27 de junho de 2024

Filosofia da mente


Dualismo vs. materialismo

Embora o materialismo (mais precisamente, “fisicalismo”) seja atualmente a filosofia dominante entre cientistas, foi apenas a partir da década de 1960 que isso efetivamente aconteceu. Até então, o materialismo era uma filosofia marginal. No entanto, a despeito de qual doutrina seja a hegemônica, filosofia não é uma questão de “estar na moda”.

Hipóteses como a do cérebro em uma cuba e a dos espíritos malignos são na verdade mais, e não menos, complicadas que a crença em um mundo físico externo. Todas essas hipóteses dependem de partida da ideia da existência do mundo do senso comum. É preciso, por exemplo, supor que exista o mundo real para supor que o demônio está nos enganando. Pelo princípio da navalha de Ockham, essa hipótese tem de ser rejeitada.

Há alguns aspectos em torno dos quais a filosofia da mente se debruça: (1) os qualia, ou seja, as sensações das coisas (visual, cheiro, gosto etc.), que exibem claramente um aspecto de privacidade, algo que os aparta da realidade; os objetos e suas propriedades físicos parecem ser “públicos”, enquanto os qualia denotam privacidade; (2) os pensamentos racionais que formamos a respeito da imagem coerente e unificada do mundo, (3) a intencionalidade, ou seja, o fato de tais pensamentos serem dirigidos a algo ou sobre algo, (4) a consciência, isto é, a percepção unificada. Tudo isso compõe o domínio do sujeito do pensamento; em outras palavras, do eu.

Ora, o hiato entre o que a mente parece ser e o que a ciência diz que ela é constitui o famoso problema mente-corpo. A pergunta fundamental aqui é: afinal de contas, a aparência corresponde à realidade?

Da parte do dualismo, Feser enumera algumas características interessantes: (a) a mente é indivisível, ou seja, não pode decomposta em partes como a matéria (os casos de TPM são meras esquisitices, carência de coordenação ou mau funcionamento geral), (b) a mente é imortal porque, precisamente pelo fato de ser simples e não poder ser decomposta, não pode morrer, (c) a mente é concebível, ou seja, se a mente fosse idêntica ao cérebro então ela seria inconcebível não apenas fisicamente, mas metafisicamente (não envolveria contradição, como em 2+2=5); no entanto, com a mente é pelo menos metafisicamente concebível, então a mente não pode ser idêntica ao cérebro (ou seja, a mente pode até não existir, mas se existisse não poderia ser idêntica ao cérebro, assim como 2+2 pode até existir, mas não pode ser idêntico a 5).

Ainda sobre o dualismo, há o “problema da interação”: como mente e cérebro interagem? Uma explicação é o ocasionalismo, ou seja, Deus é o elo entre ambos. Outra é o paralelismo, isto é, mente e cérebro são construídos de tal forma que os eventos que ocorrem em um são sempre exatamente apropriados para os eventos que ocorrem no outro. Há também o epifenomenalismo, que é a ideia de que os eventos no cérebro e no corpo produzem eventos na mente, mas não vice-versa: suas ações são apenas processos inconscientes e puramente materiais do cérebro, constituindo assim uma espécie de “meio-dualismo”; ora, isso não faz sentido porque, se a mante não influencia o corpo, então como o corpo (no caso, especificamente a língua) pode falar sobre a mente?

Da parte do materialismo/fisicalismo, é compreensível que ele exiba tanta plausibilidade: a neurociência, a biologia moderna, a teoria da relatividade e o sucesso da ciência moderna em geral lhe dão grande respaldo. As descobertas no âmbito da causalidade física e das relações causais entre mente e corpo são inegáveis e efetivamente espantosas. Mas há problemas, como, por exemplo, explicar em termos materialistas os artefatos culturais.

Esses problemas que afetam o fisicalismo levaram à noção de superveniência (algo como “subsequência”): o metal é superveniente (ou seja, se segue) ao material, no sentido de que tudo o que acontece no plano das mesas, rochas, mentes etc. acontece porque algo aconteceu no nível das partículas subatômicas fundamentais. A noção de naturalismo contém o mesmo conceito de superveniência, apenas acrescentando a ideia de que não somente as partículas subatômicas, mas os fenômenos naturais em geral, constituem a realidade.

