Sistemática do ser
Como é esperado, o despertar do pensamento
metafísico ocorre quando dos damos conta de que “existe alguma coisa”, ou
“aparece alguma coisa”. É esta, digamos, integralidade da experiência
que constitui o objeto material da metafísica. Por outro lado, o
pensamento é a manifestação do ser, ao mesmo tempo que o ser é o que se
manifesta na manifestação do pensamento. Esta identidade pensamento-ser
é o objeto formal da metafísica. A metafísica, portanto, considera o
ente (ou “alguma coisa”, coloquialmente falando), que é o objeto da
experiência, enquanto é. No entanto, podemos dizer também que as
“coisas”, os entes, são aquilo a quem compete o ser, ou ainda, aquilo
cujo ato é ser.
Detemo-nos por um instante na ideia de ser.
Três observações cabem aqui: (a) negativamente falando, o ser é indefinível
porque não há nada que lhe seja extrínseco; nem mesmo gênero podemos dizer que
é, (b) positivamente falando, o ser é a mais primitiva e máxima das “ideias”,
não se lhe opõe, o não-ser não pode ser empregado para definir o ser, (c) o
ser é o primum notum et per se notum (“é a primeira e primordial
evidência”), ou seja, ele é conhecido por si mesmo.
O ser é transcendental, ou seja, não
é categorial (não se restringe a uma dimensão ou setor ou gênero ou região do
ser). O ser abarca todas as dimensões e as transcende. O ser é incondicional,
ou seja, não tem condição para ser, mas, ao contrário, é a condição de tudo o
que é. O ser é também absoluto, no sentido de ab-solutus,
“solto de”, mas, ao contrário, é o liame ao qual tudo está vinculado. O ser é
também total, ou seja, tudo é ser, o ser é tudo.
Dissemos na breve história da metafísica que o ser é, por identidade, a verdade do ser. Essa verdade se manifesta no
juízo intuitivo e expressivo (intelecto): é nesse juízo que acontece a colheita
do ser.
Metafísica tomista
(1) A diferença entre ser e ente é a não-subsistência
do ser. Assim como o correr não é o corredor, assim também o ser não é o ente.
(2) O ser transcendental (o “ser comum”) se
diferencia essencialmente do Ipsum Esse Subsistens. O ser transcendental
não existe fora das coisas exceto no intelecto. Por outro lado, o ser
transcendental age como intermediário entre os entes e o Ipsum Esse
Subsistens. Isso significa que o ser
transcendental não é só um “ente de razão”, uma mera forma lógica, mas é a forma
realíssima de tudo o que existe. Por essa e por outras se fala de distinção
real (e não de razão) entre ser e essência.
(3) A conexão ser-ente é completada com um
termo novo: essência. A essência é aquilo segundo o qual se diversifica
o ser. Na noção de substância (= ente) está compreendido que ela tem uma
quididade (= essência).
(4) A participação é a essência
metafísica do ente. O ente é, portanto, aquilo cuja essência é a participação
no ser. O ente é, dessa forma, uma síntese entre o ser (ou ato de ser) e a
essência (ou determinação, ou participação). O ente por participação (as
“coisas comuns”) é uma síntese, enquanto o ser por essência (o “Ser
Subsistente”) é uma identidade.
Explicitação (manifestação) do ser
O ser se explicita (se exibe, se manifesta)
segundo dois planos: (a) o plano da explicitação transcendental ou
ontológica, que ilumina as propriedades transcendentais do ser
(uno, verdadeiro, bom, belo, agir), e (b) o plano da explicitação categorial
ou determinada ou ôntica, que ilumina as propriedades categoriais do ente
(substância/acidente, ato/potência, analogia).
Sigamos o modelo de explicitação do ser
exposto por Tomás de Aquino em seu De Veritate. O que farei aqui é
condensar o que é dito de maneira organizada, já que Molinaro o faz de maneira
mito confusa em seu curso. Vejamos:
Deixei sublinhadas na tabela acima os famosos cinco transcendentais. No entanto, “coisa” e “ente” se identificam e, portanto, podemos excluí-los da lista. Igualmente, unidade e alteridade são correlatas e, portanto, podemos aglutiná-los. Assim, a lista se reduz a três transcendentais: unidade, verdade e bondade. Lembremos que os transcendentais são conversíveis com o ser, ou seja, o ser é unidade, verdade, bondade e, vice-versa, unidade, verdade e bondade são o ser.
