29 de dezembro de 2025

Uma breve história da metafísica


A rigor, filosofia é metafísica. Ora, a filosofia é fundamentalmente o ser na sua verdade, ou, em outras palavras, o ser que é verdade e expressão. Mas seria a metafísica uma “filosofia do ser”? Não propriamente, porque afirmar uma “filosofia do ser” implicaria, mesmo que implicitamente, afirmar que o ser é um objeto de pensamento como qualquer outro. A metafísica implica precisamente na identidade entre ser e o discurso sobre a verdade do ser. Se é assim, isso significa que não podemos nos “elevar” acima da metafísica e julgar o ser a partir de um ponto de vista, digamos, suprametafísico. Não faria sentido isso. É claro que podemos distinguir ser e verdade, mas isso não significa que sejam separáveis. Distinguir é uma coisa, separar é outra.

Então o que é metafísica? Ela é a ciência do ente enquanto ente, ou seja, do ente enquanto é, do ente enquanto é ente. A metafísica detém-se no fundamento do ente mesmo, ou seja, no ser. Trata-se do fundamento incondicionado do ente, ou seja, daquilo que não tem condições prévias, mas, pelo contrário, daquilo que condiciona tudo. Em suma, como dissemos acima, qualquer tentativa de superar o ser é reiteração do ser, ou seja, da sua insuperabilidade.

Observe que ciências como matemática, física etc. operam com base em um recorte da realidade, em um recorte do ser. Precisamente por isso elas podem crescer, se expandir e se corrigir. Elas, precisamente porque não abarcam o ser em si, são passíveis de desmentido, de revisão, de falseabilidade. Elas são parciais e, portanto, controvertíveis. A metafísica não é “desmentível”, não é parcial, é a ciência do todo e, portanto, incontrovertível. Daí Molinaro afirmar que o estudo da metafísica se caracteriza pela “sobriedade”.

Qual o princípio das coisas?

Vejamos o que diz Aristóteles sobre o ímpeto fundamental da metafísica:

A maioria dos que por primeiro filosofaram pensaram que princípios de todas as coisas fossem apenas os materiais. Com efeito afirmam que aquilo de que são constituídos os seres e aquilo de que originariamente derivam e em que finalmente se resolvem, é elemento e princípio dos seres, à medida que é uma realidade que permanece idêntica também em meio à mudança dos seus estados. E é por esta razão que acreditam que nada seja gerado e nada seja destruído, uma vez que uma realidade deste tipo permanece sempre. E assim como não dizemos que Sócrates é gerado em sentido absoluto quando se torna belo ou músico, nem dizemos que ele perece quando perde estes modos de ser, pelo simples fato de que o substrato — quer dizer, o próprio Sócrates — continua a existir, assim também devemos dizer que não se corrompe, em sentido absoluto, nenhuma das outras coisas: com efeito, deve existir alguma realidade natural (uma só ou mais de uma) da qual derivam todas as outras coisas, enquanto ela continua a existir inalterada. (Metafísica 1,3, 983B 6-8)

É clássica a passagem do mythos para o lógos para explicar o surgimento do pensamento metafísico. O mito tem aquilo que comentamos acima, qual seja, elementos que podem desmenti-lo e negá-lo, o que o posiciona fora do terreno da verdade. Por isso o mito é volúvel, imprevisível.

O lógos surge, assim, como tentativa de dar à realidade enquanto tal uma explicação última, total, definitiva e imutável. A partir daí podem ser elencados termos que designam este esforço pela descrição da estrutura da realidade, ou seja, da metafísica. Molinaro estabelece uma curiosa linha que aponta para a verdade (alétheia), acima da qual a verdade é descrita como forma e abaixo da qual encontra-se seu conteúdo correspondente.

