A rigor, filosofia é metafísica. Ora, a filosofia é fundamentalmente o ser na sua verdade, ou, em outras palavras, o ser que é verdade e expressão. Mas seria a metafísica uma “filosofia do ser”? Não propriamente, porque afirmar uma “filosofia do ser” implicaria, mesmo que implicitamente, afirmar que o ser é um objeto de pensamento como qualquer outro. A metafísica implica precisamente na identidade entre ser e o discurso sobre a verdade do ser. Se é assim, isso significa que não podemos nos “elevar” acima da metafísica e julgar o ser a partir de um ponto de vista, digamos, suprametafísico. Não faria sentido isso. É claro que podemos distinguir ser e verdade, mas isso não significa que sejam separáveis. Distinguir é uma coisa, separar é outra.
Então o que é metafísica? Ela é a ciência
do ente enquanto ente, ou seja, do ente enquanto é, do ente enquanto é
ente. A metafísica detém-se no fundamento do ente mesmo, ou seja, no ser.
Trata-se do fundamento incondicionado do ente, ou seja, daquilo que não
tem condições prévias, mas, pelo contrário, daquilo que condiciona tudo. Em
suma, como dissemos acima, qualquer tentativa de superar o ser é reiteração do
ser, ou seja, da sua insuperabilidade.
Observe que ciências como matemática,
física etc. operam com base em um recorte da realidade, em um recorte do ser.
Precisamente por isso elas podem crescer, se expandir e se corrigir. Elas,
precisamente porque não abarcam o ser em si, são passíveis de desmentido, de
revisão, de falseabilidade. Elas são parciais e, portanto, controvertíveis.
A metafísica não é “desmentível”, não é parcial, é a ciência do todo e,
portanto, incontrovertível. Daí Molinaro afirmar que o estudo da
metafísica se caracteriza pela “sobriedade”.
Qual o princípio das coisas?
Vejamos o que diz Aristóteles sobre o
ímpeto fundamental da metafísica:
A maioria dos que por primeiro filosofaram pensaram que princípios de todas as coisas fossem apenas os materiais. Com efeito afirmam que aquilo de que são constituídos os seres e aquilo de que originariamente derivam e em que finalmente se resolvem, é elemento e princípio dos seres, à medida que é uma realidade que permanece idêntica também em meio à mudança dos seus estados. E é por esta razão que acreditam que nada seja gerado e nada seja destruído, uma vez que uma realidade deste tipo permanece sempre. E assim como não dizemos que Sócrates é gerado em sentido absoluto quando se torna belo ou músico, nem dizemos que ele perece quando perde estes modos de ser, pelo simples fato de que o substrato — quer dizer, o próprio Sócrates — continua a existir, assim também devemos dizer que não se corrompe, em sentido absoluto, nenhuma das outras coisas: com efeito, deve existir alguma realidade natural (uma só ou mais de uma) da qual derivam todas as outras coisas, enquanto ela continua a existir inalterada. (Metafísica 1,3, 983B 6-8)
É clássica a passagem do mythos para
o lógos para explicar o surgimento do pensamento metafísico. O mito tem
aquilo que comentamos acima, qual seja, elementos que podem desmenti-lo e
negá-lo, o que o posiciona fora do terreno da verdade. Por isso o mito é
volúvel, imprevisível.
O lógos surge, assim, como tentativa
de dar à realidade enquanto tal uma explicação última, total, definitiva e
imutável. A partir daí podem ser elencados termos que designam este esforço
pela descrição da estrutura da realidade, ou seja, da metafísica. Molinaro
estabelece uma curiosa linha que aponta para a verdade (alétheia), acima
da qual a verdade é descrita como forma e abaixo da qual encontra-se seu
conteúdo correspondente.
