Jacques Maritain, mais especificamente sua
obra The Degrees of Knowledge (que será alvo de estudo nosso em breve),
é a influência capital no pensamento do filósofo venezuelano Carlos Casanova.
Usando diversos livros de filosofia da ciência como pontos de apoio para tecer
seus comentários, torna-se um tanto difícil detectar precisamente seu
pensamento acerca dessa disciplina.
De toda forma, o que procura fazer Casanova
é superar o entendimento nominalista e mecanicista prevalente na filosofia da
ciência, a qual considera falha, e estabelecer bases mais lúcidas e
convincentes. A partir de Descartes, as normas ou “leis” que regem a natureza
deixam de ser causas formais dos entes, que perdem, portanto, sua natureza. As
coisas se reduzem ao que Casanova chama de “monturos” (i.e. montes de esterco)
de res extensa. Mas então onde foram parar as leis da natureza? Para
Newton, na própria res extensa; para Hume, as leis são hábitos da mente;
para Kant, as leis são um acasalamento entre as categorias/formas e nossas
experiências. Casanova, com Maritain em punhos, discorda de todos eles.
Veja o caso da nutrição, por exemplo. Na
visão nominalista/mecanicista contemporânea, a nutrição não passa de mero
intercâmbio de interações químicas (é o que se pode vislumbrar neste artigo,
por exemplo). Mas por que ocorre a enteléquia, isto é, por que ocorre a passagem da
potência para o ato no caso da nutrição? A resposta não se encontra na própria
dinâmica da nutrição. A enteléquia não é uma “força” que se soma às outras
“forças” da nutrição, mas ela é precisamente o que dá unidade às partes, é o
que faz com que a biologia não seja mera física matemática.
Similarmente, nem mesmo a física se resume
à física matemática. Aliás, nem mesmo a matemática se reduz à matemática (!).
Sim, porque alguns dos axiomas sobre os quais versa a matemática não podem ser
provados por ela mesma. Veja o caso do princípio da não-contradição, por
exemplo. É aqui que entra a metafísica. É ela, a metafísica, que detecta e
defende os primeiros princípios.
Entes de razão e entes naturais
Maritain, como bom tomista, ordena os entes
da seguinte forma:
- Entes de razão. São os entes que têm existência mental. Maritain os dividem em
escalões. O primeiro escalão são os entes de razão que respondem a observações
experimentais (medições). O segundo escalão são os entes de razão que são
apenas imagens simbólicas (átomos, elétrons, moléculas). O terceiro
escalão são os entes de razão incapazes de existir enquanto tais (os
tempos de Einstein, os modelos materiais de Kelvin).De maneira geral, são entes
de razão os universais, proposições e juízos – aqui pouco importa que respondam
a essências reais –, bem como negações, relações, conectores lógicos, quimeras
(i.e. fantasias), metáforas etc. Estes entes, embora não sejam “reais”, são
exigidos pela inteligência para que possa conhecer a realidade.
- Entes naturais. São o que chamamos coloquialmente de “coisas”. São os entes que compõem o mundo real.
As teorias da física-matemática, que se
encontram nos segundo e terceiro escalões dos entes de razão, são basicamente
um conjunto de “mitos verossímeis” que não conhecem a natureza das coisas em si
mesmas, mesmo que conheçam algo real. O que Maritain quer dizer, no entanto, é
que as teorias físico-matemáticas são uteis, senão indispensáveis em muitos
casos, para que entendamos a realidade, mas elas não encerram em si a própria
realidade. Por estarem naturalmente distantes da realidade (lembre-se, são entes
de segundo e terceiro escalões), é imprescindível que outra disciplina entre em
ação para organizar o conhecimento que trazem. Eis o papel da física descritiva
(ou “filosofia natural”). Em outras palavras, atribuir realidade a fórmulas
algébricas é perder-se em erros. O esquecimento da metafísica é o que torna
possível delírios como “viagem no tempo”, “campos de força”, “homúnculos” etc.
Um dos maiores enganos associados às
teorias da física-matemática é atribuir-lhes realidade. A mente definitivamente
não é um espelho do mundo. Talvez Platão, em sua teoria das ideias, tenha
vacilado nesse sentido, mas Aristóteles mostrou claramente a diferença entre aquilo
que conhecemos do aquilo pelo que conhecemos. Tenhamos em mente os
entes de razão e os entes naturais: os entes de razão são aquilo pelo que
(id quo) conhecemos aquilo que (id quod) é real. Já vimos
isso inúmeras vezes nos estudos de Mortimer Adler, como, por exemplo, no
verbete “ideia” de seu dicionário filosófico. Casanova evidentemente não nega que haja verdade na física, mas ela é muito
menos dogmática do que muitos imaginam. A verdade na física se expressa de modo
metafórico. E tal verdade está mais presente nas explicações que servem de
contexto às formulas algébricas que nas próprias fórmulas algébricas. As
fórmulas apenas captam inter-relações quantitativas e, como é óbvio, não as
refletem como um espelho.