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O kósmos é ordem, isto é, a multiplicidade de coisas diferentes e antitéticas (contraditórias, opostas, conflitivas) reunidas numa unidade. O eînai é o princípio (arché) unificador desse kósmos. O ser representa precisamente esse princípio porque é oposição infinita ao nada, ao não-ser, que é absolutamente negado. O cháos é a desordem que separa as coisas do seu ser, é a desordem na qual o rompimento do vínculo das coisas com seu ser cai. A physis é o “ser quando tem em si e a partir de si a capacidade de pôr-se e de manifestar-se, de impor-se e de manter-se patente e presente, [...] mostrando-se na sua absoluta inegabilidade”. O pân (tudo/todo) é a reunião em unidade de todas as coisas.

Por outro lado, lógos é pensamento, de onde provém a lógica. E o que pensa o pensamento? Ele pensa o ser, ou seja, o ser é o conteúdo do pensamento. Mais precisamente, o ser se manifesta no pensamento ou, em outras palavras, o pensamento é íntimo e fundido com o ser. Sophia tem a ver, claro, com sabedoria, mas seu sentido mais central tem a ver com luminosidade (sapheía), ou seja, à luz que traz a verdade inegável das coisas. Por isso a filosofia é o amor por tudo o que é inegável, ou seja, amor à verdade irrefutável. Epistéme significa estar (stéme) sobre (epi), ou seja, tudo aquilo que se impõe sobre o que pretende negar seu estar. A filosofia como epistéme, portanto, é a própria oposição infinita do ser ao não-ser.

Por fim, vê-se que a alétheia (verdade) é precisamente a relação entre a forma e o conteúdo. Se nos apegarmos à etimologia da palavra, alétheia é o “não-escondimento”, é a inegabilidade daquilo que está na luz.

O “princípio de todas as coisas”, o “princípio dos seres”, de que fala Aristóteles no texto que citamos acima é composto de quatro determinações e suas respectivas quatro diferenciações. Vejamos isso em uma tabela-resumo:

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Ora, se a verdade é essa relação das coisas com o princípio, então esse princípio é aquilo de que as coisas são constituídas, aquilo a partir de que as coisas se originam, aquilo em que as coisas se resolvem, aquilo sobre o que as coisas subsistem. Eis as quatro determinações (aquilo que dá término, contorno) do princípio em si. E como o princípio se diferencia das coisas? Pelo fato de o princípio ser idêntico, imutável, eterno e substrato. Pela perspectiva das coisas, elas são diversas, sujeitas ao devir (mudança e tempo) e são afecções (modificações). Diz Molinaro:

[E]m absoluto, nada se gera e nada se destrói. Isto significa que o princípio não é apenas o âmbito ou a dimensão dentro dos quais ocorrem as transformações das coisas, mas é também a força que movimenta aquelas transformações: deste modo, a constituição, a subsistência, a geração e a corrupção não ocorrem a partir do nada e na direção do nada, mas a partir da força do princípio e na direção do princípio.

Claro está que o princípio não pode ser uma determinação limitada como queriam os pré-socráticos (água, ar, fogo etc.), mas algo inqualificável, indeterminável. Ele é o ápeiron do qual as coisas se separam.

Como explicar o devir?

O devir é, segundo Heráclito, o princípio dentro do qual ocorre a multiplicidade, ou seja, o devir não apenas explica a multiplicidade, mas é o próprio multiplicar-se da multiplicidade. Ele une a corrupção de uma determinação e o surgimento de outra determinação; ele une os opostos. O princípio também é o devir enquanto é. Parmênides, por outro lado, não aceitava que o devir fosse princípio, mas o princípio seria aquilo pelo qual o devir é. O princípio é o ser, a universalíssima determinação. Por isso Parmênides é considerado o pai da metafísica.

Para Parmênides, o mundo é ilusão, pois consiste em coisas que são outras que não o ser. As opiniões consideram as coisas prescindindo (estando separadas, desconectadas) do seu ser, ou seja, de sua lógica intrínseca, de sua filigrana autenticadora. Assim, as coisas não são em si ilusão e aparência, mas o são quando as consideramos assim, prescindidas de seu ser.