O kósmos é ordem, isto é, a
multiplicidade de coisas diferentes e antitéticas (contraditórias, opostas,
conflitivas) reunidas numa unidade. O eînai é o princípio (arché)
unificador desse kósmos. O ser representa precisamente esse princípio
porque é oposição infinita ao nada, ao não-ser, que é absolutamente negado. O cháos
é a desordem que separa as coisas do seu ser, é a desordem na qual o rompimento
do vínculo das coisas com seu ser cai. A physis é o “ser quando tem em
si e a partir de si a capacidade de pôr-se e de manifestar-se, de impor-se e de
manter-se patente e presente, [...] mostrando-se na sua absoluta
inegabilidade”. O pân (tudo/todo) é a reunião em unidade de todas as
coisas.
Por outro lado, lógos é pensamento,
de onde provém a lógica. E o que pensa o pensamento? Ele pensa o ser, ou seja,
o ser é o conteúdo do pensamento. Mais precisamente, o ser se manifesta no
pensamento ou, em outras palavras, o pensamento é íntimo e fundido com o ser. Sophia
tem a ver, claro, com sabedoria, mas seu sentido mais central tem a ver com
luminosidade (sapheía), ou seja, à luz que traz a verdade inegável das
coisas. Por isso a filosofia é o amor por tudo o que é inegável, ou seja, amor
à verdade irrefutável. Epistéme significa estar (stéme) sobre (epi),
ou seja, tudo aquilo que se impõe sobre o que pretende negar seu estar. A
filosofia como epistéme, portanto, é a própria oposição infinita do ser
ao não-ser.
Por fim, vê-se que a alétheia
(verdade) é precisamente a relação entre a forma e o conteúdo. Se nos
apegarmos à etimologia da palavra, alétheia é o “não-escondimento”, é a
inegabilidade daquilo que está na luz.
O “princípio de todas as coisas”, o “princípio
dos seres”, de que fala Aristóteles no texto que citamos acima é composto de quatro
determinações e suas respectivas quatro diferenciações. Vejamos isso em uma
tabela-resumo:
Ora, se a verdade é essa relação das coisas
com o princípio, então esse princípio é aquilo de que as coisas são constituídas,
aquilo a partir de que as coisas se originam, aquilo em que as coisas se
resolvem, aquilo sobre o que as coisas subsistem. Eis as quatro determinações
(aquilo que dá término, contorno) do princípio em si. E como o princípio se
diferencia das coisas? Pelo fato de o princípio ser idêntico, imutável, eterno
e substrato. Pela perspectiva das coisas, elas são diversas, sujeitas ao devir
(mudança e tempo) e são afecções (modificações). Diz Molinaro:
[E]m absoluto, nada se gera e nada se destrói. Isto significa que o princípio não é apenas o âmbito ou a dimensão dentro dos quais ocorrem as transformações das coisas, mas é também a força que movimenta aquelas transformações: deste modo, a constituição, a subsistência, a geração e a corrupção não ocorrem a partir do nada e na direção do nada, mas a partir da força do princípio e na direção do princípio.
Claro está que o princípio não pode ser uma
determinação limitada como queriam os pré-socráticos (água, ar, fogo etc.), mas
algo inqualificável, indeterminável. Ele é o ápeiron do qual as coisas
se separam.
Como explicar o devir?
O devir é, segundo
Heráclito, o princípio dentro do qual ocorre a multiplicidade, ou seja,
o devir não apenas explica a multiplicidade, mas é o próprio multiplicar-se da
multiplicidade. Ele une a corrupção de uma determinação e o surgimento de outra
determinação; ele une os opostos. O princípio também é o devir enquanto é.
Parmênides, por outro lado, não aceitava que o devir fosse princípio, mas o princípio
seria aquilo pelo qual o devir é. O princípio é o ser, a universalíssima
determinação. Por isso Parmênides é considerado o pai da metafísica.
Para Parmênides, o mundo é ilusão, pois
consiste em coisas que são outras que não o ser. As opiniões consideram as
coisas prescindindo (estando separadas, desconectadas) do seu ser, ou seja, de
sua lógica intrínseca, de sua filigrana autenticadora. Assim, as
coisas não são em si ilusão e aparência, mas o são quando as consideramos
assim, prescindidas de seu ser.
