9 de dezembro de 2025

Razão em Corção



Olha aquele Deus alto e incriado
Senhor das cousas todas, que fundou
O céu, a terra, o fogo, o mar irado;
Não do confuso caos, como cuidou
A falsa teologia, e povo escuro,
Que nesta só verdade tanto errou;
Não dos átomos leves d’Epicuro,
Não do fundo Oceano, como Tales,
Mas só do pensamento casto e puro.

(Camões – Elegia XI)

O silogismo nunca foi apresentado pelos discípulos de Aristóteles como método de raciocinar, e sim como condensação da estrutura do discurso racional. Mesmo sem maior, menor e conclusão, todos nós pensamos de forma silogística, até quando nos parece que as ideias nos chegam como relâmpagos intuitivos, semelhantes aos da intelecção angélica. A parte discursiva existe sempre onde existir o homem.

[...]

A maior parte dos tropeços intelectuais nasce da simplicidade com que se leva a sério esta ou aquela figura de linguagem. Imaginem o caso de alguém pensar que a proporção de conceitos propostos por uma determinada metáfora tem caráter unívoco, como a proporção de conceitos dentro do vocabulário matemático. [Ou seja, nem todos os elementos de uma metáfora têm o mesmo peso proporcional “matemático”.] E o que vale para a metáfora, a rainha das figuras de linguagem, vale para litotes (expressões que dizem pouco para fazerem entender muito), metonímia (toma a causa pelo efeito, o continente pelo conteúdo ou a matéria pela forma) e a sinédoque (toma a parte pelo todo).

* * *

Todo mundo que estudou ao menos os rudimentos da nobre ciência das matemáticas sabe que não poderia dar três passos sem antes firmar as bases e aprimorar as definições. Ora, há coisas mais fundamentais e anteriores às próprias definições matemáticas: a noção de definição, por exemplo, a de princípio, de causa e de ser, são anteriores a qualquer das ciências positivas. Precisam ser disciplinadas, postas em ordem, sondadas, estudadas. Onde? Em que matéria estudará o moço a noção de causa? Na geografia? Na história natural? Ou, quem sabe se pensam que é na gramática que se encontra a explicação do conteúdo dos termos?

É de uma temeridade espantosa pretender que deva ficar implícito ou inconsciente, na vida intelectual, justamente a parte basilar de que depende todo o teor da cultura.

Na verdade, o que dá forma e unidade a uma civilização, a um todo cultural de dimensões históricas, marcado por certos ideais concretos, só pode ser uma filosofia e ainda mais, uma filosofia com uma metafísica de base.

Creio que a pior, a mais falsa e mais errônea das metafísicas é aquela que se faz para se demonstrar que não há metafísica ou que foi superada a necessidade dela.

* * *

A matemática é espetacular espiritualização do mundo sensível. Ela passa a trabalhar com quantidades espiritualizadas, que só existem na mente, mas que estabelecem uma comunicação extremamente confortável entre a mente e o mundo exterior. Curioso paradoxo, esse da estrutura das ciências matemáticas!

[...]

Foi preciso passarem quatro séculos para que a humanidade começasse a desconfiar da solidez de suas conquistas no domínio das ciências regidas pela quantidade, e da falta que anda fazendo no mundo um princípio unificador de cultura. Em outras palavras, só agora, depois de muito sofrimento, começam os homens a desconfiar que conquistaram o mundo, mas perderam a alma.

* * *

De um lado, a tradição aristotélica-tomista sempre se empenhou em fazer do conhecimento, seja sensível, seja intelectual. um modelo inspirado numa ideia principal: a da união entre o agente que conhece e a coisa conhecida. Do outro lado está a tradição oposta, que por curioso pessimismo, se compraz na ideia primeira de uma irremediável desunião entre a inteligência e o ser.

Em termos metafísicos diríamos que o erro cometido por todos os filósofos que retomaram as explicações de Demócrito e seus discípulos, consiste numa hipertrofia ou até numa exclusividade concedida à causa material, em detrimento das outras. Ora, não é aquilo de que a coisa é feita que mais a caracteriza ou que melhor a define. Considerando um artefato, uma estátua por exemplo, ninguém dirá que o fato de ser marmórea prevalece sobre a forma, sobre a beleza e sobre a intenção de seu autor. Ninguém dirá que verdadeiro é o mármore, e ainda mais verdadeiros os átomos de carbono e cálcio, e ainda mais verdadeiros os elétrons e os prótons; e que a beleza da forma é um puro dado da nossa imaginação, e dado ilusório, som ilusório, enganador, porque nada há na coisa, que se assemelhe às nossas sensações. Não é costume pensar assim quando temos diante de nós uma estátua. Por que então pensaremos assim quando contemplamos urna rosa? Então, pelo fato de ser composta de elétrons e prótons a rosa deixou de ser rosa, ou passou a ser uma coisa que em nós, em nossa ideia, como diz Locke, produz o fantasma daquilo que os jardineiros e os poetas. por engano, por falta de sagaz filosofia, julgam ser formosa, rosada e cheia de fragrância?

É importante assinalar que é aqui. muito antes de discutirmos a existência ou não existência dos seres espirituais, que se trava a primeira batalha entre duas raças opostas de pensadores.

* * *

Se nos sondarmos com lealdade, descobriremos um esquisito desejo de sobrevivência na memória dos outros. De que nos vale isto? De que me vale meu nome pronunciado aqui ou acolá, com tais ou quais atributos, se eu não estou aqui ou acolá, pessoalmente, sobrevivente?