O plano próprio do ser é o
transcendental, conforme o item 2 da tabela acima. Mas há ainda o plano
derivado do ente, que é a síntese entre determinação (essência) e ser, no
qual também se verifica a conversibilidade entre ser e unidade, verdade,
bondade (e vice-versa). Já que estamos falando de explicitação do ser, claro
está que o plano derivado é ôntico, não ontológico. Então, se o ser é unidade
é, por conseguinte, indivisão, é absolutez do ser, é impossibilidade (no
sentido de que o ser se impõe necessariamente, isto é, não existe espaço para a
mera possibilidade), é identidade (não é outra coisa que o ser). No plano
derivado, o ente é todas estas coisas também (claro, na medida que o ente tem
ser).
Mas a esta altura talvez surja a dúvida: se
no plano derivado do ente também se diz que há conversibilidade entre ente e
unidade, então como se explica a multiplicidade? Simples: a
multiplicidade ocorre no campo da determinação (essência) do ser. A
determinação, tenhamos claro, não é todo o ser. A multiplicidade está no
interior do ser: os muitos pressupõe a unidade, incluem a unidade e se derivam
da unidade. Aqui cabe esclarecer a distinção entre unidade no campo metafísico
e a unidade no campo matemático. Novamente lancemos mão de uma tabela que
resuma a convoluta explicação de Molinaro:
Está claro: a unidade no âmbito do ser e do ente é transcendental (opõe-se ao não-ser e determina o ser), enquanto na matemática a unidade tem sentido categorial numérico, quantitativo. Vimos isso de certa forma nos graus do saber de Jacques Maritain.
No âmbito do espírito, a verdade e a bondade
tratam de superar sua separação do ser. A conformidade do ser à inteligência é
uma interiorização do ser: o ser se conforma à inteligência na inteligência.
A conformidade da vontade ao ser é uma realização da vontade: a vontade
se conforma ao ser no ser. No entanto, não se conclua com isso que intelecto e
vontade sejam “coisas” separadas do ser: são, como dissemos acima, apenas
distinções interiores ao próprio ser.
Detenhamo-nos um pouco sobre a questão do
ente e da inteligência. O ente, enquanto lhe compete o ser, é verdadeiro. Mas
no plano derivado do ente podemos distinguir dois tipos de verdade: a verdade
lógica e a verdade ôntica. A verdade lógica é aquela que não apenas
é fruto da adequação (unidade) do ente com a inteligência, mas ela se
realiza também como consciência de tal adequação e, mais, como expressão dessa
adequação no juízo. Por isso a verdade lógica pode ser chamada também de “verdade
em exercício”. A verdade ôntica é a inteligibilidade (conteúdo) do ente,
que exprime a afinidade e a intimidade do ente à inteligência. O mais curioso
aqui é que tanto a inteligência quanto a inteligibilidade contêm um momento
de potencialidade, ou seja, no instante da intelecção, tanto a inteligência
é aperfeiçoada pela inteligibilidade quanto a inteligibilidade pela
inteligência. Vê-se que há uma profunda identidade entre verdade lógica e verdade
ôntica. Isso significa que o erro ou falsidade, em si, são impossíveis. Somente
é possível o erro particular e a falsidade particular, porque, por óbvio, sem
verdade não há falsidade, não há erro. A união inteligência-ente é uma união
ideal.
Similarmente, no plano derivado do ente
falamos em bondade intencional e bondade ôntica. Assim como há a inteligência
e a inteligibilidade, há a vontade e a volibilidade. A vontade é a intenção (o
ato da vontade), enquanto a volibilidade é o cumprimento da intenção.Isso significa
que o mal, em si, é impossível. Somente é possível o mal particular porque, por
óbvio, sem bondade não há maldade, não há mal. O mal pode-se entender como
falta, oposição, e negação de uma determinação devida ao ente que é e é
bom: privação do bem devido. Isso vale por exemplo para a doença: o bem
devido do doente é a saúde, mas a doença só existe enquanto no vivente houver
saúde. Tirada a saúde do vivente o mal que é a doença será consequentemente
tirado. O mal, coloquialmente falando, é dor, morte, culpa, crime. Todos estes
males são fruto do pensamento trágico, advindos da consciência do devir,
ou seja, da contradição do ser do ente. O pensamento trágico se funda na
inelutabilidade do nada, do destino que domina como necessidade do tornar-se
nada do ente. Estes males são o aniquilamento do ente no seu ser, mas não,
claro, o aniquilamento do ser do ser humano, isso tem de estar claro. A união vontade-ente
é uma união real.
E a beleza? Não seria ela um transcendental?
Tomás de Aquino considera a beleza como uma fusão da unidade, da verdade e da
bondade. Na beleza, estes elementos ganham nomes específicos: integridade
(unidade), claridade (verdade) e proporção (bondade). A
integridade corresponde à unidade do ser como oposição ao não-ser. A proporção
corresponde à autoposse, como a vontade que se atualiza unindo-se ao ser. A
claridade corresponde à autoconsciência da luminosidade do ser. Mas a beleza só
poderá manifestar-se na harmonia dos três elementos, ou seja, no estar dos três
juntos e unitariamente.