Por outro lado, negar os universais
(conceitos, ideias) é negar que existe ciência, física ou matemática.
A origem das teorias científicas
É verdade que toda ciência se origina da
experiência, e ela, em si, não é racional. Mas estas experiências tampouco são
irracionais. Elas são, na verdade, intelectuais. A esta altura o leitor
já deve estar habituado a diferenciar ‘intelectual” de “racional”. O intelecto é
uma das potências superiores da alma (a outra é a vontade), enquanto a
racionalidade (ou “raciocínio”, melhor dizendo) é um dos modos de operação do
intelecto. Mas o ponto aqui é que a experiência inicial do intelecto, mais
especificamente do intelecto agente, é de maneira espontânea extrair o conceito
ou ideia do fantasma que lhe é apresentado pela parte sensível da alma. Portanto,
a atividade intelectual inicial não é irracional, mas suprarracional. Einstein
foi um dos cientistas que admitia o caráter intuitivo dessa experiência:
A suprema tarefa do físico é a busca dessas leis altamente universais [...] desde as quais se pode obter um retrato do mundo por pura dedução. Não há um caminho lógico que conduza a essas [...] leis. Elas só podem ser alcançadas por intuição, baseadas em algo como um amor [Einfühlung] intelectual dos objetos da experiência.
É claro que uma miríade de fenômenos
psicológicos entra em jogo nessa intuição inventiva. Mas a visão que
reconhece dentre as várias ideias qual a correta é algo que se explica pelo
amor conatural à verdade; ou, como diria Tomás de Aquino, as “sementes da
verdade”. Roger Penrose dizia em seu The Emperor’s New Mind (a ser
estudado aqui futuramente) que a intelecção não é redutível a sistemas
inteligentes porque a inteligência não é algorítmica nem se conforma a regras
conscientes (muito menos inconscientes).
E há mais. A invenção não é o único aspecto
no qual a intuição intelectual se aplica. Mesmo quando são detectados os
axiomas de uma teoria qualquer, seu desenvolvimento demonstrativo também exige
a participação da intuição intelectual. Demonstrar uma teoria qualquer não é um
processo retilíneo e puramente lógico porque há valores suprarracionais
envolvidos na descoberta científica como a capacidade preditiva, a
consistência, a ampla aplicabilidade, a simplicidade e a fecundidade para
produzir novos resultados. Nada disso é “racional”. Observe que é fantasioso
supor que a ciência, seja a física-matemática ou qualquer outra, parta de axiomas
bem estabelecidos e daí deduza uma teoria. Pelo contrário, o que ocorre é que
um sistema axiomático é produto de reflexões que reforçam o edifício científico
existente. Não se trata de “conspiração” ou qualquer coisa do gênero, mas sim
de um conjunto de observações empíricas que esperam o surgimento de um gênio
que proponha hipóteses que organizem essas observações em uma teoria.
Cumpre-se portanto o velho adágio
aristotélico: “Toda doutrina e toda disciplina procedem de um conhecimento prévio”.
Esse conhecimento intelectual “bruto”, digamos, é infalível porque inicialmente
é feito de todos, ou seja, de compostos. Perceber “homem” é
infalível porque se percebe num ato único. Posteriormente, claro, se decomporá
esta percepção em elementos simples, e esta passagem do uno ao múltiplo
é onde residirão os erros.
A depuração dos erros é possível
voltando-se à síntese, ou seja, a uma nova síntese. Eis o processo científico:
ele jamais descreverá com precisão a essência dos entes, mas é capaz sim de nos
aproximar das causas verdadeiras mediante a transpassagem das fórmulas
matemáticas em direção às realidades físicas que essas fórmulas apontam. Eis o
papel da física-matemática: uma ponte para a realidade. Não é a realidade, mas
uma ponte para ela.
Causalidade como princípio
suprarracional
Muitos filósofos, entre os quais se
encontra Kant e a maioria dos materialistas/fisicalistas, sustentam que o princípio
da causalidade é irracional porque não é dedutivamente explicável pelos métodos
científicos. Isso ocorre, segundo Casanova, porque a causalidade é modernamente
confundida com determinismo eficiente. Causa é causa eficiente. Como não se
detectam causas eficientes pelo método científico então a causa eficiente não
existe e, portanto, a causa não existe.
O problema reside na dificuldade moderna em
entender que a causa eficiente subordina-se à causa final. É a finalidade que
traz inteligibilidade ao mundo (e à ciência, por óbvio), e é ela também que
explica adequadamente a mecânica quântica. O fato de haver acaso não
significa que haja irracionalidade, pois, a ausência de causa é apenas ausência
(ainda) de finalidade. Uma vez que entendemos que a base das ciências são os poderes
(aka potências) que constituem a materialidade, postular o acaso não implica
que estejamos nos afastando da racionalidade. O acaso não exclui a existência
de uma materialidade junto à formalidade das tendências, nem a causalidade per
accidens nem o livre arbítrio humano.
Fonte: Carlos Casanova, Física e realidade, Vide Editorial, Campinas, SP, Brasil, 2013.