Uma das teorias materialistas mais antigas é o behaviorismo, isto é, a ideia de que os comportamentos (outputs) são produto de estímulos (inputs) do meio circundante. Sentir medo, portanto, seria apenas uma tendência a tremer e/ou correr na presença de animais selvagens, por exemplo. Mas é óbvio que essa explicação é fraca. Veja, por exemplo, o caso de eu ver que está chovendo lá fora e, por conseguinte, vestir uma capa de chuva. É necessária uma intermediação nesse comportamento: vou vestir uma capa de chuva porque tenho o desejo de não me molhar? E tenho desejo de não me molhar porque tenho medo de pegar um resfriado? Desejo, medo, tudo isso são estados mentais. Ademais, cadê a subjetividade no behaviorismo? Um ator que se comporta como se estivesse sentindo dor a está realmente sentindo? E, ao contrário, um ator que esteja sofrendo dores terríveis pode atuar sem demonstrar as estar sentindo. E, por fim, a causação está completamente comprometida no behaviorismo. Ora, se o estado mental é idêntico ao comportamento, então vestir minha capa de chuva não pode ser um efeito cuja causa é ver a chiva lá fora; afinal, vestir a capa de chuva é a própria crença de que chove lá fora. Novamente, não há elemento intermediário entre a chuva lá fora e vestir a capa de chuva.

Por estas dificuldades os materialistas se afastaram do behaviorismo e, nos anos 1950 e 1960, passaram a adotar a teoria da identidade. Chama-se assim porque acredita-se que a mente é idêntica ao cérebro e ao sistema nervoso. Aqui não há propriamente uma causalidade em nível mental, ou seja, o pensamento não é causado pelos disparos dos neurônios, mas o pensamento é o disparo dos neurônios. Esta teoria faz parte da chamada psicologia popular porque opera em um nível simples de reações causais, não lógicas. Em outras palavras, o grau de generalização e simplificação da teoria permite que se acredite, por exemplo, que o desejo por uma pizza causa a ingestão da pizza, que a sensação de dor causa os gemidos e queixas, que o perigo próximo causa a fuga etc. Novamente, não há intermediação lógico-mental, mas mera causação neuro-cerebral. A teoria da identidade é fraca porque é evidente que há uma série de relações lógicas entre os diversos disparos neuronais que, por definição, não se encontram neles mesmos. “Neurônios e secreções hormonais têm relações causais entre si; mas relações lógicas [...] não são causais. Não parece haver nenhuma forma de combinar conjuntos de estados mentais logicamente inter-relacionados com conjuntos de estados cerebrais inter-relacionados apenas de modo causal, e, portanto, não há como reduzir o mental ao físico”. Por fim, a teoria da identidade mente-cérebro obviamente não pode explicar como seres divinos, anjos, extraterrestres e androides com cérebros artificiais possa ter mentes: ora, se o cérebro é a mente, então como podem eles, que não têm cérebro, ter mentes?

Essa dificuldade levou muitos materialistas a adotarem o funcionalismo. Segundo essa teoria, as coisas não são descritas pelas coisas que são feitas, mas pelas funções que desempenham. Assim, qualquer material pode servir como mente, desde que apresente a estrutura certa para desempenhar as funções necessárias. A ideia é que o “cérebro” (um robô, um ET, um cérebro, um computador) é um hardware e a mente é um software.

A despeito de qual teoria materialista se adote, a questão de fundo é que os materialistas precisam solucionar não as questões técnico-científicas, mas as questões metafísicas acerca da mente que circulam na filosofia há pelo menos 2500 anos. Estas questões passam pelo tratamento adequado dos quatro aspectos que enumeramos acima. Vejamos um por um.

Qualia

A teoria do conhecimento, de Franck Jackson, afirma que se aprende algo essencialmente distinto quando nos damos conta, por exemplo, da vermelhidão de um objeto. Não se trata das características físicas do objeto e de sua cor, mas uma percepção adicional não redutível ao mundo físico. A subjetividade parece, assim, ser o núcleo essencial para o conceito de qualia, e a característica que é mais plausivelmente inexplicável em termos físicos.

A inefabilidade dos qualia é um aspecto que se deduz da subjetividade. Usamos palavras e gestos para falar de fenômenos objetivos e públicos, mas comunicar pensamentos sobre fenômenos privados e subjetivos é difícil, senão impossível. Outro aspecto é a intrinsicalidade dos qualia, ou seja, eles não são analisáveis nas relações com outras coisas, ou seja, com fenômenos objetivos, em terceira pessoa. Por exemplo, não há uma relação entre a vermelhidão e o disparo de um determinado conjunto de neurônios.

