* * *
A brandura [de Jesus Cristo] não
consiste em nada odiar; consiste menos ainda em tirar partido do mal antes de
tentar o remédio. Isso é indiferença, isso é insipidez de alma; é o que
atualmente se chama diletantismo [alguém que não se submete a nenhuma
norma intelectual ou espiritual, vivendo ao sabor de sua fantasia e cultivando
uma espécie de prazer puramente estético – N. do T.]. Esse diletantismo
é odioso, pois o mal e o bem, a seus olhos, têm valor igual; pois, em
vez daqueles ódios vigorosos de que fala o poeta, há apenas sorrisos finos, que
ele distribui a qualquer um. E essa atitude é covarde. É preciso odiar o mal com
o mesmo vigor com que se ama o bem.
* * *
O passado é uma força. É a raiz de onde saímos, e quanto mais essa raiz se aprofunda no
solo, mais ela resiste. Temos o instinto do eterno, do definitivo: é um sinal
de nossos destinos; mas isso facilmente se torna uma fraqueza e um temível
perigoso, porque é difícil desprender-se o suficiente daquilo que, nesse
sentimento, sempre existe de mais ou menos egoísta.
Foi o passado que nos fez; é a nós
mesmos, de certa forma, o que nele defendemos. Por isso, a luta pelo
passado se reveste, nos cérebros estreitos, da aspereza e da cegueira da luta
pela vida. Isso pode ser evitado, porém dificilmente, porque é preciso
então sair de si mesmo, soltar-se, desprender-se, elevar-se de certa forma
acima do tempo, e esse é um exercício que não está ao alcance de todos.
Para ser bem-sucedido, é quase uma questão de genialidade, ou então de
santidade. Ora, tanto a genialidade como a santidade são coisa rara.
Assim como a onda alta que sobe acima da maré
e domina os cimos branquejantes, de tempos em tempos uma cabeça se eleva no
oceano humano e olha: é o gênio. Pessoas assim, contudo, se contam rapidamente!
O comum é a rotina, e a obstinação nessa rotina. O comum é que os poderes estabelecidos,
os corpos constituídos busquem preservar-se, sem se preocupar com outra coisa. O
interesse [próprio] os absorve, as ideias novas os preocupam [i.e. ameaçam],
qualquer ousadia os apavora; eles preferem olhar par ao passado a olhar para o
futuro, e, como toda marcha adiante prossegue em meio aos desabamentos e aos
detritos do que não consegue viver, é trivial que os representantes do passado
se rebelem contra as iniciativas e se interponham diante das renovações.
* * *
Para Jesus Cristo, a vida exterior é
secundária: sua obra real é uma obra oculta, consiste em suas relações
invisíveis com Deus e com a criação. Nada aí, aliás, de surpreendente: isso não
está muito longe de valer para nós mesmos. O que são palavras e ações, com base
nas quais os homens nos julgam? A superfície de nossa vida é como uma casca
leve. Há, embaixo dela, a alma. Todo um mundo interior de pensamentos,
desejos, tendências, aspirações, sonhos, alegrias, pesares, eis o que, no
fundo, faz de nós o que somos. Para que nos conheçam, não são nossas
palavras que deveriam saber, é nosso silêncio; não são nossas ações, é
nosso repouso; é aquela vida interior que prossegue, obscura, quase
despercebida, subjacente a nossas atividades de superfície, assim como fundo
dos mares circula e fervilha, longe da superfície tranquila ou tempestuosa,
todo um mundo de seres vivos.
* * *
Simplicidade e profundidade: essas duas
características não podem ser separadas na palavra do Senhor. Ele trazia a
sabedoria de Deus; vinha iluminar a vida humana, religá-la a seu princípio, que
é o infinito, orientá-la para seu fim, que é um fim sobrenatural. Ele próprio,
Jesus Cristo, era um mistério vivo, e era preciso que ele se desse a conhecer.
De todo modo, sua linguagem só podia ser profunda.
Por outro lado, dirigia-se aos simples,
diferentemente dos fariseus, que faziam do desprezo aos humildes e aos
ignorantes uma das leis de sua conduta e até de sua virtude. Contrariamente aos
homens geniais, que, no intuito de reformar o pensamento humano, dirigem-se às
classes elevadas e põem de lado ou negligenciam o homem comum, Jesus era e
continua a ser o homem da multidão.