O fato é que, apesar dessa pobreza de significação pessoal, desse caráter acidental, a sobrevivência pelas obras corresponde a um profundo desejo de nosso ser. Ninguém quer passar a vida em brancas nuvens. Ninguém quer morrer como o poeta disse que morrem os pássaros. Mas a verdade é que é esse instinto de sobrevivência, digamos horizontal, que nos impede a visão da outra imortalidade, a vertical, à qual tem dimensões de eternidade e não dimensões de história, à qual também corresponde um grande anseio de nossa alma, que tem horror À morte, À ideia do aniquilamento da pessoa, e que se insurge em cada caso, diante de cada defunto, como se estivesse vendo um espetáculo de espantosa raridade. O caso é que a alma humana tem profundidades de inconsciência em dois sentidos. Diria até dois hemisférios, um voltado para a terra e outro voltado para o céu. Num desses hemisférios a ideia de imortalidade da alma brilha como uma estrela; no outro, entretanto, levantam-se obstáculos erguidos pelas exigências da sensibilidade. [...] Assim, a ideia de imortalidade da alma, que vale a pena ser desempatada, tem de ser apresentada ao espírito muito antes da emoção, da perturbação, para que na hora oportuna ela tenha algum valor vital.

Vale a pena desempatar esse problema, e procurar entrever, através de nossos obstáculos, as novas dimensões da eternidade. A imortalidade verdadeira, pessoal, essencial, não se distribui pelas pessoas em graus proporcionados ao sucesso da vida. É, ao contrário, um atributo da alma espiritual, e portanto um denominador comum de toda a humanidade. E se assim é, segue-se que a sorte do homem, referida aos eixos da eternidade, deveria dominar todas as cogitações da vida terrena, e não estar relegada à categoria de assunto que serve para consolo nas câmaras ardentes e logo em seguida é esquecido.

* * *

Itaque qui se existimat stare, videat ne cadat, diz-nos o Apóstolo Paulo na 1ª Epístola aos Coríntios, capítulo X, versículo 12; e esta advertência – quem se gaba de estar em pé veja que não caia – resume bem toda a prudência. [...] Pensando nas relações com o próximo, Machado disse que a vida era uma série de cachações [pancadas fortes]: pensando no itinerário próprio de cada um de nós, e dos grupos maiores ou menores que formamos, seria mais acertado dizer que a vida é uma série de tropeços, escorregões, e estatelamentos.

* * *

Em termos modernos diríamos que aos homens comuns basta que se agrupem e que emendem a tarefa de hoje na de ontem e de anteontem. Assim, o resultado pode ser mantido e até aperfeiçoado por homens nitidamente superiores ao cavalo, mas perigosamente arriscados a se tornarem cada dia mais incapazes de alcançar a estatura normal do homem espiritual.

O homem moderno foi capaz de ir à Lua graças a este somatório de trabalho de milhões de homens, mas parece incapaz de achar o endereço perdido da Casa do Pai.

Dificilmente encontramos hoje quem saiba usar a palavra, quem saiba usar a alma, quem saiba produzir as obras que dão à França e à Espanha uma enorme renda de turismo.

Vivemos hoje uma civilização de diminuídos, que ganharam a Terra e a Lua, mas perderam, já aqui no mundo, os endereços das próprias almas.

* * *

Nós entendemos facilmente o eletricista que muda o fusível sem entrar em grandes monólogos filosóficos; entenderemos até o matemático que usa o espírito para se entreter com entes de razão inebriantes, e que se esquece de fazer um ato reflexo e de admirar a faculdade pela qual ele virou matemático; entende-se até o astrônomo que mede distâncias espantosas sem tecer considerações sobre o instrumento interna da medida. Mas que um psicólogo se esqueça de filosofar acerca da alma humana e passe a cuidar dos fenômenos sem um saldo de curiosidade para as essências, sem uma avidez de saber, ou ao menos de se interrogar sobre o dualismo interno que o leva a escrever livros sobre o comportamento humano, eis o que me parece deveras incompreensível!

* * *

A ideia central de todo o sistema adleriano: o sentimento de inferioridade como traço essencial e até definidor do dinamismo psíquico do homem. Para Freud, ser homem quer dizer desejar. Ora, a esse desejo de posse, a essa fome, Adler contrapõe um outro elemento da dinâmica psíquica que poderíamos chamar de desejo de valor. Não é a libido que move as máquinas nos porões da alma, é um estranho desejo de ser, de valer, de se sentir coeso e prestigiado diante de si mesmo e do mundo. Em outras palavras, o eixo de todo o funcionamento humano seria a consciência de seu ser e de seu estranho valor.

[...]

Em todos os dramas, em todas as situações de conflito, onde há dor, onde há atrito, haverá, na mais magnânima das almas um sentimento de impotência ou de insegurança. E em todas as situações da vida, seja a mais bem sucedida, se a alma se consultar com sinceridade e finura encontrará no fundo de seu inventário uma insatisfação que coisa alguma do mundo poderá apaziguar. Esse sentimento decorre pois da natureza do homem como força de necessidade. Ser homem é não se conformar com os prêmios do mundo. Ora, se assim é, também não será difícil prever a enorme variedade de espécies e subespécies de sentimentos de inferioridade que acometem a alma humana. Toda a extensa gama de sentimentos pode tomar dois caminhos opostos, o da humildade ou o do ressentimento, dependendo tudo do amor com que se ama.

O verdadeiro e único elixir para as feridas do amor-próprio está no outro amor feito de generosidade e de humildade. A humildade é, por assim dizer, o sentimento de inferioridade absoluto. A referência que se toma para esta virtude é Deus e não o mundo. Ora, essa comparação, ao contrário de todas as outras do mundo, tem a virtude de pacificar a alma. O homem é um estranho personagem que julga poder curar-se daquela inferioridade com compensações de uma infinita cretinice.

Fonte: Gustavo Corção, Gustavo Corção tomista, Editora Permanência, Rio de Janeiro, Brasil, 2012.