A solução de Platão consiste em partir da ideia de que o ser se contrapõe absolutamente ao não-ser absoluto. O outro em relação ao ser constitui-se da coincidência do é e do não é. Platão – e por extensão toda a tradição clássica – funda a estrutura da relação do outro com o ser na participação (ou “imitação”, ou “comunhão”, ou “presença”). Do Uno como princípio supremo e a Díade Infinita sensível (imagino que Molinaro extraiu essa doutrina não-escrita platônica de Giovanni Reale), que constitui a materia prima universal de Aristóteles, origina-se o devir. O Uno e a Díade são independentes, o que torna o sistema platônica dualista.

Aristóteles trata de encontrar o centro unificante do ser múltiplo e da metafísica. Trata-se de sua famosa ousía (substância). Para ele, tudo se diz ser em relação à substância. Daí que para Aristóteles a metafísica é a ciência da substância. Mas como as substâncias podem devir e ao mesmo tempo permanecerem estáveis? Como manter intacto o princípio de não-contradição ante o devir? Aristóteles ensinava que o substrato muda, por exemplo, de não-branco para branco, ou seja, de um estado de privação (não-branco) para um estado de forma (branco). Mas esse estado de privação não é um “nada”, mas o ser em potência, a respeito do qual o estado de forma correlato é um ser em ato. Mas a potência não se torna ato por si só, afinal ela é mera potencialidade. É necessário algo que já seja ato para que cause a potência se tornar ato. É o primado do ato. Eis que quatro elementos são necessários para tornar inteligível o devir: o substrato, a privação (potência), a forma (ato) e a causa (em última instância, o Ato Puro).

Mas Aristóteles deixou um vício de fundo. A matéria e o devir são eternos e independentes no seu ser do Ato Puro. Em Aristóteles permanece o dualismo, portanto. Há uma compreensão defeituosa da verdade do ser. Para Aristóteles, o ato é a forma. Mas para Tomás de Aquino o ato é o ser. EM outras palavras, o “núcleo” da coisa, para Aristóteles, é a forma. Para Tomás de Aquino é o ser através da forma (essência). Daí a famosa distinção real tomista entre ser e essência.

Kant

Estudaremos Kant com mais detalhes futuramente, mas por ora cabe ressaltar que a concepção metafísica de Kant vem de Christian Wolff. Há, aqui, uma leve, mas decisiva, torção: a metafísica deixa de ter como campo o ente enquanto ente e passa a ter como campo o conceito de ente. Assim, o foco da metafísica deixa de ser o ente e passa a ser os princípios dos quais brotam os conceitos que definem o ente. Em ainda outras palavras, não se trata do ente enquanto é, mas do ente enquanto aquilo que se pode pensar. Passamos da teoria do ente (ontologia/metafísica geral) para a teoria do conhecimento (epistemologia). A metafísica de Kant é, nas palavras de Molinaro, uma “ciência do pensamento separado do ser ou do ente, ciência que [...] se fecha num pensamento abstrato, que não tem mais contato com o ser: é uma ciência puramente racionalista, que procede dogmaticamente como desenvolvimento de conceitos puros, a priori. Isso vem confirmar ulteriormente a perda de todo o contato com o ser: a metafísica racionalista pensa a essência, não o ser”. Em outras palavras, a metafísica se ocupa agora da potência (essência/coneito), não do ato (ente/ser). O que o pensamento pensa é somente algo pensável, uma possibilidade, não atinge a coisa em si ou o ser. Temos uma metafísica que não é metafísica.

