(Camões – Elegia XI)
O silogismo nunca foi apresentado pelos
discípulos de Aristóteles como método de raciocinar, e sim como condensação
da estrutura do discurso racional. Mesmo sem maior, menor e conclusão,
todos nós pensamos de forma silogística, até quando nos parece que as ideias
nos chegam como relâmpagos intuitivos, semelhantes aos da intelecção angélica.
A parte discursiva existe sempre onde existir o homem.
[...]
A maior parte dos tropeços intelectuais nasce
da simplicidade com que se leva a sério esta ou aquela figura de linguagem.
Imaginem o caso de alguém pensar que a proporção de conceitos propostos por uma
determinada metáfora tem caráter unívoco, como a proporção de conceitos dentro
do vocabulário matemático. [Ou seja, nem todos os elementos de uma metáfora têm
o mesmo peso proporcional “matemático”.] E o que vale para a metáfora, a
rainha das figuras de linguagem, vale para litotes (expressões que dizem pouco
para fazerem entender muito), metonímia (toma a causa pelo efeito, o continente
pelo conteúdo ou a matéria pela forma) e a sinédoque (toma a parte pelo todo).
* * *
Todo mundo que estudou ao menos os
rudimentos da nobre ciência das matemáticas sabe que não poderia dar três
passos sem antes firmar as bases e aprimorar as definições. Ora, há coisas mais
fundamentais e anteriores às próprias definições matemáticas: a noção de definição,
por exemplo, a de princípio, de causa e de ser, são anteriores a qualquer das
ciências positivas. Precisam ser disciplinadas, postas em ordem, sondadas,
estudadas. Onde? Em que matéria estudará o moço a noção de causa? Na geografia?
Na história natural? Ou, quem sabe se pensam que é na gramática que se encontra
a explicação do conteúdo dos termos?
É de uma temeridade espantosa pretender que
deva ficar implícito ou inconsciente, na vida intelectual, justamente a parte
basilar de que depende todo o teor da cultura.
Na verdade, o que dá forma e unidade a
uma civilização, a um todo cultural de dimensões históricas, marcado por
certos ideais concretos, só pode ser uma filosofia e ainda mais, uma
filosofia com uma metafísica de base.
Creio que a pior, a mais falsa e mais
errônea das metafísicas é aquela que se faz para se demonstrar que não há
metafísica ou que foi superada a necessidade dela.
* * *
A matemática é espetacular
espiritualização do mundo sensível. Ela passa a
trabalhar com quantidades espiritualizadas, que só existem na mente, mas que
estabelecem uma comunicação extremamente confortável entre a mente e o mundo
exterior. Curioso paradoxo, esse da estrutura das ciências matemáticas!
[...]
Foi preciso passarem quatro séculos para
que a humanidade começasse a desconfiar da solidez de suas conquistas no
domínio das ciências regidas pela quantidade, e da falta que anda fazendo no
mundo um princípio unificador de cultura. Em outras palavras, só agora,
depois de muito sofrimento, começam os homens a desconfiar que conquistaram
o mundo, mas perderam a alma.
* * *
De um lado, a tradição aristotélica-tomista
sempre se empenhou em fazer do conhecimento, seja sensível, seja intelectual.
um modelo inspirado numa ideia principal: a da união entre o agente que conhece
e a coisa conhecida. Do outro lado está a tradição oposta, que por curioso
pessimismo, se compraz na ideia primeira de uma irremediável desunião entre a
inteligência e o ser.
Em termos metafísicos diríamos que o erro
cometido por todos os filósofos que retomaram as explicações de Demócrito e
seus discípulos, consiste numa hipertrofia ou até numa exclusividade concedida
à causa material, em detrimento das outras. Ora, não é aquilo de que a coisa
é feita que mais a caracteriza ou que melhor a define. Considerando um
artefato, uma estátua por exemplo, ninguém dirá que o fato de ser marmórea
prevalece sobre a forma, sobre a beleza e sobre a intenção de seu autor.
Ninguém dirá que verdadeiro é o mármore, e ainda mais verdadeiros os átomos de
carbono e cálcio, e ainda mais verdadeiros os elétrons e os prótons; e que a
beleza da forma é um puro dado da nossa imaginação, e dado ilusório, som
ilusório, enganador, porque nada há na coisa, que se assemelhe às nossas
sensações. Não é costume pensar assim quando temos diante de nós uma estátua.
Por que então pensaremos assim quando contemplamos urna rosa? Então, pelo fato
de ser composta de elétrons e prótons a rosa deixou de ser rosa, ou passou a
ser uma coisa que em nós, em nossa ideia, como diz Locke, produz o fantasma
daquilo que os jardineiros e os poetas. por engano, por falta de sagaz filosofia,
julgam ser formosa, rosada e cheia de fragrância?
É importante assinalar que é aqui. muito
antes de discutirmos a existência ou não existência dos seres espirituais, que
se trava a primeira batalha entre duas raças opostas de pensadores.
* * *
Se nos sondarmos com lealdade,
descobriremos um esquisito desejo de sobrevivência na memória dos outros. De que nos vale isto? De que me vale meu nome pronunciado aqui ou
acolá, com tais ou quais atributos, se eu não estou aqui ou acolá,
pessoalmente, sobrevivente?
O fato é que, apesar dessa pobreza de
significação pessoal, desse caráter acidental, a sobrevivência pelas obras
corresponde a um profundo desejo de nosso ser. Ninguém quer passar a vida em
brancas nuvens. Ninguém quer morrer como o poeta disse que morrem os pássaros.
