Dualismo vs. materialismo
Embora o materialismo (mais precisamente,
“fisicalismo”) seja atualmente a filosofia dominante entre cientistas, foi
apenas a partir da década de 1960 que isso efetivamente aconteceu. Até então, o
materialismo era uma filosofia marginal. No entanto, a despeito de qual
doutrina seja a hegemônica, filosofia não é uma questão de “estar na moda”.
Hipóteses como a do cérebro em uma cuba e a
dos espíritos malignos são na verdade mais, e não menos, complicadas que
a crença em um mundo físico externo. Todas essas hipóteses dependem de partida
da ideia da existência do mundo do senso comum. É preciso, por exemplo, supor
que exista o mundo real para supor que o demônio está nos enganando. Pelo
princípio da navalha de Ockham, essa hipótese tem de ser rejeitada.
Há alguns aspectos em torno dos quais a
filosofia da mente se debruça: (1) os qualia, ou seja, as sensações das
coisas (visual, cheiro, gosto etc.), que exibem claramente um aspecto de privacidade,
algo que os aparta da realidade; os objetos e suas propriedades físicos parecem
ser “públicos”, enquanto os qualia denotam privacidade; (2) os pensamentos
racionais que formamos a respeito da imagem coerente e unificada do mundo,
(3) a intencionalidade, ou seja, o fato de tais pensamentos serem
dirigidos a algo ou sobre algo, (4) a consciência, isto é, a percepção
unificada. Tudo isso compõe o domínio do sujeito do pensamento; em
outras palavras, do eu.
Ora, o hiato entre o que a mente parece ser
e o que a ciência diz que ela é constitui o famoso problema mente-corpo.
A pergunta fundamental aqui é: afinal de contas, a aparência corresponde à
realidade?
Da parte do dualismo, Feser enumera algumas
características interessantes: (a) a mente é indivisível, ou seja, não
pode decomposta em partes como a matéria (os casos de TPM são meras
esquisitices, carência de coordenação ou mau funcionamento geral), (b) a mente
é imortal porque, precisamente pelo fato de ser simples e não poder ser
decomposta, não pode morrer, (c) a mente é concebível, ou seja, se a
mente fosse idêntica ao cérebro então ela seria inconcebível não apenas
fisicamente, mas metafisicamente (não envolveria contradição, como em 2+2=5);
no entanto, com a mente é pelo menos metafisicamente concebível, então a mente
não pode ser idêntica ao cérebro (ou seja, a mente pode até não existir, mas se
existisse não poderia ser idêntica ao cérebro, assim como 2+2 pode até existir,
mas não pode ser idêntico a 5).
Ainda sobre o dualismo, há o “problema da
interação”: como mente e cérebro interagem? Uma explicação é o ocasionalismo,
ou seja, Deus é o elo entre ambos. Outra é o paralelismo, isto é, mente
e cérebro são construídos de tal forma que os eventos que ocorrem em um são
sempre exatamente apropriados para os eventos que ocorrem no outro. Há também o
epifenomenalismo, que é a ideia de que os eventos no cérebro e no corpo
produzem eventos na mente, mas não vice-versa: suas ações são apenas processos
inconscientes e puramente materiais do cérebro, constituindo assim uma espécie
de “meio-dualismo”; ora, isso não faz sentido porque, se a mante não influencia
o corpo, então como o corpo (no caso, especificamente a língua) pode falar
sobre a mente?
Da parte do materialismo/fisicalismo, é
compreensível que ele exiba tanta plausibilidade: a neurociência, a biologia
moderna, a teoria da relatividade e o sucesso da ciência moderna em geral lhe
dão grande respaldo. As descobertas no âmbito da causalidade física e das
relações causais entre mente e corpo são inegáveis e efetivamente espantosas.
Mas há problemas, como, por exemplo, explicar em termos materialistas os
artefatos culturais.
Esses problemas que afetam o fisicalismo
levaram à noção de superveniência (algo como “subsequência”): o metal é
superveniente (ou seja, se segue) ao material, no sentido de que tudo o que
acontece no plano das mesas, rochas, mentes etc. acontece porque algo aconteceu
no nível das partículas subatômicas fundamentais. A noção de naturalismo
contém o mesmo conceito de superveniência, apenas acrescentando a ideia de que
não somente as partículas subatômicas, mas os fenômenos naturais em geral,
constituem a realidade.