Kant parece ter adotado um dualismo gnosiológico, isto é, uma estranheza ou alteridade entre o pensamento/razão e a o ser/coisa-em-si. Na metafísica clássico, quando penso eu necessariamente penso o ser. Pensamento e ser são indissociáveis. Em Kant, não: o pensamento é reduzido à sensibilidade, à “empiricidade”, a mera cognição. Trata-se de um pressuposto acrítico (i.e. preconceito injustificado) de Kant. Quem disse que a coisa não está presente no plano do intelecto? Quem disse que a sensibilidade termina no fenômeno? E se o conhecimento é a síntese a priori (ou seja, síntese de fenômeno e categoria), e a coisa em si não entra nem mesmo no âmbito da fundação logica e da necessidade (já que é uma categoria a priori), então quem disse que, mesmo assim, existe a coisa em si e que é incognoscível? Se não posso afirmar nada a respeito da coisa-em-si, então por que diabos devo mesmo assim afirmar sua existência? Ou seja, se a coisa em si existe externamente então não pode ser pensada, se a coisa em si existe internamente então, bem, não pode existir. Gnosiologicamente a crítica kantiana não passa de tautologia.

Como veremos em outro estudo de Kant (baseando-nos nas lições de Roger Scruton), a exigência transcendental manifesta sub-repticiamente a necessidade de um acabamento. Se a razão é a faculdade do absoluto (ou seja, a faculdade do ser), então pressupõe-se silenciosamente que há uma abertura ao ser.

Hegel

O maior mérito de Hegel é sua crítica fundamental a Kant. Ele observe muito apropriadamente que se a coisa em si de Kant exprime o objeto enquanto se abstrai de tudo o que ele é para a consciência, tanto como sensibilidade como pensamento, então, ora, estamos diante de uma impossibilidade pura e simples. O fenômeno não guarda nenhuma relação de coerência com o númeno, o que se trata, claro, de um absurdo. Ademais, diz Hegel, se a razão é a faculdade do absoluto, do ser, então ela tem de ser uma faculdade absoluta. É a razão ou pensamento de Deus. (entendo que Karl Rahner irá pela mesma linha). Hegel baseará sua metafísica, portanto, na própria razão, na própria lógica e, por conseguinte, na dialética. Vejamos:

(a) O pensamento como intelecto se firma à determinação fixa, ou seja, à determinação do pensamento como absolutamente separada, subsistente por si.

(b) Mas de imediato se passa à negatividade racional. Isto porque a determinação, fechada no seu absoluto isolamento, torna-se então um absoluto oposto. A determinação curiosamente se torna a própria negação.

(c) A unidade das determinações é o elemento afirmativo que resta, ou seja, quando sua contradição é eliminada.

Vê-se que cada determinação deve estar unida ao seu oposto e o momento (c), ou seja, o momento positivo, é a superação da contradição no Infinito ou Absoluto. Finito e Infinito se conectam, sem identificação, sem confusão, sem contradição.

Heidegger

Retoma-se o problema sobre o ser. Heidegger entende que a metafísica histórica se revela como esquecimento do ser. Ele entende que debruçou-se muito sobre uma doutrina ôntica (do ente) e não ontológica (do ser do ente), o que acarretou certo niilismo pois pensar o ente sem o ser é pensar o ente como nada.

É mister, ensina ele, reposicionar o homem no ato de problematizar o ser. O homem é o Da-Sein, o “Ser Aí”, é o homem que se abre ao ser e é o homem que designa sua transcendência do mundo. A chave, a essência, do homem é transcendência para o ser. Ele emerge sobre os demais entes, ele é “extaticidade” (cf. a dimensão extática nametafísica do amor de Frederick Wilhelmsen). A procura de Heidegger redunda no método da fenomenologia, que consiste em alcançar a imediação da iluminação do ser. Em poucas palavras, a conclusão de Heidegger é que devemos superar a metafísica clássica encetando uma via de pensamento e linguagem evocativos, rememorativos e poéticos para, assim, fazer iluminar o ser no homem e iluminar o homem em contato com o ser.

Fonte: Aniceto Molinaro, Metafísica, Paulus, São Paulo, Brasil, 2002.