entende que um objeto físico nada mais é que uma manifestação particular de uma realidade total. Claro, o objeto existe no espaço e no tempo e exibe certa identidade fenomênica. No entanto, em si mesmo ele excede os limites dessa aparente identidade, mergulhado numa potência ainda indiferenciada sobre a qual nada de específico pode ser dito. A predileção de Smith pelo modelo hilemórfico é óbvia.

Há, no entanto, uma adaptação da teoria clássica que procura englobar, ou seja, tornar determinística, a mecânica quântica. Trata-se da teoria de variáveis ocultas, exposta por De Broglie e David Bohm. Será então que a questão do universo ser determinístico ou indeterminístico é meramente de gosto? Smith entende que a questão não deve ser resolvida no âmbito técnico-científico, mas metafísico: não é necessário que ambas as posições sejam mutuamente excludente; a indeterminação é como que “inserida” dentro da determinação, convivendo com ela (lado Yin da moeda).

No entanto, o hilomorfismo em si, ou seja, apenas a forma e a matéria, não podem explicar tudo. Há ainda duas outras causas, a final e a eficiente, que devem ser levadas em conta. Não sem surpresa, Smith repete o velho artifício de aglutinar as quatro causas em causa material e formal (vimos tal expediente em Émile Boutroux, por exemplo), mas neste caso ele mantém a causa eficiente (como também o fazem os tomistas, que ensinam repetidas vezes que é necessário um agente em ato para provocar em um ente a passagem da potência ao ato), aludindo ao nome de natura naturans (o “naturante”, digamos) em contraste ao natura naturata (o “naturado”, digamos). O naturado, portanto, pressupõe o naturante; em outras palavras, o natural pressupõe o sobrenatural (o “doador de formas”). Nota-se aqui uma clara diferença entre a descontinuidade mecânica clássica e a descontinuidade quântica: na mecânica clássica, a descontinuidade (por exemplo, a consumação de um resultado no lançamento de um dado com probabilidades anteriormente calculadas) dá-se no tempo e, em verdade, não é propriamente uma descontinuidade; na mecânica quântica, a descontinuidade (por exemplo, no colapso do vetor de estado uma vez que se faça a medição de um observável) dá-se instantaneamente, e eis que aqui há uma descontinuidade real autêntica.

É no nível quântico que observamos uma ordem de causalidade diferente da causalidade temporal que verificamos em objetos compostos de grande quantidade de partículas. É uma causalidade que não é deste mundo. Trata-se de uma causalidade primária que atua em cada aqui e agora, sem exceção. Daí se depreende que os objetos corpóreos não são realmente compostos de “partículas subatômicas”, mas, pelo contrário, o fato mesmo de serem corpóreos implica que já não há nada “subatômico” ali. As “partículas subatômicas” são partes genuínas de um todo ontológico. Segundo Smith, “pode-se dizer que toda medição de um sistema quântico constitui um ato cosmogênico que ‘participa’ do Ato único da criação”. Trata-se da causalidade vertical.

Fonte: Wolfgang Smith, O enigma quântico, Vide Editorial, Campinas, SP, Brasil, 2019.