Uma das teorias materialistas mais antigas
é o behaviorismo, isto é, a ideia de que os comportamentos (outputs) são
produto de estímulos (inputs) do meio circundante. Sentir medo, portanto, seria
apenas uma tendência a tremer e/ou correr na presença de animais selvagens, por
exemplo. Mas é óbvio que essa explicação é fraca. Veja, por exemplo, o caso de
eu ver que está chovendo lá fora e, por conseguinte, vestir uma capa de chuva. É
necessária uma intermediação nesse comportamento: vou vestir uma capa de chuva
porque tenho o desejo de não me molhar? E tenho desejo de não me molhar porque
tenho medo de pegar um resfriado? Desejo, medo, tudo isso são estados mentais.
Ademais, cadê a subjetividade no behaviorismo? Um ator que se comporta como se
estivesse sentindo dor a está realmente sentindo? E, ao contrário, um ator que
esteja sofrendo dores terríveis pode atuar sem demonstrar as estar sentindo. E,
por fim, a causação está completamente comprometida no behaviorismo. Ora, se o
estado mental é idêntico ao comportamento, então vestir minha capa de chuva não
pode ser um efeito cuja causa é ver a chiva lá fora; afinal, vestir a capa de
chuva é a própria crença de que chove lá fora. Novamente, não há elemento
intermediário entre a chuva lá fora e vestir a capa de chuva.
Por estas dificuldades os materialistas se
afastaram do behaviorismo e, nos anos 1950 e 1960, passaram a adotar a teoria
da identidade. Chama-se assim porque acredita-se que a mente é idêntica ao
cérebro e ao sistema nervoso. Aqui não há propriamente uma causalidade em nível
mental, ou seja, o pensamento não é causado pelos disparos dos
neurônios, mas o pensamento é o disparo dos neurônios. Esta teoria faz
parte da chamada psicologia popular porque opera em um nível simples de
reações causais, não lógicas. Em outras palavras, o grau de generalização e
simplificação da teoria permite que se acredite, por exemplo, que o desejo por
uma pizza causa a ingestão da pizza, que a sensação de dor causa
os gemidos e queixas, que o perigo próximo causa a fuga etc. Novamente,
não há intermediação lógico-mental, mas mera causação neuro-cerebral. A teoria
da identidade é fraca porque é evidente que há uma série de relações lógicas
entre os diversos disparos neuronais que, por definição, não se encontram neles
mesmos. “Neurônios e secreções hormonais têm relações causais entre si;
mas relações lógicas [...] não são causais. Não parece haver nenhuma
forma de combinar conjuntos de estados mentais logicamente inter-relacionados
com conjuntos de estados cerebrais inter-relacionados apenas de modo causal, e,
portanto, não há como reduzir o mental ao físico”. Por fim, a teoria da
identidade mente-cérebro obviamente não pode explicar como seres divinos,
anjos, extraterrestres e androides com cérebros artificiais possa ter mentes:
ora, se o cérebro é a mente, então como podem eles, que não têm cérebro, ter
mentes?
Essa dificuldade levou muitos materialistas
a adotarem o funcionalismo. Segundo essa teoria, as coisas não são
descritas pelas coisas que são feitas, mas pelas funções que desempenham.
Assim, qualquer material pode servir como mente, desde que apresente a
estrutura certa para desempenhar as funções necessárias. A ideia é que o
“cérebro” (um robô, um ET, um cérebro, um computador) é um hardware e a mente é
um software.
A despeito de qual teoria materialista se
adote, a questão de fundo é que os materialistas precisam solucionar não as
questões técnico-científicas, mas as questões metafísicas acerca da mente que
circulam na filosofia há pelo menos 2500 anos. Estas questões passam pelo
tratamento adequado dos quatro aspectos que enumeramos acima. Vejamos um por
um.
Qualia
A teoria do conhecimento, de Franck
Jackson, afirma que se aprende algo essencialmente distinto quando nos damos
conta, por exemplo, da vermelhidão de um objeto. Não se trata das
características físicas do objeto e de sua cor, mas uma percepção adicional não
redutível ao mundo físico. A subjetividade parece, assim, ser o núcleo
essencial para o conceito de qualia, e a característica que é mais
plausivelmente inexplicável em termos físicos.
A inefabilidade dos qualia é um
aspecto que se deduz da subjetividade. Usamos palavras e gestos para falar de
fenômenos objetivos e públicos, mas comunicar pensamentos sobre fenômenos
privados e subjetivos é difícil, senão impossível. Outro aspecto é a intrinsicalidade
dos qualia, ou seja, eles não são analisáveis nas relações com outras coisas,
ou seja, com fenômenos objetivos, em terceira pessoa. Por exemplo, não há uma
relação entre a vermelhidão e o disparo de um determinado conjunto de
neurônios.
