Falar de “graus do saber” implica falar em
ciência. E ciência não tem a ver com a realidade em si, que é contingente (como
esta mesa, que poderia não estar aqui). A ciência expressa as propriedades (ou
“exigências”) de um indivisível ontológico. Em outras palavras, ela expressa a natureza
ou essência de uma coisa. O mundo da história, o mundo das coisas concretas,
o mundo do devir, o mundo “aqui embaixo”, não tem essência, mas apenas
“ocorrência”. Portanto, a realidade necessariamente é composta de essência e
ocorrência: essência porque tem orientação, ocorrência porque tem movimento
(tempo).
É falso, no entanto, dizer que a ciência
não versa sobre o mundo contingente. Versa, mas per accidens, ou seja,
quando a ciência “retorna” ao singular ao aplicar nele verdades universais. Por
outro lado, que não se pense que a abstração seja capaz, em um só golpe, de
apresentar a essência das coisas. Não é assim tão fácil. A abstração, sim, nos
introduz na ordem do ser inteligível, mas em princípio percebe apenas os
aspectos mais comuns e pobres desse inteligível. A essência mesma das coisas só
apreendemos, quando apreendemos, à custa de muito esforço. A abstração nos
apresenta apenas signos exteriores da essência.
Há as ciências da explicação (ou
“ciências verticais” propter quid est), que tratam das essências como se
fossem cognoscíveis: estamos falando das ciências dedutivas, filosóficas e
matemáticas. Elas revelam as causas em si mesmas do objeto, apresentando
inteligíveis despojados da existência concreta temporal. Há as ciências da
verificação (ou “ciências horizontais” quia est), que tratam das
essências como se fossem incognoscíveis: estamos falando das ciências
indutivas. Elas revelam as causas dos objetos a partir de seus signos, e não as
causas em si mesmas, não apresentando inteligíveis que transcendam a existência
concreta temporal.
No entanto, é como se as ciências da
verificação “se sentissem” necessariamente atraídas às ciências da explicação.
Em outras palavras, a inteligibilidade é paralela à imaterialidade. A
partir daí, pode-se estabelecer três graus de abstração e as respectivas
ciências que os estudam: (1) conhecimento da natureza sensível, ou seja,
uma intelecção perinoética (a lei científica está nos signos, como que “girando
em torno” da essência) ou uma intelecção dianoética (a lei filosófica está na
essência dos fatos); o objeto permanece impregnado de todas as notas
provenientes da matéria exceto as particularidades contingentes e estritamente
individuais; esse objeto não pode existir sem a matéria e não pode ser
concebido sem a matéria; a ciência que o estuda é o que os antigos chamavam de physica;
(2) conhecimento da quantidade, ou seja, a intelecção se dá na
imaginação e na própria imaginação tem que verificar-se diretamente ou
analogicamente; o objeto permanece apenas com o número/extensão em si mesmo;
esse objeto não pode existir sem a matéria, mas pode ser concebido sem a
matéria; a ciência que o estuda é o que os antigos chamavam de mathematica;
(3) conhecimento do ser, ou seja, uma intelecção ananoética; o objeto
retém apenas o ser embebido nele mesmo, isto é, o ser e suas leis; esse objeto
pode existir sem a matéria e pode ser concebido sem a matéria; a ciência que o
estuda é o que os antigos chamavam de metaphysica.
Vê-se desde logo que a physica divide-se
em (1a) ciências da comprovação (todas as ciências da natureza sensível,
que são ciências da verificação) e (1b) ciências do ser corporal (filosofia
da natureza sensível, que é ciência da explicação). A physica e a metaphysica
se dirigem a seres reais, enquanto a mathematica se dirige a seres
reais e seres de razão. A luz da physica é como uma participação da luz
da metaphysica.
A física-matemática, um desenvolvimento
moderno, é uma ciência materialmente física e formalmente matemática. Embora
seja uma ciência dos fenômenos enquanto tais, as conexões sobre as quais se
baseia não são conexões inteligíveis, mas conexões meramente formais, restritas
às relações matemáticas. É uma ciência interessante e frutífera sem dúvida, mas
apenas uma scientia media.