Curiosamente, a maioria dos filósofos que critica o materialismo mainstream não é composta por dualistas de substância, ou seja, por dualistas do tipo cartesiano que acreditam que mente e corpo são duas substâncias fundamentalmente distintas. A maioria adota o materialismo de propriedade, ou seja, a substância é a mesma, apenas suas propriedades são distintas. Diz-se que os qualia são propriedades não-físicas inerentes à substância física, como epifenômenos (versamos sobre eles acima). Isso é um absurdo: se as minhas crenças são estados físicos do meu cérebro e os qualia não podem ter nenhum efeito sobre nenhuma coisa física, então como eu posso dizer que creio ter qualia? É bizarro: existem qualia não-físicos, mas segundo os dualistas de propriedade nunca posso vir a saber que esses qualia existem; então por que estou pensando e escrevendo sobre eles agora mesmo? Afinal, que história é essa de propriedades não-físicas serem inerentes a uma substância física?

Consciência

A estratégia dos materialistas para explicar a consciência é reduzir os estados qualitativos (qualia) a estados intencionais (intencionalidade) para, em seguida, reduzir esses estados intencionais a estados materiais cerebrais.

Os estados intencionais são aqueles que representam algo além deles memos. Os qualia, por um lado, não parecem apresentar intencionalidade. Uma dor de dente não “representa” nada, apenas dói. A partir deste entendimento, Daniel Dennett propõe uma visão eliminativista: não há qualia a serem explicados em função da própria natureza complicada deles. Mas trata-se de uma bobagem: para que haja a comunicação intersubjetiva é necessária que haja algo subjetivo, ou seja, os qualia.

Esta dificuldade dá abertura para uma visão representacionalista: os qualia são, na verdade, propriedades representacionais (ou seja, intencionais) de experiências conscientes. No entanto, nem todo estado representacional é consciente. Minha crença de que 2+2=4 existe mesmo quando não estou consciente dela. Portanto, a consciência não se explica pelos qualia: um estado é consciente quando há outro estado de ordem superior que o representa.

Aqui cabe introduzir uma terceira visão da filosofia da mente que, aparentemente, não é nem materialista, nem dualista. Trata-se do monismo neutro, normalmente associada a Bertrand Russell. Em termos gerais, ensina o monismo que a estrutura causal que “encarna” o mundo material é desconhecida: não sabemos qual é a natureza interna da relação causa-efeito do mundo. No entanto, Russell entende que a percepção e a pesquisa científica não são as únicas fontes de conhecimento. Há também a introspecção que, segundo Russell, nos garante que o mundo mental é o que conhecemos mais direta e intimamente e o mundo físico é aquilo que compreendemos apenas em termos de sua estrutura causal. Por isso, para entendermos o cérebro-mente, basta nos concentrarmos nos qualia que estamos experimentando agora: a brancura, a escuridão, as cores, o cheiro, o calor, as sensações. Os qualia são o único tipo de coisa (“monismo”), e não são nem mentais, nem não-mentais (“neutro”). Nós é que lhe atribuímos mentalidade quando os escaramos sob um ponto de vista neurocientífico ou materialidade quando os encaramos sob um ponto de vista causal (rochas, árvores, galáxias etc.). É claro que tudo isso é um tipo de teoria de identidade, um idealismo do tipo pampsiquista. David Chalmers chegou a propor que no nível subatômico estão presentes as “protoqualia”, que se agregam em protomentes e protoexperiências, que, por conseguinte, dão origem às mentes complexas como as nossas. Mas como protoqualia se agregam? Como se originam? A teoria é evidentemente bizarra.

Para explicar a consciência, Feser invoca, sem surpresa, ao eu. É você que está ciente dos qualia, não uma miríade de eventos neurais. Aqui, claro, apresenta-se o problema da ligação, isto é, o problema de explicar como processos cerebrais discretos comporiam uma experiência unificada e com sentido.

Pensamento

Feser entende pensamento como racionalidade. A ser a causa de B é um tipo de relação impessoal de forças materiais sem sentido: A ser um motivo para B é um tipo de relação pessoal que envolve deliberação racional.