Curiosamente, a maioria dos filósofos que
critica o materialismo mainstream não é composta por dualistas de substância,
ou seja, por dualistas do tipo cartesiano que acreditam que mente e corpo são
duas substâncias fundamentalmente distintas. A maioria adota o materialismo
de propriedade, ou seja, a substância é a mesma, apenas suas propriedades
são distintas. Diz-se que os qualia são propriedades não-físicas inerentes à
substância física, como epifenômenos (versamos sobre eles acima). Isso é um
absurdo: se as minhas crenças são estados físicos do meu cérebro e os qualia
não podem ter nenhum efeito sobre nenhuma coisa física, então como eu posso
dizer que creio ter qualia? É bizarro: existem qualia não-físicos, mas segundo
os dualistas de propriedade nunca posso vir a saber que esses qualia existem;
então por que estou pensando e escrevendo sobre eles agora mesmo? Afinal, que
história é essa de propriedades não-físicas serem inerentes a uma substância
física?
Consciência
A estratégia dos materialistas para
explicar a consciência é reduzir os estados qualitativos (qualia) a estados
intencionais (intencionalidade) para, em seguida, reduzir esses estados
intencionais a estados materiais cerebrais.
Os estados intencionais são aqueles que
representam algo além deles memos. Os qualia, por um lado, não parecem
apresentar intencionalidade. Uma dor de dente não “representa” nada, apenas
dói. A partir deste entendimento, Daniel Dennett propõe uma visão eliminativista:
não há qualia a serem explicados em função da própria natureza complicada
deles. Mas trata-se de uma bobagem: para que haja a comunicação intersubjetiva
é necessária que haja algo subjetivo, ou seja, os qualia.
Esta dificuldade dá abertura para uma visão
representacionalista: os qualia são, na verdade, propriedades
representacionais (ou seja, intencionais) de experiências conscientes. No
entanto, nem todo estado representacional é consciente. Minha crença de que
2+2=4 existe mesmo quando não estou consciente dela. Portanto, a consciência
não se explica pelos qualia: um estado é consciente quando há outro estado de
ordem superior que o representa.
Aqui cabe introduzir uma terceira visão da
filosofia da mente que, aparentemente, não é nem materialista, nem dualista.
Trata-se do monismo neutro, normalmente associada a Bertrand Russell. Em
termos gerais, ensina o monismo que a estrutura causal que “encarna” o mundo
material é desconhecida: não sabemos qual é a natureza interna da relação
causa-efeito do mundo. No entanto, Russell entende que a percepção e a pesquisa
científica não são as únicas fontes de conhecimento. Há também a introspecção que,
segundo Russell, nos garante que o mundo mental é o que conhecemos mais direta
e intimamente e o mundo físico é aquilo que compreendemos apenas em termos de
sua estrutura causal. Por isso, para entendermos o cérebro-mente, basta nos
concentrarmos nos qualia que estamos experimentando agora: a brancura, a
escuridão, as cores, o cheiro, o calor, as sensações. Os qualia são o único
tipo de coisa (“monismo”), e não são nem mentais, nem não-mentais (“neutro”).
Nós é que lhe atribuímos mentalidade quando os escaramos sob um ponto de vista
neurocientífico ou materialidade quando os encaramos sob um ponto de vista causal
(rochas, árvores, galáxias etc.). É claro que tudo isso é um tipo de teoria de
identidade, um idealismo do tipo pampsiquista. David Chalmers chegou a propor
que no nível subatômico estão presentes as “protoqualia”, que se agregam em
protomentes e protoexperiências, que, por conseguinte, dão origem às mentes
complexas como as nossas. Mas como protoqualia se agregam? Como se originam? A
teoria é evidentemente bizarra.
Para explicar a consciência, Feser invoca,
sem surpresa, ao eu. É você que está ciente dos qualia, não uma
miríade de eventos neurais. Aqui, claro, apresenta-se o problema da ligação,
isto é, o problema de explicar como processos cerebrais discretos comporiam uma
experiência unificada e com sentido.
Pensamento
Feser entende pensamento como racionalidade.
A ser a causa de B é um tipo de relação impessoal de forças materiais
sem sentido: A ser um motivo para B é um tipo de relação pessoal que
envolve deliberação racional.