A filosofia, aqui abrangendo a metafísica e
a filosofia da natureza, é quem justifica e defende os princípios das ciências.
“É a filosofia, por exemplo, e não a matemática, que nos dirá se o número
irracional e o número transfinito são seres reais ou seres de razão, se as
geometrias não-euclidianas são construções de razão que se fundam na geometria
euclidiana e atribuem a esta um valor privilegiado, ou se, ao contrário,
constituem um conjunto mais vasto, do qual a geometria euclidiana não passa de
uma espécie; ela nos ensinará se a matemática e a lógica tem ou não fronteiras
imutavelmente traçadas etc. Em suma, é a filosofia que confere a ordem que
reina entre as ciências: sapientis est ordinare (‘é próprio do sábio
ordenar’).”
Uma crítica ao idealismo
Kant recusou-se a conceder à metafísica o status de ciência porque para ele a experiência era o produto e o fim da ciência, que ela constitui ao aplicar aos dados sensíveis necessidades que são formas puras do espírito. Mas Santo Tomás reconhece na metafísica a ciência suprema da ordem natural, porque para ele a experiência é o ponto de partida da ciência, que, ao ler nos dados sensíveis necessidades inteligíveis que a transcendem, pode ir além, seguindo essas necessidades, e assim chegar a um conhecimento supraexperimental absolutamente certo. O ser é, de fato, o objeto próprio do entendimento, em cujos conceitos está incorporado; é a ele, portanto, como contido sob os dados dos sentidos, que nossa inteligência se dirige em primeiro lugar. Uma vez que tenha extraído esse objeto de conceito para considerá-lo em si mesmo, como ser, ela então compreende que tal objeto não se reduz às realidades sensíveis nas quais foi inicialmente descoberto; mas, ao contrário, possui um valor supraexperimental, assim como os princípios que nele residem. É por isso que a inteligência fecha o circuito, por assim dizer, retornando àquele mesmo ser — que contemplou desde o princípio, desde a sua primeira intelecção do sensível — para apreendê-lo metafísica e transcendentalmente. E assim, tendo em seus conceitos metafísicos a percepção intelectual de objetos, como o ser e os transcendentais, que podem ser realizados para além da matéria na qual os percebe, a metafísica também apreenderá esses objetos — sem percebê-los diretamente desta vez e como que no espelho das coisas sensíveis — onde eles são realizados sem matéria, como os fatos verificados no mundo da experiência nos forçam a inferir. O suprassensível não poderia, consequentemente, pelo menos na ordem natural, ser objeto de uma ciência experimental; é, no entanto, objeto de uma ciência propriamente dita e da ciência por excelência; porque se o mundo do ser enquanto ser, desvendado pelo espírito quando liberta seus objetos de toda materialidade, não cai sob os sentidos, por outro lado, as necessidades inteligíveis são descobertas ali da maneira mais perfeita, de modo que o conhecimento ordenado a tal universo de inteligibilidade é em si mesmo o mais certo, mesmo que o alcancemos com mais dificuldade; porque somos uma raça ingrata e medíocre, que só aspira a carecer do que de mais sublime poderia possuir, e que por si só, mesmo quando certos dons superiores lhe fortaleceram os olhos, terá sempre preferência pela escuridão.
* * *
Maritain critica o idealismo apoiando-se em
três razões centrais:
(a) É incoerente que o puro cogito
possa servir de ponto de partida de uma teoria do conhecimento. O famoso cogito
ergo sum [“penso logo sou”] é ambíguo pois pretende ser o ponto de partida
e ponto de chegada do conhecimento. Maritain propõe uma alternativa: scio
aliquid esse [“sei que algo existe”].
Nesta fórmula, o ser inteligível e o eu são dados conjuntamente desde o
primeiro momento, mas o ser vai em primeiro plano e o eu como que “nos
bastidores”.
(b) Uma verdadeira teoria do conhecimento
não pode apresentar nenhum tipo e duvida real universal porque encerraria um
círculo vicioso. Sim, pois ignora-se até mesmo a ordenação essencial da
inteligência ao ser, o que põe em suspenso a própria suspensão de qualquer
certeza. Ademais, citando a Du Rossaux:
“Não se pode duvidar, de maneira reflexiva, do valor de toda certeza sem
referir-se de maneira expressa a um ideal absoluto e incontestável de certeza.