A solução de Platão consiste em partir da
ideia de que o ser se contrapõe absolutamente ao não-ser absoluto. O outro em
relação ao ser constitui-se da coincidência do é e do não é. Platão
– e por extensão toda a tradição clássica – funda a estrutura da relação do
outro com o ser na participação (ou “imitação”, ou “comunhão”, ou “presença”).
Do Uno como princípio supremo e a Díade Infinita sensível (imagino que Molinaro
extraiu essa doutrina não-escrita platônica de Giovanni Reale), que constitui a
materia prima universal de Aristóteles, origina-se o devir. O Uno e a
Díade são independentes, o que torna o sistema platônica dualista.
Aristóteles trata de encontrar o centro
unificante do ser múltiplo e da metafísica. Trata-se de sua famosa ousía
(substância). Para ele, tudo se diz ser em relação à substância. Daí que para
Aristóteles a metafísica é a ciência da substância. Mas como as
substâncias podem devir e ao mesmo tempo permanecerem estáveis? Como manter
intacto o princípio de não-contradição ante o devir? Aristóteles ensinava que o
substrato muda, por exemplo, de não-branco para branco, ou seja, de um estado
de privação (não-branco) para um estado de forma (branco). Mas esse estado de
privação não é um “nada”, mas o ser em potência, a respeito do qual o
estado de forma correlato é um ser em ato. Mas a potência não se torna
ato por si só, afinal ela é mera potencialidade. É necessário algo que já seja
ato para que cause a potência se tornar ato. É o primado do ato. Eis que
quatro elementos são necessários para tornar inteligível o devir: o substrato,
a privação (potência), a forma (ato) e a causa (em última
instância, o Ato Puro).
Mas Aristóteles deixou um vício de fundo. A
matéria e o devir são eternos e independentes no seu ser do Ato Puro. Em
Aristóteles permanece o dualismo, portanto. Há uma compreensão defeituosa da
verdade do ser. Para Aristóteles, o ato é a forma. Mas para Tomás de Aquino o
ato é o ser. EM outras palavras, o “núcleo” da coisa, para Aristóteles, é a
forma. Para Tomás de Aquino é o ser através da forma (essência). Daí a famosa
distinção real tomista entre ser e essência.
Kant
Estudaremos Kant com mais detalhes futuramente,
mas por ora cabe ressaltar que a concepção metafísica de Kant vem de Christian
Wolff. Há, aqui, uma leve, mas decisiva, torção: a metafísica deixa de ter como
campo o ente enquanto ente e passa a ter como campo o conceito de
ente. Assim, o foco da metafísica deixa de ser o ente e passa a ser os princípios
dos quais brotam os conceitos que definem o ente. Em ainda outras palavras, não
se trata do ente enquanto é, mas do ente enquanto aquilo que
se pode pensar. Passamos da teoria do ente (ontologia/metafísica
geral) para a teoria do conhecimento (epistemologia). A metafísica de Kant é,
nas palavras de Molinaro, uma “ciência do pensamento separado do ser ou do
ente, ciência que [...] se fecha num pensamento abstrato, que não tem mais
contato com o ser: é uma ciência puramente racionalista, que procede
dogmaticamente como desenvolvimento de conceitos puros, a priori. Isso
vem confirmar ulteriormente a perda de todo o contato com o ser: a metafísica
racionalista pensa a essência, não o ser”. Em outras palavras, a
metafísica se ocupa agora da potência (essência/coneito), não do ato
(ente/ser). O que o pensamento pensa é somente algo pensável, uma
possibilidade, não atinge a coisa em si ou o ser. Temos uma metafísica
que não é metafísica.