Mas a verdade é que é esse instinto de sobrevivência, digamos horizontal, que
nos impede a visão da outra imortalidade, a vertical, à qual tem dimensões de eternidade
e não dimensões de história, à qual também corresponde um grande anseio de
nossa alma, que tem horror À morte, À ideia do aniquilamento da pessoa, e que
se insurge em cada caso, diante de cada defunto, como se estivesse vendo um
espetáculo de espantosa raridade. O caso é que a alma humana tem profundidades
de inconsciência em dois sentidos. Diria até dois hemisférios, um voltado para
a terra e outro voltado para o céu. Num desses hemisférios a ideia de
imortalidade da alma brilha como uma estrela; no outro, entretanto, levantam-se
obstáculos erguidos pelas exigências da sensibilidade. [...] Assim, a ideia de
imortalidade da alma, que vale a pena ser desempatada, tem de ser apresentada
ao espírito muito antes da emoção, da perturbação, para que na hora oportuna ela
tenha algum valor vital.
Vale a pena desempatar esse problema, e
procurar entrever, através de nossos obstáculos, as novas dimensões da
eternidade. A imortalidade verdadeira, pessoal, essencial, não se distribui
pelas pessoas em graus proporcionados ao sucesso da vida. É, ao contrário,
um atributo da alma espiritual, e portanto um denominador comum de toda a
humanidade. E se assim é, segue-se que a sorte do homem, referida aos eixos da
eternidade, deveria dominar todas as cogitações da vida terrena, e não estar
relegada à categoria de assunto que serve para consolo nas câmaras ardentes e
logo em seguida é esquecido.
* * *
Itaque qui se existimat stare, videat ne
cadat, diz-nos o Apóstolo Paulo na 1ª Epístola aos
Coríntios, capítulo X, versículo 12; e esta advertência – quem se gaba de
estar em pé veja que não caia – resume bem toda a prudência. [...] Pensando
nas relações com o próximo, Machado disse que a vida era uma série de cachações
[pancadas fortes]: pensando no itinerário próprio de cada um de nós, e dos
grupos maiores ou menores que formamos, seria mais acertado dizer que a vida é
uma série de tropeços, escorregões, e estatelamentos.
* * *
Em termos modernos diríamos que aos
homens comuns basta que se agrupem e que emendem a tarefa de hoje na de ontem e
de anteontem. Assim, o resultado pode ser mantido e até aperfeiçoado por
homens nitidamente superiores ao cavalo, mas perigosamente arriscados a se
tornarem cada dia mais incapazes de alcançar a estatura normal do homem
espiritual.
O homem moderno foi capaz de ir à Lua
graças a este somatório de trabalho de milhões de homens, mas parece incapaz de
achar o endereço perdido da Casa do Pai.
Dificilmente encontramos hoje quem saiba
usar a palavra, quem saiba usar a alma, quem saiba produzir as obras que dão à França
e à Espanha uma enorme renda de turismo.
Vivemos hoje uma civilização de diminuídos,
que ganharam a Terra e a Lua, mas perderam, já aqui no mundo, os endereços das
próprias almas.
* * *
Nós entendemos facilmente o eletricista que
muda o fusível sem entrar em grandes monólogos filosóficos; entenderemos até o
matemático que usa o espírito para se entreter com entes de razão inebriantes,
e que se esquece de fazer um ato reflexo e de admirar a faculdade pela qual ele
virou matemático; entende-se até o astrônomo que mede distâncias espantosas sem
tecer considerações sobre o instrumento interna da medida. Mas que um
psicólogo se esqueça de filosofar acerca da alma humana e passe a cuidar
dos fenômenos sem um saldo de curiosidade para as essências, sem uma avidez de
saber, ou ao menos de se interrogar sobre o dualismo interno que o leva a
escrever livros sobre o comportamento humano, eis o que me parece deveras
incompreensível!
* * *
A ideia central de todo o sistema
adleriano: o sentimento de inferioridade como traço essencial e até definidor
do dinamismo psíquico do homem. Para Freud, ser homem quer dizer desejar.
Ora, a esse desejo de posse, a essa fome, Adler contrapõe um outro elemento da
dinâmica psíquica que poderíamos chamar de desejo de valor. Não é a
libido que move as máquinas nos porões da alma, é um estranho desejo de ser, de
valer, de se sentir coeso e prestigiado diante de si mesmo e do mundo. Em
outras palavras, o eixo de todo o funcionamento humano seria a consciência de
seu ser e de seu estranho valor.
[...]
Em todos os dramas, em todas as situações
de conflito, onde há dor, onde há atrito, haverá, na mais magnânima das almas
um sentimento de impotência ou de insegurança. E em todas as situações da vida,
seja a mais bem sucedida, se a alma se consultar com sinceridade e finura encontrará
no fundo de seu inventário uma insatisfação que coisa alguma do mundo poderá
apaziguar. Esse sentimento decorre pois da natureza do homem como força de necessidade.
Ser homem é não se conformar com os prêmios do mundo. Ora, se assim é, também
não será difícil prever a enorme variedade de espécies e subespécies de sentimentos
de inferioridade que acometem a alma humana. Toda a extensa gama de
sentimentos pode tomar dois caminhos opostos, o da humildade ou o do ressentimento,
dependendo tudo do amor com que se ama.
O verdadeiro e único elixir para as
feridas do amor-próprio está no outro amor feito de generosidade e de humildade. A humildade é, por assim dizer, o sentimento de inferioridade
absoluto. A referência que se toma para esta virtude é Deus e não o mundo.
Ora, essa comparação, ao contrário de todas as outras do mundo, tem a virtude
de pacificar a alma. O homem é um estranho personagem que julga poder curar-se
daquela inferioridade com compensações de uma infinita cretinice.
Fonte: Gustavo Corção, Gustavo Corção tomista, Editora Permanência, Rio de Janeiro, Brasil, 2012.