[...] Pois bem, tal certeza implica todos os elementos da filosofia crítica:
noções da verdade, da realidade, da objetividade etc.; a filosofia crítica
começou antes do começo que se assigna a si mesma”. Em todo juízo a
inteligência se conhece tácita e virtualmente a si mesma; o realismo é vivido
pela inteligência antes de ser reconhecido por ela.
(c) A epistemologia não pode ser condição
prévia da filosofia. É absurda a pretensão de fazer do retorno sobre seus
próprios passos o primeiro passo de uma corrida. De acordo com Étienne Gilson:
“É preciso que a epistemologia, ao invés de ser uma condição da ontologia,
cresça nela e com ela: a epistemologia deve explicar e ao mesmo tempo ser
explicada; deve sustentar-se e ser sustentada, como se sustentam mutuamente as
partes de uma verdadeira filosofia”. Comenta Maritain, não sem sarcasmo: “Todos
os esforços demonstrativos do idealismo se reduzem a declarar que uma coisa não
pode ser conhecida sem ser conhecida, coisa que todo mundo já suspeitava”.
O realismo, por outro lado, alega que o ato
de conhecer, a coisa e o pensamento constituem estritamente uma unidade:
a inteligência em ato é, segundo Aristóteles, o inteligível em ato. É isso que
Tomás de Aquino quer dizer com adaequatio rei et intellectus: a
adequação, ou melhor, conformidade, entre a inteligência e a coisa.
A ingenuidade [dos filósofos imbuídos nos princípios cartesianos] consiste em começar por um ato de conhecimento das coisas e não por um ato de conhecimento do conhecimento. O espírito deve efetivamente escolher seu caminho desde o começo; se requer dele uma decisão primeira, ordenada a governar todo seu destino. Mas o primeiro ato de reflexão ensina que quem escolheu segundo a natureza e sem recusar a primeira luz acesa em seu coração, ou seja, a primeira evidência objetiva, escolheu sabiamente; e aquele que escolheu contra a natureza, exigindo uma segunda lei antes de seguir a primeira, escolheu um absurdo; quis começar pelo que está em segundo lugar.
Pensa-se o pensado somente depois de se ter pensado o pensável “apto para existir” (o real ao menos possível); o primeiro que se pensa é o ser independente do pensamento. O cogitatum [“o pensado”] do primeiro cogito não é o cogitatum, mas o ens. Não se come o comido, se come pão. Separa o objeto da coisa, o logos objetivo do ser metalógico, é violar a natureza da inteligência, é desviar-se da primeira evidência da intuição direta e mutilar a intuição reflexiva (essa mesma intuição reflexiva sobre a qual se pretender cimentar tudo) no primeiro de seus dados imediatos. O idealismo começa a levantar o edifício filosófico com um pecado inicial contra a luz.
[...]
Se desde o começo se recusam com tanto cuidado as coisas e sua consistência extramental reguladora de nosso pensamento é porque antes de mais nada se busca, por um instinto secreto tanto mais imperioso quanto permanece mais oculto, não se ver obrigado a encontrar-se afinal na presença de uma suprema realidade transcendente, de um abismo de personalidade ante o qual todo o coração está a descoberto e que nosso pensamento deve adorar. Os baluartes e as fortalezas da filosofia idealista são, no final das contas, descomunais obras de proteção contra a personalidade divina.
Basta que haja coisas para que Deus seja inevitável. Outorguemos a uma folha de grama, à mais diminuta formiga, seu valor de realidade ontológica e não poderemos escapar à terrível mão que nos criou.
[...]
Assim, o mundo do realismo autêntico é um mundo de coisas que existem em si mesmas, um mundo, uma imensa família, um symposium [uma "conversa"] de indivíduos e pessoas em interação, assim como a coisa que conhece é em si mesma um indivíduo ou uma pessoa, e essa coisa que conhece está lá no meio das outras para atraí-las de certa forma para seu seio e para se nutrir da mesma coisa que elas são.
