14 de dezembro de 2025

Pensamentos de Sertillanges


Deus sabe quanto por vezes se esconde, sob esse título [de conservador], honroso em si mesmo, de egoísmo feroz e vilania. O conservador daquilo que ele acredita ser o bem e o verdadeiro é estimável; já o conservador do próprio repouso, do próprio bem-estar, da própria situação social, esse é vil e justificadamente desprezado. Não temos o direito de interpor nossos preconceitos à verdade que passa, nossos interesses ao bem que quer caminhar, nossa tola rotina ao progresso de Deus. Isso é um crime para com Deus e para com os homens. É o pecado contra o Espírito Santo, é aquele “que não é perdoado”.

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A brandura [de Jesus Cristo] não consiste em nada odiar; consiste menos ainda em tirar partido do mal antes de tentar o remédio. Isso é indiferença, isso é insipidez de alma; é o que atualmente se chama diletantismo [alguém que não se submete a nenhuma norma intelectual ou espiritual, vivendo ao sabor de sua fantasia e cultivando uma espécie de prazer puramente estético – N. do T.]. Esse diletantismo é odioso, pois o mal e o bem, a seus olhos, têm valor igual; pois, em vez daqueles ódios vigorosos de que fala o poeta, há apenas sorrisos finos, que ele distribui a qualquer um. E essa atitude é covarde. É preciso odiar o mal com o mesmo vigor com que se ama o bem.

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O passado é uma força. É a raiz de onde saímos, e quanto mais essa raiz se aprofunda no solo, mais ela resiste. Temos o instinto do eterno, do definitivo: é um sinal de nossos destinos; mas isso facilmente se torna uma fraqueza e um temível perigoso, porque é difícil desprender-se o suficiente daquilo que, nesse sentimento, sempre existe de mais ou menos egoísta.

Foi o passado que nos fez; é a nós mesmos, de certa forma, o que nele defendemos. Por isso, a luta pelo passado se reveste, nos cérebros estreitos, da aspereza e da cegueira da luta pela vida. Isso pode ser evitado, porém dificilmente, porque é preciso então sair de si mesmo, soltar-se, desprender-se, elevar-se de certa forma acima do tempo, e esse é um exercício que não está ao alcance de todos. Para ser bem-sucedido, é quase uma questão de genialidade, ou então de santidade. Ora, tanto a genialidade como a santidade são coisa rara.

Assim como a onda alta que sobe acima da maré e domina os cimos branquejantes, de tempos em tempos uma cabeça se eleva no oceano humano e olha: é o gênio. Pessoas assim, contudo, se contam rapidamente! O comum é a rotina, e a obstinação nessa rotina. O comum é que os poderes estabelecidos, os corpos constituídos busquem preservar-se, sem se preocupar com outra coisa. O interesse [próprio] os absorve, as ideias novas os preocupam [i.e. ameaçam], qualquer ousadia os apavora; eles preferem olhar par ao passado a olhar para o futuro, e, como toda marcha adiante prossegue em meio aos desabamentos e aos detritos do que não consegue viver, é trivial que os representantes do passado se rebelem contra as iniciativas e se interponham diante das renovações.

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Para Jesus Cristo, a vida exterior é secundária: sua obra real é uma obra oculta, consiste em suas relações invisíveis com Deus e com a criação. Nada aí, aliás, de surpreendente: isso não está muito longe de valer para nós mesmos. O que são palavras e ações, com base nas quais os homens nos julgam? A superfície de nossa vida é como uma casca leve. Há, embaixo dela, a alma. Todo um mundo interior de pensamentos, desejos, tendências, aspirações, sonhos, alegrias, pesares, eis o que, no fundo, faz de nós o que somos. Para que nos conheçam, não são nossas palavras que deveriam saber, é nosso silêncio; não são nossas ações, é nosso repouso; é aquela vida interior que prossegue, obscura, quase despercebida, subjacente a nossas atividades de superfície, assim como fundo dos mares circula e fervilha, longe da superfície tranquila ou tempestuosa, todo um mundo de seres vivos.

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Simplicidade e profundidade: essas duas características não podem ser separadas na palavra do Senhor. Ele trazia a sabedoria de Deus; vinha iluminar a vida humana, religá-la a seu princípio, que é o infinito, orientá-la para seu fim, que é um fim sobrenatural. Ele próprio, Jesus Cristo, era um mistério vivo, e era preciso que ele se desse a conhecer. De todo modo, sua linguagem só podia ser profunda.

Por outro lado, dirigia-se aos simples, diferentemente dos fariseus, que faziam do desprezo aos humildes e aos ignorantes uma das leis de sua conduta e até de sua virtude. Contrariamente aos homens geniais, que, no intuito de reformar o pensamento humano, dirigem-se às classes elevadas e põem de lado ou negligenciam o homem comum, Jesus era e continua a ser o homem da multidão.