Os princípios do ser
Os princípios do ser não são propriamente “do
ser”, mas exprimem o ser, dizem o ser. São eles: princípio de identidade,
princípio de não-contradição, princípio da razão suficiente, princípio
do terceiro excluído, princípio da impossibilidade do progresso/regresso
ao infinito. No entanto, todos eles se unificam no princípio de
não-contradição, pois é nele que os demais princípios se resolvem
e é dele que os demais princípios são explicitações ulteriores.
O princípio (e seu “principiado”) são equivalentes
ao que coloquialmente chamamos de fundamento (e seu “fundado”). Então quais
seriam os princípios do ente? No caso do ente, não faz sentido falarmos em “princípios”
porque o princípio é algo necessário, autoevidente. No caso do ente, que se
funda no ser, é mais próprio dizermos que ele tem teoremas de causa. O
teorema de causa é o momento ôntico do princípio do ser, ou seja, ele é
a determinação (essência) do princípio do ser.
Na ordem do conhecimento (isto é, do
pensamento), não falamos de princípios ou causas, mas de premissas. Em
última instância, toda conclusão do pensamento tem como premissa o próprio
princípio transcendental de não-contradição. E isso se explica pelo fato de o
pensamento voltar-se a seu fundamento, que é o ser. Assim, a conclusão do
pensamento é (ou “faz parte”) do próprio ser.
A convergência da diferença: analogia
do ente
Como explicar a multiplicidade? Como
explicar que a diferença? Há três possibilidades teoréticas:
(a) Monismo absoluto (ou “o ser é igual
para todos”)
A unidade, ou seja, o ser uno, é um só ser,
não dois ou mais. Diz-se que o ser é unívoco. Mas a experiência nos diz
que existe a diferença, não se pode negá-la. Por outro lado, reduzir o dado da
aparência a mero fenômeno, opinião, ilusão, é pura loucura. Mas esta é
precisamente a estrutura teorética das formas de pensamento panteístas
(materialistas, espiritualistas, idealistas, historicistas, emanacionistas,
evolucionistas etc.).
(b) Pluralismo absoluto (ou “o ser é
diferente para todos”)
Aqui o ser é absolutamente diferente e
múltiplo. A rigor, não há uma realidade ser/ente positivamente determinada. Quando
digo “árvore” é esta árvore aqui. O nexo linguístico é perfeitamente equívoco,
puramente nominalista. Quando Kant diz que o ser não é um predicado real (isto é,
não ajunta nada ao conceito de sujeito), ele inclui-se nesta posição, e a ele
se juntam os positivistas, empiristas, fenomenologias, nominalistas.
(c) Analogia do ente (ou “síntese de ser e
essência”)
As posições (a) e (b) acima se fixam em um
dos termos da síntese. A analogia é uma
posição curiosa: um mesmo termo (“árvore”) é sinal que diz referência a uma
multiplicidade de significados, mas esta correspondência só é possível porque
há uma unificação. Esta unificação manifesta a identidade e a diversidade da realidade;
em outras palavras, esta unificação é uma analogia. Quando eu afirmo o
ente (“árvore”) “afirmo sempre uma síntese diversa, constituída por um diverso
determinar-se do ser ou por uma diversa referência da determinação (essência)
ao idêntico ser. [...] O ente análogo é, portanto, o ente, cuja constituição é
dada pela estrutura da identidade e da diversidade, ou seja, pela síntese entre
a identidade do ser e a diversidade das determinações”.
A analogia do ente é uma analogia de
atribuição. Quando dizemos “homem sadio”, “ar sadio”,
“alimento sadio”, usamos o mesmo termo pra designar a posse da saúde, a manifestação
da posse da saúde, a causação da posse da saúde. Estes significados se
configuram como unidade na diversidade e diversidade na unidade: a referência (“atribuição”)
é a mesma.
Para concluir a questão da identidade (ser)
e da diferença (determinação/essência):
O ser é aquilo pelo qual o ente é ente enquanto tal, o fundamento da realidade do ente. A determinação é aquilo pelo qual o ente é aquele tal ente, a delimitação da atualidade e da perfeição do ser, o fundamento da talidade do ente.
O devir
Aqui não cabe repetirmos o que já foi visto
em inúmeros estudos anteriores sobre potência, ato, substância, causas etc. De
interessante, talvez caiba ressaltar que as causas do ente deveniente se
dividem em duas:
(a) causas intrínsecas do ser =>
substrato, potência, ato
(b) causas extrínsecas do devir =>
eficiente, final
Quanto à ação:
(a) ação => exercício do ser
(b) perfeição => exercício da
essência/determinação ordenada ao ser
Fonte:
Aniceto Molinaro, Metafísica, Paulus, São Paulo, Brasil, 2002.