Santo Tomás diz sobre isso: “Qualquer coisa pode ser perfeita de duas maneiras. Primeiro, de acordo com a perfeição de seu próprio ser, que lhe é apropriada de acordo com sua própria espécie. Mas, como o ser específico de uma coisa é distinto do ser específico de outra, segue-se que, em toda coisa criada, a perfeição que ela possui carece daquilo que possui, tanto quanto todas as outras espécies; de modo que a perfeição de uma coisa considerada em si mesma é imperfeita, visto que faz parte da perfeição total do universo, que nasce da união de todas as perfeições particulares. Portanto, como remédio para essa imperfeição, há nas coisas criadas outro meio de perfeição, segundo o qual a mesma perfeição que é propriedade de uma coisa é encontrada em outra. Tal é a perfeição do conhecedor como tal, porque, na medida em que ele conhece, o que é conhecido existe de certa maneira nele... E de acordo com esse modo de perfeição, é possível que em uma única coisa particular exista a perfeição de todo o universo.”
Para Tomás de Aquino e seus seguidores,
conhecer significa ser algo distinto do que se é, ou seja, é chegar a ser algo
diverso de si mesmo, é chegar a ser o outro enquanto outro. O cognoscente chega
a ser mais um com o conhecido do que a matéria com a forma. O
conhecimento não é o verbo mental, muito embora ele seja uma expressão do ato
de conhecimento. Em suma, o conceito (verbo mental) é um signo, que existe
somente no espírito, enquanto o objeto é o significado, que existe tanto no
espírito quanto na coisa. Para Descartes não existe ser intencional, ou seja, o
verbo mental; para ele, o conceito é um mero signo instrumental. Ora, uma vez
que desaparece a função intencional, o conhecimento passa a ser perfeitamente
ininteligível.
O saber da natureza sensível
Maritain chama o conjunto do que o sujeito
cognoscente pode conhecer de transobjetivo inteligível. A primeira zona
do transobjetivo inteligível com a qual a inteligência humana entra em contato
é um universo de objetos que se manifestam (“realizam”) somente na existência
sensível ou empírica: eis o universo da realidade sensível. Há uma
segunda zona, que é a preterrealidade, ou seja, o universo matemático.
Por fim, há uma terceira zona do transobjetivo inteligível, que é o transsensível,
ou seja, o universo do metafísico, o qual termina em um ser que, para nós, é
transinteligível, que somente é cognoscível mediante por meio da analogia.
Quanto à realidade sensível (a primeira
zona do transobjetivo), há dois saberes, como vimos no quadro acima: a filosofia
da natureza (um saber de ordem ontológica) e as ciências experimentais
(aquilo que chamamos coloquialmente de “ciência”).
É nas ciências experimentais que se
comprova a enorme relevância e utilidade das matemáticas, em especial seu uso
no que modernamente chamamos de “física”, embora tal disciplina, para não ser
confundida com a filosofia da natureza, deva ser chamada de
“física-matemática”, ou seja, a porção matematizável da física geral (filosofia
da natureza). A matemática fornece os entes
de razão necessários para que os entes reais e suas imagens
aproximativas (como “elétron”, por exemplo) possam ser relacionadas. E aqui o
leitor pode se perguntar como diabos um ente de razão, que não é real,
relaciona-se com os entes reais? Onde se dá o “contato” entre tais entes?
O contato se dá na categoria da
“quantidade”. A quantidade é extraída do sujeito (lembre-se que na filosofia
medieval “sujeito” e “objeto” são entendidos inversamente ao que modernamente
se entende) pela abstractio formalis, constituindo em si um universo de
conhecimento separado, que é o universo de preterrealidade, que é o objeto da
matemática. Os entes de razão matemáticos, a despeito de não serem entes reais,
se comunicam com a física experimental mediante medições, isto é, quantidades.
Por mais complexa e abstrata que se apresente a física teórica e suas
complicadas relações matemáticas, o litmus test serão as medições
quantitativas da física experimental.