O sinal da divindade de sua missão era a
evangelização dos pobres: era preciso que o os
pobres pudesses compreender. Os grupos que se formavam em torno dele, e cujos
personagens principais eram Pedro, o pescador, Tiago, o carpinteiro, Mateus, o
alfandegário de Cafarnaum, não o teriam acompanhado muito tempo em abstrações
eruditas. Era necessário que o infinito de Deus se adaptasse à fraqueza
daqueles homens. Assim ele fez.
Leiam seus discursos. Todos – exceto em
raras ocasiões muito especiais – são de uma simplicidade que chamaríamos de
régia: essa palavra expressa bem, acreditamos, o caráter deles. As pessoas
régias, na intimidade, falam sobre coisas grandiosas com uma simplicidade
desconcertante. Reinos, cetros, coroas são vistos por elas como, por nós, objetos
prosaicos. Assim, Jesus fala com tranquila majestade dos objetos divinos que ele
nos entrega.
Sua eloquência é naturalmente sublime,
porque seu fundo é naturalmente divino. E por isso ela é simples, espontânea,
natural, sem arroubos provocados, sem deslumbramento e sem precipitação.
Basta ler os profetas, que falam sobre as
mesmas coisas: a diferença é gritante. Os profetas se atormentam, porque a
inspiração deles vem de fora. São arrebatados para fora de si mesmos:
seguem os voos do Espírito, intermitentes e tempestuosos, em regiões de luz
superior. Jesus, por sua vez, traz a luz em si mesmo: muito naturalmente ela
resplandece. Ele não precisa se lançar nas regiões do mistério: o mistério
reside nele; o mistério é ele, que o desvela num abrir de mão.
Uma qualidade, no entanto, se impunha. Para
exercer ascendência sobre o povo, essa palavra tinha de ser rica em imagens e
viva.
O povo é uma criança; nesse aspecto, aliás, todas as multidões são povo. É preciso falar
com elas em imagens, em comparações, em figuras. Traços ardentes, formas
vívidas: o oriental, em particular, aprecia isso. Os rabinos da época o sabiam
bem: os Talmudes estão recheados disso; seu defeito, porém, é o pedantismo, são
os bizantinismos ridículos. Jesus, por sua vez, suprime o exagero e mantém a
coisa. Preserva o traço, a imagem vívida, a formulação incisiva, a comparação
soberba e familiar.
* * *
O trabalho é uma virtude e, ao mesmo
tempo, uma semente de virtude, [cf. o que diz
Rafael de Abreu sobre a prática Personale vs. opus]
pois distancia de nós as sugestões do mal; cultiva nossas forças, as do corpo,
as da alma; aproxima-nos de nossos semelhantes; faz mais pela questão social
que aqueles ociosos fazedores de frases ou aqueles ricos indolentes que se
lamentam sobre a infelicidade dos tempos e não percebem que eles próprios são
uma chaga social, um objeto de inveja e escândalo para seus irmãos, um ponto
morto no grande organismo vivo, um estorvo na corrente da vida humana.
[...]
Provavelmente o trabalho de Jesus nem
sempre era intenso. O espírito de seu povo e de sua época não se prestava a
isso. Seria um erro imaginar, numa oficina do Oriente, o aspecto febril que as
nossas apresentam. Nossos climas rudes criaram a concorrência vital; nossa
energia se desdobra com uma espécie de frenesi para a satisfação de
necessidades mais ou menos artificiais; o Oriente, porém, não é assim. Mesmo
hoje e, principalmente, naquela época, a vida é patriarcal e tranquila. O
labor [labuta] tem aí seu lugar, é claro; mas nem por isso toma o do lazer [Sertillanges
certamente se refere ao lazer como Mortimer Adler se referia, ou seja, com atividade
de autoaperfeiçoamento sem objetivo útil ou econômico],
cujas horas são prolongadas pela simplicidade da vida.
É bom que haja obras exteriores, contanto
que partam de um fundo que lhes dá valor aos olhos do mestre. Os que são nossas
obras, em si mesmas? Que diferença pode fazer para Deus que nossas mãos ou
nosso cérebro trabalhem? E se outros recolhem os frutos, ou nós mesmos, que
valem esses frutos se não levam à vida eterna, e o que restará deles amanhã,
quando nós e os nossos tivermos passado e o balanço de nossa vida se saldar em
moedas de alma?
É preciso, portanto, cultivar nossa
alma; para isso, a solidão e o recolhimento se impõem. A solidão chama Deus, abre o coração aos grandes pensamentos,
faz-nos tocar aquele fundo de nós mesmos onde se preparam as resoluções viris e
dissimulam nossos verdadeiros recursos.
Fonte: A.-D. Sertillanges, Jesus, Editora Filocalia, São Paulo, Brasil, 2021.