Kant parece ter adotado um dualismo
gnosiológico, isto é, uma estranheza ou alteridade entre o pensamento/razão
e a o ser/coisa-em-si. Na metafísica clássico, quando penso eu necessariamente
penso o ser. Pensamento e ser são indissociáveis. Em Kant, não: o pensamento é
reduzido à sensibilidade, à “empiricidade”, a mera cognição. Trata-se de um
pressuposto acrítico (i.e. preconceito injustificado) de Kant. Quem disse que a
coisa não está presente no plano do intelecto? Quem disse que a sensibilidade
termina no fenômeno? E se o conhecimento é a síntese a priori (ou seja,
síntese de fenômeno e categoria), e a coisa em si não entra nem mesmo no âmbito
da fundação logica e da necessidade (já que é uma categoria a priori), então
quem disse que, mesmo assim, existe a coisa em si e que é incognoscível? Se não
posso afirmar nada a respeito da coisa-em-si, então por que diabos devo mesmo assim
afirmar sua existência? Ou seja, se a coisa em si existe externamente então não
pode ser pensada, se a coisa em si existe internamente então, bem, não pode existir.
Gnosiologicamente a crítica kantiana não passa de tautologia.
Como veremos em outro estudo de Kant
(baseando-nos nas lições de Roger Scruton), a exigência transcendental
manifesta sub-repticiamente a necessidade de um acabamento. Se a razão é a faculdade
do absoluto (ou seja, a faculdade do ser), então pressupõe-se
silenciosamente que há uma abertura ao ser.
Hegel
O maior mérito de Hegel é sua crítica
fundamental a Kant. Ele observe muito apropriadamente que se a coisa em si de
Kant exprime o objeto enquanto se abstrai de tudo o que ele é para a consciência,
tanto como sensibilidade como pensamento, então, ora, estamos diante de uma
impossibilidade pura e simples. O fenômeno não guarda nenhuma relação de
coerência com o númeno, o que se trata, claro, de um absurdo. Ademais, diz
Hegel, se a razão é a faculdade do absoluto, do ser, então ela tem de ser uma faculdade
absoluta. É a razão ou pensamento de Deus. (entendo que Karl Rahner irá
pela mesma linha). Hegel baseará sua metafísica, portanto, na própria razão, na
própria lógica e, por conseguinte, na dialética. Vejamos:
(a) O pensamento como intelecto se firma à determinação
fixa, ou seja, à determinação do pensamento como absolutamente separada,
subsistente por si.
(b) Mas de imediato se passa à negatividade
racional. Isto porque a determinação, fechada no seu absoluto isolamento,
torna-se então um absoluto oposto. A determinação curiosamente se torna a
própria negação.
(c) A unidade das determinações é o
elemento afirmativo que resta, ou seja, quando sua contradição é eliminada.
Vê-se que cada determinação deve estar unida
ao seu oposto e o momento (c), ou seja, o momento positivo, é a superação da
contradição no Infinito ou Absoluto. Finito e Infinito se conectam, sem
identificação, sem confusão, sem contradição.
Heidegger
Retoma-se o problema sobre o ser. Heidegger
entende que a metafísica histórica se revela como esquecimento do ser.
Ele entende que debruçou-se muito sobre uma doutrina ôntica (do ente) e não ontológica
(do ser do ente), o que acarretou certo niilismo pois pensar o ente sem o ser é
pensar o ente como nada.
É mister, ensina ele, reposicionar o homem
no ato de problematizar o ser. O homem é o Da-Sein, o “Ser Aí”, é o
homem que se abre ao ser e é o homem que designa sua transcendência do mundo. A
chave, a essência, do homem é transcendência para o ser. Ele emerge
sobre os demais entes, ele é “extaticidade” (cf. a dimensão extática nametafísica do amor de Frederick Wilhelmsen).
A procura de Heidegger redunda no método da fenomenologia, que consiste
em alcançar a imediação da iluminação do ser. Em poucas palavras, a conclusão
de Heidegger é que devemos superar a metafísica clássica encetando uma via de
pensamento e linguagem evocativos, rememorativos e poéticos para, assim, fazer iluminar
o ser no homem e iluminar o homem em contato com o ser.
Fonte: Aniceto
Molinaro, Metafísica, Paulus, São Paulo, Brasil, 2002.