Por mais que o léxico conceitual da
física-matemática seja complexo, sua base é empiriológica. No entanto, lhe
falta à física-matemática o léxico de base ontológica. O léxico empiriológico
da física-matemática atinge o ser das coisas apenas obliquamente. Sim, é
verdade, tal léxico toca as essências do mundo corporal (é a categoria da
quantidade), mas não são elas seu objeto próprio. Ainda mais nos últimos cem
anos, com o desenvolvimento da física quântica, é impossível que a
física-matemática progrida fingindo que há um pano ontológico de fundo. Não se
trata de mero “arcaísmo”, portanto. Em suma, o saber da física-matemática não é
de conhecimento da realidade dado pela realidade, mas um conhecimento da
realidade dado pela preterrealidade. É um conhecimento da realidade física por
meio de mitos, isto é, de mitos verificados, ou seja, que concordam com as
“aparências” mensuráveis e que as “salvam”: uma ciência experimental e mito-poética
da realidade física.
Quanto à filosofia da natureza, ela não se
interessa pelas condições empíricas, mas pelas razões de ser e pelas causas
propriamente ditas; em outras palavras, ela procura a essência das coisas.
Embora se volte ao mundo sensível, ou seja, ao mundo da mutabilidade, o que a
filosofia da natureza procura descobrir são os princípios ontológicos que dão
razão à mutabilidade do mundo. É essencialmente uma filosofia da mutabilidade.
No entanto, a essência das coisas permanece
como que sepultada por detrás da matéria. O que a filosofia da natureza é capaz
de fazer é captar, mediante as grandes diferenças entre matéria inanimada,
vegetais e animais, certas propriedades essenciais. No mais, para além destas
elevadas certezas universais, resta o conhecimento que Leibniz chamava de
“simbólico” ou “cego”, e que nós atualmente chamamos de conhecimento empírico
ou “científico”. Este conhecimento é muitíssimo detalhado, mas a essência lhe
escapa.
O saber metafísico
Vimos acima que a intelecção dianoética é
aquela própria das ciências experimentais. É quando o intelecto agente,
alimentado pelos nove sentidos, consegue conhecer as coisas por si mesmas. Mas
a intelecção dianoética nunca alcança o que quer que seja desde o íntimo das
coisas, desde o “coração” do ser, digamos. A intelecção dianoética leva à
essência, mas como que “por fora”, como um cego que caminha a apalpadelas, sem
poder discernir a própria essência nem suas propriedades essenciais
ontologicamente falando. No caso das ciências experimentais, a intelecção é
perinoética, ou seja, o conhecimento é periférico, “circunferencial”: os
minerais, vegetais, animais se negam a mostrar suas determinações específicas.
Em suma, como ensinava Cardeal Caetano, a
inteligência humana tem por objeto conatural a essência ou quididade das
coisas, mas nunca conhece as coisas essencialmente ou “quiditativamente”.
Antes de saber que Pedro é um homem já o
percebi como alguma coisa, como um ser. E esse objeto inteligível “ser” é
universalmente comunicável, ou seja, me deparo com ele em todo lugar: em todo
lugar o ser é o mesmo e em todo lugar o ser é distinto; não consigo pensar nada
sem tê-lo presente diante de meu espírito pois ele está impregnado todas as
coisas. A isso os escolásticos chamavam de objeto de pensamento transcendental.
Há uma trindade que se destaca nos transcendentais: o ser em si mesmo, o
verdadeiro (ontológico) e o bem (metafísico). O ser é percebido dianoeticamente
de imediato, sem ter por espelho nenhum tipo de objeto conhecido
antecipadamente. A primeira lei do ser (“o ser não é o não-ser”) é nossa
intuição filosófica primordial, é o princípio ontológico (metalógico), e não
lógico.
Mas se o conhecimento do ser realiza-se por
intelecção dianoética, o mesmo não ocorre com os seres analogados a ele. O
analogado transinteligível (decifrar o invisível no visível) é conhecido no
analogado proporcionado à nossa inteligência mediante a abstração do análogo
transcendental (Maurílio Teixeira Leite Penido). Aqui falamos, por exemplo, das
perfeições divinas, que são encontradas analogamente no ser. Não se trata de
intelecção perinoética ou dianoética, mas ananoética. É penetrando nestes
transinteligíveis que nossa inteligência encontrará seu repouso.