O sinal da divindade de sua missão era a evangelização dos pobres: era preciso que o os pobres pudesses compreender. Os grupos que se formavam em torno dele, e cujos personagens principais eram Pedro, o pescador, Tiago, o carpinteiro, Mateus, o alfandegário de Cafarnaum, não o teriam acompanhado muito tempo em abstrações eruditas. Era necessário que o infinito de Deus se adaptasse à fraqueza daqueles homens. Assim ele fez.

Leiam seus discursos. Todos – exceto em raras ocasiões muito especiais – são de uma simplicidade que chamaríamos de régia: essa palavra expressa bem, acreditamos, o caráter deles. As pessoas régias, na intimidade, falam sobre coisas grandiosas com uma simplicidade desconcertante. Reinos, cetros, coroas são vistos por elas como, por nós, objetos prosaicos. Assim, Jesus fala com tranquila majestade dos objetos divinos que ele nos entrega.

Sua eloquência é naturalmente sublime, porque seu fundo é naturalmente divino. E por isso ela é simples, espontânea, natural, sem arroubos provocados, sem deslumbramento e sem precipitação.

Basta ler os profetas, que falam sobre as mesmas coisas: a diferença é gritante. Os profetas se atormentam, porque a inspiração deles vem de fora. São arrebatados para fora de si mesmos: seguem os voos do Espírito, intermitentes e tempestuosos, em regiões de luz superior. Jesus, por sua vez, traz a luz em si mesmo: muito naturalmente ela resplandece. Ele não precisa se lançar nas regiões do mistério: o mistério reside nele; o mistério é ele, que o desvela num abrir de mão.

Uma qualidade, no entanto, se impunha. Para exercer ascendência sobre o povo, essa palavra tinha de ser rica em imagens e viva.

O povo é uma criança; nesse aspecto, aliás, todas as multidões são povo. É preciso falar com elas em imagens, em comparações, em figuras. Traços ardentes, formas vívidas: o oriental, em particular, aprecia isso. Os rabinos da época o sabiam bem: os Talmudes estão recheados disso; seu defeito, porém, é o pedantismo, são os bizantinismos ridículos. Jesus, por sua vez, suprime o exagero e mantém a coisa. Preserva o traço, a imagem vívida, a formulação incisiva, a comparação soberba e familiar.

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O trabalho é uma virtude e, ao mesmo tempo, uma semente de virtude, [cf. o que diz Rafael de Abreu sobre a prática Personale vs. opus] pois distancia de nós as sugestões do mal; cultiva nossas forças, as do corpo, as da alma; aproxima-nos de nossos semelhantes; faz mais pela questão social que aqueles ociosos fazedores de frases ou aqueles ricos indolentes que se lamentam sobre a infelicidade dos tempos e não percebem que eles próprios são uma chaga social, um objeto de inveja e escândalo para seus irmãos, um ponto morto no grande organismo vivo, um estorvo na corrente da vida humana.

[...]

Provavelmente o trabalho de Jesus nem sempre era intenso. O espírito de seu povo e de sua época não se prestava a isso. Seria um erro imaginar, numa oficina do Oriente, o aspecto febril que as nossas apresentam. Nossos climas rudes criaram a concorrência vital; nossa energia se desdobra com uma espécie de frenesi para a satisfação de necessidades mais ou menos artificiais; o Oriente, porém, não é assim. Mesmo hoje e, principalmente, naquela época, a vida é patriarcal e tranquila. O labor [labuta] tem aí seu lugar, é claro; mas nem por isso toma o do lazer [Sertillanges certamente se refere ao lazer como Mortimer Adler se referia, ou seja, com atividade de autoaperfeiçoamento sem objetivo útil ou econômico], cujas horas são prolongadas pela simplicidade da vida.

É bom que haja obras exteriores, contanto que partam de um fundo que lhes dá valor aos olhos do mestre. Os que são nossas obras, em si mesmas? Que diferença pode fazer para Deus que nossas mãos ou nosso cérebro trabalhem? E se outros recolhem os frutos, ou nós mesmos, que valem esses frutos se não levam à vida eterna, e o que restará deles amanhã, quando nós e os nossos tivermos passado e o balanço de nossa vida se saldar em moedas de alma?

É preciso, portanto, cultivar nossa alma; para isso, a solidão e o recolhimento se impõem. A solidão chama Deus, abre o coração aos grandes pensamentos, faz-nos tocar aquele fundo de nós mesmos onde se preparam as resoluções viris e dissimulam nossos verdadeiros recursos.

Fonte: A.-D. Sertillanges, Jesus, Editora Filocalia, São Paulo, Brasil, 2021.