Uma das teorias que defende o pensamento como uma computação análoga ao cálculo dos computadores digitais é conhecido pela sigla CRTT (Computational-Representational Theory of Thought), segundo a qual os elementos eletrônicos de um computador equivalem ao elementos neuronais de um cérebro humano. O conteúdo dos pensamentos não tem nenhuma influência causal sobre outros pensamentos. O fato de um pensamento ter o conteúdo de que “Sócrates é homem” e de que “todos os homens são mortais” não tem influência sobre a produção do pensamento “Sócrates é mortal”. A CRTT não consegue explicar essa ligação, ou seja, não consegue explicar a racionalidade, ou seja, não consegue explicar a própria capacidade racional que pretende explicar. Afinal, quem realmente calcula não é a calculadora, mas o usuário da calculadora. A calculadora não “sabe” o que faz, não tem “noção” das marcações que exibe em seu display, mas é o usuário da calculadora quem realmente confere sentido e racionalidade a tudo aquilo. A computação é um fenômeno relativo ao observador: é ele, o observador, que pensa de acordo com as leis da lógica.

Intencionalidade

O que torna os fenômenos mentais irredutíveis a fenômenos físicos é a intencionalidade.

John Searle postula que toda a “rede” de estados mentais intencionais repousa sobre o que ele chama de background de capacidades não-intencionais para interagir com o mundo que nos rodeia.

Outras teorias propõem relações causais regulares. Mas como elas explica nossa capacidade de ter pensamentos sobre coisas sem conexão causal aparenta (objetos inexistentes, objetos futuros, eventos futuros etc.)? Mesmo que aceitemos que um estado mental particular signifique isso e não aquilo, isso nem de longe explica por que ele tem algum significado, qualquer que fosse. Ademais, por que escolhemos determinados eventos como iniciais e finais em detrimento de uma miríade de tantos outros? É óbvio que o status deles como inícios e fins é relativo a determinados propósitos e interesses pessoais; nenhum apelo a cadeia causas pode realmente explicar a intencionalidade.

Outra teoria é a teoria biossemântica do significado, segundo a qual o significado é dado pela função biológica. A despeito da fraqueza intrínseca da teoria, ela tampouco explica por que os estados mentais têm algum significado, seja ele qual for. “Conquanto um coração sirva para a função de bombear sangue, o coração não significa ou representa coisa alguma. É apenas um músculo. Palavras, frases e figuras significam coisas, mas músculos certamente não, não mais que pedras na vesícula ou unhas”.

Daniel Dennett propõe a decomposição homuncular. A ideia é que a mente é composta de subsistemas que desempenham várias funções mentais. Cada subsistema é um “homúnculo”. As funções podem ser consideradas como compostas de funções ainda mais elementares. Cada um dos homúnculos pode ser pensado como abrangendo homúnculos menores. Para Dennett a ignorância de um homúnculo básico e a ignorância de uma máquina são a mesma. Mas isso não é verdade: os homúnculos básicos têm inteligência extremamente baixa, mas têm. A máquina é ignorante porque não tem absolutamente nenhuma inteligência.

Feser refuta o materialismo da intencionalidade em três vertentes (representação, conceito e raciocínio):

[D]e modo geral, o que torna algo uma representação material de X em oposição a uma representação material de uma representação material de um X não tem nada que ver com as propriedades físicas de uma representação material.

[...]

Dado que não há nada em uma representação material per se que pudesse torná-la uma representação determinada de X em vez de uma representação de uma representação de X, se o seu pensamento fosse inteiramente material, então não existiria nenhum fato objetivo com respeito a se seu pensamento representava a sua mãe ou uma representação de sua mãe. O seu pensamento é determinado; representações puramente materiais não o são; logo, o seu pensamento não é puramente material.

[...]

Os conceitos são inerentemente abstratos e universais, enquanto os fenômenos materiais são concretos e particulares. Por consequência, um conceito não pode ser identificado com nada concreto, particular ou material e, portanto, não pode ser identificado com nenhum símbolo físico no cérebro ou no sistema nervoso. [...] Há claramente uma noção de que o conceito ou a proposição está na mente, mas, se essas coisas estão na mente e ainda assim não podem estar no cérebro, parece que a mente não pode ser identificada com o cérebro, ou com nenhuma coisa material.

[...]

Quando fazemos juízos de tipo matemático ou lógico [raciocínio formal], nossos juízos têm uma forma determinada. [...] Mas, como argumentou James F. Ross, nenhum processo físico tem uma forma tão determinada quanto estes processos mentais. [...]

O dualista poderia responder que o objetivo não é explicar a intencionalidade, mas sim demonstrar que, seja lá o que a intencionalidade for, ela não é física. [...] A abordagem apropriada ao estudo da mente, na visão dualista, é a via metafísica, e não física, e via filosofia, não via ciência natural.

Fonte: Edward Feser, Filosofia da mente, Edições Santo Tomás, Formosa, GO, Brasil, 2019.