A partir daí, toda e qualquer intelecção a
respeito da Divindade (se é trina, se sua natureza se une à dos homens na
encarnação etc.) é uma sobreanalogia.
O saber místico
O saber metafísico, para Maritain, não é o grau
mais superior dos saberes. Há ainda dois graus acima. Mas antes de versar um
pouco sobre eles, é interessante notar que Maritain considera que o ser, embora
detectável nas coisas sensíveis, é ele mesmo algo que transcende o sensível, e
mais: o noûs é com que impelido a buscar nas regiões suprassensíveis mais
e novas verdades. O ser é, portanto, uma “isca” que captura o noûs para regiões
mais elevadas. A novidade aqui, o leitor verá, é que o mundo sensível, mesmo
nesta vida, não é imprescindível para a comunicação das verdades transcendentais
por parte do Ser Supremo ou de anjos.
“É preciso dizer que Santo Tomás nunca
considerou a inteligência humana reduzida à ciência do sensível, à qual se
acrescentaria, como extensão ilusória, um conhecimento metafórico das coisas
individuais e espirituais. Essa interpretação irrisória, que às vezes se ouve —
porque os vocábulos suportam tudo — é uma distorção radical de seu pensamento.
Se nossa inteligência está diretamente ordenada, como humana, ao ser tal como
se concretiza nas coisas sensíveis, ela permanece, como inteligência, ordenada
ao ser em toda a sua amplitude; e o ser percebido nas coisas sensíveis já é
um objeto de pensamento que transcende o sensível e obriga o espírito a
conceber uma zona do ser desvinculada dos limites do sensível e a buscar nessa
zona as razões supremas de todo o resto. Desse modo, nossa ordenação
natural das coisas situadas no mesmo plano que nós em relação ao ser é como uma
isca, uma armadilha que nos atrai para um plano superior; do ponto de vista da
ética, é necessário dizer com Aristóteles que a natureza humana exige, pelo
que há de principal nela, ou seja, pelo noûs, ir em direção ao que está
acima do homem.”
A seguir, um quadro-resumo dos saberes superiores:
É mediante a graça, implantada nos homens como
uma semente de Deus (semen Dei). É uma realidade “física”, ou seja,
ontológica, algo positivo e eficiente, a mais sólida das realidades. É nesta
ordem espiritual que vive o metafísico e o poeta, e esta ordem está acima de
todas as leis do universo corporal. Esta graça, o próprio Deus, explica
Maritain, habita não como simples causa primeira eficiente. O que ele quer
dizer é que a graça se torna “objeto”, ou seja, uma causa última final, um
objeto de conhecimento e de amor.
Assim, a graça tem como fim a experiência
mística e a contemplação infusa, cujo alcance pode dispensar a ação intermediária
das coisas sensíveis. Mas é claro que a experiência mística exige consequentemente
um conhecimento sobrenaturalmente inspirado. Ademais, embora o conhecimento
metafísico aponte para o Alto, tal conhecimento implica em uma distância. Tal
distância é engendrada pelos conceitos formados naturalmente. Para o
conhecimento sobrenatural, tal distância tem de ser vencida, ou “anulada”, e é precisamente
isso que faz a experiência mística: ela “une”, mediante a visão beatífica, homem
e Deus. Há, portanto, certa conaturalidade entre ambos, homem e Deus, cuja “ponte”
ou “acesso” se dá mediante a graça por inspiração do Espírito.
Eis aqui um quadro-resumo de como o
espírito humano é movido natural e sobrenaturalmente por Deus.
Por fim, cabe lembrar que existe a
possibilidade de um esboço de semelhança natural de da experiência mística pela
via do amor natural de Deus: tal amor, de fato, por insuficiente que seja para nos
fazer preferir eficazmente a Deus sobre todas as coisas, pode, no entanto, ser
intenso e profundo e até eficaz sobre o governo de nossos impulsos teóricos, se
não sobre nossa própria vida; tal amor poderia, por conseguinte, esboçar na
alma um grau mais puro de inspiração e espiritualidade natural às analogias
naturais da contemplação.
Fonte: Jacques Maritain, Los grados del saber, Ediciones Desclee de Brouwer, Buenos Aires, Argentina, 1947.