Uma das teorias que defende o pensamento
como uma computação análoga ao cálculo dos computadores digitais é conhecido
pela sigla CRTT (Computational-Representational Theory of Thought),
segundo a qual os elementos eletrônicos de um computador equivalem ao elementos
neuronais de um cérebro humano. O conteúdo dos pensamentos não tem nenhuma
influência causal sobre outros pensamentos. O fato de um pensamento ter o
conteúdo de que “Sócrates é homem” e de que “todos os homens são mortais” não
tem influência sobre a produção do pensamento “Sócrates é mortal”. A CRTT não
consegue explicar essa ligação, ou seja, não consegue explicar a racionalidade,
ou seja, não consegue explicar a própria capacidade racional que pretende
explicar. Afinal, quem realmente calcula não é a calculadora, mas o usuário da
calculadora. A calculadora não “sabe” o que faz, não tem “noção” das marcações
que exibe em seu display, mas é o usuário da calculadora quem realmente confere
sentido e racionalidade a tudo aquilo. A computação é um fenômeno relativo ao
observador: é ele, o observador, que pensa de acordo com as leis da lógica.
Intencionalidade
O que torna os fenômenos mentais
irredutíveis a fenômenos físicos é a intencionalidade.
John Searle postula que toda a “rede” de
estados mentais intencionais repousa sobre o que ele chama de background
de capacidades não-intencionais para interagir com o mundo que nos rodeia.
Outras teorias propõem relações causais
regulares. Mas como elas explica nossa capacidade de ter pensamentos sobre
coisas sem conexão causal aparenta (objetos inexistentes, objetos futuros,
eventos futuros etc.)? Mesmo que aceitemos que um estado mental particular
signifique isso e não aquilo, isso nem de longe explica por que
ele tem algum significado, qualquer que fosse. Ademais, por que escolhemos
determinados eventos como iniciais e finais em detrimento de uma miríade de
tantos outros? É óbvio que o status deles como inícios e fins é relativo a
determinados propósitos e interesses pessoais; nenhum apelo a cadeia causas
pode realmente explicar a intencionalidade.
Outra teoria é a teoria biossemântica
do significado, segundo a qual o significado é dado pela função biológica. A
despeito da fraqueza intrínseca da teoria, ela tampouco explica por que os
estados mentais têm algum significado, seja ele qual for. “Conquanto um coração
sirva para a função de bombear sangue, o coração não significa ou representa
coisa alguma. É apenas um músculo. Palavras, frases e figuras significam
coisas, mas músculos certamente não, não mais que pedras na vesícula ou unhas”.
Daniel Dennett propõe a decomposição
homuncular. A ideia é que a mente é composta de subsistemas que desempenham
várias funções mentais. Cada subsistema é um “homúnculo”. As funções podem ser
consideradas como compostas de funções ainda mais elementares. Cada um dos
homúnculos pode ser pensado como abrangendo homúnculos menores. Para Dennett a
ignorância de um homúnculo básico e a ignorância de uma máquina são a mesma.
Mas isso não é verdade: os homúnculos básicos têm inteligência extremamente
baixa, mas têm. A máquina é ignorante porque não tem absolutamente nenhuma
inteligência.
Feser refuta o materialismo da
intencionalidade em três vertentes (representação, conceito e raciocínio):
[D]e modo geral, o que torna algo uma representação material de X em oposição a uma representação material de uma representação material de um X não tem nada que ver com as propriedades físicas de uma representação material.
[...]
Dado que não há nada em uma representação material per se que pudesse torná-la uma representação determinada de X em vez de uma representação de uma representação de X, se o seu pensamento fosse inteiramente material, então não existiria nenhum fato objetivo com respeito a se seu pensamento representava a sua mãe ou uma representação de sua mãe. O seu pensamento é determinado; representações puramente materiais não o são; logo, o seu pensamento não é puramente material.
[...]
Os conceitos são inerentemente abstratos e universais, enquanto os fenômenos materiais são concretos e particulares. Por consequência, um conceito não pode ser identificado com nada concreto, particular ou material e, portanto, não pode ser identificado com nenhum símbolo físico no cérebro ou no sistema nervoso. [...] Há claramente uma noção de que o conceito ou a proposição está na mente, mas, se essas coisas estão na mente e ainda assim não podem estar no cérebro, parece que a mente não pode ser identificada com o cérebro, ou com nenhuma coisa material.
[...]
Quando fazemos juízos de tipo matemático ou lógico [raciocínio formal], nossos juízos têm uma forma determinada. [...] Mas, como argumentou James F. Ross, nenhum processo físico tem uma forma tão determinada quanto estes processos mentais. [...]
O dualista poderia responder que o objetivo não é explicar a intencionalidade, mas sim demonstrar que, seja lá o que a intencionalidade for, ela não é física. [...] A abordagem apropriada ao estudo da mente, na visão dualista, é a via metafísica, e não física, e via filosofia, não via ciência natural.
Fonte:
Edward Feser, Filosofia da mente, Edições Santo Tomás, Formosa, GO,
Brasil, 2019.