Ciência é conhecimento perfeito, ou seja,
conhecimento do necessário. O que é contingente não é passível de conhecimento.
Portanto, conhecer algo é conhecer acima de tudo sua essência (ou
“quididade”) e, por extensão, suas partes e suas propriedades, seus efeitos e
suas causas. Segundo a filosofia aristotélico-tomista, somente as substâncias
(as coisas que subsistem por si, como a pedra, a grama, a árvore, o tigre, o
homem) têm essência simpliciter (absolutamente; pura e simplesmente),
enquanto os acidentes (o tamanho, a cor, as formas artificiais ou artísticas)
têm essência secundum quid (segundo algo; sob certo aspecto). Somente se
considerarmos os acidentes como se fossem substâncias é que poderíamos dizer
que têm essência.
Quanto às substâncias, para conhecermos
suas essências partimos do gênero máximo até alcançarmos sua determinação mais
ínfima. Homem, por exemplo, é a substância vivente sensível racional,
que por conveniência reduzimos a animal racional. A ciência, no caso das
substâncias, considerando a diferença específica da espécie (no caso, racional).
Quanto aos acidentes, não há de outra: por
serem desprovidos de essência, temos de promovê-los a substâncias com a
condição, claro, de que em sua definição haja uma referência às substâncias de
que são acidentes. No caso das formas artísticas, a dificuldade é ainda maior
porque elas não estão “penduradas” em uma substância natural, mas na mente do
artista. Uma bicicleta, por exemplo, não se subordina apenas a uma substância,
mas a um enorme conjunto de substâncias em que se plasma com forma artificial;
portanto, a ciência da bicicleta subordina-se a várias ciências paralelas cujo
ser encontra-se na mente do projetista da bicicleta.
Como é sabido (cf. Todos odeiam Tomás), as artes se subdividem em servis, liberais e prudência. Mas a arte liberal
se subdivide em Lógica (e suas partes: Dialética, Retórica e Poética)
e em Arte Significativa (e suas partes: Arte Linguística (Linguagem e
Gramática) e Poética. Como é possível a Poética fazer parte tanto da
Lógica quanto da Arte Significativa? Simples: a Poética faz parte da Lógica
enquanto fim último e faz parte das Artes Significativas enquanto fim médio.
A Lógica busca o que é e o que não é, a Dialética leva à Lógica pelo verossímil e pelo inverossímil, a Retórica leva à Dialética pelo bom e pelo mau, a Poética leva à Retórica pelo belo e pelo feio. Como em todas as coisas se acha o ser, a verdade, a bondade e a beleza, todas estas artes tratam universalmente de todas as coisas. ‘Ambas’ – a Retórica e a Dialética, diz Aristóteles, mas vale também para a Lógica e para a Poética – ‘tratam daquelas questões que permitem ter conhecimento de certo modo comum a todos e não pertencem a nenhuma ciência determinada’.
Versamos sobre a essência da Poética.
Listemos algumas de suas propriedades principais:
- Comunicabilidade mimético-significante. Enquanto as palavras comunicam concepções, a Poética comunica, ao
imitar ações, paixões e caracteres, um análogo de concepções que quer
significar.
- Deleitabilidade séria. Faz o destinatário propender ao bem e à verdade mediante a beleza
intelectual imanente a uma beleza material. A seriedade não está na compaixão (riso,
choro ou o que seja), mas na propensão.
- Raptância. O
destinatário é arroubado e, a partir daí, retirado do mundo real a um mundo
verossímil inventado.
- Indutibilidade de sentimento catártica. Induz um sentimento ou estimação no destinatário para purgar-lhe
precisamente desse sentimento.
- Verossimilitude mimético-significante. O mundo à parte que a Poética cria tem de guardar uma ascendência causal
dela para a Retórica e desta à Dialética e desta à Lógica.
- Ser análoga à virtude. Característica central à propensão ao bem.
Eis pois como Carlos Nougué define a Poética
(ou “Arte do Belo”, como prefere):
A Poética é a arte significativa de plasmar formas mimético-significantes e belas sobre determinada matéria, para fazer, mediante indução de sentimento e purgação das emoções, que o homem propenda ao verdadeiro e ao bom, e se afaste do falso e do mau. (p. 194)
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Para o grego em geral, e particularmente para Platão, a Idéa não era o pensamento, e sim, ao contrário, o objeto do pensamento, o objeto para o qual se dirige o pensamento. Note-se ademais que idéa e eidos provêm de ideîn, que significa “ver”, e indicam o objeto da visão. Por isso é que antes de Patão idéa e eidos se empregavam especialmente para expressar a forma visível das coisas, a figura ou configuração externa das coisas, o que se apreende com os olhos.
A partir de Platão, todavia, passam a empregar-se para exprimir a forma, digamos, íntima das coisas, sua essência. Em decorrência da “Segunda navegação” platônica, isto é, da descoberta do mundo inteligível, a forma alça-se do plano físico ao transfísico. [...] Na antiga linguagem dos homens do mar, chamava-se “segunda navegação” àquela que se dava quando, pela cessação do vento, se recorria aos remos. [...] A “Primeira navegação” perdera a rota, sem conseguir explicar o sensível pelo próprio sensível. Já a “Segunda navegação” encontra a rota da verdade, que conduz à descoberta do suprassensível, do inteligível.
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A beleza, para Platão, tem algo mais que todas as outras Formas inteligíveis: é a única que pode ser vista também pelos olhos do corpo, além de sê-lo pelos “olhos” da alma.
Fonte:
Carlos Nougué, Da Arte do Belo, Edições Santo Tomás, Formosa, Brasil,
2021.